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Há cinquenta anos, uma frustrada visita olímpica

Lorde Killanin no décimo segundo congresso da ODEPA (no centro com a cabeça baixa). Estádio (Santiago de Chile), 5 de junho de 1973.

“Conheço pouco do esporte latino-americano e vim mais para ouvir e aprender”, assegurou o irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin por seu título de nobreza, em uma coletiva de imprensa durante o décimo segundo congresso da Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA), organizado de 29 a 31 de maio de 1973 em Santiago do Chile. Killanin havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, e aproveitou o convite para realizar uma extensa turnê pela América Latina, que incluía uma breve estadia na Argentina. Essa experiência, frustrada, constituiu a primeira visita de um presidente do COI em exercício ao país.

A turnê de Killanin, bem como sua ascensão à presidência do COI, tinham gerado grande expectativa no esporte regional. Ao contrário do seu antecessor, o americano Avery Brundage, a quem considerava um autocrata, Killanin era visto como um reformista. De fato, formalizou a estrutura tripartida do movimento olímpico, em que o COI, os comitês olímpicos nacionais e as federações desportivas internacionais trabalham em cooperação. Nesse sentido, antes de sua chegada ao Brasil em 21 de maio, o jornal Folha de S. Paulo o descreveu como tendo “ideias revolucionárias”. Além disso, naqueles dias, Killanin era apresentado como inteligente e irônico, e segundo a revista chilena Stadium, era “bonachão, simples, espontâneo [sic] e de bom humor”. A revista cubana Bohemia publicaria tempos depois que com Killanin “o COI experimentou uma saudável injeção de novos ares”.

Killanin permaneceu no Brasil, reunindo-se com autoridades esportivas e políticas no Rio de Janeiro e em Brasília, até 25 de maio. Nesse dia chegou a Montevidéu e visitou vários funcionários, incluindo o vice-presidente do país, já que o presidente Juan María Bordaberry se encontrava em Buenos Aires para a posse de Héctor J. Cámpora, que havia sido eleito em 11 de março com 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. O venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, e Fernando Madero, presidente do Comitê Olímpico Argentino (COA), haviam viajado a Montevidéu para acompanhar Killanin. No dia seguinte teve uma agenda intensa, com atividades que começaram às 9:30 e só terminaram depois das 22:30.

O plano original era que Killanin visitasse Buenos Aires em 27 de maio e dormisse lá para viajar até Santiago no dia seguinte. No entanto, Madero, em contato com Buenos Aires, não achou conveniente que o presidente do COI se hospedasse em solo portenho, ainda que brevemente, a dois dias da posse de Cámpora. Os motivos não foram esclarecidos, mas em um relatório escrito em agosto, Killanin explicou: “Minha visita coincidia com a investidura do novo Presidente Peronista. Obviamente, não era muito recomendável de minha parte ir à Argentina, onde minha presença só daria problemas adicionais à polícia”. Segundo seu relato, em Montevidéu foi designada uma guarda com uma dúzia de polícias à paisana. O que teria conjecturado Madero diante da massiva mobilização do peronismo, proibido desde 1955, no dia da assunção presidencial e da posterior libertação dos presos políticos das prisões argentinas, que deram início ao período conhecido como “Primavera Camporista”?

Enfim, Killanin partiu para Santiago no dia 28 de maio pela manhã. Faria uma breve parada em Buenos Aires, onde chegaria às 10:30 para pegar um voo para a capital chilena proveniente do Rio de Janeiro, que sairia às 12:55. No aeroporto de Ezeiza, o esperavam Madero, Mario Negri, membro argentino do COI, com sua esposa e filho, e Otto Schmitt, secretário geral do COA, com sua esposa. No entanto, o que deveria ter sido uma curta espera acabou sendo uma “breve” estada de oito horas. O avião do Rio de Janeiro se atrasou. Killanin admitiu ter recebido um tratamento preferencial: tomaram-lhe o passaporte para evitar filas no controle migratório, mas a gentileza produziria outro atraso. De acordo com Killanin, talvez justificando a mudança no programa original, nesse dia houve “bastantes tiroteios” em Buenos Aires, e pensou que aqueles que o acompanhavam não iriam querer chegar tarde a seus lares. Disse-lhes para não esperarem pela sua partida e recebeu de volta o passaporte. Mais tarde, quando passou pelo controle migratório, lhe informaram que não podia sair do país, porque não havia entrado formalmente. Isso atrasou o voo pelo menos mais uma hora, até que um oficial de maior patente se apresentou para confirmar sua entrada ao país pela manhã e sua saída à tarde. Decolou por volta das 18:30.

Killanin pôs os pés em Santiago tarde da noite e foi imediatamente recepcionado pelo prefeito da cidade. Pela manhã, assistiu à inauguração do congresso da ODEPA. Em seu relatório, ressaltou que Salvador Allende, o presidente chileno, impossibilitado de comparecer ao evento, lhe havia enviado uma placa comemorativa. Allende tinha estado em Buenos Aires para a posse de Cámpora e assistiu a um jogo de futebol entre Racing e Boca Juniors, no dia 27 de maio, junto do novo chefe de Estado argentino e com Osvaldo Dorticós, o presidente cubano. Ou seja, no dia em que Killanin deveria ter visitado Buenos Aires, aqueles três presidentes estavam em um estádio de futebol lotado por uma multidão, que os saudava. Enquanto isso, Beracasa preparava seu discurso no Congresso da ODEPA. Proferiria estas palavras, que certamente teriam sido do agrado de Cámpora, Allende e Dorticós: “A América é livre como quiseram seus pais, e é por isso que dentro do marco esportivo da Organização Pan-Americana não devem existir pressões nascidas de pequenos interesses ou de inconfessáveis atitudes antidesportivas”.

Ao fim do congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Na capital mexicana declarou: “Conheço os jovens; quando fui, quis revolucionar o mundo” e se promulgou “a favor de modificar os Jogos (Olímpicos)”. Na Argentina, seu espírito renovador só chegou ao aeroporto. Monique Berlioux, diretora-geral do COI, pediu a Negri que lhe enviasse recortes de jornais sobre a estada de Killanin no país, mas, com a mudança de data, a imprensa não havia sequer aparecido. Lamentando a situação, Negri resumiu o ocorrido: “Lorde Killanin não visitou Buenos Aires, por outro lado conheceu muito bem o aeroporto de Ezeiza (sic!)”. Enquanto Killanin permanecia nesse aeroporto, a sociedade mobilizada continuava festejando o fim da ditadura que havia governado a Argentina desde 1966. De qualquer forma, a “Primavera Camporista” ou que a América fosse livre ou subjugada, não teria feito diferença para Killanin. Em 1974, o movimento olímpico acolheu “ditaduras de esquerda e de direita, monarquias e repúblicas”. Para Killanin, ele estava acima dessas diferenças e unia todos os povos. Sua renovação não incluía esse aspecto do ideário olímpico”.

Texto originalmente publicado em relatores.com no dia 6 de março de 2023.

Tradução por: Júlio Barcellos.

Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.

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Continuidades heroicas do nacionalismo esportivo

Em meados de maio de 1924, poucos dias antes de viajar a Paris para participar dos Jogos Olímpicos daquele ano – que constituía a estreia argentina nesse evento – a equipe de esgrima foi homenageada no Jockey Clube.

Após várias lutas de exibição, Román López, o presidente da Federação Argentina de Esgrima, tomou a palavra para se despedir dos esgrimistas. Manifestou-lhes a esperança de que respondessem “como bons, com a vontade e a firmeza que vos caracteriza, à confiança que em vós depositamos”.

Fonte: turismo.buenosaires

Também lhes disse que teriam a missão de demonstrar “a fidalguia e vigor de nossa raça, dessa raça de valentes e abnegados que nos deu a pátria, o grito de liberdade e independência, lançado em 25 de maio de 1810”.

Agregou seu desejo de que “conquista[ssem] louros, para depositá-los ao seu regresso, ao pé do glorioso pavilhão azul e branco, símbolo sagrado da nacionalidade argentina”. Esse, manifestou antes de concluir seu discurso, seria “o melhor presente que podeis oferecer à pátria no 108º aniversário do juramento de sua independência”.

No mês passado, quase cem anos depois, a Associação de Futebol Argentino (AFA) agradeceu, por meio de um vídeo e “em nome de todo o povo argentino”, que Lothar Mattthäus doara a camisa que Diego Armando Maradona vestiu na final da Copa do Mundo de 1986. Matthäus e Maradona, capitães das seleções da Alemanha e da Argentina, respectivamente, haviam trocado suas camisas ao fim da partida.

Em um momento, a voz em off do vídeo diz: “Ouçam amigos o grito sagrado. Porque junto da bandeira que hasteou Belgrano, o sabre curvo com o qual cruzou San Martín, chegou a solo pátrio a armadura com a qual lutou até a morte Diego Armando Maradona”.

Estas frases acompanham imagens de homens jovens com a camisa nacional, dos jogadores argentinos festejando durante a final, de um menino balançando a bandeira argentina em uma aldeia supostamente cordilheirana, do sabre, da camisa de Maradona em uma vitrine e deste se benzendo e celebrando, vestindo-a.

É notório como os dois acontecimentos abertamente enlaçam o esporte com a luta independentista, com suas figuras culminantes e com a bandeira nacional, e como expõem aos esportistas como representantes do húmus autóctone.

Assim, ao início tanto do século XX como do século XXI, a nação argentina é, em boa medida, imaginada através do esporte, que, como postulou o antropólogo Eduardo Archetti, é uma das “zonas livres de uma cultura”, propensa à criatividade nacionalista. Embora na década de vinte do século passado o futebol permitisse uma módica presença de outros esportes na narrativa da identidade nacional; na atualidade, a sobrerrepresentação futebolística obtura essa possibilidade.

A narrativa que enlaça esporte e nação, proposta pela AFA e pelas forças do mercado, converge principalmente no futebol. Por outro lado, essa narrativa resgata e gira em torno de Maradona, mesmo em sua morte, convertido há décadas em um herói nacional – “valente e abnegado” na fórmula de López, e cruzado por alegrias e tristezas, paradas e recomeços, acertos e erros – junto a Belgrano e a San Martín. Depois de tudo, sua camisa é presenteada como uma armadura simbolicamente equivalente à bandeira criada por aquele e ao sabre utilizado por este.

Fonte: Globo Esporte.

Também é notório como os dois acontecimentos reforçam que a narrativa esportiva da nação tem sido eminentemente masculina. Não só não houve mulheres na equipe de esgrima que viajou a Paris para participar dos Jogos Olímpicos de 1924, nem em toda a delegação argentina no evento, pois López em seu discurso de despedida aos esgrimistas apontou que no agasalho “não falta a nota de distinção, elegância e beleza da dama argentina, hoje como ontem e como sempre, entusiasta e palpitante a todas as manifestações da vida nacional”. Entusiasta e palpitante, mas não participante.

Por sua vez, no vídeo da AFA as mulheres estão praticamente ausentes. Apesar de sua crescente, embora marcadamente modesta, visibilidade, o esporte feminino segue negligenciado. Nas palavras do sociólogo Pablo Alabarces, como a maioria das narrativas nacionalistas, a relação esporte e nação tem sido “produzida, reproduzida, protagonizada e administrada por homens”, em um exercício de poder que sustenta uma ordem heteropatriarcal.

Lamentavelmente, as desportistas não se permitem sonhar em converter-se em heroínas da nação.

Em uma estupenda nota publicada recentemente, o jornalista Ariel Scher indaga sobre as diversas posturas que os/as torcedores assumiram no desenlace do último campeonato masculino de futebol. Recorrendo a diversos/as especialistas em ciências sociais, enfatiza que os modos de ser torcedor têm variado durante a história do futebol argentino e que estes, com suas avaliações, têm sido naturalizados.

Além disso, ressalta que o posicionamento frente aos variados modos de ser torcedor envolve concepções sobre questões fundamentais como “a ideologia, as visões sobre a condição humana ou a interpretação de que é o que está em jogo neste jogo”. A nota convida a pensar a construção de sentido através do futebol e, de forma mais ampla, do esporte.

Nesse espírito, o velho discurso de López e a nova encenação da AFA manifestam, em conjunto, a estreita relação que os dirigentes esportivos têm articulado entre esporte e nação. Estes acontecimentos sugerem que a articulação dessa relação tem sido contínua, pelo menos, ao longo dos últimos cem anos. Parafraseando a Scher, a maneira que se desenvolveu o nacionalismo esportivo revela um aspecto proeminente do que tem estado em jogo no jogo.

Se as variações históricas dos modos de ser torcedor aludem a fraturas no ethos futebolístico, os dois acontecimentos demonstram uma continuidade na articulação da relação entre esporte e nação. Essa continuidade, com sua história e com suas peculiaridades, é uma construção de sentido, que, como insistiria Scher, deve ser interrogada e desnaturalizada.

Porque a narrativa do nacionalismo esportivo imperante, que supostamente amalgama, não é a única imaginável. No entanto, para imaginar alternativas, simbólicas e materiais, é preciso compreendê-la ou, como propõem os/as especialistas em ciências sociais, interpretá-la. Caso contrário, o status quo continuará a ser aceito e reproduzido como uma manifestação infalivelmente “natural”. E no âmbito social, o “natural” é uma aceitação acrítica do estabelecido como habitual.

Publicado originalmente publicado em relatores.com no dia 02 de novembro de 2022.

Tradução por: Júlio Barcellos.

Revisão por: Leda Costa.

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As delegações olímpicas, a carne e a identidade nacional argentina

Depois de quase duas décadas de tentativas fracassadas, as elites argentinas conseguiram enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1924 em Paris. Rapidamente, as participações olímpicas argentinas se articularam, citando o antropólogo Eduardo Archetti, como “um espelho de onde se vê e é visto ao mesmo tempo”. Desta maneira, as andanças dos/as desportistas argentinos no estrangeiro construíam, disseminavam e afirmavam uma identidade nacional. Até meados dos anos cinquenta, a tipificação e a diferenciação nacional através das excursões olímpicas incluíram uma crescente relação com outro elemento central do sentimento coletivo de pertencimento argentino: a carne.

Dadas as dificuldades para estabelecer o Comitê Olímpico Argentino (COA) no ano anterior, a inexperiência da incipiente direção olímpica nacional e a estrutura dos Jogos Olímpicos, a conformação da delegação que viajou a Paris em 1924 esteve repleta de inconvenientes. Um destes ressaltaria, obliquamente, o papel da carne na vida nacional. Antes da partida à Europa, houve queixas porque o barco onde viajaram os esgrimistas e os remadores não contava com as acomodações necessárias para que chegassem em condições competitivas adequadas. Tratava-se de um barco frigorífico contratado por empresas do ramo “que deviam carregar seus porões com carnes congeladas”. O barco atrasou sua partida pelo processo de carga, embora o capitão tenha consentido instalar dois estandes de esgrima no convés e embarcar um aparato de treinamento de remo. Criticando o COA por sua falta de planejamento, Román López, presidente da Federação Argentina de Esgrima, manifestou: “Para viajar em um barco como o ‘Vasari’ é necessário ser um verdadeiro patriota”. Esse barco transportou, inesperadamente, duas marcas identitárias da nação argentina: desportistas e carne. 

Publicidade do Vasari (The Review of the River Plate, 10 de outubro de 1919, p. 952).
Vista do Vasari (Bulletin of the International Union of American Republics, junho de 1909, p. 1018).

A Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA), instituição que substituiu o COA em 1927, também teve sérios inconvenientes, principalmente econômicos, para enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã. Uma vez ali, a alimentação holandesa foi percebida como um obstáculo para a correta aclimatação dos desportistas. O capitão da equipe de luta declarou que os lutadores deveriam “acostumar seu organismo a mudança de alimentação, que entre parênteses não era grande coisa, em termos de variação e seu sabor, apesar de ser saudável”. Acrescentou: “Só o grande apetite que despertava o treinamento, fazia com que se ingerisse esta comida deficiente e monótona a que não está acostumada a maioria dos nossos atletas”. Ou seja, a delegação sentia saudades da comida “crioula” e possivelmente da carne, aspecto que a CADCOA tentaria corrigir no futuro.

Treinamento no convés de parte da delegação para os Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã (Federico Dickens, Manual técnico de atletismo, 1946, sp).

Apesar da CADCOA ter lidado com numerosos problemas administrativos, econômicos e de condução relacionados à delegação nos Jogos Olímpicos de 1932 em Los Angeles, a alimentação não foi um deles. De fato, os desportistas parecem ter estado satisfeitos a respeito. Por exemplo, poucos dias antes que Juan Carlos Zabala ganhasse a medalha de ouro na maratona, Alejandro Stirling, seu treinador austríaco radicado na Argentina desde 1922, explicou que seu pupilo “come com grande apetite dois bifes no almoço e dois na janta” e que, além de treinar, lia e escutava discos “que lhe recordam a pátria distante”. O fulgurante triunfo do “nandú crioulo”, o apelido com que a crítica havia batizado Zabala, foi utilizado pela imprensa dominante para gerar imagens identitárias nacionais. Uma semana depois de ter ganhado a maratona, a delegação japonesa ofereceu uma festa em sua honra durante a qual lhe perguntaram por seu regime de treinamento e de alimentação. É de se supor que ressaltou os benefícios dos quatro bifes diários. 

Para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, a CADCOA, que havia ignorado a intenção argentina de boicotar o evento organizado pela Alemanha nazista, implementou medidas para que toda a delegação tivesse “carne na quantidade e da qualidade a que estavam habituados os atletas”. Por um lado, a CADCOA argumentou que a carne favorecia o rendimento esportivo. Por outro, afirmou que “constitui a base da alimentação de nossos desportistas”. É que a carne, como diria mais de cinco décadas depois o escritor Juan José Saer, “não é unicamente o alimento base dos argentinos, mas o núcleo de sua mitologia e inclusive de sua mística”. Em Berlim, esporte e carne sincretizaram a nação argentina e seu imaginário. Considerando “o sério inconveniente que supunha a insegurança de encontrar durante a viagem e na estadia na Alemanha” o precioso e significativo alimento, a CADCOA conseguiu que a Junta Nacional de Carnes, um órgão criado em 1933 para regular o mercado em questão, doasse quinze toneladas de carne. O regime alimentício da delegação recomendava entre 250 e 350 gramas de carne diários. De todas as maneiras, o maratonista Luis Oliva consumia 500 gramas de carne diários, “preferentemente assada”, aludindo, como assinalou o antropólogo Jeff Tobin, a “comida mais fortemente associada ao nacionalismo argentino”.

A CADCOA inclusive enviou um cozinheiro a Berlim, Arnoldo Damm. Graças a sua “arte culinária crioula”, na Vila Olímpica “qualquer um logo e gostosamente se esquece da cozinha alemã”.  Damm conseguiu que ali “se respirasse um ambiente do país alegre e confiante, sempre menos pesado e rígido que o ambiente germânico”. A dieta da delegação servia para afirmar o nacional e diferenciar-se do outro significante. Em uma “significativa cerimônia” ao terminar os Jogos Olímpicos, Alberto León, presidente da delegação, entregou 300 quintais de carne às autoridades municipais berlinenses para que se distribuíssem em hospitais e sociedades de beneficência. Essa carne, destacou León, “testemunha a amizade germano-argentina e a gratidão da Argentina pela acolhida que teve sua delegação”. Segundo a CADCOA, “o gesto foi elogiosamente comentado pelas autoridades e diários berlinenses”.

Membros da delegação para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim no refeitório nacional (La Nación, 21 de julho de 1936, p. 12).

Após a interrupção pela Segunda Guerra Mundial, os Jogos Olímpicos voltaram a ser organizados em 1948 em Londres. A CADCOA enviou uma numerosa delegação, bancada pelo governo de Juan Domingo Perón. Ao se despedir do grupo, Perón pronunciou: “É uma imensa satisfação que o Governo teve ao apoiar este tipo de manifestação, e é somente o início desse apoio que temos de levar até limites que muitos não imaginavam ainda”. Também acrescentou: “Para o futuro, procuraremos organizar melhor essas viagens, para que os atletas argentinos cumpram sua missão com o mínimo de sacrifício e o máximo de proveito”. A delegação enviada a Londres contou com uma remessa de carne própria, visibilizada além das fronteiras argentinas. Assim, no Chile se perguntaram se o rendimento nacional teria sido tão destacado “se a equipe não tivesse levado toneladas de carne”. Além de seu efeito no rendimento esportivo, a carne foi utilizada para festejar as conquistas em Londres. De acordo com o Noticias Gráficas, Delfo Cabrera celebrou sua medalha de ouro na maratona com um “assado a la criolla, sobre a grama de um parque jamais pisado pelo mais insignificante piquenique”, que surpreendeu aos “fleumáticos ingleses”.

Quatro anos mais tarde, quando Perón se despediu dos/as desportistas rumo aos Jogos Olímpicos de Helsinki, declarou que para esse tipo de evento era conveniente transportar “um pedaço da República ao lugar onde se realizam [os Jogos]”. Dessa maneira, a delegação teria todo o necessário para render plenamente. Por isso, Perón achou “oportuno mandar um barco, como fazemos, para que essa seja nossa casa, onde haja carne argentina, comida argentina, e água argentina; sabemos que isso não nos faz mal e, se não é a melhor, é boa”. Perón acreditava que um regime alimentício baseado na carne não era “científico”. Entretanto, sua abundância na delegação manifestava a Nova Argentina, na qual o crescente poder aquisitivo fomentava o consumo de carne e o esporte era promovido em todos os seus níveis como nunca antes e nunca depois. 

Juan Domingo Perón subindo no barco que transportou a delegação para os Jogos Olímpicos de 1952 em Helsinki (Mundo Deportivo, 19 de junho de 1952, p. 22).

Em parte devido às mudanças estruturais nos Jogos Olímpicos, que requeriam aos/às participantes residir na Vila Olímpica durante o evento, a partir do golpe de Estado que derrubou Perón em 1955, as delegações deixaram de projetar uma marcada relação com a carne, que sintetizou a identidade nacional. Não obstante, essa relação permanece. Por exemplo, dias antes do começo dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim, o COA, instituição que substituiu a CADCOA em 1956, ofereceu um churrasco aos/às desportistas “para demonstrar que estão com as forças necessárias para fazer um bom papel na China”. Por uma ou outra via, as delegações e a carne continuam condensadas, com maior ou menor força, naquilo que se imaginava como meio que tipifica e que diferencia a identidade nacional. 

Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 17 de setembro de 2022.

Tradução por: Júlio César Barcellos.

Revisão por: Leda Costa e Carol Fontenelle.

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Resumo do livro Que la cuenten como quieran: pelear, viajar y alentar en una barra del fútbol argentino, de Nicolás Cabrera

Cabrera, Nicolás. Que la cuenten como quieran: pelear, viajar y alentar en una barra del
fútbol argentino. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Prometeo libros, 2022.

O que significa ser “barra brava” no futebol argentino? Por que alguém está em uma barra? Herança, amor, honra ou dinheiro? Estas são algumas das perguntas que traz o livro Que la cuenten como quieran: pelear, viajar y alentar en una barra del fútbol argentino a partir de um estudo etnográfico com “Los Piratas”, a torcida organizada do Clube Atlético Belgrano de Córdoba, que existe desde 1968. O trabalho de campo foi realizado entre 2011 e 2019 e consistiu em um acompanhamento diário com os integrantes da barra antes, durante e depois de cada jogo e em vários momentos íntimos de um grupo sobre o qual se fala muito e se sabe pouco.

O livro estrutura-se em torno a três experiências fundamentais através das quais “Los Piratas” se identificam entre diferentes e se hierarquizam entre iguais. Na primeira delas, o lutar, veremos as dinâmicas das violências: como os “barras” se enfrentam trocando socos, facadas e tiros com diferentes alteridades, que são definidas em diferentes espaços e tempos. Na seção viajar são narradas as diferentes maneiras pelas quais estes apaixonados torcedores acompanham ao seu time pelos bairros, cidades, estados e países onde o clube joga.

Fonte: YouTube

Veremos como se procura atravessar fronteiras sem tropeçar. Na parte torcer há uma história mínima da estética pirata. Uma descrição densa do trabalho cotidiano que envolve a organização da festa e o carnaval dos estádios. Finalmente, o livro se encerra procurando discutir a problemáticas das “barras” e a sua ligação com o fenômeno da violência no futebol a partir de duas dimensões: de um lado, analisam-se as políticas públicas historicamente implementadas nessa área; assim como se propõe um estudo comparativo do caso argentino com outras experiências internacionais, tanto latino-americanos, quanto europeias.

O livro conta, em poucas palavras, como se forma “La barra de Los Piratas” ao mesmo tempo em que descreve o que “los barras” fazem na sua cotidianidade.  Vocês verão tradições de bairro e linhagens familiares; reconhecimento e progresso social; fome de adrenalina; sentimentos patrióticos; orgulho das músicas criadas; caixa dois de ingressos; pactos entre homens; humor de estrada; facas, armas e punhos fechados; ou, simplesmente, a serenidade de ter encontrado um lugar no mundo torcendo pelo Belgrano.

Essas são algumas das chaves para entender a durabilidade de grupos que existem além do que “diga la gilada”, aquela manézada onde “Los Piratas” incluem jornalistas acaguetes, cartolas mercenários, jogadores passageiros, torcedores de fachada, políticos charlatões e antropólogos enrolados.


Contato:

Nicolás Cabrera
E-mail: nico_cab@hotmail.com
Instagram: niqo_cabrera

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A história do voto que frustrou a candidatura de Buenos Aires 1956

A escolha de Melbourne como sede olímpica é atribuída a um membro chileno do COI. Não foi assim.

Os membros argentinos do COI Ricardo C. Aldao e Horacio Bustos Morón na abertura da reunião em Roma em 1949 (terceiro e quarto da esquerda na primeira fila da direita).

Recentemente me referi neste jornal ao malfadado complexo olímpico idealizado pelo peronismo para os Jogos Olímpicos de 1956. Mencionei que o projeto foi abandonado quando o Comitê Olímpico Internacional (COI) escolheu Melbourne, em vez de Buenos Aires, como cidade organizadora do evento. Da mesma forma, aludi ao fato de que a votação que determinou aquela eleição em abril de 1949 foi, e continua sendo, a mais próxima (21 votos a 20) para uma sede olímpica na história daquela instituição.

Um jornalista e um dirigente desportivo entraram em contato comigo para me dizer que o voto decisivo a favor de Melbourne havia sido do membro chileno do COI. Embora não o mencionassem, referiam-se a Enrique Barbosa Baeza, que ingressara no COI em 1948. A razão para justificar seu voto, prosseguiram, era que Barbosa Baeza preferia viajar para Melbourne, porque Buenos Aires era um destino mais acessível. Em seus livros de 2010, 2012 e 2004, respectivamente, Ezequiel Fernández Moores, Ernesto Rodríguez III e Víctor Lupo fizeram declarações semelhantes, embora com cautela. Assim, Lupo escreveu: o voto “que mudou a história do esporte argentino, segundo especialistas, foi de um representante de um país vizinho, que, ao ser repreendido por sua mudança de decisão, respondeu: ‘Conhecer a Austrália de outra forma seria impossível, ir para Buenos Aires é muito fácil para mim’”.

Essa explicação pitoresca da candidatura fracassada de Buenos Aires por um voto é bastante difundida no imaginário esportivo nacional, mas é apócrifa e merece ser esclarecida. Uma vez que a Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA) informou ao COI em janeiro de 1948 que Buenos Aires estava solicitando a organização dos Jogos Olímpicos de 1956, as autoridades olímpicas nacionais começaram a promover a candidatura. Por exemplo, naquele mesmo mês, Horacio Bustos Morón e Ricardo C. Aldao, os membros argentinos do COI, informaram à instituição que apoiavam a comunicação do CADCOA. Seis meses depois, enviaram uma carta a Sigfrid Edstrøm, presidente do COI, e outra aos demais colegas da instituição detalhando a candidatura de Buenos Aires e solicitando seu consentimento. Na carta diziam: “esperamos sinceramente que os nossos Colegas e Amigos apoiem esta iniciativa e votem a seu favor quando chegar o momento de o fazer”. A oferta provavelmente também foi vigorosamente empurrada durante as Olimpíadas de Londres em julho e agosto de 1948.

Em março de 1949, o CADCOA escreveu novamente ao COI insistindo em seu desejo de organizar os Jogos Olímpicos de 1956. Também produziu um livro suntuoso que serviu como “seu convite formal para celebrar a XVI Olimpíada nele (Buenos Aires) em 1956”. O COI acusou o recebimento do material e lembrou que a votação ocorreria em sua reunião em Roma, marcada para os dias 24 e 29 do mês seguinte. Os esforços das autoridades olímpicas nacionais deram alguns frutos, como mostra o telegrama de apoio à candidatura de Buenos Aires que o Comitê Olímpico Uruguaio enviou ao COI pouco antes de se reunir na capital italiana. Ao contrário, em dois telegramas também enviados naqueles dias, os dois membros brasileiros do COI votaram por Detroit, uma das nove cidades candidatas.

Na sessão de 25 de abril, o COI decidiu que o voto por correspondência não seria admitido na votação que ocorreria três dias depois. Em outras palavras, apenas os 41 membros presentes em Roma podiam votar. Nesse grupo, os únicos sul-americanos eram Bustos Morón e Aldao. Em 28 de abril, os dois membros argentinos do COI, acompanhados por Rafael Ocampo Giménez, embaixador argentino na Itália, e Mario L. Negri, líder argentino de natação, apresentaram a candidatura de Buenos Aires ao COI e tentaram convencer seus membros da conveniência de organizar ali os Jogos Olímpicos de 1956. As demais delegações também tiveram a oportunidade de apresentar as candidaturas de suas cidades.

Em seguida, o COI, que havia decidido “proceder por eliminação” (“que o número de cidades a serem eliminadas será decidido após cada (rodada)” e que na última “era necessária maioria absoluta”), iniciou a votação. Chicago, Minneapolis, Filadélfia e San Francisco foram eliminados na primeira rodada. Na segunda, Cidade do México e, na terceira, Detroit e Los Angeles. Buenos Aires obteve 9, 12 e 13 votos nas três primeiras rodadas de votação; Melbourne 14, 18 e 19. Buenos Aires conquistou 7 dos 9 votos em disputa no quarto turno, mas essa finalização impetuosa foi insuficiente para impedir Melbourne de obter a vaga (21 votos a 20). Nesse processo, Barbosa Baeza não teve influência, pois estava ausente em Roma e, se votou pelo correio a favor de Melbourne, seu voto foi rejeitado.

Aqui estão outras hipóteses da votação enganosa que teria transformado Buenos Aires na sede dos Jogos Olímpicos de 1956. Quatro meses antes da votação, no final de 1948, Aldao escreveu a Edstrøm, confidencialmente, alertando que algumas ações do peronismo em matéria esportiva estavam à beira de transgredir os princípios olímpicos. Embora Aldao não tenha mencionado irregularidades na candidatura de Buenos Aires, é possível que Edstrøm tenha se alarmado com a carta de Aldao –já que o peronismo era seu promotor– e a desvalorizado. Mesmo que ele não revelasse seu alarme aos outros membros do COI, seu voto, involuntariamente influenciado por Aldao, poderia ter sido decisivo. Claro, também é provável que nada disso tenha acontecido e que a maioria dos membros do COI acreditasse que Melbourne era uma candidata melhor do que Buenos Aires. De qualquer forma, apesar de perder por um voto, a capital argentina deixou uma imagem positiva entre os membros do COI. Como afirmou o presidente do CADCOA após a reunião daquela instituição em Viena em 1951, “a maioria dos delegados […] reconheceu a Argentina como o país mais adequado [para substituir Melbourne, se necessário]” ​​. Essa substituição, no entanto, foi desnecessária.

* Doutor em Filosofia e História do Esporte. Professor da State University of New York (Brockport).


Texto originalmente publicado pelo site Página12 no dia 11 de maio de 2022

Tradução: Caroline Rocha Ribeiro

Revisão: Fausto Amaro

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Perón, o esporte e os Jogos Olímpicos de 1956

Plano da Vila Olímpica para a candidatura dos Jogos Olímpicos de Buenos Aires 1956. Imagem: Cortesia do Arquivo COI

É sabido que durante a primeira presidência de Juan Domingo Perón (1946-1955) foi implementada uma gestão estatal inédita e incomparável na história argentina que promoveu e desenvolveu o esporte em todos os seus níveis e modalidades. Para Perón, o esporte era uma tecnologia social capaz de moldar e fortalecer sua “Nova Argentina”, baseada no apotegma “justiça social, soberania política e independência econômica”, e de difundi-la no exterior. Um dos meios preferidos para atingir o último objetivo, enquadrado no que mais tarde seria chamado de “diplomacia cultural”, era a participação em eventos esportivos internacionais e a organização deles na Argentina.

Nesse contexto, em 20 de janeiro de 1948, a Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA) informou ao Comitê Olímpico Internacional (COI) que Buenos Aires solicitava a organização dos Jogos Olímpicos de 1956. Nesse mesmo mês, uma carta do CADCOA fundamentava o “justo pedido” explicando que a eleição de Buenos Aires “satisfará as legítimas aspirações do governo do Exmo. Senhor Presidente, General Juan D. Perón, e dos atletas do continente” e que este [o governo de Perón] “comprometeu formalmente (…) toda a cooperação moral e material que a organização requer”. Além disso, o CADCOA assegurou que o governo estava terminando os estudos para a construção de um “grande estádio nacional com uma ‘Vila Olímpica'”, que seria o epicentro do evento.

Concluídos esses estudos, o CADCOA reiterou ao COI no início de 1949 “o propósito do Governo Superior da Nação, de construir um complexo olímpico com a Vila correspondente”. O local escolhido foram os quadrantes noroeste e sudoeste do cruzamento da Avenida Gral. Paz e Autopista Gral. Ricchieri. A eleição, que não está articulada nos documentos consultados relativos a esta candidatura olímpica, pode ser entendida como parte do que Anahí Ballent chama de operação territorial de Ezeiza, um projeto urbano “de notável magnitude no setor sudoeste da Grande Buenos Aires (que incluía) a arborização da área, novas vias de comunicação, conjuntos habitacionais e instalações esportivas, assistenciais, educativas e de saúde”. E, claro, o aeroporto internacional, inaugurado nesse mesmo ano. Dessa forma, articulando modernização técnica e social, Ezeiza constituía, também segundo Ballent, “uma espécie de cenário ideal para a política (peronista) onde a implantação de sonhos e projetos conseguiu configurar um novo espaço urbano-territorial”, que por um breve período incluiu o conjunto olímpico planejado.

Dessa forma, as delegações dos diversos países chegariam ao aeroporto internacional, o que criou “uma nova frente (e entrada) para a cidade”, e se deslocariam rapidamente por uma moderna rodovia até o complexo olímpico, que as abrigaria durante sua estada no país enquanto começava sua familiarização com as conquistas e aspirações da “Nova Argentina” de Perón. Essa possibilidade foi abreviada em abril de 1949 quando o COI escolheu Melbourne, em vez de Buenos Aires, para sediar os Jogos Olímpicos de 1956. O voto que determinou essa escolha foi, e ainda é, o mais próximo (21 votos a 20) para uma sede olímpica da história do COI. O CADCOA transformou a derrota em vitória, afirmando: “essa diferença mínima (…) conforta o espírito e satisfaz plenamente os mais queridos desejos argentinos, por tudo o que significa para nossa Pátria e o esporte argentino”.

Após a fracassada candidatura de Buenos Aires aos Jogos Olímpicos de 1956, o peronismo abandonou o projeto do complexo olímpico no cruzamento da Avenida Gral. Paz e Autopista Gral. Ricchieri. No entanto, inaugurou uma “Vila Olímpica” a poucos quilômetros do aeroporto internacional, no cruzamento da Autopista Gral. Ricchieri e Ruta 205, onde se preparou e concentrou a equipe argentina que participaria dos primeiros Jogos Esportivos Pan-Americanos de 1951, com sede em Buenos Aires, um dos eventos esportivos internacionais organizados durante a década peronista. Comparada ao abortivo plano olímpico original, esta Vila Olímpica, que fazia parte das instalações esportivas da operação territorial de Ezeiza, empalideceu em tamanho e simbolismo.

Atualmente, no local escolhido para a construção do complexo olímpico, existem inúmeros conjuntos habitacionais do tipo que Alicia Novick caracteriza como um habitat precário e irregular e traçados urbanos mais formais e regulares, mas empobrecidos. Todos nos municípios de Villa Madero e Villa Celina, no município de La Matanza. O destino daquele lugar, incluindo o sonho olímpico e o complexo tecido urbano atual, surge como uma topografia histórica e nos convida a reconstruí-lo, bem como a reimaginar seu futuro. Talvez seja isso o que fazem muitas das pessoas que o habitam, tantas vezes discriminadas e estigmatizadas, quando nos fins de semana organizam partidas de futebol e vôlei na terra firme e seca do que teria sido o complexo olímpico concebido para os Jogos Olímpicos de 1956.

* Doutor em Filosofia e História do Esporte. Professor da State University of New York (Brockport).


Texto originalmente publicado pelo site Página12 no dia 21 de abril de 2022

Tradução: Caroline Rocha Ribeiro.

Revisão: Fausto Amaro.

Artigos

A História feminina do esporte argentino

Há mais de 100 anos, em seu relatório anual de 1918, P.P Phillips, diretor de educação física da Asociación Cristiana de Jóvenes (ACJ) de Buenos Aires, escreveu: “Ao contrário de sua tendência tradicional, os argentinos agora estão desenvolvendo uma sede insaciável pela educação física e os esportes estrangeiros”. Por outro lado, ressaltou que em um rápido olhar para os estudantes em seu ginásio, podia observar “os tipos de homens e crianças bem educados” que a ACJ atraía, assim como “o clima democrático, gentil” que se mantinha nelas. Para mostrar a aprovação que geravam as iniciativas da instituição, Phillips citou um médico local, para quem seus colegas portenhos poderiam enviar mulheres jovens o suficiente para abrir uma seção feminina se a ACJ estivesse disposta a realizar o mesmo trabalho “para nossas meninas gordas”.

O Relatório de Phillips demonstra a crescente importância do esporte na Argentina no começo do século XX e a ordem genérica que prevalecia. O esporte estava reservado e era controlado por homens, que estavam habilitados para beneficiarem-se de todos os valores atribuídos à sua prática. Entretanto, como indica a prescrição do médico, as mulheres tinham permissão para participar dos esportes se isso resultasse na melhora da saúde (sobretudo reprodutiva), e não alterasse o ideal feminino estabelecido. Vale a pena destacar que a Asociación Cristiana Femenina (ACF) de Buenos Aires teve seu início em 1890, sendo uma das instituições femininas mais antigas do país. O fato do médico citado por Phillips ignorá-la também expõe as enormes dificuldades que enfrentava, e ainda enfrenta, o esporte feminino. 

A história da ACF demonstra que, apesar dos discursos esportivos dominantes que durante muito tempo o silenciaram ou minimizaram, e que ainda o fazem, sempre houve, e há, mulheres e instituições que favoreceram, materializaram e exemplificaram a emancipação e o empoderamento feminino através da prática esportiva. Se pode, e deve, considerá-las como pioneiras no sentido de que eram, e muitas ainda seguem sendo, as primeiras a ingressarem em um espaço novo. Da mesma forma que se pode, e deve, considerá-las lutadoras e militantes no sentido de que nesse corajoso ingresso, criaram novos espaços participativos por meio dos quais se questionaram estereótipos de gênero e se imaginaram visões políticas alternativas. Teria mencionado algo sobre isso Alicia Moreau quando a ACJ a convidou para falar sobre “O feminismo como problema social” em seu ciclo de conferências de 1919?

Sabe-se relativamente pouco da vida dessas mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes do campo do esporte, visto que elas estão em grande parte ausentes da narrativa histórica e jornalística tradicional. Felizmente, o trabalho paciente de várias colegas começa a interpretar o complexo processo pelo qual as mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes, em suas buscas, suas conquistas, e seus fracassos, contribuíram para resistir, negociar e ressignificar a ordem genérica que operava no esporte ao longo do último século. Ao torná-las visíveis, percebemos sua larga e importante, mas agora latente, presença no esporte nacional. 

O exemplo de Lilian Harrison é norteador. Anos depois de converter-se como a primeira pessoa a cruzar a nado o Río de la Plata em 1923, declarou:

“Nunca posso me esquecer que um dos presentes [em Colonia] não se cansava de dizer que eu estava louca e que não chegaria nem ao penhasco. Veja que estranho, quando toquei a terra, em Punta Colorada, próximo de Punta Lara, a primeira coisa que me aconteceu foi pensar naquela pessoa que havia comentado de minha loucura um dia antes”.

Lilian Harrison

Se nos interessa a produção de discursos e de sentidos genéricos, assim como a igualdade de gênero no esporte, nem a fala e nem a vida de figuras como Harrison, nem o seu significado, deveriam ser esquecidos. Resgatá-las, mantê-las presentes e problematizá-las ajuda a tornar visível o papel vital da mulher no esporte e em outros espaços sociais.


Texto originalmente publicado no site El Equipo no dia 29 de maio de 2021

Tradução: Abner Rey e Fausto Amaro

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Artigos

As suecas: uma conquista feminina do mundo esportivo masculino

Por David M.K. Sheinin* e César Torres**

Como sempre, no âmbito do Turismo de Autoestrada (Turismo de Carretera – TC), o Grande Prêmio Standard de 1962 produziu triunfos heroicos e decepções profundas. Apesar das famosas marcas estadunidenses Ford e Chevy desaparecerem na rota Pilar-Villa Carlos Paz, o grande condutor Jorge Cupeiro conseguiu um tempo digno em sua Pontiac. Com uma velocidade média de 121 km/hora, Ricardo “O Gordo” Sauze – vestido de bombacha e tênis – liderou um trio de Alfa Romeos Giulietta TI que encabeçaram a categoria “D” do evento. Por sua vez, Gastón Perkin pilotou sua Renault Gordini a 150 km/hora nas partes retas da estrada, ganhando a primeira etapa da competição. Mas a grande surpresa do evento foi a vitória geral de duas mulheres suecas, Ewy Rosqvist e Ursula Wirth.

O TC era, e ainda segue sendo, um mundo de homens, onde se forja e se reproduz a identidade social masculina. Milhares de fanáticos seguiam cada corrida, à beira da estrada ou em suas casas, por meio das famosas transmissões de rádio do jornalista Luis Elías Sojit, nas páginas do El Gráfico e no El Deporte es Así, do Canal 7, com Dante Panzeri, Ernesto Lazzatti, Raúl Goro e Ulises Barrera, e outros programas de televisão. O TC associou a masculinidade argentina com o trabalho mecânico, o perigo da rota e o heroísmo do condutor. Em 1947, quando o carro de Juan Manuel Frangio capotou durante o Grande Prêmio da América do Sul (mais conhecido como “O Buenos Aires-Caracas”), seu acompanhante Daniel Urrutia morreu tragicamente. Pedro Fangio saiu do acidente caminhando ileso e sua coragem confirmava sua lenda quase mítica.

Juan M. Fangio e Daniel Urrutia (Foto: http://www.jmfangio.org)

Mais que qualquer outro piloto, os irmãos Emiliozzi, Dante e Torcuato, definiram o arquétipo do homem do TC. Competidores ferozes, durante a semana trabalhavam em sua oficina de Olavarría, fazendo milagres mecânicos. Aos seus seguidores, lhes fascinava a imagem de uma oficina onde os irmãos mergulhavam sob o capô, despretensiosamente, dando as boas-vindas a qualquer visitante interessado nas reformas mecânicas mais recentes, às vezes comendo um assado com amigos. Todo fanático sabe que, em 1949, os irmãos adaptaram um motor Ford a um novo sistema de válvulas aéreas – cinco anos antes da Ford desenvolver um modelo parecido. Em 1958, durante uma corrida na cidade de Mercedes, entrando em uma curva com uma velocidade muito alta, os pilotos capotaram o carro. Um grupo de fãs tentaram ajudar Dante, mas acabaram prejudicando sua coluna vertebral. Enquanto Torcuato sofreu apenas ferimentos leves, um médico local o vacinou contra tétano, uma doença comum das fazendas de porcos da região. O acidente contribuiu para consagrar os Emiliozzi como pilotos valentes nas memórias dos fãs.

Os irmãos Emililozzi (Foto: Facebook Museo Municipal Hermanos Emiliozzi)

O mundo masculino do TC foi abalado em 1962 pela chegada das pilotas suecas, cujas trajetórias automobilísticas eram praticamente desconhecidas na Argentina. Suas passagens pelo rali europeu haviam sido breves. Em meados dos anos cinquenta, tanto Rosqvist como Wirth trabalharam como ajudantes veterinárias em diferentes zonas rurais da Suécia. Cada uma gostava de dirigir as longas distâncias entre as granjas. As duas começaram a competir em rali e em 1960 formaram uma equipe. Nesse mesmo ano, Rosqyst firmou cum contrato para dirigir carros Volvo e, em 1962, mudou para a equipe Mercedes-Benz, a qual representou com Wirth na Argentina, pilotando um modelo 220-SE. Foram o primeiro binômio feminino que competiu em um Grande Prêmio argentino. Inesperadamente, para os fãs argentinos, elas não apenas ganharam, como dominaram a competição com uma marca de carros quase desconhecida no mundo do TC. Ganharam em cada uma das seis etapas da rota contra condutores como Cupeiro e Perkins e com um novo recorde de velocidade média na estrada (127 km/hora). Anos mais tarde, ambos os corredores [Cupeiro e Perkins] participaram nas 84 horas de Nürburgring, formando parte da famosa “Missão Argentina” dirigida pelo designer de carros Oreste Berta. Com sua vitória, Rosqvist e Wirth romperam a aura masculina do TC, ainda que apenas momentaneamente, chamando atenção da mídia argentina.

Ewy Rosqvist com uma Ferrari, 1957

As duas condutoras suecas não foram as primeiras esportistas celebradas na Argentina. Por exemplo, nos anos vinte, a nadadora Lilian Harrison foi seis vezes capa do El Gráfico por suas proezas aquáticas. Nos anos trinta, Jeannette Campbell (natação) e Lotte Standl (atletismo), entre outras, também foram capa desse jornal. Em 1951, a mídia argentina exaltou o desempenho das tenistas Mary Terán de Weiss (campeã no torneio individual) e Felisa Piédrola de Zppa (ganhadora do torneio de duplas junto com Mary) nos Jogos Panamericanos. No ano seguinte, tomaram nota da morte de Edith Noble, capitã da equipe de hóquei sobre grama do Club Atlético Belgrano. Em 1953, Ana María Festal ganhou três eventos no campeonato nacional de natação e, em 1959, a revista Mundo Deportivo ressaltou os “vários recordes” da nadadora Silvia Hofmeister. Entretanto, nas páginas do Mundo Deportivo, El Gráfico, as revistas de temas gerais e os jornais, as imagens mais comuns de mulheres não foram de atletas, mas sim de modelos, atrizes e cantoras – como Elder Barber ou Olinda Bozán. Quando eram mencionadas, não era raro que as esportistas recebessem comentários sexualizados. Dessa maneira, Terán de Weiss triunfou, mas em uma categoria feminina. Noble era “magra, loira, veloz”. Brillaba, segundo El Gráfico, por sua personalidade “simpática e bondosa” e por “seu rosto suave, com sorriso terno, sua figura ágil e graciosa, seu modo de ser tão cativante”. As quatro linhas sobre Hofmeister no Mundo Deportivo apareceram abaixo de uma foto da nadadora em traje de banho. A imagem ocupou quase uma página inteira.

El Gráfico, 31 de outubro, 1962

A conquista automobilística de Rosqvist e Wirth não teve precedentes no mundo masculino do esporte argentino. Na Suécia e em outros países europeus, a maioria dos meios de comunicação trivializaram a vitória com comentários sobre a beleza. “Anjas da Estrada”, anunciou The Irish Times, por exemplo. Mas na Argentina muitos jornais qualificaram as campeãs sem prestar maior atenção aos termos padrões para escrever sobre as mulheres no esporte. Ou seja, analisaram o desempenho das corredoras nórdicas focalizando em seus méritos esportivos. Assim, o jornalista Federico B. Kirbus escreveu nas páginas do El Gráfico que Rosqvist e Wirth “conduziram com firmeza e decisão” e que “dominam seu esporte à perfeição”, agregando que a vitória das condutoras suecas foi “um triunfo absoluto”.

Apesar do triunfo absoluto de Rosqvist e Wirth no Grande Premio Standard de 1962 do TC e da atenção que gerou, o progresso em termos de igualdade de gênero tem sido lento no automobilismo argentino. Tamara Vital, fundadora e chefa da equipe Vitarti da categoria Top Race Junior, a primeira formada integralmente por mulheres e que estreou faz poucas semanas, explica essa situação. “Na atualidade, são mais de 150 mulheres correndo em todo o país”, mas somente “há dois anos vem se notando cada vez mais forte a presença da mulher no automobilismo”. Aixa Franke, uma dessas pilotas, declarou que ainda existem homens que “se ofendem quando ela ganha”. O triunfo absoluto de Rosqvist e Wirth, de sessenta anos atrás, será ainda mais absoluto quando essa atitude for banida do automobilismo nacional e as mulheres forem incorporadas integralmente na atividade em condições de igualdade e respeito sincero.


Texto originalmente publicado no site El Furgón no dia 22 de abril de 2021

*David M.K. Sheinin. Doutor em História. Docente na Universidade de Trent.

**César Torres. Doutor em Filosofia e História do Esporte. Docente na Universidade do Estado de Nova York (Brockport).

Tradução: Leticia Quadros e Fausto Amaro

Artigos

Os cinco lutadores da foto: peronismo, esporte e diplomacia

Por César R. Torres* y David M. K. Sheinin **

No dia 23 de maio de 1954, um ano e quatro meses antes do golpe de estado que derrubaria Juan Domingo Perón, o jornal havanês Diario de la Marina publicou uma foto da equipe argentina de luta em sua chegada a Tóquio para participar do campeonato mundial desse esporte. A foto tinha sido tirada ates, já que o evento aconteceu entre os dias 22 e 25 de maio. Entre os quinze países participantes, a Argentina era o único latino-americano. Talvez esse tenha sido o motivo, junto a seu excelente desempenho nos primeiros Jogos Panamericanos organizados pelo peronismo em Buenos Aires três anos antes, pelo qual o Diario de la Marina incluíra a fotografia da equipe argentina. Essa mostrava os cinco integrantes – elegantemente vestidos – junto ao avião no qual haviam chegado à Tóquio. A imagem foi localizada na parte superior de uma página de esporte e ocupava três das oito colunas. Qualquer que tenha sido o motivo para publicá-la ali, a foto projetava vários eixos da reconfiguração de significados desportivos e cidadãos promovidos por Perón durante a década em que governou e que cimentaram alguns traços da Argentina contemporânea.

Os cinco lutadores da fotografia marcaram a interseção de vários temas chaves no desenvolvimento e na promoção da argentinidade sob o peronismo. Entretanto, dois desses lutadores, Omar Blebel, um argentino de ascendência árabe, e León Genuth, um argentino judeu, o fizeram de forma ainda mais evidente que os destacados Juan Rolón e Alberto Longarela, supostamente de origem espanhola e italiana, respectivamente. A presença de Zdzislaw Pielach no grupo de lutadores que viajou a Tóquio também é significativa. Ainda que dele se saiba muito pouco, pode-se especular que era de origem polaca.

Blebel e Genuth, além de Pielach, simbolizam o reconhecimento e a inclusão de identidades até então marginalizadas da polis nacional. Segundo o historiador Raanan Rein, diferentemente de outros regimes políticos, o peronismo legitimou os cidadãos de comunidades étnicas, raciais e/ou religiosas minoritárias. Pela primeira vez na Argentina, Perón estabeleceu que era compatível para os cidadãos serem leais ao projeto argentino (e peronista) e manterem fortes laços com suas comunidades de ascendência. As comunidades judaica e árabe, entre outras, formaram grupos peronistas no reconhecimento de tamanha mudança sociopolítica e expressaram sua identidade argentina (e peronista) de novas maneiras. Um exemplo é a presença sem precedentes de membros da comunidade árabe nas instituições da sociedade civil do norte do país. Blebel e Genuth, assim como os outros três lutadores, chegaram ao auge de suas carreiras desportivas nesse contexto de crescente inclusão e reconhecimento e no marco da forte associação entre o peronismo e o esporte.

Fonte: Imagem retirada do site El Furgón

No fomento do esporte de todo nível – desde clubes de bairro até os Jogos Panamericanos de 1951 –, assim como no interesse de Perón em atletas de destaque, como o boxeador José María Gatica, e no apoio de Evita ao “obrero” Club Atlético Banfield no campeonato de futebol de 1951, e em muitas outras circunstâncias, o peronismo reconheceu a importância do esporte para promover a ideia de uma Argentina forte, sã e peronista a nível nacional e internacional. Sem militância política aparente, com seus triunfos desportivos, Blebel e Genuth representavam esse novo país. Ambos ganharam medalhas de ouro nos Jogos Panamericanos de 1951, enquanto a equipe argentina terminou a competição com quatro medalhas de ouro e oito no total. Blebel e Genuth se transformaram em visíveis representantes da integração do argentino judeu e do argentino árabe à nação imaginada por Perón.

Genuth nasceu na província de Entre Ríos em 1931 e se formou como lutador na Organização Hebraica Argentina Macabi da Cidade de Buenos Aires. Destacou-se rapidamente e em 1850 competiu na terceira Macabeada em Israel, ganhando duas medalhas de ouro, que dedicou a Perón. De volta à Argentina, Perón lhe entregou um troféu, não por ser um campeão judeu, mas por ser um campeão argentino em Israel. No ano seguinte de seu triunfo nos Jogos Panamericanos de 1951, se classificou em sexto lugar nos Jogos Olímpicos de Helsinque. Os meios de comunicação anunciaram as conquistas internacionais de Genuth “como triunfos argentinos”, solidificando sua integração à nação. Em 1953, ele competiu na quarta Macabeada em Israel, conquistando novamente duas medalhas de ouro. Naquele ano, o semanário Mundo Deportivo ressaltou “a grande qualidade deste lutador argentino e ratifica também o alto nível alcançado por nossa luta”. Segundo esse semanário, Genuth encabeçava o que considerava uma grande recuperação da luta nacional.

Ainda que Blebel, nascido na província de Santa Fe, fosse nove anos mais velho que Genuth, ele também fazia parte dessa recuperação. Participou dos Jogos Olímpicos de Londres, em 1948, e nos de Helsinque, em 1952, classificando-se em décimo terceiro e décimo quarto lugar, respectivamente. Antes de ganhar a medalha de ouro nos Jogos Panamericanos de 1951, Blebel recebeu uma carta, bem como todos os membros da delegação argentina, na qual o presidente da Confederação Argentina de Desportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA), Rodolfo Valenzuela, dizia: “todo o país tem depositado sua fé no seu comprovado espírito de desportista nato, como corresponde a um verdadeiro argentino. Creem em ti como desportista. Mas deve crer, convencer-se intimamente, que és um patriota”. Valenzuela acrescentou, depois de mencionar a obra de Evita e de sua fundação em prol da preparação da delegação argentina, que “todos eles [..] merecem que você, amigo desportista, represente um argentino nos Jogos, se sinta identificado com a causa comum”. Depois do evento, o Mundo Deportivo ressaltou que Blebel “era uma das esperanças de nossa equipe” e que “fez honra à confiança”. Assim, esse lutador argentino árabe era plenamente integrado à nação e ao peronismo. O semanário El Gráfico anunciou no mês anterior ao campeonato mundial em Tóquio que “se a luta teve progresso foi precisamente por esse escasso contato internacional que seus praticantes tiveram por não mais que cinco anos”. Era um reconhecimento oblíquo a Blebel, a Genuth e ao resto da equipe de luta, assim como ao peronismo e sua política desportiva.

Perón considerava que o esporte e os atletas podiam disseminar internacionalmente a imagem e as conquistas de sua nova Argentina. Nesse sentido, a revista Olimpia, publicada pela CADCOA, afirmou em 1954: “quando uma delegação desportiva viaja para o exterior, automaticamente se convertem em embaixadores com placet[1] popular” e acrescentou que os atletas “vêm para robustecer o trabalho diplomático que desenvolviam os diplomatas de carreira”.  A união da diplomacia tradicional e do esporte, prosseguia a revista, “conduzem a uma só meta: fazer sobressair o nome da Pátria para além de suas fronteiras físicas”. Dessa maneira, a equipe argentina que viajou à Tóquio naquele ano para o campeonato mundial constituiu uma embaixada desportiva argentina (e peronista). Antes de sua partida, El Gráfico argumentou que se podia estar certo de que “a equipe de lutadores argentinos […] é superior em experiência e qualidade a todos aqueles que até o momento defenderam nossas cores em lonas de outras terras. São de se esperar os acontecimentos”.

Os acontecimentos não foram favoráveis desportivamente. Em Tóquio, os lutadores argentinos foram superados pelos representantes das potências mundiais desse esporte. De todo modo, a viagem serviu como preparação para os Jogos Panamericanos da Cidade do México em 1955, onde Genuth e Blebel ratificariam sua qualidade com medalhas de ouro. Longarela também conquistaria um ouro e Rolón uma prata. Pielach não representou a Argentina nesse evento. Para além do benefício desportivo, a presença argentina em Tóquio, como demonstra a fotografia publicado pelo Diario de la Marina, projetou a imagem, nas palavras de Rein, da legitimação peronista do “mosaico de identidades de diferentes grupos étnicos (raciais e/ou religiosos)” e do esporte como prática integradora privilegiada. Os cinco lutadores argentinos, mas fundamentalmente Blebel e Genuth, corporizavam a ideia de uma Argentina inclusiva e respeitosa da diversidade de sua cidadania. Ou seja, nessa foto podemos perceber a base do que tempos depois seria a Argentina multicultural contemporânea. O fato de ter sido publicado em um jornal de Havana foi uma pequena conquista da diplomacia desportiva peronista.

Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 6 de abril de 2021.

* Doutor em filosofia e história do esporte. Docente na Universidade do Estado de Nova York (Brockport).

** Doutor em história. Docente na Universidade de Trent.


[1] Termo que designa a aprovação que um Governo concede a uma determinada pessoa para exercer, em seu território, a representação diplomática de outro país.

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Quando Armando imaginou Kissinger como sócio honorário do Boca

Em 1976, o Boca contava com 360 sócio honorários. De acordo com seu estatuto, essa distinção pode ser concedida “em favor de pessoas que, pertencendo ou não ao Clube, tenham lhe prestado serviços excepcionais”. Essa distinção havia sido concedida pela última vez em 1972, quando receberam-na 45 homens pelos seus favoráveis “pronunciamentos administrativos inerentes às obras do Grande Estádio da Cidade Desportiva, com benefícios inestimáveis para o Boca Juniors”. Quatro anos depois, Alberto J. Armando, presidente da entidade entre 1954-1955 e entre 1960-1980, tentou aumentar a lista de sócios honorários com um personagem tão inusitado quanto ardiloso: Henry Kissinger, secretário de Estado dos Estados Unidos entre 1973-1977, durante as presidências de Richard Nixon e Gerald Ford e defensor da Junta Militar que governou o país depois do golpe cívico-militar de 1976 que derrubou Isabel Martínez de Perón.

A motivação de Armando, promotor do que seria o “futebol espetáculo” no final da década de cinquenta e começo da de sessenta, parece ter sido mais propagandística do que política. Kissinger poderia ter impulsionado a visibilidade internacional do Boca. Em 14 de junho de 1976, a menos de dois meses do golpe, Armando enviou uma carta a Kissinger, preservada em seu arquivo pessoal, manifestando o agrado do clube em saber, através da imprensa, de sua simpatia pela instituição que presidia. “O Clube mais popular da Argentina”, prosseguia a carta, “tem a partir de agora entre seus membros uma das figuras mais relevantes do governo dos Estados Unidos da América e campeão da paz mundial”, o que constituía uma “uma honra imensa”.

Junto com a carta, Armando enviou a Kissinger uma flâmula e uma insígnia do Boca, assim como uma credencial para que pudesse presenciar na famosa Bombonera as partidas da equipe principal. Dando-lhe as boas-vindas “à grande família boquense”, Armando antevia que ela [a família boquense] demonstraria seu afeto e sua alegria quando, em sua próxima visita ao país, Kissinger se sentasse no lugar de honra do estádio. Armando se despedia até “tão feliz momento”, anunciando que na próxima Assembleia Geral de Representantes “proporemos a designação do Senhor Secretário de Estado como Sócio Honorário do Clube”.

A carta de Armando foi traduzida no Departamento de Estado e respondida seis semanas depois. A assistente pessoal de Kissinger fez isso em seu nome. Ela disse a Armando que agradecia muito à flâmula, à insígnia e à credencial. Além disso, dizia saber o quanto Kissinger gostaria de presenciar a uma partida de futebol em sua próxima viagem ao país, se sua agenda o permitisse. A assistente pessoal também disse que Kissinger estaria muito honrado de ser proposto como um sócio honorário. O entusiasmo era verdadeiro, já que Kissinger adorava o futebol, esporte que praticou em sua juventude e promoveu nos Estados Unidos. Em outubro de 1978, foi nomeado presidente da Junta Diretiva da Liga da North American Soccer League (NASL) – Liga de Futebol da América do Norte –, que funcionou entre 1968-1984. Ele podia ser visto nas partidas do New York Cosmos, equipe da NASL, e se envolveu nas negociações que permitiram a Pelé jogar nessa equipe entre 1975-1977. Também teria um papel destacado na bem-sucedida candidatura dos Estados Unidos para ser sede da Copa do Mundo de 1994. O jornalista Daryl Grove argumenta que Kissinger tem sido uma das pessoas mais influentes no desenvolvimento do futebol nesse país.

Apesar do entusiasmo de Kissinger pela carta de Armando e suas credenciais futebolísticas, o Boca não lhe concedeu o título de sócio honorário. A Assembleia Geral Ordinária de Representantes, posterior à carta de Armando, foi realizada em 10 de setembro de 1976, mas o Relatório e o Balanço Geral do ano administrativo que terminava no final daquele mês mostrou que o número de sócios seguia sendo o mesmo: 360. Esse documento não especifica se Kissinger não foi proposto como sócio honorário ou se houve resistência à dita proposta. É provável que alguns sócios desejassem considerar os “serviços excepcionais”, como reza o estatuto do clube, prestados por Kissinger para merecer a distinção.

Ainda que não tenha sido aceito como membro honorário do Boca, Kissinger se relacionou sordidamente com o futebol argentino. Foi um convidado de honra da Junta Militar durante a Copa do Mundo de 1978. Ele até apareceu com Jorge Videla, o presidente da Junta Militar, posteriormente condenado por crimes contra a humanidade, no vestiário da equipe peruana antes da controversa partida que disputou, em Rosario, contra a Argentina pelas semifinais do torneio. No ano anterior, Videla havia entregado a Kissinger uma foto sua cuja legenda dizia: “Ao senhor HENRY KISSINGER, com particular estima e respeito”. Dado o apoio que concedeu à ditadura cívico-militar, a estima e o respeito eram mútuos. Videla estava convencido de que, como secretário de Estado, Kissinger havia defendido as ações de seu governo “contra o comunismo”. Sua presença na Copa do Mundo de 1978 foi encarada como legitimadora e, ao mesmo tempo, como contrapartida à posição de Jimmy Carter, que pressionava, desde sua posse na presidência, em fevereiro de 1977, a Junta Militar a respeitar os direitos humanos. De fato, em 1978, Raúl Castro, embaixador dos Estados Unidos na Argentina, escreveu estar preocupado com a visita de Kissinger para a Copa do Mundo, porque seus elogios à luta “contra o terrorismo” podiam ter subido à cabeça dos ditadores e porque existia a possibilidade de que eles se utilizassem disso para justificar um endurecimento das ações repressivas.

Qualquer que tenha sido o motivo para a frustração da ideia inicial de Armando, para o Boca foi benéfico não contar com Kissinger entre seus sócios honorários. Suas temerosas ações políticas estenderam-se a outros países da América Latina e também a outras zonas geográficas. Sua carreira no serviço público foi tão controversa que o cientista político Marcelo Cavarozzi afirmou que Kissinger é “produto de uma mente superior que não necessariamente trabalhava para encontrar o funcionamento e o desenvolvimento de sociedades mais justas, pacíficas e igualitárias”. Por sua vez, o jornalista Jon Lee Anderson se perguntou, à luz de novos documentos que confirmam seu apoio aos ditadores latino-americanos, se Kissinger tem consciência. Boa parte da família boquense, ao falar de Armando, pode ter se perguntando a mesma coisa. Ao menos eles não tiveram que se perguntar o que deveriam ter feito se tivessem concedido a Kissinger a distinção de sócio honorário do clube. Ao contrário da previsão de Armando, a Bombonera nunca demonstrou a Kissinger seu afeto e sua alegria.

Fonte: Página12

Texto originalmente publicado no site Página12 no dia 15 de fevereiro de 2021.

Tradução: Leticia Quadros e Fausto Amaro