O que o “esporte espetáculo” ignora

O americano Tommie Smith cruza a linha de chegada em alta velocidade na pista de atletismo do Estádio Universitário da Cidade do México. Em meio à euforia da torcida e ao esforço esperado de quem dá um pique de 200 metros em 19 segundos, o olhar de Smith se concentra, por um instante, em tentar achar algum adversário por perto. Ninguém está a sua frente. Habemus um novo campeão olímpico.

Tommie Smith tinha acabado de escrever seu nome na história. Mas o ano era 1968, e qualquer feito, por mais incrível que fosse, parecia ser insignificante se não houvesse uma pitada de rebeldia. Quebrar regras era a regra, e o recém-campeão da prova dos 200m nos Jogos Olímpicos da Cidade do México estava ciente de que sua missão ainda não estava completa.

Nada era mais insubmisso naqueles tempos que o “Black power”. O medalhista de ouro, calçando luvas pretas ergue o punho direito no pódio e choca o mundo politicamente correto. O compatriota John Carlos, terceiro colocado na prova, faz a mesma saudação dos “Panteras Negras”. Medalhista de prata, o australiano Peter Norman fica mais contido, mas coloca no peito um bottom utilizado por simpatizantes do movimento que lutava pelos direitos civis dos negros nos EUA. A Austrália também vivia sob um regime de segregação racial, assim como a África do Sul.

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Tommie Smith e John Carlos foram suspensos pelo COI pela saudação Black Power (Foto: Associated Press)

Poucos conhecem Tommie Smith e sua carreira como velocista. Isso é tarefa para os “maluquinhos fanáticos por esporte”. Mas essa foto você já viu em algum momento e agora sabe razoavelmente do que se trata. Quando as atenções do mundo estavam voltadas para aquelas Olimpíadas, para aquele estádio, para aquela prova, não havia qualquer outra circunstância que pudesse ser mais impactante para dar aquele tapa na cara e escancarar o racismo amparado pela lei. Graças ao esporte, muitos souberam que havia algo injusto na auto-intitulada “nação-modelo para o mundo”. Nada de gols, braçadas, recordes ou cestas de três pontos: se essa foto de 5 décadas atras é a mais marcante da história do maior evento esportivo do mundo, é porque o esporte vai muito além de um mero resultado.

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John Carlos (esq.) e Tommie Smith (dir.) foram homenageados pelo ex-presidente Barack Obama em um encontro na Casa Branca com atletas da delegação americana que representou o país nos Jogos Olímpicos do Rio de Janeiro em 2016 (Foto: CNN)

O esporte e suas emoções são uma manifestação latente do que é ser humano. O escritor José Lins do Rego e o antropólogo Roberto DaMatta enfatizam, em seus textos sobre o futebol, a importância do esporte mais popular do mundo como ferramenta para compreender a cultura brasileira. O mesmo vale para qualquer outra modalidade em qualquer canto da Terra.

No entanto, segundo o “Leifertianismo”, a atitude dos atletas foi “inapropriada”. Segundo um dos postulados dessa “teoria”, “evento esportivo não é lugar de manifestação política”. Foi o que escreveu o jornalista e apresentador da TV Globo Tiago Leifert em sua coluna na revista ‘GQ’. Seguindo o “raciocínio”, se Leifert fosse presidente do Comitê Olímpico Internacional, não teria dado aval para as duas Coreias desfilarem juntas em um emocionante gesto político e diplomático de tolerância e paz nas cerimônias de abertura e encerramento dos Jogos Olímpicos de Inverno de Pyeong Chang.

Como jornalista esportivo que exerce na prática a profissão em um veículo de comunicação tradicional, sinto com clareza que o jornalismo esportivo ainda ocupa uma posição secundária em relação à cobertura da política, da economia e de outros temas de interesse nacional e internacional. Isso acontece, entre outros motivos, por abordarmos muitas vezes o esporte apenas nas quadras e campos, subestimando o seu poder na cultura, na história e na democracia. Quem tenta pensar fora da caixa rotineiramente é taxado de “careta”, sob o argumento frágil de que o esporte é nada mais que entretenimento.

Não há como elevar o jornalismo esportivo a um patamar de maior prestígio sem valorizar as inúmeras conexões entre esporte e inclusão, liberdade de expressão e respeito. Só assim se mostra para a opinião pública o quanto o esporte é importante, ainda mais em um mundo caótico como o contemporâneo. Qualquer profissional que não esteja de acordo com estes valores não estará apto para cobrir o esporte.

Ainda bem que Tiago Leifert, ao menos, percebeu isso e decidiu sair do jornalismo esportivo para apresentar o “Big Brother Brasil”.

*Texto originalmente publicado na página do autor no Medium.

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