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Na Irlanda ainda é tempo de Dondon

O samba do grande Nei Lopes imortalizou Antonio de Paula Filho, o Dondon, zagueiro do Andarahy Athletico Club, já extinto time de futebol da zona norte do Rio de Janeiro. Na canção, o jogador é o símbolo de um tempo em que a vida era mais simples de viver. “Não tinha tanto miserê nem tinha tanto ti ti ti. No tempo que Dondon jogava no Andaraí”.

Dondon, para mim, também acabou virando um símbolo daquele futebol das primeiras décadas do Século XX. Um tempo de sportsmen apaixonados, amadores, que jogavam pela honra de defender a camisa e a bandeira de seus clubes. Tudo bem que nem sempre era exatamente assim, pelo menos nos idos da década de 1930, quando o profissionalismo, mesmo ainda velado, em muitos casos, já se mostrava inevitável na prática do bom e velho esporte bretão em nossas canchas.

Dondon, craque de seu tempo. Fonte: Primos Pobres RJ FC

Mas o que um defensor, que atuava no modesto field da antiga Rua Prefeito Serzedello Correa, no bairro do Andaraí, tem a ver com a distante Irlanda? Na prática, nada, mas na cabeça deste autor, trata-se de uma relação inevitável. É que na viagem que fiz recentemente a Dublin, capital daquele país, tive o prazer de ser apresentado ao futebol gaélico, um esporte que, de acordo com um guia do estádio Croke Park, é uma mistura de futebol, rúgbi, handebol e basquete. Ficou confuso? Eu explico.

A modalidade teria sido originada por um jogo popular na região ainda no século XVI, o caid, mas só teria chegado ao formato atual nas primeiras décadas de 1800. Hoje são quinze jogadores de cada lado, num gramado um pouco maior do que um campo de futebol normal (130m x 90m). As traves são do mesmo tamanho que as do futebol comum, só que os postes laterais se estendem, lembrando uma trave de rúgbi ou futebol americano. Se a bola ultrapassar a linha final entre as traves, o time pontua. Passando por cima do travessão, é assinalado um ponto, mas se passar por baixo, onde há um goleiro, aí são três pontos.

O imponente Croke Park, em Dublin. Acervo pessoal/ Rafael Casé.

As partidas têm menor duração (dois tempos de 30 minutos) e, se terminar empatada, há prorrogações de 20 minutos até que saia um vencedor. A bola parece com a de vôlei, porém, é mais pesada do que a de futebol e pode ser conduzida de várias formas: carregada, através de pequenos chutes, quicada e passada com as mãos para companheiros. Os arremates a gol são através de chutes, mas a bola também pode ser socada em direção à meta. Sei que parece meio complicado de imaginar, mas, se você der uma olhada nesse vídeo (uma coletânea dos melhores momentos de 2022), vai poder entender melhor.

O time da cidade de Kerry derrota a equipe de Galway e conquista o campeonato de 2022. Fonte: www.kerrygaa.ie

A modalidade também tem um campeonato nacional disputado por mulheres. As regras são exatamente as mesmas. Em dois domingos de setembro acontecem as finais masculina e feminina (nos outros dois domingos é a vez das finais do hurling, esporte nacional da Irlanda, jogado com tacos e uma pequena bola e que mereceria um outro artigo apenas para ele). O palco é o Croke Stadium, com capacidade para quase 90 mil espectadores. E o mais bacana de tudo é que nessas finais não há ingressos pagos. A lotação é dividida, meio a meio, entre os moradores das cidades dos times finalistas.

As Meath Ladie´s, de um condado do norte do país conquistaram o título de 2022. Fonte: Irish Examiner

E é aqui que se dá o link entre a Irlanda e Dondon (finalmente…). Todos os atletas que disputam o futebol gaélico são amadores. Têm outras profissões e se dedicam ao esporte por paixão, pela honra de defenderem suas cidades. Um sentimento bem parecido com aquele dos primórdios do futebol em terras tupiniquins.

Um detalhe muito interessante da visita guiada pelo estádio é que além de conhecermos vestiários, tribunas, cabines de transmissão, arquibancadas, fomos levados a um salão onde acontecem, após cada uma das finais, uma recepção para o congraçamento dos atletas dos dois times. Ali eles se confraternizam, bebem juntos, como colegas que praticam o mesmo esporte. Diante de nosso espanto com esse tipo de circunstância, o guia nos explicou que todos eles jogam entre si desde as categorias de base e que, apesar da disputa árdua em campo (e algumas delas são, fisicamente, bem duras), o que reina, após o apito final, é a camaradagem.

Aqui já foi assim. Quando clubes visitavam outras cidades, as delegações eram recebidas nos portos ou estações de trem pelos jogadores adversários e sempre havia uma festa programada para reunir os atletas na véspera da partida. Algo inimaginável nos dias de hoje, quando vemos a animosidade tomar conta do futebol e não apenas entre os torcedores.   

Palco de glórias e de uma tragédia

O Croke Park é, definitivamente, um belo passeio para os amantes do esporte. Na entrada estão estampados os escudos das equipes que integram GAA (Gaelic Athletic Association). Ao todos são 2.200 times de futebol gaélico, nos 32 condados irlandeses.

A estátua de Michael Cusack, fundador da GAA. Fonte: divulgação

O estádio tem um belo museu, não só voltado para o futebol gaélico, mas também para o hurling. Um ambiente interativo com peças históricas e lembranças de campeonatos e jogadores que marcaram época. O espaço também mostra que, graças aos imigrantes irlandeses, os esportes gaélicos se espalharam pelo mundo e, hoje, são praticados em mais de 70 países ao redor do mundo (no Brasil não há registro da prática dessas modalidades). 

Uniformes dos selecionados irlandeses de Futebol Gaélico e Hurling. Acervo pessoal/Rafael Casé

Contudo, a parte mais emocionante é a que relata os acontecimentos do chamado Domingo Sangrento. Era dia de jogo entre o Dublin Team e o Tipperary Team, mas a capital irlandesa se encontrava em pé de guerra. O IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava pela independência do país, então parte do Império Britânico, havia emboscado e matado nove oficiais ingleses. A represália foi violenta e teve como cenário justamente o estádio, onde se encontravam cerca de dez mil pessoas. Pouco antes do jogo começar, um avião fez dois rasantes sobre a plateia. Era a senha para que atiradores começassem a disparar contra a multidão. O pânico, obviamente, se instalou no local. Foram cerca de dois minutos de muitos tiros e o que se viu depois foi desolador: 14 pessoas mortas, incluindo um jogador do Tipperary e cerca de 100 feridos. Um episódio marcante que os irlandeses decidiram nunca mais esquecer.

Para os apaixonados por esporte, o passeio a esse local tão emblemático de Dublin se torna obrigatório. Eu, um sentimental “juramentado em cartório e com firma reconhecida” me emocionei várias vezes: ao ver o vídeo sobre as finais disputadas ali, ao entrar no gramado ao som de uma gravação que reproduzia o som do estádio lotado e ao ver a cumplicidade de um pai com sua jovem filha vivendo aquela experiência única em um local de tanto significado para o povo irlandês. 

Fica bem claro para qualquer visitante que o futebol gaélico e o hurling são mais do que meros esportes. Basta ler os painéis que se encontram nos vestiários. Mensagens aos jogadores sobre importância de estar ali e que pregam valores como disciplina, comprometimento, despojamento da vaidade, foco, prazer, trabalho duro e, principalmente, jogar em paz.

Frases e palavras que definem o espírito dos esportes gaélicos. Acervo pessoal/Rafael Casé

Nada é mais tocante, porém, do que um cartaz na área de acesso dos torcedores. Um lembrete a todos que ali passam sobre o lema da GAA. Palavras que me tocaram fundo e me fizeram ter a nostalgia de um tempo que nem vivi. Uma utopia do esporte apenas pelo valor da competição. Um sonho que, em boa parte do mundo, não tem mais lugar e que, no entanto, resiste bravamente numa pequena ilha do Mar do Norte.

Acervo pessoal/Rafael Casé

“Todos nós pertencemos a este lugar. Não por causa de quem somos ou de onde viemos. Estar aqui significa pertencer. Pertencer significa saber que você faz parte de uma comunidade. Uma comunidade que tem um lugar para todos. Onde o potencial é nutrido, onde os indivíduos se tornam equipes que honram aqueles que vieram antes e se esforçaram para construir um legado. Alguns de nós jogam. Alguns costumavam jogar. Alguns de nós nunca jogaram. Todos nós pertencemos. Pertencer significa que temos voz, significa poder dizer o que você acha certo. Ser ouvido. Pertencer significa respeitar um ao outro, significa estar lá, um para o outro, em campo; fora do campo. Pertencer é arregaçar as mangas e fazer o que tem que ser feito. Todos nós pertencemos, seja no nosso primeiro dia ou no nosso centésimo ano. Todos nós pertencemos a isso aqui, porque este lugar pertence a todos nós. Nosso GAA. Onde todos nós pertencemos” (tradução livre do autor).

Como não se emocionar?

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“Futebol na sala de aula”, de Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira

Dos jogos de várzea ao espetáculo televisivo, é difícil caminharmos pelas ruas do Brasil sem
notar a presença do futebol. É muito importante que essa força comunicativa do futebol seja, também, levada às salas de aula. Essa é a proposta que fundamenta a coletânea de artigos reunidos no livro Futebol na sala de aula, organizado pelas pesquisadoras Lívia Gonçalves Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira, duas referências nos estudos sobre futebol no Brasil.

Movidas por paixões clubísticas opostas (quais seriam?), Lívia Magalhães e Rosana da Câmara Teixeira assinam a organização de um livro que eu chamaria de generoso, a começar pela sua proposta inclusiva de democratização de acesso à produção de conhecimento do campo acadêmico.

Fonte: Eduff

A obra é generosa na sua composição, pois reúne autores e autoras de áreas diversas que se
debruçaram sobre a tentativa de fazer do fenômeno futebolístico uma fonte de diálogo e
inspiração para a abordagem, em sala de aula, de assuntos que percorrem o cotidiano de
alunos e alunas do país inteiro.

A sua generosidade é dedicada à memória da antropóloga Simoni Guedes e do geógrafo Gilmar Mascarenhas, de quem fomos alunos nas salas de aula da vida e que nos deixaram valiosos legados no campo acadêmico. Além dessa homenagem, o livro traz textos desses autores que chegaram a acompanhar parte do processo de elaboração da obra.

O prefácio de Futebol na sala de aula é de José Sérgio Leite Lopes e a orelha de Luiz Antônio Simas. Ambos nos dão as boas-vindas a um livro escrito durante a pandemia de Covid-19, e que nos chega em um momento no qual é imperativo construirmos uma sociedade movida pela educação. Educação pensada e praticada como um processo amplo, complexo e cujo sentido nunca será definitivo, pois está em constante construção.

Segue abaixo uma prévia do livro:

PRELIMINAR
Cidadania e legado em debate – Gilmar Mascarenhas

Perseguindo um sonho: a profissionalização de jogadores e jogadoras no futebol – Simoni Lahud Guedes

PRIMEIRO TEMPO

Futebol e Relações Internacionais: o “rude esporte bretão” em tempos de paz e de guerra – Adriano de Freixo

Futebol e literatura no Brasil: um caso crônico – Bernardo Buarque de Hollanda e Marcelino Rodrigues da Silva

Futebol e ensino: ditaduras e autoritarismo no Brasil e na Argentina (1970-1978) – Lívia Gonçalves Magalhães

O futebol no Rio de Janeiro e os projetos de modernização no Brasil Republicano (1902-1945) – Renato Soares Coutinho

História oral e futebol – Sérgio Settani Giglio e Marcel Diego Tonini

SEGUNDO TEMPO

No campo das torcidas organizadas de futebol: interações sociais e aprendizagens – Felipe Tavares Paes Lopes e Rosana da Câmara Teixeira

Violência verbal e a performatividade de gênero no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio de futebol em questão – Gustavo Andrada Bandeira e Fernando Seffner

Futebol e gênero: o som do machismo e da homofobia que vem das arquibancadas – Leda Maria da Costa

Ditadura civil-militar e homossexualidades transgressoras: o caso da torcida Coligay – Luiza Aguiar dos Anjos

Do Kanjire ao futebol: dinâmica dos “jogos de guerra” no tempo entre os Kaingang – José Ronaldo Mendonça Fassheber

O futebol como espelho da sociedade brasileira: o que as quatro linhas podem nos ensinar sobre relações raciais no Brasil – Rolf Malungo de Souza

O futebol nas aulas de educação física para além da bola rolando – Silvio Ricardo da Silva, Luiz Gustavo Nicácio e Priscila Augusta Ferreira Campos

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Inscrições abertas para XVI Encontro Nacional de História Oral

A Associação Brasileira de História Oral (ABHO) convida professores, pesquisadores de todas as áreas de conhecimento humano e público interessado de todas as regiões do Brasil para participar do XVI Encontro Nacional de História Oral. As inscrições de trabalhos já podem ser feitas no site (www.even3.com.br/xviencontronacionaldehistoriaoral/). A chamada foi iniciada dia 20 de fevereiro e será encerrada na próxima semana, dia 20 de abril.

O evento conta com simpósios temáticos nas mais diversas áreas, sendo uma delas a esportiva. Nomeado de “Esportes, narrativas orais e memória”, o simpósio temático 3 tem por objetivo reunir trabalhos que investiguem a História do Esporte e das Práticas Corporais por meio de fontes e narrativas orais.

O XVI Encontro Nacional de História Oral acontecerá de 25 a 28 de julho e terá como sede a Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), em parceria com a Fundação Getúlio Vargas (FGV).

Como fazer sua inscrição

1. Na página principal do evento (www.even3.com.br/xviencontronacionaldehistoriaoral/), clique, no canto superior direito da tela, em Login;

2. Caso já tenha login no sistema Even3, utilizar seu e-mail e senha. Caso não possua, clique em “Não tem uma conta? Cadastre-se”. Se este for o caso, crie sua conta e guarde a senha, que será necessária para acessar a área de inscrito, submeter trabalhos, entre outras funções;

3. Retorne à página do evento e clique no botão “Realizar inscrição”. Escolha a categoria de inscrição pessoal e, em seguida, clicando em “Realizar inscrição” novamente;

4. Preencha os seus dados, completando o formulário e, se for associado da ABHO em dia com a anuidade 2022, anexando o comprovante ao final e indicando o código de afiliado;

5. Caso deseje adquirir itens de souvenir do encontro, adicione em sua cesta. Você também pode optar por “Não selecionar itens e continuar”;

6. Ao final desse processo, deverá aparecer a informação “Inscrição confirmada”, caso você seja filiado à ABHO. Caso não, deverá proceder com o pagamento da taxa de inscrição, que é indispensável para que a submissão de propostas seja feita. Do contrário, a área de submissão estará inacessível.

Como submeter suas propostas

1. Após fazer seu login na plataforma Even3 (www.even3.com.br), verificar no topo da tela se o evento correto (XVI Encontro Nacional de História Oral) está selecionado;

2. Clicar em “Realizar submissão” (botão na cor azul escuro);

3. Clicar no botão “Submeter” (botão na cor azul escuro);

4. Escolher a modalidade para a qual você está enviando uma proposta;

5. Preencher os dados completos da proposta, prestando atenção para adicionar co-autores (se for o caso) utilizando o botão “Adicionar autor”;

6. Ao final do preenchimento do formulário, clicar em Submeter;

7. Caso a submissão tenha sido bem-sucedida, você será direcionado à página de suas submissões no evento. Caso encontre uma mensagem de erro, favor verificar o formulário, atentando para as regras de preenchimento.

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E que venha uma narrativa mais diversa em 2021

Desde os tempos mais remotos, povos de diferentes culturas procuraram dar sentido às experiências utilizando as narrativas orais. E, a partir dessas narrativas, as identidades se constituíram. No campo do esporte e, mais especificamente do futebol, também foi assim. O imaginário do futebol brasileiro foi construído de gol em gol, narrados em épicas batalhas no meio de campo sob a influência de vários gêneros, inclusive textuais.

Em todas as narrativas estavam presentes elementos como espaço, tempo, enredo, personagens e narrador. A partir da necessidade de eternizar lances, dribles e gols, o narrador passou a atuar como uma espécie de mediador, cuja perspectiva e ponto de vista ajudam a construir a história do futebol.

É através da narrativa oral e sincrônica do locutor esportivo, aquela que atribui significado às partidas de futebol através das vozes usadas em diferentes tons, ritmos e pausas que a trama se desenvolve. No entanto, o tempo dessa história é marcado por espaços físicos e psicológicos diferenciados. Mas sempre com a presença observadora e onisciente da figura do narrador. Não como protagonista, mas como entidade responsável por dar ritmo às ondas sonoras que tecem em capítulos a história do futebol.  Entre essas vozes e os milhões de receptores das narrativas estão os meios de comunicação, hoje cada vez mais imbricados. No fim do ano passado, li a notícia da contratação da narradora Renata Silveira pela Globo e fiquei pensando na importância dessa ocupação pelas mulheres ainda que paulatina de espaços ainda marcados pelo machismo estrutural da sociedade. Renata se juntou a uma equipe que já incluía mulheres comentaristas e tem uma oportunidade de ouro de ser porta-voz de uma nova narrativa no futebol que traga um olhar mais diverso e inclusivo.  Na torcida para que esse nicho seja explorado por outras narradoras e para que bons ventos continuem soprando em favor das mulheres em outras áreas,  como a da arbitragem, em 2021.

Fonte: UOL

Ao longo dos anos os locutores foram porta-vozes de muitos discursos, inclusive de um muito presente no futebol que enfatiza o caráter “nacional” do esporte, uma associação que começou lá atrás com o rádio, no período entre guerras.  Na época, a BBC, com seu monopólio de transmissão se tornou um órgão central da cultura britânica aumentando o interesse da classe média e moldando o esporte como espetáculo.

Renata é mais uma voz que veio do rádio a ocupar espaço na televisão, o que leva a uma reflexão inevitável  sobre o quanto a narrativa televisiva de futebol vem sendo influenciada pelo rádio, inclusive no que tange ao aumento da utilização de bordões. De antemão vale ressaltar as diferenças da narrativas dos dois veículos no que tangem à ausência e à presença da imagem. Sem o auxílio da imagem, o narrador de rádio teve que desenvolver um certo jogo de cintura para cobrir todos os espaços da narrativa com a voz. E o ouvinte que não dispõe da imagem outorga, ou outorgava, já que hoje o rádio também está fazendo transmissão de imagens por streaming, ao narrador a condição de dono da verdade, o que explica em parte a relação de confiança e intimidade estabelecida com o veículo ao longo dos anos. Relação essa que sofreu muitas mudanças com o advento da internet.

A relação de intimidade com o ouvinte sempre foi uma característica marcante das locuções radiofônicas. Já na televisão, talvez pelo gigantismo da audiência, esse contato mais individualizado com o telespectador fica mais complicado . É comum no rádio o locutor ler no meio da transmissão uma mensagem de WhatsApp de dez, quinze segundos ou até mais de um ouvinte.

Segundo o locutor Luiz Carlos Junior, do canal por assinatura SporTV, a televisão também está começando a adotar essa estratégia de interlocução com o telespectador. E, fora das transmissões, ele e outros locutores costumam estabelecer essa interação nas redes sociais.

Mas há quem acredite como o locutor Jose Carlos Araújo, o  Garotinho, que durante três décadas foi o locutor número 1 da Rádio Globo e  hoje,  aos 80 anos,  comanda as transmissões de futebol na rádio Tupi, que o narrador de rádio tem mais identificação com o público ouvinte por entrar há mais tempo na residência do torcedor. Há também quem aposte no encantamento do veículo, que tem a capacidade de mexer com imaginário do torcedor e transportá-lo para um espetáculo cercado de magia e de sons.

É o que o narrador Luiz Carlos Junior costuma chamar de espécie de “licença poética do rádio”, que transporta o ouvinte para um mundo mágico em que o jogador chuta e a bola passa perto demais enquanto na televisão a imagem mostra que não foi tão perto assim e ficaria meio esquizofrênico para o narrador televisivo utilizar desse recurso na locução.

Fonte: Instagram

Mas mesmo com essa espécie de “licença poética” os tempos mudaram para todos em relação à tolerância  ao erro. Hoje, a linha editorial das grandes emissoras de rádio aconselha o locutor assumir o erro que, até pelas longas transmissões com pré e pós-jogos estendidos, é praticamente inevitável.

Fonte: Instagram

“Uma partida tem 90 minutos. Normalmente você abre a transmissão uma hora antes e fica até uma hora depois com algumas variações para mais ou para menos. É um tempo muito longo que você fica no ar. É impossível não cometer erros. Você está ao vivo. Tem estudo e planejamento, mas também tem muito improviso. Você dá opiniões no calor da emoção. Então, a gente erra bastante. Antigamente a máxima era: quando errar, bota vírgula e segue em frente.  Mas não dá para enganar o ouvinte assim. Hoje a gente precisa chamar a atenção inclusive de erros cometidos lá atrás”. (Eraldo leite)

De uma certa forma, com as redes sociais, o locutor de televisão também ficou muito mais exposto diante do erro já que o torcedor conhece bem o time de coração e não tolera que narrador não esteja totalmente familiarizado com ele. A crítica chega no mesmo minuto às redes sociais.

Antigamente a distância era uma barreira que protegia. Quando o narrador errava o nome de um jogador, por exemplo, o torcedor podia até perceber, mas a indignação ficava com ele. Ou, no máximo, era externada através de uma carta. As correspondências passavam por um processo de seleção e só eram entregues em lotes semanais. Tudo muito distante. Não havia contestação. Hoje as redes sociais são um canal aberto de comunicação e tudo fica exposto. O erro, a crítica, o acerto, tudo vem a público.

Para o locutor da Fox Sports João Guilherme o uso dessas ferramentas sociais exige um certo filtro já que as opiniões dos torcedores muitas vezes são passionais e mudam de acordo com o desempenho do time. Ele conta que aprendeu com o tempo a levar em consideração apenas as críticas construtivas, aquelas que apontam realmente para uma falha não observada durante a transmissão.

Fonte: Instagram

Com todos as ressalvas em relação a uma maior exposição trazida pelas novas tecnologias, muitos locutores como Luiz Penido acreditam ter aprimorado muito a narração com a utilização dos recursos de pesquisa proporcionados pela internet durante as transmissões. O colega da Rádio Globo Edson Mauro também  se adaptou bem ao uso das novas tecnologias. Trabalha com o celular ao lado tanto para receber mensagens dos ouvintes durante a narração, quanto para tirar dúvidas em relação a algum novo jogador que entra em campo. Assim, consegue complementar a informação ou mesmo fornecer alguma explicação adicional que não tenha sido feito durante a participação do repórter de campo.

Mas independentemente dos recursos que utiliza e das entradas do repórter de campo e do comentarista, que atuam como interventores da narrativa, o narrador é o senhor da transmissão e cabe a ele a missão de estar atento para fazer uma leitura correta do que está vendo. E, assim, vai variando o tom de voz de acordo com o desenrolar da peleja. O clímax da partida é sempre o gol, mas, quando ele não sai, mesmo assim o narrador precisa manter a emoção da transmissão e a temperatura do jogo o menos morna possível.

Referências

GOTZ, Ciro Augusto Francisconi. A narração esportiva no rádio do Brasil: uma proposta de periodização histórica, Revista Latino-americana de Jornalismo, 2020.

GUERRA, Márcio. Você, ouvinte é a nossa meta: a importância do rádio no imaginário do torcedor do futebol. Rio de Janeiro: Etc Editora, 2002, p.92

GUIMARÃES, Carlos Gustavo Soeiro. O comentário esportivo contemporâneo no rádio de Porto Alegre: uma análise das novas práticas profissionais na fase de convergência, Dissertação de mestrado Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

HELAL, Ronaldo, AMARO, Fausto. Das ondas do rádio à tela da TV: notas sobre a evolução da narração esportiva, 2012.

KISCHINHEVSKY, Marcelo. Convergência nas redações. Mapeando os impactos do novo cenário midiático sobre o fazer jornalístico. In: LOPEZ, Debora. Radiojornalismo hiper midiático: tendências e perspectivas do jornalismo de rádio all News brasileiro em um contexto de convergência

MADUREIRA, Paulo, KISCHINHEVSKY, Marcelo. Cartografando a narração esportiva radiofônica – Um panorama preliminar da região metropolitana do Rio de Janeiro, Rádio Leituras. Arquivos V.6 N.2, Dossiê rádio e esporte, 2015.

ROCHA FILHO, Zaldo Antônio. A narração de futebol no Brasil: um estudo fonoestilístico, tese apresentada na Universidade Estadual de Campinas, 1989.

SHIRKY, C. Cultura da Participação: criatividade e generosidade no mundo conectado. Rio de Janeiro, Zahar, 2011.

SILVA, Ednelson Florentino. Narração esportiva no rádio: subjetividade e singularidade do narrador, dissertação de mestrado Universidade de Taubaté, 2008.

https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2020/12/07/globo-contrata-renata-silveira-primeira-narradora-de-futebol-da-emissora.htm

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Relembrando a primeira Copa do Brasil

Ricardo Teixeira e as Federações Estaduais

Depois do polêmico Campeonato Brasileiro de 1987, consolidou-se a ideia de que a primeira divisão do futebol nacional deveria ter apenas 20 participantes (ou pouco mais do que isso). A CBF e os grandes clubes concordavam também que era preciso adotar o sistema de ascenso e descenso entre divisões. Assim surgiu o que hoje é a Série A. A própria CBF chegou a promover, um tanto constrangida, algumas viradas de mesa depois, mas aquela ideia básica permaneceu inabalável e acabou se impondo definitivamente após o ano 2000.

Para a maioria das Federações filiadas à CBF, a situação se mostrou dramática. Os seus campeonatos estaduais perderam o maior atrativo: não classificavam mais os campeões (e os vice-campeões, em alguns casos) para a grande disputa nacional. Qual seria a importância desses campeonatos, então? Apenas a tradição? Muitos temiam que aquelas antigas competições caíssem em decadência rápida e fulminante.

Os clubes menores também se viram em situação crítica. Quase todos entenderam que passariam vários anos tentando subir para a primeira divisão. Seriam anos de desprestígio, de jogos sem importância, de arquibancadas vazias, poucas rendas e apequenamento ainda maior. A falência talvez fosse inevitável em muitos casos.

Tudo isso foi resolvido (amenizado, pelo menos) com a criação da Copa do Brasil. Ricardo Teixeira assumiu a presidência da CBF em de 16 janeiro de 1989. No dia seguinte, as Federações estaduais apresentaram a proposta da nova competição, que seria disputada por 22 campeões estaduais e 10 vice-campeões. Proposta aceita rapidamente: o novo torneio foi anunciado oficialmente sete dias depois. Naquele mesmo ano, foi realizada a primeira Copa do Brasil. Todos sabiam, obviamente, que Ricardo Teixeira era muito grato às Federações estaduais pelo apoio que recebeu durante o processo eleitoral (um processo concluído com a sua vitória por aclamação).

O que mais impressionou foi a decisão de garantir ao campeão da Copa do Brasil a indicação para a disputa da Taça Libertadores da América. Na época, o Brasil só indicava dois clubes para aquela competição (o campeão e o vice-campeão do Campeonato Brasileiro). Era uma mudança radical: antes condenados a lutar arduamente pelo difícil acesso à primeira divisão nacional, agora os clubes pequenos e médios tinham diante de si um atalho para a principal competição da América do Sul.

19 de julho: o início

Apenas cinco Estados não tinham representantes na primeira Copa do Brasil. Os cinco ainda não haviam profissionalizado o seu futebol e eram da região Norte: Acre, Amapá, Rondônia, Roraima e Tocantins. Os outros 22 Estados inscreveram os seus campeões. Os 10 Estados que tiveram maior renda nos campeonatos estaduais de 1988 puderam inscrever também os seus vice-campeões.

As disputas eram eliminatórias. Havia confrontos diretos de duas partidas entre dois clubes. Assim eram eliminados na primeira fase 16 clubes, depois oito, quatro, dois e, por fim, havia a decisão. Foi adotado como critério de desempate nessas disputas eliminatórias o gol qualificado (gol no campo do adversário), que não era desconhecido do futebol brasileiro, pois já havia sido utilizado na Taça Libertadores da América.

A primeira rodada da fase inicial foi marcada para o dia 19 de julho. Todos os clubes participantes jogaram naquela data. Dezesseis partidas espalhadas pelo território nacional.

Houve surpresas. Em Manaus, o Rio Negro empatou com o Vasco da Gama por 1 a 1. O Internacional, jogando em Porto Alegre, empatou com o CSA em zero a zero. O Cruzeiro empatou com o Botafogo da Paraíba jogando em Belo Horizonte (zero a zero). O Corinthians, campeão paulista de 1988, foi a São Luís do Maranhão e perdeu para o Sampaio Corrêa, campeão maranhense, por 3 a 2. Mas todos esses grandes clubes conseguiram se classificar para a fase seguinte.

Classificação sofrida foi a do Cruzeiro, que empatou duas vezes com os botafoguenses paraibanos, mas passou à fase seguinte por ter marcado um gol em João Pessoa, isto é, classificou-se pelo critério do gol qualificado. O Corinthians se classificou pelo mesmo critério: após perder por 3 a 2 na capital do Maranhão, venceu em São Paulo por 1 a 0.

O surpreendente Goiás

Um time que surpreendeu foi o Goiás. Após superar, na primeira fase, o Ferroviário (do Ceará) com duas vitórias, o clube goianiense enfrentou dois gigantes do futebol nacional: o Internacional e o Atlético Mineiro

Contra os gaúchos, o Goiás empatou a primeira partida em 0 a 0 na cidade de Porto Alegre. Depois, venceu de modo arrasador. O placar final da segunda partida, no Estádio Serra Dourada, foi uma goleada de 4 a 0 com gols de Josué, Uidemar, Túlio e Péricles. Túlio, aliás, seria o jogador com mais gols marcados no Campeonato Brasileiro daquele ano de 1989, disputado de setembro a dezembro.

Na terceira fase, contra o Atlético Mineiro, o Goiás jogou a primeira partida em Goiânia e, mais uma vez, venceu com vantagem folgada: 3 a 0. O Atlético venceu a segunda partida, mas apenas por 2 a 0. Assim, o Goiás chegou à semifinal da competição cercado de respeito e como favorito para chegar à final. Mais ainda: a campanha do Goiás ajudou a derrubar a previsão de vitórias fáceis dos grandes clubes do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul. Logo ficou claro que, durante a Copa do Brasil, alguns clubes médios e pequenos se esforçariam ao máximo para surpreender. E alguns realmente surpreenderam. 

Sport x Guarani: coincidência

Um dos duelos da segunda fase foi entre Sport Recife e Guarani. Era a mesma partida que, para a CBF, havia sido a decisão oficial do Campeonato Brasileiro de 1987 (e que até hoje ainda é motivo de discussão). E o interessante é que os resultados foram exatamente os mesmos da decisão de dois anos antes. Em Campinas, houve empate em 1 a 1. Três dias depois, em Recife, o Sport venceu por 1 a 0.

A imprensa não comentou a coincidência. A crise em torno do Campeonato Brasileiro de 1987 repercutiu muito no ano de 1988, mas em 1989 o assunto esfriou. O Flamengo protestou por não ter podido participar da Taça Libertadores da América de 1988, mas contentou-se com o apoio da Rede Globo, que o tratava como o legítimo campeão brasileiro repetidas vezes. O Sport Recife, por sua vez, não discutia mais o assunto porque estava satisfeito: havia participado da Libertadores e era reconhecido oficialmente pela CBF como o campeão de 1987. Para a CBF, o imbroglio desmoralizava a sua imagem e era melhor evitar a polêmica. E como todos haviam se desinteressado de discutir o tema, a imprensa também se desinteressou.

Talvez uma disputa entre Flamengo e Sport Recife (que poderia acontecer na final da competição) pudesse recrudescer os ânimos e reavivar a polêmica naquele ano de 1989.

Flamengo x Corinthians: um jogo emocionante

Um dos jogos mais emocionantes daquela primeira Copa do Brasil (talvez o mais emocionante) foi a segunda partida entre Corinthians e Flamengo na terceira fase da competição.

Na primeira partida, realizada no Estádio do Maracanã, o Flamengo foi muito superior e venceu por 2 a 0 (gols de Zico e Nando). Uma semana depois, os dois times se enfrentaram no Estádio do Pacaembu.

O Corinthians marcou o primeiro gol, mas ainda no primeiro tempo o Flamengo empatou, com um gol de Zico. Os corinthianos, então, precisavam chegar ao placar de 4 a 1 para se classificarem. E chegaram. Foram três gols no segundo tempo: um de Giba, outro de Eduardo e o último de Neto, aos 39 minutos. A torcida foi ao delírio e a classificação já era dada como certa. Mas eis que o flamenguista Júnior, três minutos após o gol de Neto, recebe passe perfeito na grande área do time adversário e marca mais um gol. A torcida corinthiana, emudecida, viu os jogadores do Flamengo comemorarem eufóricos o gol salvador. Com o resultado final de 4 a 2, o Flamengo passou à semifinal.

Quem criticava a Copa do Brasil dizia que aquele seria um torneio de importância menor no futebol brasileiro. Uma competição cheia de times com nível técnico inferior e fadada a fracassar e a desaparecer em poucos anos. Não percebiam que as disputas eliminatórias em dois jogos (o sistema que é chamado de mata-mata) muitas vezes se convertiam em disputas com enorme carga de emoção, atraindo o interesse da torcida, da imprensa e dos patrocinadores. Aquele jogo entre Flamengo e Corinthians já mostrava que esse poderia ser o maior mérito da competição.

Júnior comemora o gol da classificação do Flamengo contra o Corinthians nas quartas-de-final (fonte: copadobrasil1989.blogspot.com)

Goleadas do Grêmio

O Grêmio se destacou por castigar três dos seus adversários com goleadas. Na primeira fase, os gremistas derrotaram o Ibiraçu, campeão do Espírito Santo, duas vezes: 1 a 0 na primeira partida (realizada na cidade de Cariacica) e 6 a 0 na segunda partida (em seu próprio Estádio, o famoso Olímpico). Na segunda fase, o clube gaúcho foi a Cuiabá e aplicou outra goleada: 5 a 0 no Mixto, o campeão mato-grossense. A segunda partida nem aconteceu. A diretoria do Mixto alegou que estava com dificuldade para se deslocar, por transporte aéreo, até a cidade de Porto Alegre. A CBF declarou o Grêmio vencedor por WO.

Na terceira fase, não houve goleada. Mas o Grêmio passou com certa facilidade pelo Bahia, que havia se sagrado campeão brasileiro seis meses antes. Os gremistas venceram em Salvador por 2 a 0 e em Porto Alegre por 1 a 0. Assim, o clube gaúcho chegou à semifinal com 15 gols marcados e nenhum sofrido (seis vitórias, incluindo o WO, e nenhum empate ou derrota).  

Foi na semifinal que o Grêmio impôs a goleada mais impressionante. A primeira partida contra o Flamengo, no Estádio do Maracanã, começou com o clube carioca fazendo 2 a 0, mas terminou empatada em 2 a 2. Jogo disputado. A expectativa era a de que seria assim também no Rio Grande do Sul. Mas aconteceu o que ninguém esperava: vitória gremista por 6 a 1. “Grêmio massacra Fla”, informou a Folha de São Paulo. “Flamengo sai humilhado do Olímpico”, noticiou o Jornal dos Sports.

Com sete vitórias em oito jogos, nenhuma derrota e uma goleada sobre um dos maiores clubes do país, o Grêmio chegou à decisão na condição de favorito, obviamente.

Na outra semifinal, Sport e Goiás se equilibraram: 2 a 1 para os goianos em Goiânia e 1 a 0 para os pernambucanos em Recife. O clube recifense se classificou pelo critério do gol qualificado. A decisão não realizada de 1987 (Sport X Flamengo) quase aconteceu em 1989, o que certamente provocaria novos debates sobre a grande crise de dois anos antes. Os gremistas, porém, não deixaram. Estavam interessados em escrever outra história naquela Copa do Brasil.

Assis, do Grêmio, vibra após marcar o primeiro gol da final contra o Sport
(fonte: pelotadetrapoblog.wordpress.com/)

A final

Apesar do favoritismo gremista, o Sport não podia ser menosprezado. Estava há quase um ano sem sofrer derrota em seu estádio. O Grêmio, por outro lado, tinha melhor retrospecto (em nove partidas contra o adversário recifense, havia vencido cinco e empatado quatro). E estava muito claro o que aconteceria naquela primeira partida da decisão: o Sport partiria ao ataque em busca de uma vitória para poder jogar em condições vantajosas sete dias depois, no Estádio Olímpico.

Foi exatamente assim. Principalmente no segundo tempo. O Grêmio, porém, soube se defender como queria o seu técnico, Cláudio Duarte. O resultado final foi zero a zero

No dia 2 de setembro de 1989, Grêmio e Sport Recife entraram em campo, no Estádio Olímpico, para decidir a primeira Copa do Brasil. O público era de 62.807 torcedores. Um número muito animador. Havia, de fato, um assunto futebolístico mais importante naquele fim de semana. Era o jogo entre Brasil e Chile, no dia seguinte, pelas eliminatórias para a Copa do Mundo de 1990 (caso fosse derrotado, a seleção brasileira estaria fora da Copa pela primeira vez na história). Mas era inegável a importância daquela final, que definiria o primeiro clube brasileiro classificado para a Taça Libertadores da América do ano seguinte. A Rede Globo transmitiu o jogo para todo o país.

Quando o primeiro tempo terminou, o placar era 1 a 1 e favorecia o Sport, que seria o campeão (pelo critério do gol qualificado), caso o resultado final fosse aquele. Por isso, o gol de Cuca, aos 7 minutos do segundo tempo, entrou para a história do Grêmio. Foi o gol da vitória, relembrada e comemorada pelos gremistas até hoje. O Grêmio participaria da Taça Libertadores da América pela quarta vez em sua história no ano de 1990. Em Recife, os jornalistas esportivos criticavam o ataque do Sport por não conseguir sufocar a defesa do Grêmio, mas ressaltavam que o clube pernambucano havia sido um finalista valente, não uma presa fácil.

A Copa e as críticas

Zico, o ídolo flamenguista, fez duras críticas à Copa do Brasil naquele ano de 1989. O presidente do Flamengo, Gilberto Cardoso, também criticou. O jogador disse que a competição era deficitária e que havia sido criada para “pagar” o que Ricardo Teixeira devia às Federações estaduais.

Zico chegou a dizer que o Vasco da Gama havia forçado a sua desclassificação diante do Vitória (vice-campeão baiano) para poder disputar um outro torneio, o Ramón de Carranza (Espanha), que era mais rentável. Mas negou ter chamado a Copa do Brasil de torneio “caça-níqueis”. Declaração muito grave: afirmar que um clube havia forçado a própria desclassificação, ou seja, se deixado vencer. Ricardo Teixeira reagiu dizendo que as acusações eram injustas, que os países da Europa realizavam copas semelhantes e que a competição havia sido criada com o intuito único de promover a integração futebolística das cinco regiões do país (poucos acreditaram nessa última afirmação). Em razão de suas declarações, Zico foi julgado pelo Tribunal de Justiça Desportiva do Rio de Janeiro, que o absolveu por nove votos a um.

As críticas à Copa do Brasil continuaram e a situação piorava quando a CBF tomava decisões desastradas, como a de marcar para junho o início da competição em 1990, ou seja, iniciá-la com a Copa do Mundo sendo disputada na Itália. Mas a competição já havia demonstrado seus méritos em 1989 e oferecia um prêmio que não podia ser menosprezado: a classificação para a Taça Libertadores da América. A revista Placar, em junho de 1990, foi certeira: “Apesar das reclamações, os clubes sabem que a Copa do Brasil vale muito”.

Ao longo da década de 1990, a Copa do Brasil se remodelou. O número de clubes inscritos começou a crescer em 1995 (a pressão para aumentar o número de participantes revelava um interesse cada vez maior na competição). Dez anos depois da primeira Copa do Brasil, não havia mais dúvidas: a competição havia ganhado prestígio e se consolidado. “Pode não ser a competição com o melhor nível técnico do país, mas ao se deparar com a campanha dos quatro semifinalistas de 1999, uma coisa é certa: nada supera a Copa do Brasil em emoção” (Placar, jun.1999). Emoção conhecida desde 1989 e que continuava a atrair os torcedores e a imprensa.

Havia tanto interesse em participar da Copa do Brasil que no ano 2000 surgiu a proposta de transformá-la em um grande torneio com 200 inscritos (um modelo inspirado na Copa da Inglaterra, que tem mais de 500 clubes inscritos). A ideia sofreu um bombardeio de críticas e foi abandonada. Mas o número de participantes, alguns anos depois, foi aumentado e chegou a 91 (esse é o número atual de clubes inscritos).

Em 2019, uma pesquisa da Sport Track mostrou que, entre os brasileiros, o apreço pela Copa do Brasil só perde para o Campeonato Brasileiro e para a Taça Libertadores da América. Está à frente de competições importantes, como a Champions League (UEFA) e o Mundial de Clubes da FIFA.

E tudo começou naquela criticada Copa do Brasil de 1989.

Quais campeonatos de futebol você prefere? (fonte: Pesquisa – Sport Track, 2019)
Artigos

“Aqui nasceu o Vasco!” Centro Cultural Cândido José de Araújo

Por GT de Pesquisa Histórica do Centro Cultural Cândido José de Araújo

Em meio a pandemia que afeta a todo o Planeta, afastando torcedores das arquibancadas, o vascaíno encontrou uma forma de atuar diretamente em prol de seu clube mesmo sem comparecer aos jogos. Em mais uma ação que ultrapassa a esfera esportiva, a torcida vascaína volta a escrever a história com suas próprias mãos e ainda presenteia a nossa cidade maravilhosa com mais um importante espaço de cultura.

Trata-se da revitalização do espaço da fundação do Club de Regatas Vasco da Gama, ocorrida no dia 21 de agosto de 1898, no imóvel localizado à época na Rua da Saúde nº 293 (atualmente Rua Sacadura Cabral nº 345). Por muito anos acreditou-se que a fundação teria ocorrido em outro local, mais exatamente na sede da Sociedade Dramática Particular Filhos de Talma, situada na Rua do Propósito, nº 12 (atual nº 20) onde, por duas vezes, o aniversário do clube foi lá celebrado, em que pese o equívoco histórico.

O primeiro passo para desfazer esse erro foi dado pelo pesquisador Henrique Hübner.  Ainda em 2013, ele pesquisou e revelou o verdadeiro local da fundação do clube através de uma série de consultas aos jornais, livros e plantas da época disponibilizados pela Hemeroteca Digital da Biblioteca Nacional; registros do 1.º Registro de Imóveis;  croquis e plantas da Superintendência Municipal de Urbanismo; bem como o acervo fotográfico do Arquivo Público da Cidade do Rio de Janeiro.

Em 2015, o Vasco publica a sua Ata de Fundação com o verdadeiro endereço. Unindo-se perfeitamente a ata de fundação às pesquisas realizadas, foi colocado o ponto final ao mistério da fundação do Clube. A divulgação da pesquisa no site Memória Vascaína do citado pesquisador, foram de fundamental importância para que a informação passasse a circular entre os vascaínos.

Mas foi somente no ano de 2020 que um passo decisivo foi dado para a retomada desse espaço pela tradição vascaína. Ao verificar que o imóvel da Rua Sacadura Cabral número 345 estava disponível para locação, o grupo “Guardiões da Colina” entrou em ação para promover a recuperação do local, alugando o imóvel por 5 meses com opção de compra ao final de contrato. O início do trabalho de revitalização contou com a fundamental ajuda de outros torcedores, entre eles os membros do grupo “Raízes Vascaínas” e diversos empresários e lojistas do ramo da construção, que passaram a doar materiais e serviços diversos. Arquitetos e designers se prontificaram a desenvolver projetos para a “nova” sede que ali surgia. Somaram-se ao projeto historiadores, geógrafos, pesquisadores e estudiosos no geral para contribuírem com suas pesquisas e produzirem conteúdo sobre o local e seu entorno.

O Centro Cultural Cândido José de Araújo nascia assim, batizado através de votação popular realizada pelo twitter. Candinho, como era conhecido por sócios e adeptos do clube, foi eleito no ano de 1904 e reeleito em 1905, após ser recordista em indicações para novos sócios do clube em 1903. Além disso, foi o primeiro presidente negro de um clube do Rio de Janeiro e até onde se tem conhecimento, de qualquer instituição esportiva do país.

O simbolismo em ter o nome associado a um homem negro no local é imenso, uma vez que o imóvel está situado no local conhecido como a “Pequena África do Rio de Janeiro”, localidade onde centenas de milhares de escravizados trazidos do continente africano desembarcaram e se fixaram. Mesmo após a abolição da escravatura em 1888, a “Pequena África” seguiu como moradia de milhares de afro-brasileiros que, junto a imigrantes Portugueses pobres que também habitavam a região, encontravam o sustento através do trabalho em feiras livres ou como empregados do comércio voltado para o Porto do Rio.

Toda essa história aumenta a responsabilidade daqueles que pretendem construir o Centro Cultural. É importante dizer que, mesmo sendo uma casa vascaína com conteúdo focado num Vasco nascido do congraçamento entre brasileiros e portugueses, foi criado um espaço aberto para todos aqueles que se interessem pela história da cidade e do esporte carioca. E é isso que o Centro Cultural Cândido José de Araújo busca: Construir um espaço de visitação com exposições fixas e temporárias que vão recontar a gênese do clube, desde os fatos mais marcantes da vida vascaína, tais como a participação de seus grandes ídolos, ou relembrando as camisas históricas e símbolos que tanto apaixonam o torcedor, até diálogos do clube com a cidade e com trabalhos acadêmicos. Um espaço para todos que desejam aprender a mais nobre história de um clube voltado inicialmente para o remo, o futebol, o esporte, a cidade e sua memória social. Um espaço de vascaínos, para os vascaínos e para a cidade.

Sendo assim, convidamos os vascaínos e todos os amantes do futebol a conhecer o espaço a partir do dia 31 de Outubro, com limite de capacidade devido às medidas de combate ao COVID-19. Para aqueles que não podem ir até o local, faremos um tour virtual, com previsão de lançamento na semana seguinte a inauguração do Centro Cultural. Para mais informações, nos sigam no twitter e instagram @aquinasceuvasco!

Fonte: Acervo dos autores
Artigos · Entrevistas

Coordenador do LEME discute o fenômeno “Copa do Mundo” em entrevista

A Copa do Mundo é um dos maiores eventos esportivos do mundo, seja pela sua atratividade mercadológica, pelo espetáculo, pela união de seleções ou pelo apelo das torcidas. Há noventa anos tinha início esse torneio que, de quatro em quatro anos, junta os amantes do futebol do mundo inteiro. Mas será que sempre foi assim?

A popularização do futebol na Europa fez com que, em 1930, fosse criada a primeira Copa do Mundo de futebol. A competição, que começou com apenas treze seleções, foi ganhando contornos maiores na medida em que o próprio futebol se profissionalizava e o mundo se modernizava. Hoje, para a Copa de 2022 no Qatar, estão previstas 48 seleções, e muitas outras questões, como as logísticas de viagens que eram impensáveis em 1930.

O coordenador do LEME, Ronaldo Helal, deu uma entrevista ao programa Noite Ilustrada da Rádio UFMG Educativa, da Universidade Federal de Minas Gerais, sobre esse fenômeno que é a Copa do Mundo. Helal lembra histórias e fatos de diversas Copas que aconteceram ao longo desses noventa anos de existência. Quer saber mais sobre esse torneio de magnitude mundial? Aperte o play no áudio abaixo e escute a entrevista completa.

1930 FIFA World Cup Uruguay ™ - FIFA.com
Fifa.com

 

Artigos

O “GreNal das Américas” e outros grenais históricos, heróicos e dramáticos

No dia 12 de março, quinze dias depois de confirmado o primeiro caso de coronavírus no Brasil, eu assistia o GreNal 424 num bar tomado por colorados em Florianópolis, o que hoje configuraria um bando de suicidas literalmente morrendo pelo seu time. Embora muitos gaúchos gostem de acreditar que Porto Alegre é a melhor cidade do mundo, a costa do Rio Grande não é assim tão atrativa. Então, eles esticam o passo até Santa Catarina e fazem morada nas belas praias da ilha. Eu também não sou daqui nem sou gaúcha, mas simpatizo com o Inter e não dispenso uma cerveja gelada, por isso estava no bar naquela noite.

Em menos de dez minutos de partida, já tinha jogador trocando farpa dentro de campo porque o juiz argentino Fernando Rapallini paralisou o lance e mesmo assim insistiram na jogada. Como já era de se esperar, os comentaristas de boteco (e os da transmissão – que, importante ressaltar, estava sob os direitos do Facebook) iniciaram suas análises, pouco táticas e bastante infladas, que remetiam claramente àquele típico imaginário do gaúcho como um produto das guerras: “Partiu pra cima dele!”, “Já começou a pegar fogo”, “GreNal é GreNal”, “Aqui é na raça”. Alguém mais generalista dizia: “Libertadores é isso!”, aludindo ao clima dramático de tango argentino que normalmente envolve o campeonato sul-americano.

O dramatismo portenho, vale lembrar, respinga nas páginas dos cadernos esportivos do Rio Grande do Sul não só pela relativa proximidade geográfica do estado com a Argentina (que tem os dois maiores campeões do torneio), mas também porque, conforme denota o estereótipo, o gaúcho adora exagerar. E o que são oito expulsões em um jogo de futebol senão um exagero? O simples fato de enumerar um GreNal também me soa um tanto hiperbólico, pois eu desconheço outro clássico que seja demarcado por um número, pelo menos aqui no Brasil.

Fonte: gauchazh

A pancadaria generalizada e o excesso de cartões vermelhos do GreNal 424 – que já no sorteio dos grupos caiu nas graças da imprensa como o “GreNal das Américas” – só não foi páreo para o que ocorreu em 1971, num confronto entre Boca Juniors x Sporting Cristal, que resultou em 19 expulsões ordenadas pelo árbitro colombiano Alejandro Otero, número recorde na história da Libertadores. No histórico dos amistosos, por sua vez, Grêmio e Inter muito provavelmente ocupam o primeiro lugar do pódio: foram 20 expulsões no GreNal 189, jogo comemorativo pela inauguração do Beira-Rio. O estádio já havia sido inaugurado oficialmente, no dia 6 de abril de 1969, em jogos da dupla contra outros adversários. O batismo, porém, só se confirmaria com um GreNal, como manda o culto à tradição.

O enredo deste clássico está destrinchado no livro a “História dos Grenais” (2009), escrito pelos jornalistas David Coimbra, Nico Noronha, Mário Marcos de Souza e Carlos André Moreira, todos ícones da imprensa gaúcha e, portanto, acostumados com essa ideia de trazer elementos teatrais para o jornalismo – a despeito das implicações deontológicas que isso possa levantar. O confronto que batizou o Beira-Rio estava tomado por um ar de revanche. Afinal, à época da inauguração do Olímpico em 1954, os colorados venceram os gremistas, carimbando a faixa de abertura da casa tricolor. Os autores contam que o fascículo nº 4 da História Ilustrada do Grêmio dedicou minúsculas três linhas para descrever aquele GreNal de número 135, sem sequer registrar o placar de 6 x 2 para o Inter.

Por isso, no amistoso de 1969, a intenção dos tricolores era dar o troco na mesma moeda, vencendo o Internacional em seu novo domínio. “Os gremistas esperavam por essa partida como um presidiário anseia pelo indulto de Natal. Queriam vingança por uma humilhação de 15 anos de idade.” (COIMBRA et al., 2009, p. 140). Se o placar de 6 x 2 do primeiro GreNal do Olímpico foi humilhante para o Grêmio, o clássico de inauguração do Beira-Rio seria vergonhoso para ambos: um 0 x 0 acompanhado de 20 expulsões e múltiplos socos, voadoras e pontapés. Restaram imunes somente o meia colorado Dorinho e o goleiro tricolor Alberto. Este tentava em vão pedir paz ao uruguaio Urruzmendi, que entrara em campo aos 37 minutos da etapa complementar, ainda em tempo de ser o pivô da barbárie:

O Inter começou melhor. Pontes e Valmir, atrás, controlavam bem as investidas impetuosas de Alcindo e Volmir. No meio, Bráulio tocava a bola com maciez e fazia a torcida colorada suspirar numa voz só. O Grêmio reagiu com dureza. O Inter replicou jogando ainda mais duro. A tréplica do Grêmio veio no bico da chuteira. Até que o ponteiro Hélio Pires foi expulso aos sete minutos do segundo tempo. Chuteira contra canela, cotovelo contra nariz, o jogo prosseguiu sem que se desse muita atenção à bola. Objeto, aliás, definitivamente esquecido aos 83 minutos. O goleiro Alberto estava com a dita cuja nas mãos. O lateral Espinosa à sua frente. Urruzmendi, ponteiro do Inter, correu do risco da grande área em direção aos dois, numa evidente e perigosa rota de colisão. Espinosa deu-lhe as costas para proteger o goleiro. Urruzmendi não quis nem saber. Atropelou Espinosa como se fosse um ônibus da Carris desgovernado. Espinosa caiu. Assustado com o abalroamento, Alberto atirou a bola pela linha lateral para que ele fosse atendido. A bola não foi mais vista em campo desde então. Tupãozinho desembestou do meio de campo e só parou quando atingiu Urruzmendi. Que revidou. Lá do meio também vinha, desabalado, o Bugre Xucro, bufando e urrando, louco para entrar na briga, justificando plenamente o apelido. Percebendo suas intenções belicosas, Sadi correu atrás dele, agredindo-o pelo caminho. Alcindo não ligou para o ataque do lateral do Inter. Continuou a carreira e só parou ao encontrar Urruzmendi e pespegar-lhe um rotundo soco no rosto. Urruzmendi não se fez de rogado e retribuiu a agressão. Apesar de lutar como um espartano, estava em desvantagem numérica e apanhava comoventemente dos gremistas. A sétima cavalaria, entretanto, não tardou. O goleiro Gainete atravessou o gramado em linha reta, veloz, demonstrando invejável preparo físico, e saltou feito um leopardo sobre o bolo de jogadores, as pernas e os braços abertos. Mas errou o bote e caiu no meio dos gremistas. Levou porrada de todos, democraticamente. A esta altura, os integrantes dos dois bancos de reservas já estavam em campo, distribuindo e recebendo, igualmente, jabs, diretos e pés-na-orelha. (COIMBRA et al., 2009, p. 141-142).

Quando a confusão terminou, o Inter ainda aguardava o reinício do jogo sem saber que 10 de seus jogadores haviam sido expulsos. Na saída de campo, Gainete, o goleiro colorado, respondia convicto às perguntas dos repórteres: “aqui nós é que vamos cantar de galo!” (COIMBRA et al., 2009, p. 142). A diferença entre o GreNal “amistoso” de 1969 e o que ocorreu 51 anos depois – além do número de cartões vermelhos que caiu de 20 para 8 – é o fato de este ter sido um clássico válido pela Libertadores, algo até então inédito na história dos dois rivais centenários. Pelo Campeonato Brasileiro, contudo, Grêmio e Inter já haviam se enfrentado, valendo vaga na final de 1988 e também um passaporte para a Libertadores do ano seguinte. Seria o GreNal 297 ou, nos termos do jornalismo esportivo gaúcho, o GreNal do Século.

Fonte: inter-noticia

Na edição de 1988, a disputa das fases finais do Brasileiro se estendeu pelo ano seguinte. Grêmio e Inter empataram em 0 a 0 no jogo de ida, no Olímpico, e a decisão seria três dias depois, no Beira-Rio. O Grêmio saiu na frente e tinha um jogador a mais em campo, pois Casemiro havia sido expulso (naquela que, pasmem, foi a única expulsão da partida). O técnico Abel Braga – que anos depois seria campeão da Libertadores e do Mundial pelo Inter – decidiu ousar, contrariando a mística da “escola gaúcha de futebol” e mandando o time para o ataque. Deu certo. Mais de 80 mil pessoas assistiram à virada dos colorados com dois gols de Nílson Esídio, uma figura também muito afeita à dramaturgia.

Nílson vibrou de forma estranha, caminhando desengonçado, trêmulo. Mais tarde explicaria que estava imitando Sassá Mutema, o personagem que Lima Duarte interpretava na novela do momento, “Salvador da Pátria”, na Globo. Explicou também que a faixa em seu joelho direito era apenas uma forma de enganar os rudes zagueiros adversários. – O problema que eu tinha era no tornozelo esquerdo e eles deram porrada na minha perna direita a tarde inteira. (COIMBRA et al., 2009, p. 214).

O Inter ganhou o “Grenal do Século”, no entanto, perdeu o título brasileiro para o Bahia e, naquele mesmo ano, ainda veria o Grêmio levar sua primeira Copa do Brasil, sobre o Sport Club do Recife. Na semifinal da Libertadores, nova baixa: o Internacional jogava pelo empate, mas foi eliminado em casa pelo Olímpia do Paraguai. “Nílson ‘Sassá Mutema’ Esídio desperdiçou um pênalti e teve de deixar o Beira-Rio na madrugada, às escondidas, como um criminoso, pois os mesmos colorados que o haviam carregado nos ombros, agora queriam surrá-lo.” (COIMBRA et al., 2009, p. 215-216).

O GreNal das Américas ocorrido em março de 2020 reforça aquilo que sabemos: que a história dos GreNais é uma incansável disputa para um desbancar o outro – ainda que um não viva sem o outro. Incansável porque vem se repetindo ao longo das décadas numa retórica bem freudiana, em que o irmão mais novo tenta a todo custo superar o mais velho. E, quando assim o faz, o mais velho fica tomado pelo mesmo sentimento de vingança. O GreNal 235, por exemplo, serviu para o Grêmio se vingar da hegemonia dos colorados que, ao longo da década de 1970, somavam oito Campeonatos Estaduais e três Brasileiros no currículo. Com Figueroa, Falcão, Carpegiani e companhia, era um time praticamente imbatível. “O Inter alcançara o topo. E, do topo, o próximo caminho só podia ser lomba abaixo, como se veria em 1977.” (COIMBRA et al., 2009, p. 184).

Em 1977, inclusive, a casa do Grêmio já não era como em 1954. No início da década de 1970, enquanto os vermelhos passavam por cima dos azuis no gramado, nas arquibancadas bradava o grito tricolor com a notícia da ampliação de seu estádio – que agora ganharia o sobrenome Monumental. Tudo isso para fazer páreo ao prodígio Beira-Rio, que roubara do Olímpico a faixa de maior estádio particular do mundo. Se a nova casa do Inter contou com 100 mil torcedores em seu jogo de estreia, estava decidido: seria essa a capacidade do novo Olímpico. Curioso que, em 1954, quando o Grêmio mudou-se do Moinhos de Vento para a Azenha, o domínio dentro de campo também era colorado, sob a remanescente figura do “rolinho” compressor. Com o estádio erguido, a hegemonia mudou de lado. Quinze anos depois, esse enredo se repetiria: o Inter dominando 70 com o octa do Estadual e o tri do Brasileiro e o Grêmio confabulando um novo Olímpico que ficaria pronto no início dos anos 1980. O Monumental inauguraria consigo uma outra década azul para abrigar os títulos mais importantes da história tricolor: Brasileiro, Libertadores e Mundial.

A arrancada começou justamente na final do Gauchão de 1977, ocasião em que o Olímpico recebeu a ilustre visita do músico Gilberto Gil que, embora torcesse para o tricolor baiano, dizia simpatizar-se também com o tricolor gaúcho, pois, nas palavras dele, o Grêmio tem o azul do céu, o branco da paz e o preto, que é a sua cor. Gil era amigo do atacante gremista André Catimba, que foi o personagem principal daquele episódio. Após marcar o gol do título, Catimba, apesar da ginga de capoeirista, se atrapalhou para comemorar o tento e acabou caindo de cara no chão: “eu fiquei tão emocionado naquela tarde que não sabia como expressar. Pensei em dar o salto mortal, desisti, mas já estava no ar quando voltei atrás. Era tarde. Me machuquei todo.” (COIMBRA et al., 2009, p. 186).

Fonte: gauchazh

Tamanha empolgação era por ter freado uma conquista épica do adversário, pois, caso o Inter levantasse aquele caneco, emendaria uma série de nove títulos estaduais, feito que até hoje nenhum dos dois conseguiu alcançar. No vestiário, Catimba ainda receberia os cumprimentos do velho amigo de Salvador. “Gil falou alto, em meio à algazarra: ‘Já estava na hora, não é? Tomara que agora o Grêmio ganhe por dez anos consecutivos’.” (COIMBRA et al., 2009, p. 186). Outro músico que também destaca aquela conquista de 1977 é o gremista Humberto Gessinger, ex-líder dos Engenheiros do Hawaii. Convicto e superlativo, ele ressalta em seu livro de crônicas:

Futebol é uma bobagem, né? […] Um dos grenais de que me lembro com mais carinho foi o de 1977. Ganhamos por 1 a 0, quebrando uma série de 123 anos correndo atrás. Meu pai estava internado num hospital perto do Estádio Olímpico. No fim do jogo, assisti, pela janela do quarto, à caravana das bandeiras tricolores. Carros e torcedores silenciosos por respeito. Sensação boa de pertencimento. Consolo de não estar sozinho. A vida seria uma bobagem sem essas bobagens. (GESSINGER, 2009, p. 101).

Relendo esse trecho de Gessinger, me volto para o cenário de hoje em que o melhor remédio é tirar o time de campo. O primeiro GreNal das Américas foi disputado na nova Arena do Grêmio e terminou empatado em 0 x 0. O jogo de volta, que a princípio aconteceria em 8 de abril no Estádio Beira-Rio, está suspenso por tempo indeterminado. Das declarações da imprensa sobre aquele pré-jogo, uma em especial chamou minha atenção: “O gaúcho tem mais medo de perder GreNal do que de contrair coronavírus”, proferida por David Coimbra, o mesmo jornalista que assinou a “História dos Grenais”. Exageros à parte, a decisão da CBF de suspender os campeonatos devido à pandemia veio no domingo logo depois daquela quinta-feira em que eu acompanhava a partida do bar. Quando começou a confusão aos 41 minutos do segundo tempo, fui embora pra casa, pois no esporte nos interessa a rivalidade, não a pancadaria. Mas, se eu soubesse que agora a bola não vai rolar tão cedo, talvez tivesse ficado mais um pouco.

 

Referências

  • COIMBRA, David; NORONHA, Nico; SOUZA, Mário Marcos de; MOREIRA, Carlos André. A História dos Grenais. Porto Alegre: L&PM, 2009.
  • GESSINGER, Humberto. Pra ser sincero: 123 variações sobre um mesmo tema. Caxias do Sul: Belas-Letras. 2009.
Produção audiovisual

Palestra de Aira Bonfim disponível no Youtube

Está disponível no canal do LEME no Youtube o vídeo da palestra de Aira Bonfim nos Encontros LEME 2019. Aira esteve conosco no dia nove de setembro, no auditório do PPGCom/UERJ, para falar de sua pesquisa no Mestrado em História, Política e Bens Culturais da FGV: “Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos:… Continuar lendo Palestra de Aira Bonfim disponível no Youtube

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Eventos · Produção bibliográfica

Lançamento de livro organizado por pesquisador do LEME

Hoje, dia 21 de novembro às 18h, ocorre o lançamento do livro Rio de Janeiro, uma cidade em perspectiva. A obra é organizada por Fausto Amaro (doutor pelo PPGCom/UERJ e pesquisador do LEME) em parceria com os professores da UERJ André Nunes de Azevedo e Érica Sarmiento. O livro também conta com artigos do coordenador do LEME, Ronaldo… Continuar lendo Lançamento de livro organizado por pesquisador do LEME

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