O dia 3 de março é celebrado pela torcida do Flamengo como o Natal Rubro-Negro, pois é aniversário daquele que é o maior de todos os tempos da História do clube: Zico. É como se existisse um Flamengo antes dele e outro após. Referência fundamental do nosso futebol a partir de meados da década de 1970 até o final da década de 1980, a idolatria a Zico é constantemente celebrada pela torcida do Flamengo em imagens do atleta em bandeiras, camisas e nos coros de “Zico é nosso rei”, mesmo após mais de 33 anos de sua última partida oficial no Brasil.
Uma curiosidade em sua biografia nos chama a atenção. É uma história que fala da vitória através do trabalho e de uma sucessão de obstáculos que ele teve que superar. O esforço como elemento fundamental para se alcançar êxito costuma ser relegado a um plano secundário nos discursos dos cronistas brasileiros dos universos das artes e do futebol. No caso específico do futebol, chega a ser até uma crítica contundente chamar um jogador de “esforçado”. Esta é uma maneira de se dizer que ele não tem talento, porém se esforça. A forma oposta seria o talento puro, inato, que não precisaria de treino ou esforço para ser aprimorado, como se não fosse possível ser talentoso e esforçado ao mesmo tempo. A biografia de Zico fala de uma realidade calcada primordialmente no predomínio do esforço e da determinação como atributos fundamentais para se alcançar êxito e, assim, refuta uma suposta ideologia de sucesso cultuada no imaginário brasileiro.
Fonte da imagem: Museu do Futebol.
É sabido que a ascensão de Zico foi sempre com muitos obstáculos no caminho, a começar pelo seu corpo franzino que quase o impediu de, aos 13 anos, fazer um teste no Flamengo. Por isso, logo após se firmar na escolinha, ele se submeteu a um árduo tratamento para reforçar a musculatura
Esse procedimento a que se submeteu ainda bem jovem fez com que Zico ficasse conhecido no início da carreira como “craque de laboratório”. Era como se de um planejamento “científico”, com a ajuda de médicos, nutricionistas e modernas técnicas e aparelhos de educação física, surgisse uma grande estrela do futebol. Era o racional, o trabalho, unindo-se ao talento. No entanto, apesar das biografias enfatizarem positivamente a dedicação de Zico a este trabalho, à época a alcunha “craque de laboratório” era utilizada de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, que fugiria das características “artísticas” do nosso futebol. Essa foi uma das primeiras provações que Zico teve que superar e evidencia que sua idolatria surge ancorada também em características de sua personalidade.
Junito de Souza Brandão em seu livro clássico Mitologia Grega fala de “honorabilidade pessoal”, “excelência” e “superioridade em relação aos outros mortais” como virtudes inerentes à condição do herói. A “superioridade” de Zico sempre ficou evidente na forma com que enfrentou os desafios e os obstáculos da vida tanto quanto em seu talento extraordinário para o futebol. Nesse sentido, a narrativa em torno de Zico enquadra-se no rol dos arquétipos universais dos heróis. Ela nos mostra que não basta o ato heroico em si, de forma isolada — no caso, as conquistas e os gols no futebol. O herói precisa preencher outros requisitos — tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo — para se firmar no posto. E Zico sempre os preencheu com bastante eficácia.
Fonte da imagem: Mundo Rubro Negro
É comum escutar que o Brasil não tem memória e esquece seus ídolos. Mas a idolatria a Zico e os festejos pelo seu aniversário nos mostram que a memória de Zico segue firme no universo da torcida do Flamengo. Não saberia dizer se isso seria uma exceção à suposta falta de memória do país, mas ouso afirmar que é Zico quem sempre foi exceção na união emblemática e necessária de talento e profissionalismo.
(Artigo originalmente publicado em 03 de março de 2023, no jornal O Globo.
Na temporada nacional do futebol brasileiro a bola ainda não rolou, mas já temos debates profundos e que movem paixões a partir do movimentado mercado da bola. O retorno do meia Gérson ao Flamengo e a chegada do uruguaio Luis Suaréz ao Grêmio, com milhares de torcedores na Arena Grêmio apontam que a temporada vindoura será de emoção. Pelos menos é o que mostra até agora algumas contratações do mundo da bola. Veremos se os campeonatos nacionais serão disputados, quebrando a hegemonia protagonizada por Palmeiras e Flamengo nos últimos dois anos.
Em especial, o retorno de Gerson Santos da Silva, com então 25 anos para o Flamengo, após 1 ano e meio no Olympique de Marselha produziu uma série de análises e discussões as quais pretendo tratar aqui. Em geral, as opiniões dos comentaristas de futebol versaram que significava um “fracasso” a prematura volta do jovem volante para as canchas tupiniquins. O portal Placar estampou como manchete: “Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube”[1], evidenciando um suposto insucesso. Segundo este, a volta para cá era significado de que não deu certo na Europa ou não vingou no centro do futebol mundial.
Aqui estou reduzindo um pouco as análises, pois alguns comentaristas defenderam também que o meia revelado pelo Fluminense Football Clube configura um excelente reforço para o rubro-negro carioca. Contudo, no que tange à sua carreira pessoal, o segundo retorno da Europa, em apenas 8 anos de carreira, seria um atestado de fiasco. Futebol este que foi fundamental para o Flamengo conquistar a taça Liberadores de 2019, os campeonatos brasileiros de 2019 e 2020 e os campeonatos cariocas de 2020 e 2021, porém insuficiente no centro do futebol do mundo
Esses dois anos de um futebol versátil, moderno e sólido levaram o meia a vestir a camisa da seleção brasileira e fizeram com que o técnico Jorge Sampaoli pedisse a sua contratação para o time do Sul da França. Apesar de alguns apontarem como fracasso, o Coringa, como é chamado pela torcida do Flamengo, fez a sua melhor temporada na França, com 13 tentos marcados e 10 assistências. Após a saída do técnico argentino, o jogador acabou indo para o banco, após uma discussão com o novo professor. O que contribuiu para o seu retorno para o Ninho do Urubu.
O que fomenta esse artigo é um complexo de vira-latas de nós, brasileiros. Pois consideramos que o retorno de um jogador jovem da Europa é um atestado de fracasso, no velho continente. E fracassar lá significa, partir da premissa de que há uma linha evolutiva inconteste no futebol, em que todos os bons jogadores têm as ligas europeias como destino final. E para receber o selo europeu só devem voltar para seus países natais a partir de 33 ou 34 anos, para encerrar de preferência no clube que os revelou na terra de Vera Cruz. Essa linha evolutiva estabelece que o jogador nasce na América do Sul, cresce e se desenvolve na Europa e volta aqui apenas para morrer. No caso morrer, como metáfora de aposentar como profissional do futebol.
Nessa linha evolutiva, o futebolista brasileiro só aprende ao chegar na Europa, a famosa “educação tática”, pois aqui praticamos um futebol da desordem, da informalidade e do jeitinho brasileiro indomável que urge ser catequizado. Parece-me um erro tal como o cometido por historiadores e antropólogos no século passado. Quando estes concebiam que o português colonizava o índio, sem adquirir nenhum traço da cultura dos povos originários que viviam aqui. O conceito de aculturação estabelece que apenas o indígena adquiriu a cultura do conquistador Uma revisão avançou para o conceito de transculturação, no encontro do europeu com os dois foram impactados.
No poema do modernista Oswald de Andrade, “ Erro de português” de 1925, o autor argumenta que na chegada dos portugueses chovia, portanto, o europeu colocou a roupa no índio. Se fosse um dia de sol, o índio teria despido o português. Aqui completaria o poema de Andrade, adicionando que no dia seguinte fez um sol dos trópicos e o índio ensinou os lusitanos a tomar banho todo dia e a ficar nu. Portanto, os jogadores brasileiros aprendem jogando na Europa, assim como o velho continente aprende com os brazucas. Não é uma via de mão única, ela é sempre relacional e influencia as duas culturas envolvidas em uma interação, não poderia ser diferente com o futebol. Ronaldinho Gaúcho ensinou a eles como bater falta por baixo da barreira e eles ensinaram Vinicius Junior que atacante também tem de recompor a defesa.
Essa linha evolutiva estabelece a Europa como Norte, a evolução só pode ser atestada lá, pois aquele que não vai a Meca não pode ser consagrado, e quem volta cedo de Meca também, tal como o Coringa. Na década de 1940, o artista uruguaio Joaquín Torres Garcia (1874-1949) produziu uma arte que hoje constitui símbolo de Nuestra América ou Abya Yala (nome da nação Kuna para nosso continente). A arte intitulada “ América Invertida”, de 1943, é uma crítica de Garcia Torres à dependência artística dos latinos americanos da produção artística europeia. Na época, os artistas do Sul tinham que ir para lá aprender, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e muitos outros fizeram essa passagem pelo Norte. De maneira maestral, Garcia Torres desenhou um mapa da América do Sul de cabeça para baixo, dessa forma provocando e colocando o Sul no lugar do Norte. Apontando por meio da arte e do lúdico que nosso caminho é o Sul.
“América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.
A genialidade da arte do uruguaio fez com que a mesma torna-se um símbolo das lutas sul-americanas. Aproveitando essa arte me questiono por que precisamos do atestado europeu para ratificar o nosso talento no velho esporte bretão? Quantas vezes, jornalistas não advogaram que Edmundo foi o melhor do mundo moralmente, em 1997. E só não foi eleito como tal pela FIFA por jogar no Brasil. Naquela temporada, o Animal marcou no brasileiro 29 vezes, em 42 partidas, sendo 42% dos gols do Vasco, que foi campeão do Brasileirão.
E Romário, que como melhor jogador do mundo, campeão do mundo, campeão espanhol retornou ao Brasil, em 1995. Ele retornou fracassado ou sua escolha foi permeada por outros desejos que não só estar no centro do futebol. Por último, exemplo, o lateral Hermano. Juan Pablo Sorín. Quando uma jovem promessa do River Plate foi jogar na Velha Senhora (Juventus), após dois anos voltou para o time que o revelou com apenas 26 anos (apenas um ano mais velho que Gerson). Pouco tempo depois, veio para o Cruzeiro e simplesmente jogou muita bola no time celeste mineiro, que conquistou a tríplice coroa em 2003. O retorno de Sorín foi um insucesso?
Não serei aqui idealista em defender que o futebol brasileiro ou sul-americano é melhor do que o europeu. Lá estão as melhores ligas, os melhores jogadores e os melhores salários. Essa é a realidade. Contudo, não se pode atestar que para ser um grande jogador é preciso estar na Europa e, muito menos, quem retorna na casa dos 20 anos é um fracassado. Há mais coisas entre essa simplória definição evolutiva do futebol do que a Europa como uma única régua para atestar qualidade ou sucesso. O fato de Gérson retornar, sendo a contratação mais cara do nosso futebol, demonstra que não foi um insucesso.
Aqui busco dizer que está longe, mas que todos nós sonhamos e desejamos o caminho do Sul. Chamo de caminho do Sul o que vos falo é uma liga brasileira forte, moderna, organizada e sólida. Quando chegarmos nesse caminho do Sul, nossos clubes gozarão de viabilidade econômica para manter nossos jovens craques em terras tupiniquins. E será que quando chegarmos nesse Eldorado do futebol brasileiro e quiçá sul-americano continuaremos a dizer que se o jogador não for consagrado na Europa é um fracasso? Essa resposta só o tempo irá dizer. Pensar em um futebol brasileiro forte e competitivo financeiramente e desportivamente é ter um futebol que passaremos a ser o centro e que talvez essa discussão seja coisa do passado. Tomemos o caminho do Sul assim como nos apontou há 80 anos, o saudoso Garcia Torres.
Jorge Santana é professor de História, doutorando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), autor do romance “Desculpa, meu ídolo Barbosa” e torcedor do Fluminense.
Referências
Redação. Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube. Placar, Brasil 5 jan. de 2023.
Imagem é uma reprodução da obra “América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.
É inadmissível do ponto de vista social e diria até que principalmente econômico que uma postagem xenofóbica contra nordestinos tenha ocorrido sem posicionamento formal do Flamengo. O “carrapato” também consome e difunde a imagem do clube.
Não são muitos os autores e pesquisadores que têm sua trajetória acadêmica transformada em objeto de análise e homenagem. Pelo menos na tradição acadêmica brasileira, não é comum esse tipo de registro e quando ocorre, sua motivação, além da excelência da pesquisa, se dá por ocasião de aposentadoria ou mesmo falecimento.
Ocorre que Ronaldo Helal está vivíssimo, intelectualmente atuante e atento à pátria que tem calçado chuteiras cada vez menores.[1] Ronaldo segue em sala de aula formando novas gerações pensantes. E segue devotando ao Flamengo, o amor de um torcedor empedernido.
Uma das principais forças de uma obra ou de um conjunto de obras reside na sua originalidade e na sua capacidade de inspirar outros trabalhos construídos a partir do diálogo de ideias, da admiração e da gratidão intelectual.
Não é grande a lista de autores que consegue desempenhar esse papel em determinado campo do conhecimento.
Ronaldo Helal é um deles.
Fonte: Pinterest.
Sua produtividade acadêmica está longe de acabar e sua trajetória, até o momento, é bastante rica significativa. No campo dos estudos sobre esporte e sua relação com os meios de comunicação de massa, algumas de suas obras assumem um papel, eu diria vanguardista.
Suas análises, tendo como centro o papel dos meios de comunicação de massa, deram um novo fôlego aos estudos das relações entre identidade nacional e futebol, em especial, sobre seleção brasileira e as Copas do Mundo. Não somente. O trabalho de Ronaldo também possibilitou que o campo da Comunicação pudesse se renovar ao encontrar nos esportes novas possibilidades de pesquisas centradas em um dos mais importantes fenômenos culturais do Brasil.
São, portanto, sólidos os motivos que levaram o historiador Bernardo Buarque de Hollanda a compor o artigo “Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal” publicado na revista Alceu[2].
Nesse artigo, a vida acadêmica de Ronaldo é compreendida a partir da perspectiva da “viagem como vocação”[3] o que sinaliza para o fato de que sua produção faz do deslocamento geográfico, para além das fronteiras nacionais, um meio de olhar o “país de fora para dentro” como já o fizera importantes intérpretes do Brasil.
É certo que não necessariamente uma viagem para fora do país resulta em uma renovação de perspectiva a respeito daquilo que nos rodeia. É possível ter esse tipo de perspectiva sem sequer sair de nosso próprio quarto ao estilo de Xavier de Maistre, romancista que inspirou fortemente Machado de Assis, autor que literariamente interpretou de modo profundo o Brasil sem nunca dele ter saído.
O olhar de fora para dentro implica não somente o deslocamento físico, mas é fundamental a sua conjugação com um movimento intelectual de tornar estranho aquilo que nos é familiar e de transformar em familiar aquilo que nos era estranho. Esse movimento marca o itinerário da produção de Ronaldo Helal e sua própria visão pessoal de mundo, inquieta, problematizadora, mas fundamentalmente generosa em reconhecer que o conhecimento é feito de processos marcados pela dinâmica da contradição e da necessária renovação do pensamento crítico.
A formação acadêmica de Ronaldo foi construída na frequência a instituições de pesquisa internacionais nas quais teve contato com um importante contexto de produção de estudos acerca do fenômeno esportivo. Somado a esse material, é de se destacar o diálogo permanente com instigantes interlocutores alguns dos quais construiu uma longa história de amizade.
A produção de Ronaldo é derivada de sua vocação para fazer da viagem uma fonte de formação intelectual e humana. Vocação que pode ser colocada em prática graças ao apoio institucional da UERJ, universidade na qual leciona há 35 anos, e às agências públicas de fomento FAPERJ, CAPES e CNPq.
Termino aqui convidando você a ler o artigo Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal publicado na revista Alceu.
[1] Faço referência a uma a uma frase dita por Hugo Lovisolo em entrevista para o jornal O Globo em 2001.
Imagine que um grupo de clubes europeus (uns 12 ou 16) encaminham, em conjunto, a seguinte mensagem para a UEFA:
“Não temos mais interesse em fazer parte do sistema sob a sua gestão. Vamos fundar uma liga à parte e passaremos o ano disputando um campeonato nosso. Podem excluir os nomes de nossos clubes de suas competições: Champions League, Europa League, FA Cup, Copa do Rei, etc”.
Evidentemente, é um direito deles.
Mas se esses clubes, ao fazerem isso, provocam uma onda de revolta em seus próprios torcedores, podemos concordar que trata-se de uma decisão pouco inteligente.
Foi mais ou menos o que aconteceu com o anúncio da superliga europeia, no último dia 18 de abril.
Formar uma liga à parte, do modo como foi ensaiado, significa pôr-se fora de competições tradicionais, que despertam sentimentos poderosos nos torcedores. Foi essa perspectiva que fez eclodir até manifestações de rua (em especial, dos britânicos).
Tabela 1 Fonte: Imagem enviada pelo autor
Escrevi um artigo sobre a ideia de uma superliga global, que estava sendo cogitada. Foi publicado neste blog no dia 5 de abril. Nesse artigo, está dito que “a tendência na governança esportiva global é a da unidade” e, seguindo essa tendência, a superliga global “provavelmente não será afrontosa à FIFA”. De modo surpreendente, optaram por serem afrontosos. Muito afrontosos. Liderados pelo presidente do Real Madri, os doze clubes decidiram apressar a marcha e pisar duro. Repentinamente, anunciaram a criação de uma superliga europeia não negociada com a UEFA ou FIFA. A superliga global viria depois de algum tempo, talvez.
Importante repetir: repentinamente e não negociada. Isto é, foram à guerra. Mas sem apoiadores poderosos que estivessem dispostos a se manifestar abertamente e, pior, sem contar sequer com a adesão de suas próprias torcidas. Parece que algum estrategista não calculou bem. O vídeo em que o proprietário do Liverpool se desculpa com torcida foi o momento mais constrangedor da derrocada dessa superliga, que existiu por 48 horas ou menos.
Tabela 2 Fonte: Imagem enviada pelo autor
Entre os atletas também houve preocupação. Perceberam que poderiam ser alijados de competições importantes, o que diminuiria a sua visibilidade e seus ganhos econômicos. Sentiram-se inseguros.O primeiro-ministro britânico, Boris Johnson, também se manifestou contra a superliga. Tudo desabou em torno de Florentino Perez, que permanece, insistente, acreditando no projeto que acalentou.
As desistências dos clubes da superliga vieram rapidamente, uma após a outra. E essas desistências fizeram o projeto recuar, é claro. Mas recuar não é se extinguir. Não é impossível criar uma superliga europeia que consagre a superioridade quase permanente (vide tabelas 1, 2 e 3) dos maiores clubes do continente europeus. E quando se fala em maiores clubes do continente europeu é preciso incluir os alemães, que não estavam presentes nesse primeira tentativa de superliga. Mas criar essa superliga sem antes consolidar o apoio de seus torcedores, sem dar segurança aos atletas, sem garantir o apoio de empresas poderosas (grandes empresas internacionais de comunicação, principalmente) e sem uma boa negociação com a UEFA e a FIFA, será extremamente difícil. Florentino Perez escolheu justamente esse caminho mais difícil.
Tabela 3 Fonte: Imagem enviada pelo autor
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No Brasil, uma repercussão interessante da confusão europeia: surgiu (mais uma vez) um debate sobre o polêmico ano de 1987.
Um número restrito de clubes decide criar uma liga com campeonato próprio e faz isso em afronta a uma entidade reconhecida pela FIFA. Eis o que se passou nesse caso da superliga europeia de 2021 e assim aconteceu também no caso da Copa União de 1987 no Brasil. Uma semelhança visível. Ou não?
Na internet, essa semelhança foi abordada em vários sites. O assunto ganhou visibilidade. E até a Rede Globo decidiu tocar no assunto.
No programa Esporte Espetacular do dia 25 de abril, após uma reportagem sobre o fracasso da superliga europeia, o apresentador Lucas Gutierrez anunciou uma “top 5 de ideias furadas de competições no futebol brasileiro e mundial”. O top 4 foi a Copa União.
A Globo, que por vários anos tratou o Flamengo como o campeão brasileiro oficial de 1987, assumiu outra postura no programa do dia 25. Lucas Gutierrez perguntou: “Diz aí: quem é o campeão brasileiro de 87?”. Logo depois, o mesmo Lucas Gutierrez completou: “Eu não vou meter o meu bedelho nessa história”.
E disse mais: “A verdade é que a Copa União de 1987 foi uma bagunça”. Isso foi dito em um programa da empresa televisiva que mais apoiou a Copa União. Seria uma autocrítica velada?
Foi citada até a esdrúxula situação do Guarani em 1987: o clube, que foi vice-campeão brasileiro de 1986, foi jogado pelo Clube dos Treze no módulo amarelo, que era tratado pelo próprio Clube dos Treze como uma segunda divisão. O apresentador Lucas Gutierrez também fez graça com esse absurdo: “Entendeu? Eu também não”.
E assim o Flamengo perdeu mais uma batalha nessa disputa que pode ser chamada de “Guerra de 87”. O clube de maior torcida do Brasil dizia-se campeão brasileiro daquele ano, mas não disputou a Taça Libertadores da América de 1988 (disputá-la era um direito do campeão brasileiro) e viu a Justiça confirmar, em diversas instâncias, o título de campeão dado pela CBF ao Sport Recife. O que ainda restava aos flamenguistas era o apoio da Rede Globo. Um apoio importantíssimo, por razões óbvias. O Esporte Espetacular nos mostrou que até isso se esvaiu.
Mas há algo que Florentino Perez pode aprender com Márcio Braga e Carlos Miguel Aidar, os dois dirigentes com maior destaque no Clube dos Treze em 1987. Antes de afrontarem a CBF, garantiram o apoio convicto de patrocinadores poderosos e da maior emissora de TV do país (enquanto a Confederação, por outro lado, estava em crise). Foi assim que a Copa União, mesmo em atrito com um órgão reconhecido pela FIFA, se mostrou tão relevante e por tanto tempo. Bem mais tempo que a superliga europeia de 48 horas.
O futebol é a coisa mais importante dentre as coisas menos importantes.
A frase acima – que, de tão lapidar, poderia ser atribuída às páginas rodrigueanas por compreensível equívoco – foi cunhada em verdade não por um literato, mas por Arrigo Sacchi, técnico de equipes como o histórico Milan que deslumbrou o mundo no fim dos anos 80 e da esquadra italiana derrotada pela Seleção nos ditosos pênaltis de 1994. Eu, nascido praticamente um mês após o mesmo Sacchi conquistar seu único título da Serie A, num remoto ano de 1988, jamais havia experimentado um evento que dotasse sua máxima de tamanho sentido como o que segue a nos assolar. Refiro-me, por óbvio, à pandemia da covid-19 – cujas consequências supostamente levariam a humanidade, num necessário e tardio despertar, a revisar a dinâmica de suas interações em prol da construção de uma sociedade mais razoável, compreensiva e justa. Ao menos no que diz respeito ao papel do esporte nesta pretensa equação, no entanto, faltou combinar tais termos com os atores da alta cúpula de nosso futebol.
O que foi preciso ignorar para que o Flamengo levantasse, ao cabo de um dia com 1.261 perdas mais causadas pelo coronavírus no país, sua trigésima sexta taça estadual ao derrotar o Fluminense – aquele do qual se desgarrou em 1911, num litígio de contornos míticos, para só então iniciar suas campanhas pelos estádios deste mundo? Em que poço sem fundo nos encontramos quando também o futebol, geralmente reconhecido como um dos maiores pilares comunitários de nossa cultura, reduz-se a mero dispositivo de acirramento de ânimos, mobilizando para tanto posições obscurantistas e indiferentes ao sofrimento do outro? Afinal, o que o Campeonato Carioca de 2020 deixará registrado para a posteridade acerca de quem somos hoje?
Para além do célebre provérbio, a menção a Sacchi ao abrir este texto se torna ainda mais elucidativa se atentarmos para o fato de que Milão, metrópole que o projetou para o planeta desde o banco do San Siro, está localizada na região da Lombardia – o epicentro inicial da pandemia na Europa. Foi na Itália que o vírus, após alarmar de início populações orientais, anunciou-se terrivelmente para o Ocidente, logo estupefato em face de toda a provação deflagrada na terra do calcio. No mês de março, quando as cenas geradas pelo coronavírus ainda eram uma novidade assistida à distância por nós, causavam espanto as atualizações que anunciavam um cômputo ainda inédito de 600 mortes diárias. Atônitos, vivíamos a cada amanhecer a descoberta de uma nova dimensão para a fatalidade. Março, contudo, logo ficou para trás. O vírus, como havia de ser, não apenas nos alcançou, mas também encontrou pelas bandas de cá um sem número de tipos capazes de potencializar em muito seus danos. O luto italiano de outrora parecia nos comover mais que o presente padecimento brasileiro.
Convenhamos, somos capazes de banalizar o horror de um modo que nos é peculiar – há, digamos, um jeitinho todo brasileiro de lidar com a mortandade amplificada por desajustes sociais. Pois bem, nesta semana, enquanto a bola chutada por Vitinho desviava no zagueiro Nino e, ao encontrar o caminho das redes tricolores durante os últimos instantes da final do Campeonato Carioca, sacramentava outra conquista de um já emblemático elenco rubro-negro, o hospital de campanha montado no interior do complexo esportivo do Maracanã contabilizava mais algumas despedidas para os registros. Que elas decerto não ocorreram por haver uma partida de futebol no estádio ao lado é um fato evidente. Ainda assim, que tenha sido realizada uma partida de futebol a despeito da luta ainda travada por tantos pela própria vida é outro fato evidentemente sintomático. Não nos deixemos enganar por celebrações temporãs: o gol de Vitinho, como todos aqueles que o antecederam desde o retorno do futebol no Rio de Janeiro, nasceu sob o signo do descaso ostensivo em relação ao pranto dos nossos. A troco exatamente de quê? Receio que jamais será possível responder a esta questão apelando para o bom senso.
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Voltemos, por exemplo, à Itália de Sacchi. Por lá, medidas de isolamento social foram adotadas e respeitadas em ampla escala por seus habitantes. Apenas após a diminuição significativa dos números relativos à covid-19 a bola voltou a rolar: no dia 13 de junho, sem permissão de acesso de torcedores ao estádio, a Copa da Itália foi responsável pela retomada do calendário de competições. Quando chegou a vez de o Campeonato Italiano reiniciar suas atividades, uma semana depois, o país registrou 262 novos infectados – confirmando queda da média diária de casos pela 12ª semana seguida – e 49 óbitos. Na tentativa de encontrar um difícil arranjo entre saúde e economia, preservando a credibilidade de suas ligas, protocolos similares foram adotados em datas próximas nos três principais centros futebolísticos do globo: Alemanha, Espanha e Inglaterra. A Federação Holandesa, por seu turno, encerrou o campeonato local sem definição de vencedor ou rebaixados. Na França, outro caso insólito: o Paris Saint-Germain foi declarado campeão nacional após desfecho prematuro da Ligue 1 em respeito às orientações de saúde pública.
Mas, se além-mar a possibilidade de cogitar a entrada dos times em campo esteve sempre condicionada à melhora dos índices sanitários e à séria observância a diretrizes científicas, a famigerada Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) – graças a uma aliança pactuada com os pequenos clubes a ela filiados, com o Vasco da Gama e, sobremaneira, com o Flamengo – determinou o retorno de seu cada vez mais moribundo campeonato em tensa reunião arbitral havida no dia 17 de junho, em que tão somente Botafogo e Fluminense se opuseram de modo incisivo à maioria formada. Segundo levantamento empreendido por um consórcio que reuniu grandes veículos de imprensa devido à possível manipulação de dados por parte do próprio governo do país da subnotificação, houvera então 31.475 novos diagnósticos e 1.209 mortes por covid-19 no Brasil. Com efeito, a informação a seguir exige reflexão: quando Flamengo e Bangu se enfrentaram pelo Campeonato Carioca no dia 18 de junho, em meio a 1.204 vidas concidadãs perdidas pela doença, o Campeonato Italiano sequer havia recomeçado. Dada a aviltante resolução confirmada pela FERJ, a dupla de agremiações discordante, em flagrante desvantagem numérica e em termos de influência política no cenário nacional, aventou a hipótese de acionar a Justiça Comum em caso de derrota nos tribunais desportivos ao pleitear a suspensão do retorno do torneio no estado – um caso extremo e suscetível a muitas polêmicas jurídicas. Na prática, porém, não houve revogação do veredicto: o show tem que continuar…
Posto isso, seria possível redigir daqui em diante um texto recapitulando, passo a passo, os imorais episódios proporcionados pelo Carioca desde então. Elementos não faltariam: a lamentável associação entre FERJ, Flamengo e demais clubes contra Botafogo e Fluminense, os únicos que mantiveram uma postura minimamente louvável ao longo de todo este imbróglio (recuso-me a crer que haverá aqui acusações de clubismo); a cobrança de despesas operacionais até dez vezes maiores nos jogos dos dissidentes em sinal de represália; o impedimento de vários jogadores irem a campo defender as cores de seus uniformes devido a inevitáveis testagens positivas para o coronavírus durante o auge da crise; o conluio político que deu à luz a Medida Provisória 384, alterando os princípios concernentes aos direitos de transmissão das partidas com o campeonato em curso e gerando flagrante instabilidade jurídica; o desrespeito, por parte dos dirigentes da Gávea, às prescrições da mesma MP – exarada graças à defesa de seus interesses de ocasião, prontamente abandonados em seguida, junto ao Palácio do Planalto –, na medida em que lutaram para transmitir um Fla-Flu com mando de campo sorteado para o time das Laranjeiras, portanto detentor exclusivo da prerrogativa de veicular as imagens ao vivo segundo a tal normativa de tintas rubro-negras etc. Essas etapas, de todo modo, estão fartamente documentadas e são consabidas.
Quanto àquilo que se restringe às quatro linhas – que, por forças de ordem metafísica, é capaz de suspender o redor pelos minutos transcorridos até o apito derradeiro –, não seria difícil, por exemplo, elencar os inúmeros porquês de este Flamengo, apesar de seus dirigentes e mesmo jogando em intensidade abaixo da regular, seguir como o time a ser batido nos torneios que disputar – e isto independentemente da confirmada transferência de Jorge Jesus, mentor da fase de glórias vigente, para o Benfica. No que tange ao Fluminense, poder-se-ia elogiar a conduta digna do clube também dentro de campo, pois, embora tecnicamente inferior ao arquirrival, ele se manteve vivo na disputa ao longo dos últimos três clássicos, logrando inclusive suplantar o forte adversário na disputa pela Taça Rio. Ou seria cabível observar que, ao tricolor, faltam sem dúvida contundência no arremate – o time segue precisando criar ao menos três boas chances de gol para converter uma, aproveitamento fatalmente comprometedor diante de um oponente mais qualificado – e segurança nas laterais (Gilberto cometeu erro crasso de posicionamento e marcação no gol marcado por Pedro no primeiro jogo da final; Egídio, por sua vez, arriscou um bote incompreensível sobre Gabigol no lance que resultou na virada rubro-negra naquele confronto e, ademais, falhou na saída de bola que acarretou o último tento do torneio). O que acabou por contaminar a escrita, entretanto, foi um sentimento mais amargo do que qualquer justa derrota esportiva, e anterior a toda análise focada em aspectos menores neste momento.
Que os cartolas brasileiros foram e são historicamente incapazes de conceber o futebol nacional em sua dimensão coletiva, na qual cada clube necessariamente depende da grandeza dos outros, é algo notório desde que dedico boa parte da vida a torcer numa arquibancada. Que as paixões particulares por nossos clubes não raro tendem a estabelecer leituras parciais e demasiadamente interessadas também não equivale a nenhuma novidade. Entretanto, que o futebol sirva como instrumento político vil até mesmo durante a mais grave crise sanitária desde a gripe espanhola de 1918 é fenômeno que, se não chega a surpreender, tampouco deixa de abalar ainda mais as convicções em relação ao caráter potencialmente socializante da bola por aqui. Em vez de arena comunitária capaz de congregar diferenças na dor, nem que seja por ensaiada condolência, hoje o esporte sucumbe diante de um cenário em que a morte se fortalece como capital político. No lugar da cultura que alumia, emerge só a pura indústria que massacra simulando afagos.
Estádios, bem o sabemos, constituem um microcosmo da sociedade em que estamos inseridos. Por algum tempo, haverão de permanecer vazios. Apesar disso, o temor no Brasil não surge exatamente pela ausência de torcedores nas arenas do novo século: o verdadeiro risco é o de que, à primeira oportunidade, elas se façam cheias, em mais uma experiência de entretenimento fúnebre. Desejo não faltou à Prefeitura, que chegou a liberar momentaneamente a presença de público em partidas oficiais. Tal cenário nos conduz à pergunta que serve como epítome destes tempos: e daí? Para os responsáveis pelo desfecho do Campeonato Carioca de 2020, concordar com a sentença de Sacchi afinal pode ser bem simples: basta que, entre as ditas coisas menos importantes da existência humana, possamos elencar o respeito à saúde e à vida, estes valores fora de moda, bem abaixo do futebol – enfim convertido em útil ferramenta a ser submetida à verdadeira senhora de todos nós, a importância das importâncias!: a fria lei do cifrão. Ao fim e ao cabo, vá lá, o desenlace teve sua dose de coerência: angariou a taça o clube cuja direção fez de tudo para merecê-la – ainda que para isso tenha precisado abrir mão da moralidade. Que a recompensa lhe caia bem.
Um dos assuntos mais comentados durante o período de quarentena pelos amantes e profissionais do esporte ao redor do mundo era a volta do futebol. Nos países da Europa o assunto foi tratado com cautela e responsabilidade, tendo as competições voltado apenas setenta dias após o pico da pandemia. Aqui no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, a modalidade retornou com fortes contornos políticos e econômicos, demarcando claros jogos de poder. Um dos pilares do apressado retorno foi um clube que figura entre os mais populares e, sem dúvidas, o mais rico do país: o Flamengo.
Não é de hoje que futebol e política caminham lado a lado. Um dos marcos dessa relação é a Copa de 70, na década denominada pelo cineasta Silvio Tendler como “trágica”, pois vivenciava-se o auge da Ditadura. Cinquenta anos depois, volta-se a flertar com o golpe militar no Brasil e o futebol continua a ser usado como símbolo político. Em um ano marcado por um presidente que nega a pandemia, um governador mais preocupado com o impeachment e um prefeito que tenta a reeleição, o esporte mais popular do país surge como um elemento que poderia salvar essa equação de um resultado negativo.
Os encontros, cada vez mais frequentes, entre o presidente do Flamengo com o presidente do Brasil, mostram os jogos políticos e de poder bem marcados no futebol. As inúmeras vezes em que Bolsonaro já apareceu com a camisa do Flamengo, ou que o clube foi usado como forma de popularizar o governo, quando, por exemplo, Moro vestiu o “manto sagrado” três dias após o vazamento de mensagens que colocavam em xeque a imparcialidade do ex-juiz na Lava Jato, põem também em xeque a suposta postura apolítica que o clube alega ter.
lance.com.br
É interessante notar a transformação política e imagética que o Flamengo sofreu ao longo dos anos. Tradicionalmente conhecido como um “clube das massas”, o Flamengo hoje é um típico time da elite. Além dos ingressos a preços altíssimos, a comunicação do clube com seu torcedor mais fiel é marcada por falhas. No ano passado, após a sede do clube ser pichada por torcedores, um dirigente do Flamengo questionou: “Do jeito que foi escrito, Mickey todo certinho, não foi a torcida”. Outro episódio foi o veto à famosa expressão “festa na favela”, com a alegação de que favela é “algo associado à violência”.
Assim, o Flamengo guarda cada vez mais semelhanças com os personagens “Enrico” e “Rico” do livro A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett. Com uma curiosa peculiaridade: o Flamengo representa os dois personagens. Enrico, o homem que retrata a massa, mas que almejava um futuro melhor para o seu filho. Rico, o filho que ascendeu socialmente, mas sente vergonha da origem do pai. Duas faces de um mesmo personagem, que alterna entre uma e outra quando lhe convém. O Flamengo herdado por Rodolfo Landim, fruto de uma gestão que proporcionou que o clube tivesse o poderio financeiro que possui hoje, não quer mais sua imagem associada ao que não lhe garanta um status elevado. Ao mesmo tempo, usa dessa fidelidade das massas para continuar com o posto de time mais querido do Brasil.
Posto esse, aliás, ratificado com a conquista da Taça Libertadores da América de 2019 quando levou milhares de apaixonados às ruas do centro do Rio de Janeiro. O ano, porém, começou de modo mais melancólico, com o incêndio dos “meninos do Ninho”. Em um intervalo de onze meses, o Flamengo foi capaz de fazer sua nação chorar e sorrir com a mesma intensidade. O assunto foi conduzido de maneira muito mais burocrática e rígida do que é a postura do time em campo. Devemos reconhecer, por outro lado, a coerência com a postural atual da diretoria. Mais de um ano depois dessa tragédia, os jogos políticos e de poder reaparecem na pressão política pela volta do futebol em um estado que ainda consta com um alto número de mortes.
Essas duas situações guardam mais similaridades quando analisamos que, na época do incêndio, o Flamengo estava em negociação com o meia-atacante uruguaio De Arrascaeta, comprado por 80 milhões de reais pelo clube, que decidiu barganhar na justiça o valor da vida de meninos que foram entregues aos seus cuidados. Agora, no mesmo dia do retorno do Campeonato Carioca, com o jogo “Flamengo x Bangu”, foi editada, pelo presidente Jair Bolsonaro, uma medida provisória sobre os direitos de transmissão dos jogos. Enquanto morriam duas pessoas no hospital de campanha ao lado do estádio onde o time do Flamengo comemorava seus gols, o presidente do clube comemorava também essa outra vitória, já que, como o Flamengo não tem contrato com a Globo, seria o único clube imediatamente beneficiado.
Jornal de Brasília
A suspensão da divisão da premiação em dinheiro do Campeonato Brasileiro e da Libertadores com os funcionários foi outro evento que contrasta com a alegria que o time proporciona à torcida, gerando, inclusive, um mal estar dentro do clube. O acordo de 70% para os jogadores e 30% para os funcionários não foi aprovado por Landim. Um episódio que não ganhou muito espaço na mídia, mas que denota a clara transformação do Flamengo em um clube de modelo empresarial, comandado por gestores que se preocupam única e exclusivamente com o lucro. Escolha que leva o clube a ter um elenco milionário e, sem dúvida, o melhor do país, mas que o faz esquecer seu papel social – e talvez até sua essência.
O clube, que passou por um processo de democratização em 1988, na gestão do ex-presidente Márcio Braga, dando aos sócios o direito de votar nas eleições do clube – direito que antes era apenas restrito aos conselheiros -, hoje quer fazer valer apenas a sua própria voz no cenário nacional. Como Narciso, que de tanto admirar sua própria beleza, se afogou em sua própria imagem, o Flamengo ruma para um caminho semelhante. Com uma postura tão vaidosa, o clube parece não ter olhos para os outros, a não ser a si mesmo.
O clube não é o primeiro, e nem será o último, a se associar a um governo autoritário. Até hoje o Benfica, de Portugal, é marcado por suspeitas de favorecimento estatal na conquista de campeonatos durante a Ditadura de Salazar. Na Espanha, a história do Real Madrid guarda uma relação intrínseca com a Ditadura franquista, retratada no documentário “O Madrid Real. A lenda negra da glória branca”, de Carles Torras. A aproximação do Flamengo com um governo que é marcado por falas e atos dúbios, pode até trazer benefícios a curto prazo, mas certamente deixará uma marca na história do clube.
A cada dia o Flamengo apresenta à sociedade uma nova faceta. Consegue ser considerado arrogante, sem perder o título de “mais querido”; envergonha parcela da torcida, mas orgulha a maior parte dela com a conquista de títulos; surge como mau exemplo caçando brechas no decreto da prefeitura, mas tem jogadores que são modelos para milhares de crianças. Nesse transtorno de personalidade “multipolar”, fica a questão: quantos “Flamengos” o Flamengo tem?
Redes sociais recorrem ao jornalismo para criticar cobertura da imprensa. A final da Copa do Mundo da Fifa 2019, entre Liverpool x Flamengo, expôs uma curiosa, e interessante, disputa de narrativas entre o discurso, quase uníssono da imprensa, e o das mídias sociais. Embora marcado, também, pela (saudável) jocosidade das torcidas, as narrativas fora do… Continuar lendo Internet x imprensa: um jogo paralelo no Mundial de Clubes
Começa a temporada de disputa pelos campeonatos estaduais no Brasil e creio ser este um momento ainda mais oportuno para se falar das rivalidades clubísticas do nosso futebol e dos estereótipos que, entra ano e sai ano, seguem sustentando boa parte dos noticiários e transmissões esportivas de norte a sul do país. O velho embate… Continuar lendo Clássico é clássico e vice-versa?