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A importância da História Regional para os estudos sobre esportes no Brasil

Por Glauco José Costa Souza

A História Regional é um instrumento importante para conectar realidades locais ao âmbito nacional. As realidades díspares existentes ao longo do território brasileiro não nos permitem afirmar que vivenciamos ao longo dos anos um processo histórico monolítico, tão pouco há unanimidade nas interpretações do mesmo. Assim, é preciso encontrar maneiras de superar os desafios que segregam experiências regionais e, muitas vezes, as distanciam do que chamamos de nacional.

O processo de desenvolvimento historiográfico no Brasil formulou perspectivas tradicionais que vêm sendo desconstruídas nas últimas décadas e um dos pilares para isso é o maior desenvolvimento da História Regional. Ela pode permitir conexões entre realidades locais e nacionais, possibilitando o surgimento de novas vozes, identidades e culturas.

Historicamente, a região Sudeste goza de maior primazia em relação às demais regiões do Brasil no que se refere às análises históricas. Essa diferenciação criou dificuldades de identificação de padrões culturais distantes do Rio de Janeiro e São Paulo com o que seria algo típico do Brasil. No campo dos estudos esportivos, foi a partir do eixo Rio-São Paulo que se começou a analisar a História dos Esportes. Tomando como exemplo o futebol, é com Charles Miller que se tem, oficialmente, os primeiros chutes em nosso país.

No Rio de Janeiro, o bairro de Bangu, mais recentemente a partir das pesquisas de Carlos Molinari, busca reivindicar o pioneirismo neste jogo, sem desconsiderar a antiga disputa a respeito da prática futebolística de marinheiros ingleses no bairro da Glória. Ainda assim, temos um foco quase exclusivo no Sudeste.

Por décadas, a História Esportiva no Brasil ficou concentrada em análises que majoritariamente concentravam-se no Sudeste. Não obstante, com o crescimento da História Regional e das possibilidades de novas fontes de estudo, essa realidade tem mudado. Cléber Dias, por exemplo, tem se lançado em análises que permeiam estudos envolvendo o futebol na região Centro-Oeste, concomitantemente ao aumento de análises sobre outros processos históricos feitos nessa localidade. Isso mostra o quanto temos podido avançar em abordagens que vão além do tradicional nas análises regionais sobre os estudos esportivos.

Assim, podemos identificar que por meio da História Regional podemos superar lacunas e conectar realidades locais ao que chamamos de nacional em diversos segmentos, inclusive nos estudos sobre esporte. Sozinhos, este ramo dos estudos históricos não pode servir para revelar realidades outrora escondidas, mas ele pode ser visto como parte dos avanços historiográficos de possibilitar novas áreas de análise que busquem avançar ao que já produzimos. Todavia, é sempre bom destacar que isso não significa um abandono aos estudos em regiões já bastante analisadas. Nesses locais, e tomando como exemplo o Rio de Janeiro, ainda há no que se avançar em novos objetos de observação e em outras possibilidades de reflexão. 

Quando nos debruçamos sobre as partidas de futebol ocorridas no Rio de Janeiro no início do século passado podemos perceber que há diferenciação entre as regiões sobre não só a ocorrência das pelejas, mas também sobre a frequência e, como se percebe com ênfase na imagem abaixo, na concentração dos campos de jogos. De maneira geral, podemos identificar que os estádios se encontram no primeiro quartel dos anos de 1900 instalados com maior pujança nas áreas que compõem as regiões central e sul/sudeste da Capital Federal.

Embora a participação popular não tenha sido registrada de forma escrita na mesma proporção que em outros momentos da História Mundial com as elites, ela fez parte da dinâmica política da sociedade em que ocorreu e a utilização de novas fontes ajuda a perceber isso. Mattos, relacionando informações de periódicos, censos e dados cartográficos, contribui de forma bastante didática para isso e permite valorizar processos históricos outrora desconhecidos, uma vez que “embora os seus movimentos pareçam cegos e evasivos quando comparado aos de tipo moderno, eles não são sem importância ou sequer marginais”.

O que nem sempre permitiu o desenvolvimento desta concepção foi a falta de fontes produzidas pelos próprios agentes históricos. Durante muito tempo, a restrição a respeito do que poderia ser uma fonte impediu de se dar atenção a estes aspectos que, por conseguinte, não se tornaram objetos de estudos em larga escala.

A utilização da mais ampla documentação, por outro lado, permitiu que objetos outrora ignorados se tornassem estudos nas academias e permitissem, assim, dar mais voz aos antes excluídos. O futebol foi, portanto, um dos elementos que nos serviram para refletir sobre a maneira como aqueles que não se enquadram no conceito de elite que utilizamos no presente trabalho se posicionassem diante de situações do cotidiano em que se tentou excluí-la. O esporte bretão, praticado em seus primeiros momentos pelos jovens esportistas endinheirados do Rio de Janeiro, não ficou restrito a eles.

A perspectiva que se consolidou no Brasil dos estudos sobre a História do Futebol, assim como em outras áreas, tendeu a privilegiar determinados grupos sociais que fizeram valer sua influência para reforçar visões específicas de mundo. De forma bastante sintética, podemos dizer que a leitura de mundo de um grupo se sobrepôs sobre a de outros e, por isso, determinadas narrativas históricas tiveram mais influência, permitindo, ainda que não fosse objetivo primário, o predomínio de uma região (Sudeste, Centro-Zona Sul do Rio de Janeiro) sobre outras (demais regiões, os Subúrbios Cariocas). A História Regional é, portanto, uma alternativa viável para quebrar esse modelo e permitir que novas vozes se apresentem como parte do desenvolvimento esportivo no Brasil. 

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A crise do Union Berlin na mídia alemã

Nos últimos anos, dois clubes causaram sensação na Bundesliga, o Campeonato Alemão da 1ª Divisão: por um lado, o RB Leipzig, clube patrocinado pela RedBull, empresa austríaca de energéticos, que se tornara bicampeão da Copa da Alemanha, desbancando clubes tradicionais e angariando uma ampla rejeição entre os torcedores alemães; por outro, o 1. FC Union Berlin, que ascendeu à 1ª divisão em 2019 e, até então, vinha fazendo ótimas campanhas, inclusive, chegando a disputar a Champions League nesta temporada.

Entretanto, o ex-clube da Alemanha Oriental, único representante da capital alemã na atual temporada da Bundesliga, uma vez que a tradicional equipe da Hertha BSC disputa a segunda divisão nesta temporada e não tem feito boa campanha, o “Eisern Union” (Union de Ferro, título de seu hino oficial) (CORNELSEN, 2019), surpreendentemente, angariou uma série de 09 derrotas seguidas no Campeonato Alemão, conforme indicações abaixo:

03/09/2023: Union Berlin 0 x 3 RB Leipzig

16/09/2023: Wolfsburg 2 x 1 Union Berlin

23/09/2023: Union Berlin 0 x 2 Hoffenheim

30/09/2023: Heidenheim 1 x 0 Union Berlin

07/10/2023: Borussia Dortmund 4 x 2 Union Berlin

21/10/2023: Union Berlin 0 x 3 VfB Stuttgart

28/10/2023: Werder Bremen 2 x 0 Union Berlin

04/11/2023: Union Berlin 0 x 3 Eintracht Frankfurt

12/11/2023: Bayer Leverkusen 4 x 0 Union Berlin

Todavia, a fase é pior ainda, pois, nesse período, o clube de Berlim disputou outras duas competições, a Copa da Alemanha e a Champions League, e seu desempenho foi igualmente decepcionante:

20/09/2023: Real Madrid 1 x 0 Union Berlin (Champions League)

03/10/2023: Union Berlin 2 x 3 Braga (Champions League)

24/10/2023: Union Berlin 0 x 1 Napoli (Champions League)

31/10/2023: VfB Stuttgart 1 x 0 Union Berlin (Copa da Alemanha)

São, portanto, 13 derrotas desde o início de setembro, sendo 12 derrotas seguidas, apenas interrompidas pelo empate em 1 x 1 contra o Napoli em 08 de novembro de 2023, pela Champions League. Mesmo tendo ainda 02 rodadas a disputar, contra Real Madrid e Braga, o Union Berlin já está eliminado da próxima fase da Champions League, e foi igualmente eliminado da Copa da Alemanha. O quadro não poderia ser pior para os “de ferro” (Eiserne), que demonstraram grande fragilidade nesta temporada iniciada em agosto, ocupando a lanterna da Bundesliga com apenas 06 pontos após 11 rodadas.

Não é por acaso que tamanha crise tenha ocupado e siga ocupando tanto a mídia alemã, sobretudo, desde o início de outubro. As expressões para defini-la são diversas, como, por exemplo, “aparência de perda de controle” (Anschein von Kontrollverlust), nas palavras de Sebastian Stier, em matéria publicada no Frankfurter Allgemeiner Zeitung em 01 de novembro de 2023 (STIER, 2023). Fala-se também de “falência” (Pleite) (STIER, 2003), em uma expressão do âmbito econômico. Ralf Lorenzen, redator do canal alemão ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen) considera que o clube de Köpenick, bairro tradicional na parte oriental da capital alemã, estaria “em queda livre” (im freien Fall) (LORENZEN, 2023).

Na página do Sportbuzzer, um portal digital de cobertura futebolística, fala-se de “uma serie de falência nunca antes ocorrida para um clube da Bundesliga” (eine nie dagewesene Pleitenserie für einen Bundesligisten), de “uma falência para os anais da história” (eine Pleite für die Geschichtsbücher) (SPORTREDAKTION, 2023). Para reforçar tal argumento, são apresentados os números de longas séries de outros clubes: Tasmânia Berlin, 10 derrotas em série na temporada 1965/1966; 1. FC Nürnberg, 11 derrotas em série na temporada 1983/1984; Arminia Bielefeld, 11 derrotas em série na temporada 1999/2000; Greuther Fürth, 12 derrotas em série na temporada 2021/2022.

Outra expressão que aparece na mídia alemã em torno da crise do Union Berlin é a “busca pela identidade esportiva” (Union Berlin sucht seine sportliche Identität), nas palavras de Till Oppermann, da rbb24, Estação de Rádio Difusão de Berlim e Brandenburgo (OPPERMANN, 2023), o que se pressupõe, em termos argumentativos, de que o clube detinha uma identidade que o levara a uma posição de destaque no futebol alemão e europeu, nas últimas temporadas. E o jornalista vale-se da linguagem da computação para potencializar seu argumento em relação à perda de identidade, como se nada tivesse sobrado das temporadas anteriores: “É como se alguém tivesse formatado o disco rígido do Union no verão” (OPPERMANN, 2023)1. Algo, portanto, impensável em relação ao passado recente, como Ralf Lorenzen argumenta valendo-se de uma metáfora do âmbito da mecânica: “O Union corria como uma máquina bem azeitada” (LORENZEN, 2023)2.

Por sua vez, a mídia alemã aponta como um dos motivos para a queda de rendimento do Union Berlin a mudança efetuada na equipe com a chegada de jogadores de renome internacional em julho deste ano: o zagueiro italiano Leonardo Bonucci, que se transferiu da Juventus de Turim; o atacante alemão Kevin Volland, que veio do A.S. Monaco, da França; o meia-esquerda alemão Robin Gosens, que se transferiu da Internazionale de Milano.

Ex-técnico do Union Berlin, Urs Fischer. Foto: Watson

Por fim, algo impensável na maioria dos clubes mundo afora, incluindo o cenário futebolístico brasileiro, a sobrevivência do treinador suíço Urs Fischer após tão longa série de derrotas foi igualmente digna de recorde. Nesse sentido, Sebastian Stier fez uma avaliação precisa em 01 de novembro de 2023: “O que ainda mantém Fischer no cargo, nestes dias, não é o presente, mas sim exclusivamente o passado e seu desempenho ao levar o clube da segunda divisão à Champions League em cinco anos. Mas ele não será capaz de viver disso para sempre.” (STIER, 2023)3. E suas palavras se concretizaram nesta pausa para Data Fifa: Urs Fischer não é mais treinador do Union Berlin. Aquele que parecia “intocável” (unantastbar) para alguns, não resistiu à longa série de derrotas, não sobreviveu à “queda livre” e à “falência”, nem ao “apagamento do disco rígido”, não conseguiu fazer com que a “máquina azeitada” não emperrasse com as novas “engrenagens”, que muito prometiam. 


Referências

CORNELSEN, Elcio Loureiro. “Nós do lado oriental vamos sempre avante” – 1. FC Union Berlin, um clube em ascensão. Arquibancada. São Paulo, v. 120, n. 36, 26 jun. 2019. Disponível em: https://ludopedio.org.br/arquibancada/nos-do-lado-oriental-vamos-sempre-avante-1-fc-union-berlin-um-clube-em-ascensao/. Acesso em: 15 nov. 2023.

LORENZEN, Ralf. Die Gründe für die Krise der „Eisernen“. ZDF. 09 nov. 2023. Disponível em: https://www.zdf.de/nachrichten/sport/fussball-bolzplatz-union-berlin-krise-100.html. Acesso em: 15 nov. 2023.

OPPERMANN, Till. Union Berlin hat seine Grundprinzipien verloren. rbb24. 21 out. 2023. Disponível em: https://www.rbb24.de/sport/beitrag/2023/10/fussball-bundesliga-union-berlin-niederlage-stuttgart-analyse-defensive-problem.html. Acesso em: 15 nov; 2023.

SPORTREDAKTION. Union historisch schlecht: das sind die längsten Pleitenserien von Bundesligisten. Sportbuzzer. 07 nov. 2023. Disponível em: https://www.sportbuzzer.de/fussball/champions-league/union-berlin-historisch-schlecht-die-laengsten-niederlagenserien-von-bundesligisten-UD5C  . Acesso em: 15 nov. 2023.

STIER, Sebastian. Urs Fischer an der roten Linie. Frankfurter Allgemeine Zeitung. 01 nov. 2023. Disponível em: https://www.faz.net/aktuell/sport/fussball/bundesliga/elfe-niederlage-fuer-union-berlin-urs-fischer-zehrt-allein-von-der-vergangenheit-19283822.html. Acesso em: 15 nov. 2023.


Notas

1 Todas as traduções são de minha autoria. No original:Es wirkt, als hätte im Sommer jemand die Union-Festplatte formatiert.

2 No original Union lief wie eine gut geölte Maschine.

3 No original: concretizaram nesta pausa para Data Fifa: Urs Fischer não é mais treinador do Union Berlin. Aquele que parecia “intocável” (unantastbar) para alguns, não resistiu à longa série de derrotas, não sobreviveu à “queda livre” e à “falência”, nem ao “apagamento do disco rígido”, não conseguiu fazer com que a “máquina azeitada” não emperrasse com as novas “engrenagens”, que muito prometiam.


Was Fischer dieser Tage noch im Amt hält, ist nicht die Gegenwart, sondern ausschließlich die Vergangenheit und sein Verdienst, den Klub innerhalb von fünf Jahren von der zweiten Liga in die Champions League geführt zu haben. Ewig wird aber auch er nicht davon zehren können.

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Mídia e direito de torcer no futebol: a Canarinhos LGBTQ+ pela democratização dos estádios

Escrito por Marcelo Resende

O mundo político acompanhou, nos últimos anos, a ascensão de grupos ultraconservadores em diversas democracias ocidentais. Experiências políticas que abalaram o establishment mundial, gerando repercussão planetária e elevando nomes que se diziam antissistêmicos ao poder. No campo político, são nomes que se colocam como conservadores e que possuem características da extrema-direita, cuja principal essência é o ataque à democracia (MUDDE, 2022).

Em terras brasileiras, Jair Bolsonaro é o expoente dessa direita ultrarradical, comandando o fenômeno conhecido como bolsonarismo, chegando à presidência em 2018, após diversos acontecimentos desde junho de 2013, como o impeachment da presidenta Dilma Rousseff (PT), a Lava-Jato, a prisão de Lula (PT) com atuação parcial do judiciário, a desinformação nas eleições de 2018, entre outros fatores (PINHEIRO-MACHADO, 2019). Além de ataques frequentes ao sistema democrático brasileiro, Bolsonaro e seus apoiadores fazem uso da guerra cultural para promover o nós contra eles e por como inimigo tudo aquilo que não se encaixa no ecossistema bolsonarista.

Definido um alvo, é produzido, por exemplo, o discurso de ódio contra minorias, como a perseguição a mulheres, a negros e a grupos LGBTQIAPN+. Contrário ao avanço sexual e aos direitos reprodutivos (MISKOLCI, 2018), o bolsonarismo atacou ainda mais esses grupos, seja pela ausência de políticas públicas, nas redes sociais ou até mesmo por meio da imprensa. Um cenário excludente às minorias.

No futebol, tal sequestro fez com que parte da população não se sentisse mais representada pela camisa da seleção brasileira, recusando-se a usá-la na Copa do Mundo de 2018 (REIS, 2021). Com o passar dos anos, grupos políticos reavaliaram o afastamento dos símbolos nacionais e passaram a usá-los novamente, já num contexto de enfrentamento à extrema-direita. Dentro do futebol, isso também é verificado com o Coletivo Canarinhos LGBTQ+, que surgiu em 2019 com o objetivo de lutar pelo direito da população LGBTQIAPN+ de torcer e estar presente no esporte mais popular do país, democratizando-o a grupos excluídos dentro de um ambiente historicamente heteronormativo. Faremos uma análise da atuação da Canarinhos LGBTQ+, via Instagram e site oficial da organização, para confirmar o enfrentamento à extrema-direita brasileira como forma de resistência, de autodefesa e democratização do futebol.

Fonte da imagem: canarinhoslgbtq.com.br

Quando jornalistas esportivos fazem comentários políticos que desagradam uma ala de seguidores, comumente recebem como comentário algo como “você comenta futebol, não política”, “vai comentar futebol que é o que você sabe”, entre outras frases que mostram como uma parcela da população visa a despolitizar o futebol. Afinal, política e futebol se misturam? O futebol é político? Antes de iniciar qualquer debate, é interessante afirmar que futebol e política são distintos com experiências próprias histórica e socialmente construídas.

Historicamente, a política tratava apenas as relações de poder entre o Estado e os cidadãos, no entanto, está presente em todos os fenômenos sociais, mesmo que as relações com o Estado e a vida pública não estejam nítidas. Ribeiro (2020) afirma que, a partir da metade do século XX, houve uma reconfiguração do conceito de política influenciada, entre outras coisas, por movimentos sociais e culturais, como o “Maio de 68”, o feminismo, a luta contra o Apartheid. Isto é, a política deixa de ser definida como algo natural apenas entre Estado e cidadão, perde esse caráter único para uma prática socialmente construída ao longo da história. Movimentos sociais como uma união de mulheres pela igualdade salarial no Brasil, por exemplo, constitui política. Ou o trabalho do Coletivo Canarinhos LBGTQ+[1] que luta pela inclusão da população LGBTQIAPN+ no futebol.

Fonte da imagem: UOL

A política do Estado é sim uma ordem que responde a um bem comum, mas é, em última instância, uma ordem produzida na tessitura das relações sociais de disputa de poderes. A política se exerce por meio de uma complexa rede de micropoderes, integrados ou não ao Estado (RIBEIRO, 2020, p. 27)

Portanto, é uma política que sai das ruas como forma de micropoder, retirando do Estado o monopólio do poder hegemônico. A quem interessa o poder fora da sociedade, fora das ruas, fora dos movimentos, fora dos coletivos etc.? A política nas ruas abre margem para as subjetividades, o que põe sob ameaça o poder dominante. Existem grupos que lutam para sobreviver e enfrentar a ordem vigente e, por consequência, tornar o espaço onde vivem mais democrático. Porém, também há o mesmo do outro lado, organizações que se colocam como defensores do sistema para mantê-lo como está.

Talvez por isso que DaMatta (1997) afirma que o brasileiro é avesso às tensões sociais, porque ele não deseja mudanças profundas na sociedade, caracterizando certo conservadorismo. Lembra do Escola sem Partido? Dos gritos de “sem partido” nas manifestações de junho de 2013? Há despolitização para, num momento oportuno, acontecer a cooptação de determinado experimento social. No futebol não é diferente, pois é esse o caminho daqueles que não desejam a mistura da política com o esporte. O futebol despolitizado fica blindado da atuação dos micropoderes e inteiramente exposto à manipulação dos poderes oficiais (governos, Fifa, confederações, clubes sem a participação das ruas). Não há democracia.

O futebol é popularizado, globalizado e profissionalizado nos dias atuais. Porém, ainda há camadas sociais que lutam para ter direito de se fazer presente. Conhecendo o caráter heteronormativo do futebol, o que será discutido mais à frente, quaisquer subjetividades que lutam por inclusão LGBTQIAPN+ e de mulheres nesse esporte, por exemplo, ameaçam as estruturas misóginas e LGBTfóbicas do futebol.

Fonte da imagem: Globo Esporte

No Brasil, sob o bolsonarismo, houve ataques corriqueiros à comunidade LGBTQIAPN+. Mesmo em 2023, após Bolsonaro sair da presidência, um pastor bolsonarista incentivou que fiéis evangélicos matassem pessoas LGBTQIAPN+[2]. Foram ataques subsequentes às minorias, incluindo a população LGBTQIAPN+, que se viu como alvo frequente da extrema-direita brasileira, que abomina os avanços sexuais e reprodutivos, especialmente de mulheres e homossexuais, denominando-os como “ideologia de gênero” (MISKOLCI, 2018).

Em 2011, uma semana após o Supremo Tribunal Federal regulamentar a união entre pessoas do mesmo sexo, o então deputado federal Jair Bolsonaro liderou movimento contrário à distribuição de material escolar que visava ao enfrentamento da discriminação e da violência contra homossexuais, bissexuais, travestis e transexuais, pejorativamente chamado de “kit gay”. Bolsonaro logo obteve apoio da bancada evangélica no congresso nacional. Os ultraconservadores usavam o argumento de doutrinação das crianças para que elas se tornassem gays, gerando um pânico moral na população. Com crianças usadas como tática de convencimento, gerando grande repercussão midiática, os ultraconservadores conseguiram que a distribuição do material fosse cancelada pela presidenta Dilma Rousseff (MISKOLCI, 2018).

O trabalho da Canarinhos LGBTQ+, que congrega torcidas LGBTQIAPN+ de diversos clubes brasileiros, mostra-se ainda mais fundamental nesse contexto de exclusão da população LGBTQIAPN+ do futebol. Midiaticamente, esses coletivos têm o Instagram como uma das principais ferramentas de atuação. A exemplo do próprio Canarinhos LGBTQ+. Nele, o grupo detalha ações e projetos em andamento, denuncia as violências sofridas pelo público LGBTQIAPN+ no futebol e cobra políticas públicas de inclusão de autoridades. Exemplo: em 17 de maio de 2023, o Dia Internacional de Combate à LGBTfobia, a página do coletivo revelou que apenas três clubes da Série A não se posicionaram a favor da causa: Flamengo, Coritiba e Cuiabá[3]. Uma forma de cobrar a diretoria dessas equipes a repensarem a estratégia e permitir que os torcedores LGBTQIAPN+ dessas equipes se sintam acolhidos pelo clube do coração.

Em consequência de lutar pelo direito de existir, o trabalho do Coletivo de Torcidas Canarinhos LGBTQ mostra-se fundamental para a defesa dos direitos da comunidade LGBTQIAPN+ no futebol. Um espaço que é machista, misógino e homofóbico que precisa ser combatido e desconstruído (GOELNNER, 2005; BANDEIRA, 2019). Isso só acontecerá com ações como a do coletivo e atitudes de autoridades públicas que vão além do punitivismo, como medidas socioeducativas. É possível que haja interesse das instâncias políticas para inserir o debate contra a LGBTfobia na sociedade e, consequentemente, no futebol. Os comentários no post de anúncio da parceria entre o coletivo e a CBF só confirmaram tal necessidade.

Confira o artigo completo, publicado nos anais do Intercom 2023 (46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação) clicando aqui.

Referências Bibliográficas

DAMATTA, Roberto; BRASIL, Sabem Com Quem Está Falando? Um Ensaio Sobre A Distinção Entre Individuo e Pessoa no Brasil. In: MATTA, Roberto da. Carnavais, malandros e heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro. Rio de Janeiro: Rocco, 1997. p. 179-248.

GOELLNER, Silvana. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Rev. bras. educ. fís. esp ; 19(2): 143-151, abr.-jun. 2005.

MISKOLCI, R. Exorcizando um fantasma: os interesses por trás do combate à “ideologia de gênero”. Cadernos Pagu, [S. l.], n. 53, 2018. Disponível em: > https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/cadpagu/article/view/8653409

MUDDE, Cas. A extrema-direita hoje. Tradução João Marcos E. D. de Souza. 1 ed. – Rio de Janeiro: EdUERJ, 2022.

PINHEIRO-MACHADO; FREIXO. Brasil em transe: Bolsonarismo, Nova direita e Desdemocratização. Rosana Pinheiro-Machado, Adriano de Freixo (organizadores) – Rio de Janeiro: Oficina Raquel, 2019.

REIS, Mattheus. Amarelo desbotado: crise e sequestro da camisa da seleção brasileira de futebol. 2021

RIBEIRO, Luiz Carlos. Futebol e política. In: GIGLIO, Sérgio Settani; PRONI, Marcelo Weishaupt. (Orgs.). O futebol nas ciências humanas no Brasil. Campinas: Editora da Unicamp, 2020.


[1] https://canarinhoslgbtq.com.br/

[2] Disponível em: > https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/pastor-andre-valadao-incita-fieis-a-matar-lgbts-em-culto-nos-estados-unidos-16614188 <. Acesso em: 10 ago. 2023.

[3] Disponível em: https://www.instagram.com/p/CsgteJoOI6N/. Acesso em: 14 jul. 2023.

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O futebol não é digno de ser entendido

O futebol é cruel. Doloroso. Maltratante.

E, por favor, não me venha dizer que não é. Ele é sim. Terrivelmente sufocante, indignante, a mais pura transfiguração do sofrimento.

Ao bem da verdade, não é de hoje que eu tento analisar essa dicotomia devastadora que envolve vida, futebol, sofrimento, paixão. 

Alteridades que, segundo Le Breton (2010), têm a capacidade de produzir performances corporais ritualmente organizadas visando ao outro.

Mas o que eu quero defender mesmo é que, para além dessas disputas performáticas, o futebol definitivamente não faz bem à saúde.

Ao longo da vida, haverá mais dor que êxtase. Mais revés do que triunfo. Mais devastação do que bonança. E, no entanto, seguimos firmes no torcer.

Claro, ao escrever sobre isso, tenho em mente o famigerado pênalti de número 10 a ser batido na final da Copa Sul-Americana, realizada no último sábado, 28 de outubro de 2023.

Era o quinto pênalti a ser cobrado pelo lado do Fortaleza, o placar estava empatado em 3 a 3, era apenas mais um chute, mais um acerto, mais um gol, para o Tricolor do Pici chegar à sua glória máxima, à sua mais impactante conquista, ao primeiro título continental vencido por um clube do Nordeste.

Pedro Augusto foi para a bola. Ele carregava o mundo em si.

Mas… perdeu o gol! O título. O lugar no panteão dos heróis tricolores.

Desperdiçou o sonho. Emudeceu toda uma “comunidade imaginada” (Anderson, 2008) que só esperava o óbvio acontecer para extravasar todos os desejos e anseios reprimidos.

Fortaleza desperdiça cobrança nos pênaltis e perde título da Sul-Americana para a LDU. Foto/Reprodução: Raúl Martínez (EFE)

Eu nunca vou entender como aquela bola não entrou.

Como eu nunca vou entender, enquanto botafoguense, torcedor do Botafogo da Paraíba e pesquisador de suas torcidas, o gol do Boa Esporte aos 50 minutos do 2º tempo no jogo do acesso de 2016, ou o gol do Botafogo de Ribeirão Preto, aos 47 minutos do 2º tempo, no jogo do acesso de 2018, ou tantas outras tentativas vãs de subir para a Série B do Brasileirão.

Não importa o anseio, o desejo, a dimensão do sonho.

Invariavelmente, ele será frustrado.

Para apenas de vez em quando, numa inusitada e pouco óbvia sequência de acontecimentos, o acaso acontecer.

É isso. De tão dolorido, a gente tem a tendência de classificar as tragédias como acasos incompreensíveis.

Que nada!

A desgraça é o usual.

Raro mesmo é o título, a emoção boêmia e despreocupada de quem não tem nada a temer, de quem vai dormir como o torcedor mais pleno e realizado desse mundo.

Essa leitura óbvia e cristalina sobre o mundo, entretanto, não impede de nos autoenganar, de recomeçar, de fazer o nosso lado mais cético acreditar que desta vez sim, vai ser tudo diferente.

A loucura do futebol é exatamente essa.

Quase nunca o milagre acontece. Mas, no fundo, a gente acredita que um dia há de acontecer. E quando acontecer, a gente quer estar lá, amparando o coração sofredor, acolhendo o choro emocionado, sentindo o arrepio de pele que nos torna únicos.

O futebol não é digno de ser entendido.

A gente sofre como preparação para o sonho que talvez nunca venha a se realizar. 

Mas só a percepção imagética de que ele é possível já é capaz de nos transformar em andarilhos das arquibancadas, semana após semana promovendo uma confluência de sonhadores para o mesmo concreto que nos faz tão bem e tão mal ao mesmo tempo.

Torcedores do Fortaleza, meus caros vice-campeões da Copa Sul-Americana, minha mais irrestrita solidariedade, em que pese nossas rivalidades torcedoras.

Mas é isso.

O torcedor do Belo sabe bem o que é sofrer quando tudo já convergia para a apoteose.


Referências

ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas. Trad. Denise Bottmann. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

LE BRETON, David. A Sociologia do Corpo. Trad. Sônia M. S. Fuhrmann. 4ª Ed.

Petrópolis: Vozes, 2010.

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Desculpe. Sem tempo para amar!

Os dois braços arqueados na altura do peito. As duas mãos fechadas em formato de concha tocando as axilas. Talvez, em um universo paralelo, com outro ordenamento moral e que tivesse passado por um outro processo histórico muito menos excludente e violento, esse gesto poderia ser até uma comemoração efusiva e característica, tal qual os braços abertos de Bellingham ou o grito de “Siiiuuu” de Cristiano Ronaldo são no nosso cosmos. Mas, não é bem assim, já que a realidade nua e crua e a especulação imaginativa são dois elementos que normalmente não jogam juntos, não vestem as mesmas cores e não constroem o mundo lado a lado.

Além dos gestuais, no rosto do sujeito, o semblante de desprezo e superioridade escancara o décimo nono episódio de racismo dirigido à Vinícius Júnior, na Espanha¹. Um ato igualmente praticado por uma criança², na mesma partida, e reproduzido por milhares de torcedores, em outras.    

Incontáveis mímicas preconceituosas já foram, e a única e infeliz certeza é que muitas mais virão para o jovem jogador, toda semana, de novo e novamente, em um ritmo que levanta questionamentos angustiantes. Por que Vini continua sendo vítima da aversão de seus rivais, rodada após rodada? Por que a brutalidade nos estádios permanece ascendendo em níveis escatológicos todos os anos³? O retrospecto de violência que deveria nos ensinar a melhorar parece que apenas se autorreferenda, conduzindo-nos eternamente a uma espiral de maldade da qual nem mesmo o mais heroico indivíduo de nosso tempo seria capaz de superar.

Afinal, por que nos detestamos tanto? Para além de especificidades, como a educação tida por cada um desde o berço ou a bússola moral que guia cada pessoa em suas particularidades de caráter, a resposta, em geral, parece ser transparente: no futebol e nos demais aspectos da vida, talvez seja mais fácil odiar do que amar4.

Fonte da imagem: Instagram oficial do Vinícius Júnior.

Não é preciso ir muito longe. Pegue o seu celular, as redes sociais atestam a veracidade da questão. Em um perfil privado, suas postagens sempre, invariavelmente, receberão comentários positivos. Elogios a sua beleza, seu estilo de vida, seus gostos pessoais, as suas fotografias mais espontâneas e casuais, ou mesmo àquelas mais posadas, que só estão ali para seguir o fluxo do trend. Isso porque estão lá te observando apenas aqueles que você permite, que conhecem sua personalidade, que convivem simultaneamente com as suas qualidades e com os seus defeitos. Que te entendem.

Mas, torne-se conhecido, abra o seu perfil para o público e potencialmente verá todos os aplausos e apoios se diluírem como uma minúscula fração de açúcar no imenso e intragável mar de ódio. De uma hora para a outra, suas roupas parecem não servir mais, seu cabelo aparenta ser horrível, não importa o que faça, seu estilo de vida é desprezível e desinteressante e suas fotografias são artificiais e sem personalidade. O som ocasional da notificação de um like em seu post agora é o seu terapeuta emocional, o motivo do seu ilusório alinhamento psicológico, além de funcionar como um bote salva-vidas (furado) em meio a esse mar gigante, em que contas falsas são criadas com a única intenção de fazer mal a alguém gratuitamente5. Ódio pelo ódio.

Transporte para os estádios de futebol, e o buraco é ainda mais profundo. Aqui, não existem bots compartilhando informações falsas, algoritmos fazendo a seleção da crueldade virtual ou perfis fake espalhando o rancor, senão de milhares de pessoas, com rostos, corpo e vozes, presentes fisicamente em um mesmo lugar, odiando seus adversários, e pagando por isso. Caro, até! Mas, não são todos que são odiados.

Na imagem que correu o mundo, é possível perceber que em frente àquele sujeito da mímica racista, estão Bellingham e Alaba, outros dois jogadores negros, assim como Vini Jr, também presente na foto. Só que, os insultos foram dirigidos unicamente ao brasileiro. Curiosamente, dos três madridistas citados, Vini é o único que adota um posicionamento mais combativo, de enfrentamento direto, contra a discriminação racial em suas redes sociais, cobrando as autoridades espanholas, os clubes envolvidos nesses casos e, inclusive, o próprio presidente de LaLiga, Javier Tebas6.

Fonte da imagem: Cristina Quicler/AFP.

Pelo exemplo de Vinícius, é possível notar uma das facetas mais dissimuladas do ódio, dentro e fora dos estádios: quando vestindo a máscara do preconceito, seja ele qual for, o ódio será, muitas vezes, seletivo, isto é, ele passará a ter com maior foco em sua mira quem o expor e o encurralar, em uma clara demonstração do que a grandíssima Inês Brasil resume com “se me atacar, eu vou te atacar”7 (desculpe, leitor, mas eu precisava de um exemplo compreensível e que aliviasse a tensão do texto. Certamente, entenderá!).

De algum modo, parece que sentimos a necessidade de odiar. É como se rejeitar fosse a forma menos dolorosa – e mais espinhosa – de lidar com as nossas próprias imperfeições, pré-conceitos e inseguranças, ao passo que os mantemos escondidos dos julgadores olhos alheios, pois há uma relação paradoxalmente fundamental entre estar no mundo e senti-lo mental e fisicamente: ninguém, sob hipótese alguma, deseja ser odiado pelos seus semelhantes, mas, ao mesmo tempo, alguém ou algo, em algum lugar, será certamente alvo do ódio de outrem. Então, será o ódio o mal necessário para o andamento do mundo como ele é?

Bom, é comum que se diga que “ao encontrar o emprego dos seus sonhos, você jamais irá trabalhar”8. Só que o mesmo aforismo guarda uma versão menos romântica, que diz o seguinte: “trabalhe no emprego dos seus sonhos, e você encontrará outra coisa para odiar”9, um pensamento que, em certa medida, enxerga o ódio como um preenchedor inevitável de lacunas, um oponente indriblável. Será mesmo?

O fato é que, em muitas situações, o ódio parece ser um caminho mais acessível e mais fácil de se alcançar do que o amor. Acima de tudo, o amor é um sentimento egoísta, de querer para si, única e exclusivamente, a todo o instante. Só que também é algo que demanda confiança e paciência, uma construção imaterial ao longo do tempo, como uma avenida invisível sendo pavimentada pouco a pouco no ritmo da existência. Nesse sentido, para amar alguma coisa ou alguém, é preciso, primeiramente, abrir mão do imediato.

No esporte, em especial no futebol, o amor a uma personalidade geralmente se materializa em forma de idolatria, de apreço e validação das qualidades, façanhas e estilo de vida daquela figura, como algo construído jogo após jogo – afinal, ainda não se tem registro na história futebolística de alguém que passou a idolatrar um jogador depois de ter visto pela primeira vez ele cobrar um lateral, em um lance completamente randômico e trivial.

Acontece que em um jogo de disputas em diversas frentes, como o futebol, em que, para além do placar, estão envolvidos a sensação de pertencimento à camisa, verdades históricas dos clubes e obviamente discussões políticas e sociais, a ideia de longo prazo se dissolve a cada lance de cada partida, e, então, recorre-se ao caminho mais fácil e mais imediato, odiar.   

Fonte da imagem: Twitter do Real Madrid.

Na marcha preocupante desse sentimento que só asfixia o futebol, será que é possível torcer e se identificar enquanto torcedor do seu time sem ter que detestar o seu rival pelo fato de ele estar do outro lado da arquibancada10? E o que mais vale: como poderemos caminhar para não termos mais que conviver com outras anatomias do ódio que extrapolam completamente a mera rivalidade entre clubes, a boa relação social e todos os limites éticos da sociedade?

Do caso envolvendo Vini Jr., passando por diversas outras demonstrações de violência nos estádios do mundo inteiro, infelizmente, com 90 minutos mais os acréscimos, além do pré-jogo e da prorrogação, sempre será mais fácil e sobrará mais tempo para odiar quem estiver do outro lado. Como autocrítica, na caminhada em que estamos, possivelmente teremos que atualizar o status de “paixão nacional”11 atrelada ao futebol doméstico, afinal de contas tanto a paixão quanto o amor podem até machucar e abrir feridas, algumas delas incuráveis. No entanto, ao se comparar com o ódio, nenhuma dessas emoções podem ser entendidas como gumes opostos de uma mesma faca. Ódio e amor são dois domínios completamente distintos e perigosamente confundidos.     

REFERÊNCIAS

¹Vini Jr. ironiza o décimo nono episódio de racismo sofrido por ele na Espanha | ESPN

²Criança imita macaco em direção à Vini Jr. | Planeta do Futebol via X

³Está sob discussão na Comissão de Segurança Pública o PL 2086/2022, de autoria de Jorge Kajuru (PSB-GO), que busca aumentar a pena do crime de tumulto ou violência em eventos esportivos | Agência Senado

4Leia a crônica que inspirou a fazer este texto | Crônicas de categoria

5Segundo reportagem da Pública deste ano, 80% dos perfis em redes sociais responsáveis por espalhar fake news continuam ativos, muitos deles sob novas contas falsas | Agência Pública

6Após negar racismo contra Vini Jr. em maio deste ano, em partida contra o Valencia, Javier Tebas volta atrás e se desculpa | ge

7Confira a declaração na íntegra | voces.sabemquemsoueu via TikTok

8Ao que parece, a frase é atribuída ao filósofo Confúcio, mas com diferenças em relação à tradução. Eu usei as minhas próprias palavras, mas mantendo o sentido original

9Não encontrei a autoria desta frase, mas certamente ela existe. Caso saiba, por favor deixe nos comentários do blog e corrija este jovem escritor

10Leia também este texto de Gustavo Bandeira para o blog do LEME sobre a questão da rivalidade no futebol

11A “paixão nacional” e o ódio no futebol | Trivela

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A era dos “Unicórnios” chegou de vez na NBA

Por: Júlio César Barcellos

Para a maioria dos esportes coletivos, a pré-temporada serve para os ajustes finais nas equipes antes das estreias oficiais, testes de jovens jogadores e, sobretudo, recuperar o ritmo de jogo dos atletas. Sem maiores atrativos, grande parte desses jogos é sequer televisionado. Não foi o que aconteceu, no entanto, na liga norte-americana de basquete. 

Com a estreia do prospecto mais badalado desde LeBron James, Victor Wembanyama, o mundo do basquete parou para assistir o embate entre a sua equipe, o San Antonio Spurs, e o Oklahoma City Thunder, no último dia 10 de outubro¹. Do outro lado da quadra, a segunda escolha geral do Draft de 2022, Chet Holmgren, também estava fazendo sua estréia na NBA, depois de perder todo o ano passado com uma rara fratura de Lisfranc no pé direito².

Wembanyama tenta dar um toco em Holmgren em jogo da pré-temporada. Timothy A.Clark/ AFP

Segundo o setorista Brian Windhorst, da ESPN estadunidense, havia mais de 20 olheiros presentes³, algo muito além do normal para um jogo dessa natureza. As atuações de mais de 20 pontos de ambos os jovens jogadores – em menos de 20 minutos de ação –  animaram os fãs de NBA em todo o mundo, mas afinal o que há de tão especial neles? 

Num primeiro olhar na tela da televisão, mesmo que descompromissado, chama a atenção o tamanho e o tipo físico de ambos os novatos da liga de basquete mais assistida do mundo. Do alto de seus 2,24m, distribuídos em “apenas” 95 kg, Victor chama a atenção pela alta estatura, além do biotipo ectomorfo, algo incomum para um pivô. O mesmo pode se dizer de Holmgren, que com 2,16m e 94 kg, foge completamente do padrão da posição.

Mesmo com a tendência recente a se apelar para jogadores mais baixos4 na posição 5 em prol de uma maior mobilidade, fica clara a predileção da liga ao longo de sua história quanto ao tipo físico de seu pivô. Não à toa, é o jogador responsável pelo “trabalho sujo” dentro do garrafão, brigando pelos rebotes e ancorando todo o sistema defensivo de sua equipe. 

Para essa árdua missão, é exigido dessa peça em quadra grande força física, o que geralmente está associado a uma avantajada massa muscular, o que se reflete diretamente no peso do atleta. Para fins de comparação, o membro do Hall da Fama do esporte, Shaquille O’Neal, batia a mesma altura do jovem pivô do Thunder, porém distribuídos em incríveis 147 kg.

Shaq, ainda em seus tempos de Orlando Magic. Barry Gossage/NBAE

O diferencial mesmo de jogadores como ‘Wemby’ e Chet fica por conta da polivalência dentro de quadra: capazes de arremessar de longa distância, passar a bola com qualidade e ainda assim defender como poucos jogadores dentro da liga. Essa vantagem no tamanho em relação aos demais atletas rende um número expressivo de tocos na carreira de ambos: mais de 3 para cada – média similar a de alguns dos maiores defensores da história do jogo, por exemplo.

Por conta desse conjunto de habilidades e tipo físico muito únicos, os jovens de Spurs e Thunder são considerados o que os especialistas no jogo de bola ao cesto gostam de chamar de “Unicórnio”. O maior expoente dessa categoria na história recente da liga talvez seja o ala ou ala-pivô do Phoenix Suns, Kevin Durant. Jogador mais valioso da liga (MVP) em 2016, o bicampeão pelo Golden State Warriors sempre surpreendeu pelo corpo esguio – além do altíssimo nível de basquetebol praticado, é claro.

Kevin Durant, ainda em sua temporada de calouro. David Liam Kyle/NBAE

O Slim Reaper (algo como “Ceifador Magro”, em tradução livre) já é um dos jogadores mais marcantes de sua geração. Quatro vezes cestinha da temporada, o atleta era grande demais para os demais alas da liga de basquete mais competitiva do mundo e muito ágil para um ala-pivô comum5. Com isso, sempre foi uma dor de cabeça para as defesas adversárias, batendo médias de 27,3 pontos por jogo ao longo de sua carreira6 – a quarta maior da história do campeonato7.

Não se sabe o que o destino reserva para as carreiras de Victor Wembanyama e Chet Holmgren, afinal ambos nem fizeram suas estreias oficiais. A promessa é por uma briga acirrada pelo cobiçado prêmio de calouro do ano. Junto a nomes como Scoot Henderson, do Portland Trail Blazers, e Brandon Miller, do Charlotte Hornets, os dois jovens pivôs são os favoritos à conquista8. O que se pode dizer mesmo é que a onda dos “Unicórnios” chegou de vez na NBA, e aparentemente, veio para ficar.


Referências

¹ Wembanyama e Holmgren brilham em duelo de fenômenos na pré-temporada da NBA | NBA | ge (globo.com)

² NBA: Fora da temporada, lesão de Chet Holmgren preocupa para o futuro (uol.com.br)

³ Tweet do setorista Brian Windhorst, da ESPN, na íntegra.

4 O que é ‘small-ball’, técnica de jogo que é tendência da NBA

5 NBA: Armador, ala, pivô: entenda o que significam as posições na NBA (uol.com.br)

6 Kevin Durant Stats, Height, Weight, Position, Draft Status and more | Basketball-Reference.com

7 NBA & ABA Career Leaders and Records for Points Per Game | Basketball-Reference.com

8Quais os favoritos aos prêmios individuais da NBA? Confira | Gazeta Esportiva

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Procura-se um ídolo

Quem sou eu para falar de idolatria num programa de pós-graduação que tem o mestre Ronaldo Helal em seu time titular, mas o texto a seguir fala de um ídolo inconteste, pelo menos para os húngaros. Falo de Ferenc Puskás.

Mesmo para quem não está muito antenado com a história do futebol mundial, o nome pode soar familiar. Afinal, a premiação de gol mais bonito do ano, concedida pela FIFA, leva seu nome.

Sempre me interessei muito pela história de Puskás, Kocsis, Bozsik, Czibor e companhia. Estrelas do Honvéd e da Seleção Húngara que maravilharam o mundo na década de 1950. Uma história que mistura futebol e política; talento e ditadura; insubordinação e exílio. Jogadores de um time considerado pelo regime comunista como o “Exército Vermelho da Bola” e que acabaram por se tornar nômades dos gramados.

Pós-guerra

Após o término da Segunda Grande Guerra, o governo da Hungria, então parte da “Cortina de Ferro” comunista, decidiu estatizar um modesto clube de Budapeste, o Kispest A.C., onde já atuavam os jovens Jozsef Kocsis e Ferenc Puskás. O objetivo era montar uma das mais fortes equipes da Europa, que também se tornaria a base da Seleção Húngara. E eles conseguiram. Nascia o Budapeste Honvéd F.C.

Os melhores jogadores de todo país foram convocados, ou melhor, obrigados a se incorporarem à nova equipe e os resultados não demoram a aparecer. O Honvéd conquistou o campeonato nacional em 1949, 1950, 1952, 1954 e 1955.  Além disso, o selecionado húngaro foi medalha de ouro nos Jogos Olímpicos de 1952, em Helsinque, na Finlândia, e campeão da Copa da Europa Central, em 1953.

Foi também em 53 que conseguiram derrotar a Inglaterra no estádio de Wembley pelo incrível placar de 6×3 (3 gols de Hidegkuti, 2 de Puskás e 1 de Bozsik). Pra se ter ideia da grandiosidade do resultado, o English Team nunca havia sido derrotado por um país não britânico naquele templo sagrado do futebol. Não bastasse, a Inglaterra defendia uma invencibilidade de 5 anos (32 jogos). No livro As Melhores Seleções Estrangeiras de Todos os Tempos, o jornalista Mauro Beting define a partida como o amistoso mais importante da história do futebol. Segundo ele, “nenhuma outra partida que não valia nada valeu tanto”.

No bairro judaico de Budapeste essa partida é relembrada todos os dias por um enorme grafite em um muro.

  Um jogo eterno para os húngaros (foto do autor).

O desempenho dos “poderosos magiares”, como eram conhecidos os jogadores húngaros, fez com que sua seleção chegasse como grande favorita na Copa do Mundo de 1954, na Suíça. O esquema de jogo adotado por eles, o 4-2-4, era totalmente inovador e envolvente. Na fase de grupos, fizeram nada menos que 17 gols contra Coreia do Sul e Alemanha Oriental. Nas quartas de final, derrotaram o Brasil por 4×2 e, na semifinal, superaram o Uruguai (então campeão mundial) pelo mesmo placar. Ninguém esperava, portanto que fossem derrotados pela Alemanha Ocidental na grande final. A vitória germânica por 3×2 para sempre vai ser lembrada como o “Milagre de Berna”. Uma derrota para o futebol bonito de se ver (se a liberdade poética me permitir, um tipo de decepção semelhante àquela que sentimos com a eliminação do Brasil para a Itália na Copa de 1982).

Destino incerto

Quando o time do Honvéd estava na Espanha para enfrentar o Athletic Bilbao, pela Liga dos Campeões da Europa, em 1956, tanques de guerra soviéticos invadiram Budapeste para reprimir um movimento revolucionário que defendia a independência da URSS e a retomada da democracia no país. Ninguém da delegação sabia o que fazer, nem qual seria o futuro da equipe. Acabaram sendo eliminados da competição após uma derrota em Bilbao e um empate no jogo de volta, na Bélgica (não havia condições da partida acontecer em solo húngaro).

Como tinham uma licença do governo para permanecerem no exterior até março do ano seguinte, acertaram uma excursão por Itália, Portugal e Espanha, onde aconteceu outra célebre partida: 5×5 com o poderoso Real Madrid. O governo interino húngaro exigiu a volta dos atletas, mas o grupo se rebelou e decidiu continuar viajando. A FIFA foi acionada e decidiu desfiliar o clube, além de ameaçar fazer o mesmo com qualquer equipe que aceitasse jogar contra eles. Foi então que surgiu um convite do Flamengo e os nômades da bola atravessaram o Atlântico e desembarcaram no caloroso e calorento verão do Rio de Janeiro.

O Maracanã foi palco da chamada “partida proibida” e recebeu um enorme público. Na estreia da série de amistosos, em 19 de janeiro de 1957, um resultado surpreendente, o rubro-negro derrotou os húngaros por 6×4. Nos três jogos seguintes, mais descansados e aclimatados, três vitórias dos visitantes. Duas sobre o Botafogo e uma sobre o Flamengo (no Pacaembu). O último e mais incrível amistoso foi contra um combinado Botafogo/Flamengo que reuniu craques como Nilton Santos, Didi, Evaristo Garrincha e Dida. Um inapelável 6×2 a favor dos brasileiros.

Em Caracas, na Venezuela, Flamengo e Honvéd ainda fizeram mais duas partidas, mas a pressão sobre os jogadores húngaros e seus familiares era enorme. O time se desfaz e cada jogador segue seu destino. Puskás, o mais cobiçado de todos vai para o Real Madrid, onde, ao lado de Di Stefano comandaria uma das maiores equipes de futebol de todos os tempos.

O Honvéd foi novamente filiado à FIFA que, aliás, nunca puniu Botafogo ou Flamengo, conforme havia ameaçado. O time húngaro, porém, nunca mais alcançou o mesmo nível anterior. E o mesmo pode se dizer da seleção da Hungria.

Nas pegadas do craque

Ao chegar à Hungria, neste ano de 2023, logo me deparei com a presença da figura de Ferenc Puskás na capital Budapeste, mesmo mais de 15 anos após sua morte. Figura “maldita” nos tempos comunistas, passou a herói nacional com a desvinculação do país com a União Soviética, em 1989.

Antes mesmo de chegarmos à estação central, passamos pelo estádio que leva seu nome. Na verdade, a Arena Puskás, construída no local onde ficava o velho estádio e inaugurada em 2017. A estação de metrô onde desembarcam os torcedores também tem o nome do maior craque húngaro, além de fotos dele, de seus companheiros de Honvéd, da seleção local e de outros atletas húngaros de destaque.

Estação Ferenc Puskás, em Budapeste (Foto do autor)

Nas lojas de souvenirs também é possível comprar diversos produtos relacionados ao jogador. Camisas da seleção da Hungria, livros, cachecóis, canecas, copos e pratos. Me contive, no entanto, e trouxe apenas um belo livro sobre ele. Bem que queria comprar uma camisa “retrô” do Honvéd, mas não encontrei (meu bolso agradeceu).

A imagem de Puskás sempre presente e pronta para virar um presente (Foto do autor)

Mas, o mais interessante dessa minha marcação cerrada ao maior jogador magiar da história, foi descobrir um bar/ restaurante que leva seu nome e que mantém expostos alguns itens do acervo do jogador, como taças, bolas e camisas. Nas TVs, além de uma “pelada” do campeonato local, muitas fotos e vídeos da carreira de Puskás. Um prazer devidamente acompanhado de um bom goulash e uma cerveja bem gelada.

Puskás Gozdu, o restaurante temático do craque (Foto do Autor)
Quando dois gênios da bola se encontram (Foto do autor)

Um brinde, portanto, a Puskás e ao povo húngaro, que sabe manter viva a imagem de um ídolo não apenas de seu país, mas de todos aqueles que amam o futebol.

Egészségedre! (sim, isso é o nosso tin-tin, em húngaro).

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Como o Jornal dos Sports cobriu o primeiro título de um sul-americano na Copa Intercontinental?

Tratamento do campeonato do Peñarol, em 1961, oscila entre campeão mundial e “a chamada ‘Copa do Mundo de Clubes’”

Trabalhamos, aqui, com a hipótese de que a Copa Intercontinental1, batizada no Brasil, pela imprensa, de Mundial de Clubes, começou a tornar-se o principal sonho de consumo de torcedores e clubes nacionais a partir do bicampeonato do São Paulo, em 1991-92 (SOUTO, 2023). A partir daí, inicia-se um processo de mudança na hierarquia do futebol brasileiro, que, até então, tinha no topo da pirâmide os campeonatos estaduais, seguidos do certame nacional e, enfim, dos torneios internacionais. Com isso, o foco da cobertura vai, também, deslocar-se, abrindo espaço mais generoso ao chamado “Mundial de Clubes”, inclusive em finais que não envolvem times brasileiros.

Mas, como era a cobertura da imprensa nacional nos primórdios do torneio, que, até o início dos anos 1970, competia em atenção com outras competições que também produziam seus “campeões mundiais”, sem que qualquer um deles fosse reconhecido pela Fifa? Para ilustrar o tipo de acompanhamento que o jornalismo esportivo dedicava à competição, num período em que nenhum clube brasileiro ainda fora campeão2, examinamos aqui como o Jornal dos Sports, o diário esportivo brasileiro mais vendido no Brasil nos anos 1960, acompanhou a primeira conquista do Mundial de Clubes por um time sul-americano, o Peñarol, do Uruguai, em 1961.

Este texto é parte de uma pesquisa mais ampla sobre como a imprensa brasileira lidava com os diferentes torneios, cujos organizadores proclamavam seus vencedores “campeões mundiais”. Por isso, talvez seja importante ressaltar que o JS, além de ser um diário integralmente esportivo nesse período, tinha até um espaço denominado “Excursões dos clubes brasileiros (A. do Sul e Europa)”. Tal observação indica que, para sabermos se tal forma de cobertura era uma singularidade desse jornal ou um padrão da cobertura da imprensa da época, teremos de estender a pesquisa a outros jornais, incluindo generalistas, que tratavam de outros temas além de esportes. Apesar da ressalva, consideramos que revisitar a forma como aquele jornal acompanhou as finais daquele ano pode nos ajudar a compreender aspectos relevantes do processo de apropriação do jornalismo esportivo e dos torcedores de tal torneio, bem como sinalizar algumas contradições, inclusive nas nomeações e no tratamento hierárquico.

Por vencer a Copa dos Campeões da América3 de 1961, o clube uruguaio classificou-se para a final contra o campeão europeu daquele ano, o Benfica, de Portugal. O regulamento da época determinava que a decisão ocorresse em duas partidas, uma em cada país dos finalistas. Caso houvesse dois empates ou cada time ganhasse um jogo, independentemente do saldo de gols, haveria uma terceira partida, no país em que fosse disputada a segunda. Em 30 de agosto de 1961, o Jornal dos Sports anunciou em matéria no meio da sua primeira página: “Penarol4 chegou a Lisboa e treina para enfrentar o Benfica”.

Em 3 de setembro, nova matéria, cuja distribuição na primeira página dá pistas interessantes sobre o lugar destinado ao torneio na hierarquia do futebol brasileiro, o que se refletia na diagramação daquele importante diário esportivo. Mais uma vez sem emplacar a manchete do dia, a matéria foi publicada embaixo da nota “Football Pelo Brasil”, com a relação dos jogos a serem disputados naquele dia no país; e do título “Placard internacional de hoje”, com os resultados de partidas em nove países europeus e na Argentina. Só então, vinha a chamada “Benfica E Penarol Decidirão Amanhã O Segundo  Título Mundial”, que tratava, basicamente, da abertura da competição e das campanhas das duas equipes até chegarem à final.

‘Fifa não reconhece título’ x disputa pela ‘supremacia mundial’

No dia seguinte, mais uma vez, a manchete é sobre uma competição estadual: “América, Bangu E S. Cristóvão, na corda bamba”, numa referência à campanha das três equipes no Campeonato Carioca. Abaixo dela um título com ressalva significativa: “Penarol E Benfica Hoje Em Lisboa: Fifa Não Reconhece Título”. A menção ao não reconhecimento oficial pela Fifa será a primeira de uma sequência de ambiguidades com que o jornal trata a importância do torneio. 

Na mesma edição, a competição merece, pela primeira vez, uma manchete de página, na seção “No Brasil e no Mundo”, que parece contradizer a ressalva da página inicial: “BENFICA E PENAROL INICIAM A DISPUTA PELA SUPREMACIA MUNDIAL”. Afinal, um torneio não reconhecido pela entidade maior do futebol internacional vale ou não a supremacia? A própria diagramação em que a notícia foi espremida parece alimentar tal contradição. Apesar de ser a principal matéria da página, teve direito apenas a três das cinco colunas do jornal e disputava lugar com o anúncio da venda de uma Vespa, na Cassio Muniz, com ilustração e espaço, pelo menos, cinco vezes maior do que a matéria.

No dia 5 de setembro, a manchete da primeira página não foi a vitória do Benfica, mas “Mais De Um Milhão Viram (sic.) O Turno Eliminatório”, que quantificava o público dessa fase do Campeonato Carioca. Ainda antes da matéria da final, havia o registro “Escolhidos Os Campos: América E Olaria, Na Gávea”, sobre os locais em que seriam realizadas as partidas da sequência do Carioca. Só então, vinha a chamada: “Um Gol de Coluna Liquidou o Penarol”. E uma mudança no tratamento dado ao torneio: “O Benfica iniciou a disputa da chamada “Copa do Mundo de Clubes” vencendo o Penarol, por 1 x 0, ontem à noite, no Estádio da Luz. (grifo nosso).” 

Além de questionar o caráter da competição, o jornal destinou apenas oito linhas à chamada para matéria interna, ilustrada pela foto do autor do gol, acompanhada mais uma vez da informação entre aspas “Copa do Mundo de Clubes”5. Na página interna, a manchete: “Gol De Coluna E Vitória Do Benfica: 1 x 0” . Aí sim, com uma matéria sobre o jogo, que incluía a súmula da partida. Nos dias seguintes, o resultado foi repercutido, mas em notas ou matérias bem mais modestas.

Dois dias após a primeira partida, em 7 de setembro, o confronto ganha destaque um pouco maior, baseado na repercussão na imprensa portuguesa, com a citação de comentários de jornais lusos sobre a vitória do Benfica e projeções para a segunda partida em Montevidéu. Alinhada à esquerda da parte final da matéria, uma nota sobre uma efeméride da vida social dos clubes cariocas: “Carlos Pimenta – O Aniversário Do Antigo Dirigente Do Vasco”. 

Não é possível dizer se a nota foi colocada propositalmente ao lado da matéria que envolvia o Benfica pelos laços entre o time e a numerosa colônia lusitana no Rio de Janeiro que, em grande parte, torcia pelo Vasco da Gama. No entanto, pode-se especular que o espaço dedicado à cobertura daquele ano possa ter sido influenciado, em alguma medida, pela presença de uma equipe de Portugal entre os finalistas. Para confirmar-se tal hipótese, é necessário ver o desenvolvimento da pesquisa em anos em que a final não envolva equipes brasileiras nem portuguesas. Na mesma edição, sob o título “Benfica: Do Zero Ao Infinito – Batalha Contra O Penarol É Salto No Abismo”, coluna assinada pelo então chefe de reportagem do diário, o jornalista Geraldo Romualdo da Silva, analisa o clube lusitano, da sua fundação a sua trajetória recente.

Apenas um dia antes da segunda partida, na edição de 16 de setembro, o jornal volta ao torneio. Em matéria na página quatro intitulada “Penarol Tem Oito Chances Sobre Dez De Vencer O Benfica”, o jornal reproduz o prognóstico de um jornalista francês, que despreza a chance de o time português ganhar a partida no Uruguai. Na página 8, um anúncio da Rádio Guanabara sobre as transmissões das partidas do Campeonato Carioca daquele dia inclui a informação de que Benfica x Penarol terá o locutor Oduvaldo Cozzi e comentários de Mário Viana (então, com um só “n”) e Vitorino Vieira. Pode ser um indício de que a final despertava interesses dos ouvintes e/ou, mais uma vez, o foco podem ser os torcedores da forte colônia lusitana no Rio.

No dia seguinte, porém, a chamada para o jogo, diagramada dentro de um quadro, com o título, “Peñarol x Benfica”, era apenas a sétima matéria do alto para baixo da página. Na página 4, a Rádio Guanabara repete o anúncio da véspera, agora, apenas daquela partida. Na página 7, a manchete era: “Botafogo Foi Recebido por Jango E Enfrenta Hoje o Guará: Brasília”. E a terceira matéria em importância: “Se Penarol Vencer, Terceiro Jogo Será Na Próxima 3ª Feira”. Na página 8, enfim a manchete: “Benfica Joga Hoje Seus Dois Por Cento De Chance Contra Dez do Penarol”, seguida de ilustrações com “bonecos” dos jogadores dos dois times, acompanhados de breve apresentação de cada um. 

Apesar de, na véspera da partida, merecer transmissão por rádio carioca e matérias em duas páginas, no dia seguinte, na edição de 18 de setembro, a matéria “Penarol Goleou O Benfica : 5 x 0” era apenas a sexta da primeira página. Numa página interna, o título repetia a informação em matéria de pouco destaque. Já no dia 19 de setembro, na primeira página, “Penarol x Benfica: Match Decisivo” chamava para continuação na página 4, em que o jornal titulava: “Penarol E Benfica Decidem Hoje O Título Mundial”. Ou seja, apenas duas semanas após colocar em dúvida o caráter da conquista, o Jornal dos Sports volta a nomear a conquista como mundial.

Simca e título mundial

Na quarta-feira, 20 de setembro, o título volta a reafirmar essa opção: “Peñarol é o novo campeão mundial”, sobre a vitória por 2 x 1 do time uruguaio. A chamada é encabeçada, no entanto, por foto com os jogadores uruguaios perfilados antes da partida e por uma legenda que reforça a contradição que marca a forma de nomear a competição: “Em partida tumultuada, que terminou com inopinada agressão do jogador José Augusto ao juiz da partida, e do técnico Scarene, do Peñarol, a um dirigente do Benfica, o campeão uruguaio levou a melhor, tirando da Europa o privilégio de ser a detentora da Copa dos Clubes Campeões (grifos nossos).” 

Registre-se que nem na edição que trata da conquista do título, o jogo conseguiu emplacar a manchete do Jornal dos Sports, mesmo sem que tenha havido partidas do Campeonato Carioca na véspera. A principal notícia da página é: “Clubes Vão Pedir A Deputados Majoração De Ingressos”. Ela é seguida pela informação de que Pelé fora suspenso por dois jogos; por noticiário de que o embaixador brasileiro na Nova República de Gana estava incumbido de conseguir bolsas para todos os jogadores brasileiros que desejassem ajudar Gana e Nigéria a “melhorar o nível do seu futebol”.

Além disso, uma curiosidade: alinhada à esquerda da notícia sobre o título, a matéria “UBIRAJARA: ‘O SIMCA SERÁ MEU”, era uma referência ao concurso Ídolo dos Ídolos, instituído pelo JS e pela Simca para o jogador mais votado pelos leitores. A chamada trata do desejo do então goleiro do Bangu de ser o escolhido e da promessa do seu clube de “quebrar lanças para dar ao valente guarda-valas alvirrubro o presente símbolo instituído pelo JORNAL DOS SPORTS e Simcar S.A.”. Acima do título, o sorridente Ubirajara sentado no capô do carro do concurso chama mais atenção do que a foto dos campeões. Por enfim, na página seis, a manchete da página: “Penarol É Campeão do Mundo: Dois A Um” – ilustrada por foto em que se vê a faixa “Bienvenido BENFICA” ao lado dos jogadores que saúdam a torcida. Nos dias seguintes, o jornal não repercute a conquista do time uruguaio.

Temos, assim, uma relação complexa, em que o periódico de esportes mais vendido no Brasil noticia todas as três partidas da final da Copa Intercontinental, mesmo sem a presença de um clube brasileiro, proclama o vencedor como campeão mundial, mas, na mesma edição, nomeia o torneio como “Copa dos Clubes Campeões”. O mesmo jornal, que já alertara que a Fifa não reconhecia a competição e se refere a ela como “a chamada ‘Copa do Mundo de Clubes’”, colocando tal condição entre aspas, um conhecido recurso do jornalismo usado tanto para ironia, como para avisar tratar-se de declaração literal, não deixa de apontar o vencedor como “o novo campeão mundial”. Para uma melhor compreensão de como o processo da relação do jornalismo esportivo foi se desenvolvendo e sendo modificado, é necessário aprofundarmos a pesquisa para incluirmos outras edições do torneio, com ou sem brasileiros nas finais, e estendê-la a outros periódicos, incluindo as seções de esporte dos jornais generalistas. 


1Torneio disputado

2 Em 1962, no terceiro ano do torneio, o Santos foi o primeiro time brasileiro a ser campeão, ao vencer o Benfica, de Portugal, em duas partidas:  3 x 2, no Brasil, e 5 x 2, em Lisboa.

3 Primeiro nome recebido pelo torneio, organizado pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), que, inicialmente, era disputado apenas pelos campeões nacionais da América do Sul. A partir de 1965, é rebatizado Libertadores da América, numa homenagem aos líderes políticos, como  Simón Bolívar e José de San Martin, que libertaram países da região do domínio europeu.

4 Ao longo da cobertura, por diversas vezes, o jornal grafa o nome do time uruguaio sem o til em cima do “n”. Em outros, respeita a grafia original Peñarol. Reproduzimos a forma utilizada em cada matéria, entendendo que tal duplicidade também pode dar uma pista da menor familiaridade do jornalismo local com nomes de clubes de países vizinhos, num período de intercâmbio futebolístico bem mais reduzido do que se estabeleceria a partir dos anos 1990.

5 Em linguagem jornalísticas, aspas são usadas por dois motivos: para mostrar que uma declaração é literal ou para indicar ironia

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A importância da transmissão audiovisual do Campeonato Alagoano de futebol masculino

O objetivo deste texto é apresentar uma síntese dos resultados do projeto de pesquisa de iniciação científica “A importância da transmissão audiovisual do Campeonato Alagoano de futebol masculino (2007-2023): padrões tecnoestéticos e incentivo ao torcer a times locais”, desenvolvido na Unidade Educacional Santana do Ipanema da Universidade Federal de Alagoas de setembro de 2022 a agosto de 2023.

Fonte: print a partir do YouTube

Introdução

O futebol profissional masculino se difunde a partir de duas possibilidades: acompanhamento dos jogos nos estádios e a partir da sua versão midiática, com transmissão em audiovisual. No projeto de pesquisa nos interessou a segunda, pois é a que demarca uma importante fonte de receitas e de criação de capital simbólico para aglutinação de torcida.

No caso do futebol brasileiro, a expansão se dá de forma irregular, dada a dimensão territorial do país. A preocupação com torneios nacionais de clubes ocorre apenas em 1959, mas já após o estabelecimento de Rio de Janeiro e São Paulo como centros importantes desta prática esportiva.

Além disso, especialmente a partir da difusão da Rádio Nacional na então capital do país, os clubes do Rio de Janeiro conseguem se espacializar para outros estados ainda na primeira metade do século XX. Da mesma forma, conforme Santos (2021), o desenvolvimento de conglomerados midiáticos que se consideram nacionais, ou são nacionalizados, reproduzem o desenvolvimento socioeconômico desigual do país, o que será definitivo com o modelo de redes de televisão, cujas matrizes ficavam em Rio de Janeiro e São Paulo.

Assim, conseguimos perceber que quando as transmissões audiovisuais dos jogos de futebol ganham a regularidade enquanto programa midiático pertencente às grades de programação, desde os anos 1980, eram as equipes de Rio de Janeiro e São Paulo as exibidas em rede nacional. O que, conforme Figueiredo Sobrinho e Santos (2020), fez com que clubes desses dois estados tivessem ainda maior visibilidade nos noticiários esportivos que os de outros locais.

A opção pelo estadual de Alagoas se deu por se tratar ainda de um Estado com dados socioeconômicos dentre os piores do Brasil, mesmo após os programas de distribuição de renda dos governos do Partido dos Trabalhadores (Gomes, 2014). Além de o primeiro Campeonato Alagoano de futebol masculino totalmente transmitido ter ocorrido apenas em 2007.

O projeto analisou as evidenciações contábeis da Federação Alagoana de Futebol (FAF) e dos clubes ASA (Associação Sportiva Arapiraquense), CRB (Clube de Regatas Brasil) e CSA (Centro Sportivo Alagoano); e o padrão tecnoestético da transmissão do Campeonato Alagoano, considerando ainda resultado de pesquisa de opinião realizada de forma virtual depois da realização do torneio em 2023, que contou com 317 respostas.

Fonte: print a partir do YouTube

Metodologia

O tema foi discutido a partir de investigação qualiquantitativa que usou os métodos bibliográfico, estatístico e descritivo, com apresentação de dados de pesquisa de opinião realizada por formulário digital disponível no Google Forms de 29 de maio a 9 junho de 2023, com 317 respostas.

Pretendemos entender com a pesquisa de opinião, por um lado, os elementos do padrão tecnoestético reproduzidos pela transmissão de um torneio local, ao mesmo tempo em que se tentou verificar o que refletiria o estímulo à identidade alagoana nos elementos estéticos e nas narrações. Por outro, a partir da opinião de torcedores de clubes locais, como o cenário de transmissão de 2023 foi recebido quanto aos seguintes aspectos: narração; qualidade de imagens; valorização dos clubes locais; e reportagem de campo.

Quanto à coleta das informações obtidas das demonstrações contábeis, realizou-se em dois momentos, considerando que os dados de 2022 deveriam ser divulgados até abril de 2023. Após isso foram elaborados gráficos com as receitas e despesas separadas de acordo com os casos de: Receitas das Séries A e B, Copa do Brasil, Copa do Nordeste, direito de transmissões ou Cotas TV, já no caso das Despesas apenas direitos de imagem/arena.

O conceito-chave utilizado na pesquisa foi o de padrão tecnoestético, que representa:

[…] uma configuração de técnicas, de formas estéticas, de estratégias, de determinações estruturais, que definem as normas de produção cultural historicamente determinadas de uma empresa ou de um produtor cultural particular para quem esse padrão é fonte de barreiras à entrada […]. (Bolaño, 2000, p. 235).

Considera-se que o modelo tecno-estético constituído tem o potencial de reduzir o caráter aleatório da produção de mercadorias culturais.

A amostra para a análise do padrão tecnoestético contou com as finais de 2008 a 2022 e 9 jogos da competição em 2023, entre melhores momentos e jogos completos, conforme disponibilidade no YouTube. Os critérios estabelecidos foram os seguintes: direção de imagem; variações no estilo de transmissão na direção de uma cobertura esportiva ao vivo pelo infotretenimento – em que a informação pode ser sobreposta ao entretenimento (Santos; Borges; Figueiredo Sobrinho, 2020); e marcadores locais na narração, na reportagem e nos comentários.

Resultados e discussões

Considerando que a transmissão pela transmissão não é suficiente, gostaríamos de entender o impacto econômico direto da transmissão do Alagoano nos clubes, pelas evidenciações contábeis; como se deu o padrão tecnoestético de transmissão; e como torcedores de clubes alagoanos viram o torneio em 2023. A edição deste ano contou com transmissão multiplataforma: Band (TV aberta) – com TV UFAL, afiliada da TV Brasil, exibindo o último jogo do torneio; Nosso Futebol+ (pay-per-view); Canal FAF (YouTube); e DAZN (streaming).

Sobre as evidenciações, os gráficos presentes no arquivo do link https://onedrive.live.com/redir?resid=BA3C4CE63BA5B123!249&authkey=!AN1Bg_dGUGZ_7_E&ithint=file%2cxlsx&e=5O9wTQ apresentam os resultados da análise das informações coletadas da publicação das demonstrações contábeis dos clubes e da FAF.

Com os dados obtidos, pudemos analisar que há baixo nível de evidenciação contábil nos clubes locais. Além disso, observamos a importância da visibilidade dos clubes em campeonatos das séries A e B do Brasileiro, como também em campeonatos de maior porte, como a Copa do Nordeste e a Copa do Brasil.

Receitas do Alagoano apareceram só duas vezes: 2017 (CSA) e 2020 (CRB). Porém, juntando outras formas ligadas ao jogo, que não a transmissão: bilheteria e publicidade.

Quanto à transmissão, percebemos o modelo hegemônico: câmera central como a principal em boa parte da transmissão, com as demais (na altura do gramado ou com foco em cada área) sendo alternativas para replays e imagens da torcida.

Como pode ser visto na Figura 2 a seguir, algo semelhante ocorre quanto às representações gráficas na tela, com placar no canto superior e vinhetas com cartões, gols e substituições aparecendo no canto inferior esquerdo.

Figura 2– Transmissão da FAFTV do Alagoano de 2023

Fonte: Print do canal da FAFTV no YouTube

O que diferencia, a partir de 2023, é a utilização das cores da bandeira de Alagoas (vermelho, branco e azul), com a ordem exatamente abaixo dos números de gols, que interliga à identidade do estado.

Quanto à narração dos jogos, previamente identificamos que a equipe normalmente foi oriunda do rádio e da cobertura esportiva anual das equipes locais. Assim, mesclou-se elementos de conteúdo ligados ao rádio com aprimoramentos da linguagem da internet nos últimos anos para tentar viralizar trechos. Dentre outros destaques, há ainda o foco ao pitoresco, especialmente em jogos no interior de Alagoas.

Em paralelo a isso, buscou-se observar como a torcida alagoana avaliava alguns aspectos do padrão tecnoestético na edição de 2023. O filtro para recorte foi de quem torcia para clubes locais, que reduziu a amostra para 281 respostas.

Dentre outros resultados: 1- 171 avaliaram a narração como “regular”, 48 como “ruim”, 23 como “péssima” e apenas 30 responderam “ótimo”; 2- sobre a qualidade de imagens, apenas 19 responderam “ótimo”, enquanto 135 optaram por “razoável”, 85 por “ruim” e 33 como “péssima”; 3- por fim, sobre a valorização dos clubes locais, foi onde houve maior índice para “ótima”, 42 respostas, porém, 66 avaliaram que a transmissão foi “ruim” e outras 43 identificaram como “péssima”, sobrando 121 respostas em regular.

Melhor descrição e análise dos resultados consta na pasta seguinte, de publicações do projeto: https://ntiufalbr-my.sharepoint.com/:f:/g/personal/anderson_gomes_santana_ufal_br/EndQdxEpEp5Il48.

Considerações finais

Compreende-se que as restrições do desenvolvimento desigual socioeconômico, que atravessa a mídia e os clubes afetam também as questões econômicas e simbólicas no caso do Campeonato Alagoano de futebol masculino.

O destaque negativo para a qualidade das imagens reproduz o padrão tecnoestético de transmissão de jogos ao vivo que o público se acostumou. Frente à restrição orçamentária de um torneio que mal paga pelos direitos de transmissão, temos uma situação complicada de se resolver em curto prazo – com exceção da melhor qualidade específica das finais da competição, que recebem mais câmeras.

Por fim, para detalhar a importância econômica da transmissão do estadual, percebemos que seria necessário partir para uma etapa de pesquisa que envolvessem entrevistas com agentes envolvidos, considerando que são muito poucos clubes que disponibilizam evidenciações contábeis (e de forma rotineira). Além disso, não há detalhamento adequado para identificarmos, como em torneios regionais e nacionais, o peso positivo para as receitas dos clubes.

REFERÊNCIAS

BOLAÑO, C. R. S. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Pólis, 2000.

FIGUEIREDO SOBRINHO, C. P.; SANTOS, A. D. G. dos. Do jornalismo esportivo ao infotretenimento: o caso do contrato entre Neymar Jr. e Globo como paradigma. Comunicação, Midia e Consumo, São Paulo, v. 17, p. 322-343, maio/ago. 2020.

GOMES, F. G. Ensaios sobre o subdesenvolvimento e a economia política contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.

SANTOS, A. D. G. dos. A identidade torcedora alagoana no século XXI: CSA, CRB e ASA na tela, no campo e nas pesquisas. In: HELAL, Ronaldo; COSTA, L.; FONTENELLE, C. (Orgs.). Esporte, mídia, identidades locais e globais: uma produção do Seminário Copa América. Rio de Janeiro: Autorale; Faperj, 2021. p. 238-251.

SANTOS, A. D. G. dos; BORGES, M. A. R. dos S.; FIGUEIREDO SOBRINHO, C. P. Quando um treinador substitui o nome do clube: uma análise do “Time de Ceni” como exemplo da lógica do clickbait na cobertura esportiva do Brasil. Fulia, Belo Horizonte, v. 5, n.1, p. 119-138, jan./abr. 2020.

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É possível ser um torcedor sem se importar com o rival?

Em nossa cultura machista e extremamente desigual na distribuição dos trabalhos domésticos e dos cuidados com os filhos e filhas, o professor do Departamento de História aqui da nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o colorado César Augusto Barcellos Guazzelli ilustra, talvez mais constatando do que corroborando essa cultura, que a única obrigação de um pai é definir o time de futebol para o qual sua filha ou, especialmente (permanecendo nessa lógica machista), seu filho torcerá. Se por um lado me esforço bastante para diminuir a desigualdade de trabalho doméstico e de cuidados com o Martin (diminuir porque reconheço que igualar ainda seria uma utopia), assumi para mim a responsabilidade da vinculação clubística do Martin. Com pouco mais de 6 meses de vida ele já era sócio do Grêmio.

Pensar o futebol aqui no Rio Grande do Sul é pensar Gre-Nal. As identidades de suas torcidas são produzidas com a alteridade colocada nos torcedores do outro clube. É bastante comum entender que “gremistas e colorados são contrários, contraditórios e complementares” (DAMO, 2002, p. 85). Parece difícil fazer-se gremista sem pensar nos dois clubes. Aparentemente para um gremista, tal qual para um colorado, Grêmio e Internacional teriam quase a mesma importância. Mesmo que apenas um dos clubes participe de determinada competição, ambos são chamados a se interessar pelos confrontos1. Essa rivalidade, muitas vezes naturalizada, é constantemente alimentada pelos diferentes atores que compõem o futebol de espetáculo.

Ser torcedor de uma equipe específica significa, no contexto futebolístico em que fomos alfabetizados para o torcer, não torcer pelas outras (inclusive pega mal ser um torcedor misto, apesar de que os torcedores mistos existem…): “Dizer-se gremista é (…) dizer-se anticolorado e não-flamenguista, palmeirense, santista e assim por diante” (Damo, 2002, p. 54). Nessa relação o rival, acaba sendo a principal alteridade construída. Em seu trabalho sobra a identidade dos torcedores do Grêmio, Arlei Damo reforça o entendimento normativo: “A paixão pelo Grêmio implica também na aversão ao Internacional” (2002, p. 54).

Aqui em nosso estado os efeitos da rivalidade são tão fortes que atravessa até mesmo nossas torcidas antifascistas. Em 2019 promovemos um evento acadêmico no museu da UFRGS, em julho. Após confirmar sua participação, a antifa do Internacional não apareceu. Nos relatos recebidos eles reclamaram de uma desigualdade em evento anterior que tinha mais representantes gremistas do que colorados. Em novembro, um grande evento coordenado pelo Movimento Clube do Povo reuniu torcidas antifascistas de todo o Brasil. No ônibus que veio do Rio de Janeiro e de São Paulo, torcedores rivais dividiram o espaço sem nenhuma dificuldade. O único gremista que participou daquele evento fui eu a convite do meu amigo Marcelo Carvalho para representar o Observatório da Discriminação Racial porque ele tinha um compromisso fora do Rio Grande do Sul na mesma data. Nos movimentos de rua contra os ajustes neoliberais do governo Temer, cada antifa saía para o lado oposto. Eles chegaram a dividir uma coluna no Repórter Popular2 que acabou suspensa por limites identitários. Mesmo dentre os “progressistas” aparentemente alguns acreditam que um clube/time de futebol possua qualidades intrínsecas que faz com que seus torcedores sejam melhores que os torcedores do rival. Aparentemente as antifas da dupla Gre-Nal são contra todos os preconceitos, menos o clubístico…

O confronto entre Grêmio e Internacional é um duelo entre o que se aprendeu a chamar no Brasil de “grandes clubes”. Esses grandes clubes são os das capitais que concentraram as principais conquistas no país nos primeiros torneios nacionais. Se na Argentina somente cinco são os grandes clubes, inclusive excluindo o tetracampeão da Libertadores, Estudiantes, no Brasil em que Sul e Sudeste ainda dominam as representações (felizmente um pouco menos que em outros períodos) somos doze. Ou éramos ou não seremos mais dadas as diferenças econômicas maiores que outrora. Mas hoje, nenhum gremista ou colorado permite entender-se como não pertencente da elite do futebol nacional. Independentemente dessa grandiosidade nacional, no Rio Grande do Sul, Gre-Nal é uma forma de pensar.

Ter uma grande torcida, grandes títulos, ter aceitado atletas negros antes do outro hierarquiza os clubes entre si e produz representações sobre seus torcedores.

Completamente alheios ao que nos mostra a história, torcedores de Internacional e Grêmio procuram demonstrar até mesmo qual dos dois clubes é popular desde sua origem quando a resposta exata seria nenhum. Sobre isso, lembro nosso saudoso botafoguense Gilmar Mascarenhas:

O Internacional de Porto Alegre surgiu em 1909, como iniciativa de indivíduos de classe média para desafiar o Grêmio, então principal força do nascente futebol gaúcho e representante das elites alemães que então controlavam importantes setores da economia. (…) . Na década de 1930, esse clube investiu no processo de popularização de sua imagem, com êxito peculiar.

Mascarenhas, 2014, p. 128

O Internacional foi o primeiro clube da dupla Gre-Nal a admitir atletas negros. Essa aceitação permitiu a consolidação da imagem do Internacional como “clube do povo”. Nos últimos anos o Grêmio procurou abraçar a alcunha de “clube de todos” exaltando, inclusive, o protagonismo da Coligay3, torcida homossexual que frequentou o antigo estádio Olímpico entre o final da década de 1970 e início da década de 1980. Apesar desse esforço, ainda persistem diferentes representações que vinculam o Internacional como uma torcida popular e negra, enquanto a torcida do Grêmio ainda é representada como elitista e racista. Novamente recorro ao Gilmar Mascarenhas que me parece bastante lúcido ao mostrar os movimentos dessas representações:

Retomando as estratégias e os contornos simbólicos da rivalidade Gre-Nal, mantendo-se fiel a seus estatutos, o Grêmio persiste em recusar a inclusão de atletas negros até 1952, quando já não mais suporta o acúmulo de vitórias do inimigo direto. Nesse ínterim, o Internacional redimensionara no plano simbólico o confronto com seu rival, que passa a ser visto como um clube branco de elite e sobretudo racista, encastelado na área nobre da cidade, contra o adversário popular e negro, o carnavalesco “clube das massas” democraticamente instalado no subúrbio Menino Deus. Essa redefinição do confronto chega, nesse momento, a esboçar contornos de luta de classes. Com a reestruturação do Grêmio, entretanto, essa conotação classista vai gradativamente se esvaindo. Na atualidade, ambos os clubes possuem, igualmente, adeptos nas camadas sociais desfavorecidas.

Mascarenhas, 2014, p. 131-132.

Para além das representações e das disputas por seus significados, o Gre-Nal é, indubitavelmente, o jogo mais representativo na relação entre gremistas e colorados. “Clássico” é o nome dado para este tipo confronto, o embate direto entre clubes tradicionais ou rivais. Os clássicos garantem um grande envolvimento de suas torcidas, mesmo que, eventualmente, não apresentem boa qualidade técnica. Na realidade, esse elemento é totalmente dispensável e não são incomuns os clássicos de sangrar os olhos, sem nenhum gol e com uma briga generalizada entre os jogadores que parecem ter aprendido que jogar na dupla como se tivesse se feito torcedores desde suas infâncias.

Em Porto Alegre, ao pensar em gostar de futebol, uma criança precisa fazer sua “escolha” pretensamente definitiva. É preciso definir-se gremista ou colorada. Uma das estratégias para a associação a um dos clubes da cidade se dá nos enfeites dos berçários. Sabemos que esses enfeites ajudam a marcar a construção social do gênero pelas cores associadas a meninas (rosa) e meninos (azul). Em Porto Alegre, os enfeites dos meninos e meninas também podem ser diferenciados entre si. Aqui, além de azuis, os enfeites dos meninos podem ser vermelhos. Um enfeite azul do Grêmio para uma menina não chega a colocar as normas de gênero em tensão. Os símbolos de Grêmio e Internacional estão presentes nas maternidades e nos berçários para “confirmarem” a herança “genética” do clube. 

Todas essas linhas foram para dizer que como pai que precisa (e quer) garantir o “clube do coração” do filho, gostaria que fosse possível fazer um gremista de outro modo. Quero o Martin um gremista melhor do que eu. Quero que ele torça para o Grêmio, mas gostaria que ele se importasse muito menos com o Internacional do que eu. Será isso possível? Mais que adversário, o Internacional não poderia ser um parceiro para fazer os jogos acontecerem? Não sou tão revolucionário de imaginar que ele torceria por vitórias do Internacional, mas será que ele precisa torcer tanto pelas derrotas coloradas como eu? Assim como eu ele terá grandes amigos colorados. Por que é necessário despender tanta energia torcendo contra o fracasso do clube rival e, em alguma medida, dos meus amigos?

Falando nos meus amigos, o panamenho radicado em Porto Alegre desde a adolescência, Rodrigo Pareja tem um pouco mais de dificuldade de entender a necessidade dessa aversão. Tendo chegado na cidade depois da infância sua equivocada escolha pelo Internacional (me desculpem, eu não resisto) não contou com a mesma aversão pelo rival que a minha escolha pelo Grêmio. Ao comentar com ele sobre as possibilidades de o Martin ser um gremista que não seja anticolorado ele demonstrou bastante otimismo, bem maior que de dois outros grandes amigos, Cassio e Zé Paulo que acham que não é possível que isso aconteça e em nossa conversa aparentaram, inclusive, não entender o propósito disso. O Martin que, com dois anos e três meses, já me ensinou tanto poderá me ajudar a ver a viabilidade dessa hipótese de fazer um torcedor que não se importa com o rival.


1 Enquanto escrevo essas linhas estou com muito medo que o Internacional conquiste sua terceira Copa Libertadores da América. Espero que quando o texto seja publicado o Fluminense já tenha resolvido o “meu” problema ou serei mais um torcedor apaixonado do Palmeiras ou do Boca Juniors.

2 Agradeço a minha colega Soraya Bertoncello por me lembrar do nome do jornal.

3 Sobre a Coligay, ver Anjos, Luiza Aguiar dos. Plumas, arquibancadas e paetês: Uma história da Coligay. Santos: Dolores Editora, 2022.


Referências

Damo, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 2002.

Mascarenhas, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.