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Allende, Lorde Killanin e os Jogos Pan-Americanos de 1975 em Santiago

Em 2017, a ODEPA[1] elegeu Santiago como sede dos XIX Jogos Pan-Americanos. Espera-se que a abertura dos jogos seja feita por Gabriel Boric, o atual Presidente socialista chileno, no dia 20 de outubro, 50 anos após o golpe de Estado e do cancelamento dos Jogos que iriam ser realizados no Chile em 1975 e que deveriam ter sido abertos pelo então presidente Salvador Allende, também socialista.

“Sóbrio, imponente, no nível dos congressos olímpicos”. Assim qualificou Carlos Guerrero, um experiente jornalista que trabalhou na revista chilena Estadio desde 1941 até 1981, no décimo segundo congresso da Organização Esportiva Pan-Americana (ODEPA), realizado de 29 a 31 de maio de 1973, em Santiago do Chile.

Presidente Salvador Allende e Sabino Aguad, em 1973.

A ocasião era importante para as lideranças esportivas e políticas do Chile, entre outros motivos, porque uma comissão avaliadora da ODEPA examinaria os preparativos dos VII Jogos Pan-Americanos de 1975 que seriam realizados na capital chilena. A presença do irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin pelo seu título de nobreza, realçou o congresso, mas aumentou a exigência sobre os seus responsáveis. Para além do seu desenvolvimento bem-sucedido, Killanin, que havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, percebeu em sua passagem pelo Chile a dificuldade mais urgente que enfrentavam os organizadores destes Jogos. Sua previsão sobre o evento, ligado ao futuro do governo do socialista Salvador Allende, seria bem-sucedida.

A ODEPA havia escolhido Santiago como sede dos Jogos em agosto de 1969, mais de um ano antes de Allende assumir a presidência. O democrata-cristão Eduardo Frei, seu antecessor, apoiou a candidatura santiaguina e ratificou seu apoio uma vez que Santiago foi escolhida. No entanto, os preparativos foram parcimoniosos. Por exemplo, somente em novembro de 1970, no mês da assunção de Allende, que o poder legislativo aprovou uma lei que destinava dinheiro “para cumprir os fins dos Jogos Pan-Americanos de 1975”.

No entanto, o trabalho também não foi consideravelmente acelerado no início da sua Presidência. Em abril de 1972, Allende “clamou para que sacudíssemos a inércia […] não só para cumprir o compromisso que devemos cumprir em relação aos Jogos Pan-Americanos de 1975, mas também pelo desenvolvimento das atividades esportivas nacionais”. Neste sentido, o chefe de Estado propôs estimular uma “revolução esportiva nacional” para que o esporte fosse considerado “um direito social” e anunciou a ação coordenada do governo para construir as obras necessárias para os Jogos.

Ao que parece, a paralisia foi ligeiramente abalada durante 1972, já que em sua Mensagem ao Congresso em 21 de maio do ano seguinte, a poucos dias da reunião da ODEPA em Santiago, Allende informou sobre a “iniciação de estudos para um vasto programa de obras que tem relação com os Jogos Pan-Americanos”.

Nesse sentido, Estadio explicou que “existiam dúvidas devido ao atraso nas edificações, a busca pelo dinheiro, o alistamento das equipes de obras e outras necessidades”. Ao mesmo tempo, declarou que, durante o congresso da ODEPA, a Comissão Organizadora dos Jogos (COJ) teria a oportunidade de esclarecer “o que temos feito e explicar como faremos o que falta”. A revista classificou Killanin como espectador privilegiado do processo de avaliação.

O presidente do COI, que aproveitou o convite ao congresso da ODEPA para realizar uma extensa turnê pela América Latina, chegou a Santiago em 28 de maio, depois de visitar o Brasil, o Uruguai e a Argentina. No dia seguinte assistiu à abertura. Allende, impossibilitado de comparecer, lhe enviou uma placa comemorativa por meio de José Tohá, ministro da Defesa e presidente honorário da COJ, que representou o governo. Tohá garantiu aos membros da ODEPA: “O esporte é uma necessidade e um direito na comunidade”. Assegurou também que as obras estariam prontas, prometendo: “O Chile cumprirá em 1975”.

Por sua vez, Sabino Aguad, presidente tanto da COJ quanto do Comitê Olímpico Chileno (COCH), bem como diretor geral de Esportes e Lazer do governo, disse que uma das características que deveria distinguir os Jogos era a de “um esforço coletivo para promover no país um maior desenvolvimento da educação física e do desporto”.

Depois de visitar as instalações esportivas para os Jogos e de receber a relação de Pedro Ramírez Vázquez, presidente do Comitê Olímpico Mexicano e membro do COI, a cargo da comissão avaliadora, a ODEPA confirmou Santiago como sede dos Jogos. “Se teve fé – escreveu Guerrero – em que tudo estará pronto a tempo, mesmo com o atraso que é visível neste momento”.

Este otimismo era parcialmente compartilhado por Killanin. Em um informe de agosto, ele ressaltou a cooperação entre o governo e as instituições esportivas chilenas. Killanin exemplificou com o caso de Aguad. O relatório também ressaltava que havia dúvidas consideráveis sobre a capacidade de Santiago para organizar os Jogos devido à situação política chilena.

Killanin disse ter feito averiguações discretamente que o levaram a crer que não haveria problemas enquanto o governo de Allende “se mantenha unido e estes jogos unam o povo de Santiago”. No entanto, acrescentou: “Claro que existe o risco de um movimento contrário ao governo, caso em que a situação pode mudar”. A respeito disso, comentaram a Killanin  um fato que achou digno de ser incluído no relatório: durante o segundo jogo da final da Copa Libertadores entre Colo-Colo e Independente da Argentina, jogado na noite do primeiro dia do congresso da ODEPA no Estádio Nacional de Santiago, Allende foi assobiado e vaiado quando apareceu na tribuna presidencial.

Ao concluir o congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Poucas semanas após o seu regresso ao Reino Unido, em 29 de junho, Allende sofreu uma tentativa sangrenta de golpe de Estado chamado Tancazo. Embora sufocado, o levante aprofundou um quadro complexo.

Ainda assim, a COJ continuou o seu trabalho e o governo promoveu um projeto de lei estabelecendo normas relativas aos Jogos. Menos de três meses depois, em 11 de setembro, Allende foi finalmente deposto por outro golpe sangrento de Estado que instalou uma junta militar de governo liderada por Augusto Pinochet, dando início a uma ditadura sangrenta que se prolongaria até 1990.

No dia 1º de outubro, menos de três semanas após a derrubada de Allende, os militares do governo receberam Aguad, que expôs os preparativos para os Jogos, e decidiram cancelá-los devido à “situação econômica crítica que o país vive”. Apesar disso, autorizou o “adiamento” para 1977. Ironicamente, a reunião teve lugar no mesmo edifício (UNCTAD III) no qual tinha sido inaugurado o congresso da ODEPA, que a partir do golpe de Estado passou a ser a sede da Junta de Governo.

No final de outubro, o venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, visitou membros do poder ditatorial nesse edifício junto a diretores do COCH e da COJ. Ele apresentou a possibilidade de organizar os Jogos em Santiago ainda em 1975 e apontou soluções para reduzir seus custos. A Junta Militar se comprometeu a dar uma resposta definitiva em 48 horas. Beracasa declarou: “Serão jogos mais modestos, mas serão feitos no Chile se o Governo o autorizar”. A Junta não o fez, materializando o risco que tinha mencionado Killanin. Os Jogos foram transferidos para a Cidade do México.

Em 2017, a ODEPA escolheu Santiago como sede dos XIX Jogos Pan-Americanos. Espera-se que sejam abertos por Gabriel Boric, o atual Presidente socialista, em 20 de outubro deste ano, 50 anos após o  golpe de Estado e daquele cancelamento.

Texto originalmente publicado em eldesconcierto.cl no dia 29 de março de 2023.

Tradução por: Júlio Barcellos

Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.


[1]Organização Desportiva Pan-Americana.

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Há cinquenta anos, uma frustrada visita olímpica

Lorde Killanin no décimo segundo congresso da ODEPA (no centro com a cabeça baixa). Estádio (Santiago de Chile), 5 de junho de 1973.

“Conheço pouco do esporte latino-americano e vim mais para ouvir e aprender”, assegurou o irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin por seu título de nobreza, em uma coletiva de imprensa durante o décimo segundo congresso da Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA), organizado de 29 a 31 de maio de 1973 em Santiago do Chile. Killanin havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, e aproveitou o convite para realizar uma extensa turnê pela América Latina, que incluía uma breve estadia na Argentina. Essa experiência, frustrada, constituiu a primeira visita de um presidente do COI em exercício ao país.

A turnê de Killanin, bem como sua ascensão à presidência do COI, tinham gerado grande expectativa no esporte regional. Ao contrário do seu antecessor, o americano Avery Brundage, a quem considerava um autocrata, Killanin era visto como um reformista. De fato, formalizou a estrutura tripartida do movimento olímpico, em que o COI, os comitês olímpicos nacionais e as federações desportivas internacionais trabalham em cooperação. Nesse sentido, antes de sua chegada ao Brasil em 21 de maio, o jornal Folha de S. Paulo o descreveu como tendo “ideias revolucionárias”. Além disso, naqueles dias, Killanin era apresentado como inteligente e irônico, e segundo a revista chilena Stadium, era “bonachão, simples, espontâneo [sic] e de bom humor”. A revista cubana Bohemia publicaria tempos depois que com Killanin “o COI experimentou uma saudável injeção de novos ares”.

Killanin permaneceu no Brasil, reunindo-se com autoridades esportivas e políticas no Rio de Janeiro e em Brasília, até 25 de maio. Nesse dia chegou a Montevidéu e visitou vários funcionários, incluindo o vice-presidente do país, já que o presidente Juan María Bordaberry se encontrava em Buenos Aires para a posse de Héctor J. Cámpora, que havia sido eleito em 11 de março com 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. O venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, e Fernando Madero, presidente do Comitê Olímpico Argentino (COA), haviam viajado a Montevidéu para acompanhar Killanin. No dia seguinte teve uma agenda intensa, com atividades que começaram às 9:30 e só terminaram depois das 22:30.

O plano original era que Killanin visitasse Buenos Aires em 27 de maio e dormisse lá para viajar até Santiago no dia seguinte. No entanto, Madero, em contato com Buenos Aires, não achou conveniente que o presidente do COI se hospedasse em solo portenho, ainda que brevemente, a dois dias da posse de Cámpora. Os motivos não foram esclarecidos, mas em um relatório escrito em agosto, Killanin explicou: “Minha visita coincidia com a investidura do novo Presidente Peronista. Obviamente, não era muito recomendável de minha parte ir à Argentina, onde minha presença só daria problemas adicionais à polícia”. Segundo seu relato, em Montevidéu foi designada uma guarda com uma dúzia de polícias à paisana. O que teria conjecturado Madero diante da massiva mobilização do peronismo, proibido desde 1955, no dia da assunção presidencial e da posterior libertação dos presos políticos das prisões argentinas, que deram início ao período conhecido como “Primavera Camporista”?

Enfim, Killanin partiu para Santiago no dia 28 de maio pela manhã. Faria uma breve parada em Buenos Aires, onde chegaria às 10:30 para pegar um voo para a capital chilena proveniente do Rio de Janeiro, que sairia às 12:55. No aeroporto de Ezeiza, o esperavam Madero, Mario Negri, membro argentino do COI, com sua esposa e filho, e Otto Schmitt, secretário geral do COA, com sua esposa. No entanto, o que deveria ter sido uma curta espera acabou sendo uma “breve” estada de oito horas. O avião do Rio de Janeiro se atrasou. Killanin admitiu ter recebido um tratamento preferencial: tomaram-lhe o passaporte para evitar filas no controle migratório, mas a gentileza produziria outro atraso. De acordo com Killanin, talvez justificando a mudança no programa original, nesse dia houve “bastantes tiroteios” em Buenos Aires, e pensou que aqueles que o acompanhavam não iriam querer chegar tarde a seus lares. Disse-lhes para não esperarem pela sua partida e recebeu de volta o passaporte. Mais tarde, quando passou pelo controle migratório, lhe informaram que não podia sair do país, porque não havia entrado formalmente. Isso atrasou o voo pelo menos mais uma hora, até que um oficial de maior patente se apresentou para confirmar sua entrada ao país pela manhã e sua saída à tarde. Decolou por volta das 18:30.

Killanin pôs os pés em Santiago tarde da noite e foi imediatamente recepcionado pelo prefeito da cidade. Pela manhã, assistiu à inauguração do congresso da ODEPA. Em seu relatório, ressaltou que Salvador Allende, o presidente chileno, impossibilitado de comparecer ao evento, lhe havia enviado uma placa comemorativa. Allende tinha estado em Buenos Aires para a posse de Cámpora e assistiu a um jogo de futebol entre Racing e Boca Juniors, no dia 27 de maio, junto do novo chefe de Estado argentino e com Osvaldo Dorticós, o presidente cubano. Ou seja, no dia em que Killanin deveria ter visitado Buenos Aires, aqueles três presidentes estavam em um estádio de futebol lotado por uma multidão, que os saudava. Enquanto isso, Beracasa preparava seu discurso no Congresso da ODEPA. Proferiria estas palavras, que certamente teriam sido do agrado de Cámpora, Allende e Dorticós: “A América é livre como quiseram seus pais, e é por isso que dentro do marco esportivo da Organização Pan-Americana não devem existir pressões nascidas de pequenos interesses ou de inconfessáveis atitudes antidesportivas”.

Ao fim do congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Na capital mexicana declarou: “Conheço os jovens; quando fui, quis revolucionar o mundo” e se promulgou “a favor de modificar os Jogos (Olímpicos)”. Na Argentina, seu espírito renovador só chegou ao aeroporto. Monique Berlioux, diretora-geral do COI, pediu a Negri que lhe enviasse recortes de jornais sobre a estada de Killanin no país, mas, com a mudança de data, a imprensa não havia sequer aparecido. Lamentando a situação, Negri resumiu o ocorrido: “Lorde Killanin não visitou Buenos Aires, por outro lado conheceu muito bem o aeroporto de Ezeiza (sic!)”. Enquanto Killanin permanecia nesse aeroporto, a sociedade mobilizada continuava festejando o fim da ditadura que havia governado a Argentina desde 1966. De qualquer forma, a “Primavera Camporista” ou que a América fosse livre ou subjugada, não teria feito diferença para Killanin. Em 1974, o movimento olímpico acolheu “ditaduras de esquerda e de direita, monarquias e repúblicas”. Para Killanin, ele estava acima dessas diferenças e unia todos os povos. Sua renovação não incluía esse aspecto do ideário olímpico”.

Texto originalmente publicado em relatores.com no dia 6 de março de 2023.

Tradução por: Júlio Barcellos.

Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.

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As delegações olímpicas, a carne e a identidade nacional argentina

Depois de quase duas décadas de tentativas fracassadas, as elites argentinas conseguiram enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1924 em Paris. Rapidamente, as participações olímpicas argentinas se articularam, citando o antropólogo Eduardo Archetti, como “um espelho de onde se vê e é visto ao mesmo tempo”. Desta maneira, as andanças dos/as desportistas argentinos no estrangeiro construíam, disseminavam e afirmavam uma identidade nacional. Até meados dos anos cinquenta, a tipificação e a diferenciação nacional através das excursões olímpicas incluíram uma crescente relação com outro elemento central do sentimento coletivo de pertencimento argentino: a carne.

Dadas as dificuldades para estabelecer o Comitê Olímpico Argentino (COA) no ano anterior, a inexperiência da incipiente direção olímpica nacional e a estrutura dos Jogos Olímpicos, a conformação da delegação que viajou a Paris em 1924 esteve repleta de inconvenientes. Um destes ressaltaria, obliquamente, o papel da carne na vida nacional. Antes da partida à Europa, houve queixas porque o barco onde viajaram os esgrimistas e os remadores não contava com as acomodações necessárias para que chegassem em condições competitivas adequadas. Tratava-se de um barco frigorífico contratado por empresas do ramo “que deviam carregar seus porões com carnes congeladas”. O barco atrasou sua partida pelo processo de carga, embora o capitão tenha consentido instalar dois estandes de esgrima no convés e embarcar um aparato de treinamento de remo. Criticando o COA por sua falta de planejamento, Román López, presidente da Federação Argentina de Esgrima, manifestou: “Para viajar em um barco como o ‘Vasari’ é necessário ser um verdadeiro patriota”. Esse barco transportou, inesperadamente, duas marcas identitárias da nação argentina: desportistas e carne. 

Publicidade do Vasari (The Review of the River Plate, 10 de outubro de 1919, p. 952).
Vista do Vasari (Bulletin of the International Union of American Republics, junho de 1909, p. 1018).

A Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA), instituição que substituiu o COA em 1927, também teve sérios inconvenientes, principalmente econômicos, para enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã. Uma vez ali, a alimentação holandesa foi percebida como um obstáculo para a correta aclimatação dos desportistas. O capitão da equipe de luta declarou que os lutadores deveriam “acostumar seu organismo a mudança de alimentação, que entre parênteses não era grande coisa, em termos de variação e seu sabor, apesar de ser saudável”. Acrescentou: “Só o grande apetite que despertava o treinamento, fazia com que se ingerisse esta comida deficiente e monótona a que não está acostumada a maioria dos nossos atletas”. Ou seja, a delegação sentia saudades da comida “crioula” e possivelmente da carne, aspecto que a CADCOA tentaria corrigir no futuro.

Treinamento no convés de parte da delegação para os Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã (Federico Dickens, Manual técnico de atletismo, 1946, sp).

Apesar da CADCOA ter lidado com numerosos problemas administrativos, econômicos e de condução relacionados à delegação nos Jogos Olímpicos de 1932 em Los Angeles, a alimentação não foi um deles. De fato, os desportistas parecem ter estado satisfeitos a respeito. Por exemplo, poucos dias antes que Juan Carlos Zabala ganhasse a medalha de ouro na maratona, Alejandro Stirling, seu treinador austríaco radicado na Argentina desde 1922, explicou que seu pupilo “come com grande apetite dois bifes no almoço e dois na janta” e que, além de treinar, lia e escutava discos “que lhe recordam a pátria distante”. O fulgurante triunfo do “nandú crioulo”, o apelido com que a crítica havia batizado Zabala, foi utilizado pela imprensa dominante para gerar imagens identitárias nacionais. Uma semana depois de ter ganhado a maratona, a delegação japonesa ofereceu uma festa em sua honra durante a qual lhe perguntaram por seu regime de treinamento e de alimentação. É de se supor que ressaltou os benefícios dos quatro bifes diários. 

Para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, a CADCOA, que havia ignorado a intenção argentina de boicotar o evento organizado pela Alemanha nazista, implementou medidas para que toda a delegação tivesse “carne na quantidade e da qualidade a que estavam habituados os atletas”. Por um lado, a CADCOA argumentou que a carne favorecia o rendimento esportivo. Por outro, afirmou que “constitui a base da alimentação de nossos desportistas”. É que a carne, como diria mais de cinco décadas depois o escritor Juan José Saer, “não é unicamente o alimento base dos argentinos, mas o núcleo de sua mitologia e inclusive de sua mística”. Em Berlim, esporte e carne sincretizaram a nação argentina e seu imaginário. Considerando “o sério inconveniente que supunha a insegurança de encontrar durante a viagem e na estadia na Alemanha” o precioso e significativo alimento, a CADCOA conseguiu que a Junta Nacional de Carnes, um órgão criado em 1933 para regular o mercado em questão, doasse quinze toneladas de carne. O regime alimentício da delegação recomendava entre 250 e 350 gramas de carne diários. De todas as maneiras, o maratonista Luis Oliva consumia 500 gramas de carne diários, “preferentemente assada”, aludindo, como assinalou o antropólogo Jeff Tobin, a “comida mais fortemente associada ao nacionalismo argentino”.

A CADCOA inclusive enviou um cozinheiro a Berlim, Arnoldo Damm. Graças a sua “arte culinária crioula”, na Vila Olímpica “qualquer um logo e gostosamente se esquece da cozinha alemã”.  Damm conseguiu que ali “se respirasse um ambiente do país alegre e confiante, sempre menos pesado e rígido que o ambiente germânico”. A dieta da delegação servia para afirmar o nacional e diferenciar-se do outro significante. Em uma “significativa cerimônia” ao terminar os Jogos Olímpicos, Alberto León, presidente da delegação, entregou 300 quintais de carne às autoridades municipais berlinenses para que se distribuíssem em hospitais e sociedades de beneficência. Essa carne, destacou León, “testemunha a amizade germano-argentina e a gratidão da Argentina pela acolhida que teve sua delegação”. Segundo a CADCOA, “o gesto foi elogiosamente comentado pelas autoridades e diários berlinenses”.

Membros da delegação para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim no refeitório nacional (La Nación, 21 de julho de 1936, p. 12).

Após a interrupção pela Segunda Guerra Mundial, os Jogos Olímpicos voltaram a ser organizados em 1948 em Londres. A CADCOA enviou uma numerosa delegação, bancada pelo governo de Juan Domingo Perón. Ao se despedir do grupo, Perón pronunciou: “É uma imensa satisfação que o Governo teve ao apoiar este tipo de manifestação, e é somente o início desse apoio que temos de levar até limites que muitos não imaginavam ainda”. Também acrescentou: “Para o futuro, procuraremos organizar melhor essas viagens, para que os atletas argentinos cumpram sua missão com o mínimo de sacrifício e o máximo de proveito”. A delegação enviada a Londres contou com uma remessa de carne própria, visibilizada além das fronteiras argentinas. Assim, no Chile se perguntaram se o rendimento nacional teria sido tão destacado “se a equipe não tivesse levado toneladas de carne”. Além de seu efeito no rendimento esportivo, a carne foi utilizada para festejar as conquistas em Londres. De acordo com o Noticias Gráficas, Delfo Cabrera celebrou sua medalha de ouro na maratona com um “assado a la criolla, sobre a grama de um parque jamais pisado pelo mais insignificante piquenique”, que surpreendeu aos “fleumáticos ingleses”.

Quatro anos mais tarde, quando Perón se despediu dos/as desportistas rumo aos Jogos Olímpicos de Helsinki, declarou que para esse tipo de evento era conveniente transportar “um pedaço da República ao lugar onde se realizam [os Jogos]”. Dessa maneira, a delegação teria todo o necessário para render plenamente. Por isso, Perón achou “oportuno mandar um barco, como fazemos, para que essa seja nossa casa, onde haja carne argentina, comida argentina, e água argentina; sabemos que isso não nos faz mal e, se não é a melhor, é boa”. Perón acreditava que um regime alimentício baseado na carne não era “científico”. Entretanto, sua abundância na delegação manifestava a Nova Argentina, na qual o crescente poder aquisitivo fomentava o consumo de carne e o esporte era promovido em todos os seus níveis como nunca antes e nunca depois. 

Juan Domingo Perón subindo no barco que transportou a delegação para os Jogos Olímpicos de 1952 em Helsinki (Mundo Deportivo, 19 de junho de 1952, p. 22).

Em parte devido às mudanças estruturais nos Jogos Olímpicos, que requeriam aos/às participantes residir na Vila Olímpica durante o evento, a partir do golpe de Estado que derrubou Perón em 1955, as delegações deixaram de projetar uma marcada relação com a carne, que sintetizou a identidade nacional. Não obstante, essa relação permanece. Por exemplo, dias antes do começo dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim, o COA, instituição que substituiu a CADCOA em 1956, ofereceu um churrasco aos/às desportistas “para demonstrar que estão com as forças necessárias para fazer um bom papel na China”. Por uma ou outra via, as delegações e a carne continuam condensadas, com maior ou menor força, naquilo que se imaginava como meio que tipifica e que diferencia a identidade nacional. 

Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 17 de setembro de 2022.

Tradução por: Júlio César Barcellos.

Revisão por: Leda Costa e Carol Fontenelle.

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Perón, o esporte e os Jogos Olímpicos de 1956

Plano da Vila Olímpica para a candidatura dos Jogos Olímpicos de Buenos Aires 1956. Imagem: Cortesia do Arquivo COI

É sabido que durante a primeira presidência de Juan Domingo Perón (1946-1955) foi implementada uma gestão estatal inédita e incomparável na história argentina que promoveu e desenvolveu o esporte em todos os seus níveis e modalidades. Para Perón, o esporte era uma tecnologia social capaz de moldar e fortalecer sua “Nova Argentina”, baseada no apotegma “justiça social, soberania política e independência econômica”, e de difundi-la no exterior. Um dos meios preferidos para atingir o último objetivo, enquadrado no que mais tarde seria chamado de “diplomacia cultural”, era a participação em eventos esportivos internacionais e a organização deles na Argentina.

Nesse contexto, em 20 de janeiro de 1948, a Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA) informou ao Comitê Olímpico Internacional (COI) que Buenos Aires solicitava a organização dos Jogos Olímpicos de 1956. Nesse mesmo mês, uma carta do CADCOA fundamentava o “justo pedido” explicando que a eleição de Buenos Aires “satisfará as legítimas aspirações do governo do Exmo. Senhor Presidente, General Juan D. Perón, e dos atletas do continente” e que este [o governo de Perón] “comprometeu formalmente (…) toda a cooperação moral e material que a organização requer”. Além disso, o CADCOA assegurou que o governo estava terminando os estudos para a construção de um “grande estádio nacional com uma ‘Vila Olímpica'”, que seria o epicentro do evento.

Concluídos esses estudos, o CADCOA reiterou ao COI no início de 1949 “o propósito do Governo Superior da Nação, de construir um complexo olímpico com a Vila correspondente”. O local escolhido foram os quadrantes noroeste e sudoeste do cruzamento da Avenida Gral. Paz e Autopista Gral. Ricchieri. A eleição, que não está articulada nos documentos consultados relativos a esta candidatura olímpica, pode ser entendida como parte do que Anahí Ballent chama de operação territorial de Ezeiza, um projeto urbano “de notável magnitude no setor sudoeste da Grande Buenos Aires (que incluía) a arborização da área, novas vias de comunicação, conjuntos habitacionais e instalações esportivas, assistenciais, educativas e de saúde”. E, claro, o aeroporto internacional, inaugurado nesse mesmo ano. Dessa forma, articulando modernização técnica e social, Ezeiza constituía, também segundo Ballent, “uma espécie de cenário ideal para a política (peronista) onde a implantação de sonhos e projetos conseguiu configurar um novo espaço urbano-territorial”, que por um breve período incluiu o conjunto olímpico planejado.

Dessa forma, as delegações dos diversos países chegariam ao aeroporto internacional, o que criou “uma nova frente (e entrada) para a cidade”, e se deslocariam rapidamente por uma moderna rodovia até o complexo olímpico, que as abrigaria durante sua estada no país enquanto começava sua familiarização com as conquistas e aspirações da “Nova Argentina” de Perón. Essa possibilidade foi abreviada em abril de 1949 quando o COI escolheu Melbourne, em vez de Buenos Aires, para sediar os Jogos Olímpicos de 1956. O voto que determinou essa escolha foi, e ainda é, o mais próximo (21 votos a 20) para uma sede olímpica da história do COI. O CADCOA transformou a derrota em vitória, afirmando: “essa diferença mínima (…) conforta o espírito e satisfaz plenamente os mais queridos desejos argentinos, por tudo o que significa para nossa Pátria e o esporte argentino”.

Após a fracassada candidatura de Buenos Aires aos Jogos Olímpicos de 1956, o peronismo abandonou o projeto do complexo olímpico no cruzamento da Avenida Gral. Paz e Autopista Gral. Ricchieri. No entanto, inaugurou uma “Vila Olímpica” a poucos quilômetros do aeroporto internacional, no cruzamento da Autopista Gral. Ricchieri e Ruta 205, onde se preparou e concentrou a equipe argentina que participaria dos primeiros Jogos Esportivos Pan-Americanos de 1951, com sede em Buenos Aires, um dos eventos esportivos internacionais organizados durante a década peronista. Comparada ao abortivo plano olímpico original, esta Vila Olímpica, que fazia parte das instalações esportivas da operação territorial de Ezeiza, empalideceu em tamanho e simbolismo.

Atualmente, no local escolhido para a construção do complexo olímpico, existem inúmeros conjuntos habitacionais do tipo que Alicia Novick caracteriza como um habitat precário e irregular e traçados urbanos mais formais e regulares, mas empobrecidos. Todos nos municípios de Villa Madero e Villa Celina, no município de La Matanza. O destino daquele lugar, incluindo o sonho olímpico e o complexo tecido urbano atual, surge como uma topografia histórica e nos convida a reconstruí-lo, bem como a reimaginar seu futuro. Talvez seja isso o que fazem muitas das pessoas que o habitam, tantas vezes discriminadas e estigmatizadas, quando nos fins de semana organizam partidas de futebol e vôlei na terra firme e seca do que teria sido o complexo olímpico concebido para os Jogos Olímpicos de 1956.

* Doutor em Filosofia e História do Esporte. Professor da State University of New York (Brockport).


Texto originalmente publicado pelo site Página12 no dia 21 de abril de 2022

Tradução: Caroline Rocha Ribeiro.

Revisão: Fausto Amaro.

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Pensar transmissões esportivas mais plurais

Reprodução: Internet

É bastante recorrente que sujeitos mais associados as lógicas conservadoras em nossa sociedade reiterem a afirmação, no mínimo equivocada, de que política e esportes não se misturam. O raciocínio que sustenta este tipo de argumento é o mesmo que afirma que não se pode discutir política nas escolas ou em outras instituições que deveriam, por sua natureza, ser “apolíticas”. Todos os conceitos normativos que ordenam os entendimentos nos esportes ou na escola, por exemplo, são resultado de disputas por significação que possuem um acordo extremamente pontual e limitado que nos permitem ler os entendimentos que possuem status de senso comum. Negar a participação e a disputa política nesse espaço é um esforço para naturalizar esses acordos tirando os de seu espaço de construído politicamente para transformá-los em conceitos naturalizados.

Desde a década de 1980, talvez mais explicitamente a partir da hegemonia das democracias representativas burguesas, os movimentos de política identitária têm ganhado destaque nas formas de organização das diferentes militâncias. Nas próximas linhas pretendo problematizar algumas das formas com que essa política identitária tem aparecido nas transmissões esportivas. Como as emissoras têm utilizado algumas identidades e de que maneira a representatividade já começa a produzir efeitos nestes espaços.

Com um ano de atraso os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020 foram realizados em Tóquio, mesmo que sem público. É lugar comum nas transmissões dos megaeventos esportivos a contratação de comentaristas especializados, quase sempre atletas ou ex-atletas, para ajudarem na transmissão esportiva, podendo estabelecer alguma informação mais qualificada de alguma modalidade ou traduzir para um público leigo ou para os jornalistas algum vocabulário específico dos praticantes. Para a transmissão dos Jogos Paralímpicos, dentro dessa perspectiva, foram convocados e convocadas paratletas e ex-paratletas que teriam essa função. Verônica Hipólito extrapolou, e muito, o que se espera desses comentaristas. A paratleta, medalhista no Rio em 2016, mostrou um conhecimento sobre os participantes e as modalidades que causaram fortíssimo constrangimento entre comentaristas consagrados que insistentemente repetem lugares comuns e indicam que uma equipe poderia melhorar seu desempenho a partir da entrada de um atleta lesionado… Minha impressão neste caso é de telespectador e me faltam elementos técnicos que atravessam as decisões das direções das emissoras, mas Verônica subiu a vara de qualidade das transmissões. É inaceitável que os demais comentaristas não estudem como ela e, o mais importante para meu argumento, é inaceitável que ela comente apenas jogos paralímpicos. Verônica foi brilhante por ter realizado um trabalho jornalístico de excelência, não por ser paratleta. Isso não é a exaltação da meritocracia, mas uma reclamação pela falta de estudo de outros profissionais com espaços midiáticos muito maiores.

Não são apenas paratletas que são chamados para comentar o paradesporto. Quando eclodem casos de racismo ou machismo, pessoas negras e mulheres são chamadas para opinar. Alguns dos especialistas convidados falam somente destes conteúdos. Isto gera um problema duplo. A partir dos processos de políticas identitárias se transformam sujeitos marcados como pertencentes as “minorias” como identitários enquanto outros não teriam identidade. Ou seja, as mulheres falariam de problemas de mulheres, mas os homens não falam dos problemas dos homens, falam da humanidade, falam de tudo. E aí aparece o segundo problema: eles falam de tudo, mas nesse tudo não se incluem violências contra essas chamadas “minorias”. Neste caso, essas violências não são um problema da humanidade, mas acabam sendo reportados como problemas identitários ou, o que seria ainda pior, problemas de identidade. O muito utilizado e pouco estudado conceito de “lugar de fala” reporta justamente essa dificuldade de quem está e de quem não está autorizado a falar sobre qual assunto.

As comentaristas mulheres no futebol jogado por homens trabalham com uma lógica inclusiva distinta. Ali elas estão autorizadas a falar sobre futebol, sem gênero. Mulheres, da mesma forma que os homens, são capazes de falar sobre qualquer assunto para os quais tenham se preparado. O mesmo vale para pessoas negras que possuem capacidade de discorrer sobre qualquer assunto para o qual estudaram e não somente para relatar suas vivências. Então não faria diferença se quem comenta é homem ou mulher, branco ou negro? Sim, segue fazendo diferença. A presença das mulheres obriga a um esforço reflexivo maior dos homens (ao menos deveria exigir). Machismo travestido em piadas começam a ser menos oportunos. Nosso chamado país do futebol por muito tempo excluiu as mulheres. Quando elas entram seja no campo, nos microfones e até na direção do futebol de mulheres da CBF (conduzidas graças a luta das mulheres no mandato de um presidente afastado por acusação de assédio sexual), inevitavelmente elas apresentam novas pautas. E isso fará o país do futebol ser mais país do futebol. Um país que exclui as mulheres não é um país. Quando muito é a metade de um país. Acredito que se tivéssemos mais mulheres ou homens não brancos em nossas transmissões esportivas ou mesas redondas, seria mais difícil ouvir ridículos argumentos que associam o mal desempenho esportivo com o esforço estético para a manutenção de um penteado afro.

É a partir da ampliação da participação de diferentes sujeitos atravessados por diferentes marcadores identitários com o aumento de representatividade que poderemos colocar a disputa política no centro dos nossos esportes e das nossas transmissões esportivas. É lugar comum (em alguns lugares de forma equivocada) entender que os esportes em geral e, no caso sul-americano, o futebol em específico, como microcosmos ou espelho da sociedade (eu sigo preferindo pensá-lo como integrado com). Ampliarmos a participação de atores e desnaturalizarmos a posição normativa dos homens cisgênero brancos, heterossexuais é ampliar a democracia. Poderia ser um catalisador para qualificarmos as discussões desses mesmos problemas em outros espaços de nossa cultura.

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E se a estreia do surfe nas Olimpíadas fosse numa piscina de ondas

Jonne Roriz/COB

A jornada até a estreia do surfe nos jogos olímpicos foi longa e durou mais de um século se considerarmos que o havaiano, tricampeão olímpico de natação, Duke Kahanamoku pleiteou a entrada do surfe nos jogos de Estocolmo, em 1912 (STACHEVSKI, 2020). Desde aquela época até 2021 muito se especulou sobre o ingresso do surfe nos jogos, e paralelamente muita coisa mudou dentro do esporte, mas é inegável que mídia teve um papel preponderante ao pavimentar esse caminho até a praia de Tsurigasaki, no Japão, já que cristalizou boa parte dos valores que hoje fazem parte do imaginário em torno do esporte, como a ligação com a natureza e a juventude[1] (FORD e BROWN, 2006), assim como provavelmente tornou o esporte mais atraente para o Comitê Olímpico Internacional (COI) ao torná-lo mais popular e expandir o tamanho da audiência no mundo ao longo do tempo. Estima-se que existam hoje 40 milhões de surfistas ativos e mais de 370 milhões de pessoas em todo o mundo interessadas no esporte[2].

O time brasileiro, composto por Gabriel Medina, Ítalo Ferreira, Silvana Lima e Tati Weston Webb, confirmou o favoritismo com a vitória do atual campeão mundial, Ítalo Ferreira, que conquistou o primeiro ouro do Brasil em Tóquio e fez história ao ser o primeiro medalhista olímpico de ouro na modalidade [3]. No total participaram 40 surfistas, 20 homens e 20 mulheres, de 18 países: Argentina, Austrália, Brasil, Chile, Costa Rica, Equador, França, Alemanha, Indonésia, Israel, Itália, Japão, Marrocos, Nova Zelândia, Peru, Portugal, África do Sul e Estados Unidos. Uma pluralidade que incluiu nações sem tradição no esporte e que não é vista na principal liga de surfe mundial, a World Surf League (WSL), que é historicamente dominada por Australianos, Americanos e Havaianos.

Mas a questão que gostaríamos de levantar neste artigo é sobre o palco onde ocorreram as disputas. Ao longo da trajetória do lobby para que o surfe figurasse entre os esportes olímpicos cogitou-se que seria fundamental ter a estrutura e a tecnologia das piscinas de ondas para que fosse possível a entrada do esporte nos jogos. Em um encontro entre o presidente da International Surfing Association (ISA), Fernando Aguerre, e o então presidente do COI, Jacques Rogge, em 2009, este último chegou a afirmar que sem as piscinas a probabilidade do surfe entrar no evento era muito baixa (STACHEVSKI, 2020, p. 52). A preocupação justificava-se em parte por conta da necessidade de praias com ondas nas cidades sede do evento, como Londres, Tóquio[4] e Paris, e a dependência das condições climáticas para a realização das competições.

Porém, o imbróglio da entrada tardia do surfe nos jogos olímpicos é anterior a este encontro e vem desde meados da década de 1960, como relata o autor Matt Warshaw (2005): “A história do namoro do surfe com COI é de esperança e decepção cíclicas[5] (WARSHAW, 2005, p.431 e 432)”. Em 1964, em um dos primeiros artigos sobre o tema, a revista Surfer publicou: “Não deve demorar muito para o surfe entrar no calendário olímpico[6]”; em 1977, na Surf Magazine, “as olimpíadas finalmente[7]”; e novamente na revista Surfer, em 1995, “o surfe dá o primeiro grande passo em direção às olimpíadas[8] (WARSHAW, 2005, p. 432)”.

Mas a candidatura do surfe só passou a ser considerada de fato após o COI ter reconhecido a ISA como principal instituição responsável pelo surfe mundial, e isso ocorreu em 1994, no primeiro ano de mandato do argentino Fernando Aguerre (STACHEVSKI, 2020, p. 38). Na época, Aguerre tinha a intenção de que o surfe entrasse nos jogos de Sydney, Austrália, em 2000, mas o esporte escolhido na época foi o vôlei de praia (WARSHAW, 2005, p.432), entretanto, o presidente da ISA continuou acreditando que era uma questão de tempo e já planejava a construção de uma piscina de ondas para fosse possível incluir o surfe nos jogos olímpicos de Atenas, Grécia, em 2004 (WARSHAW, 2005, p.432). Porém, a confirmação final só veio em agosto de 2016, no Rio de Janeiro, quando todos os membros do COI aceitaram a proposta das cinco indicações de esportes escolhidas pelo Comitê Olímpico Japonês (JOC – Japanese Olympic Comitee). Segundo Yoshiro Mori, presidente do comitê organizador, a escolha das candidaturas foi baseada em função da “popularidade dos esportes, seu acompanhamento entre jovens e o maior potencial para promover o espírito olímpico”, além da necessidade de construção de instalações esportivas adicionais.

Rafael Fortes (2020) aponta que a inclusão do surfe nos Jogos Olímpicos reacendeu o debate em torno da profissionalização do surfe e de sua adesão a formatos altamente esportivizados, comerciais e midiatizados. Alguns puristas, contrários à espetacularização do esporte, se mantiveram pessimistas durante a campanha antes da entrada do surfe nos jogos. O editor do Surfer’s Journal, Steve Pezman, escreveu: “o surfe não pode ser embalado e levado ao mercado sem perder seu caráter, espontaneidade e apelo[9] (WARSHAW, 2005, p.432).” Essa disputa simbólica sobre o significado do esporte e sobre uma experiência que seria mais autêntica (Martin Jay, 2009) gira em torno do profano versus o sagrado e da mercantilização de valores ligados à cultura do surfe, como destacam os autores Ford e Brown (2006):

Com a contracultura do final dos anos 1960, a tendência de “soul surf” enfatizou uma reinterpretação dos valores da espiritualidade, estética e a busca pela paz interior e autenticidade. Com o crescimento da popularidade do surfe e as oportunidades de negócios concomitantes, em congruência com o capitalismo tardio, os negócios empacotaram esses mesmos valores de autenticidade e distinção. Além disso, a midiatização do surf ampliou esses valores em uma disseminação cultural mais ampla[10] (FORD e BROWN, 2006, n.p.).

Apesar de uma janela de tempo de oito dias para a realização das provas, todas as baterias da disputa pelas primeiras medalhas olímpicas da história do surfe aconteceram de 25 a 27 de julho de 2021. As finais foram antecipadas por conta da chegada de um tufão que poderia impedir a realização das provas, de acordo com a intensidade que chegasse na costa japonesa. Essa imprevisibilidade da natureza é justamente a característica que alguns sufistas afirmam fazer do surfe o que ele é. A sua essência. Entre dezenas de opiniões, a do escritor sênior da revista Surfer, Sean Doherty, ilustra bem esse posicionamento:

Primeiramente, todos os esportes olímpicos estão ancorados em equidade e igualdade de condições. Entretanto, o oceano não oferece isso. Certamente a única maneira de o surf ser considerado um esporte olímpico é se ele fosse realizado em piscinas de ondas, e se fosse realizado em piscinas de ondas, então eu não consideraria surfar. Ademais, o fato de não haver duas ondas iguais é o que faz surfar, surfar. De tal forma que não foi projetado para ser justo. O oceano não é justo e, a menos que você seja Kelly[11], o oceano não dá a mínima para você.

Por outro lado, esse mesmo aspecto de incerteza da natureza é um agente que dificulta a midiatização do esporte. Pedro Guimarães e Rafael Fortes (2020), em um artigo sobre a transmissão dos campeonatos de surfe, enumeram alguns desses desafios: a escassez de infraestrutura tecnológica em lugares remotos, o caráter impreciso das condições climáticas (qualidade das ondas, que podem impedir a realização da etapa; neblina, que pode dificultar que os juízes enxerguem e julguem os atletas) e a imprevisibilidade de incidentes, como casos envolvendo tubarões (GUIMARÃES e FORTES, 2020, p. 63). Dessa forma, o formato previsível da disputa nas piscinas se adaptaria perfeitamente às demandas da televisão, assim como aconteceu com o baseball, o tênis e o próprio surfe (LASCH, 1983):  

Quando as redes de televisão descobriram o surfe, insistiram que os eventos fossem realizados de acordo com uma programação pré-estabelecida, independentemente das condições meteorológicas. Um surfista reclamou. “A televisão está destruindo nosso esporte. Os produtores de TV estão transformando um esporte e uma forma de arte em um circo (LASCH, 1983, p.140).

Talvez esse seja um dos principais motivos da WSL ter se tornado sócia da empresa de Kelly Slater em 2016, a Kelly Slater Wave Company, responsável pela piscina de ondas Surf Ranch, além da possibilidade de vender a tecnologia de geração de ondas artificiais para o COI realizar as disputas do surfe em jogos olímpicos futuros e o treinamento de atletas de alta performance. A própria da WSL tem uma etapa do circuito mundial na piscina, e de acordo com os critérios do primeiro evento realizado nesse cenário, cada atleta tinha três chances de surfar uma onda para esquerda e outra para direita, e em vez de um contra um, como na maior parte dos eventos no mar, os atletas caíram na água sozinhos e com hora marcada.

 Apesar das piscinas terem trazido novas perspectivas para o esporte, como novos formatos de disputas, possibilidade de treinamento facilitado pela repetição e testes de novos equipamentos, não há uma unanimidade mesmo entre os surfistas profissionais. O surfista brasileiro, bicampeão mundial, Gabriel Medina, disse em entrevista que é “a onda dos sonhos”. A surfista americana Bethany Hamilton também elogiou: “é um sonho. É incrível ver o que o homem está fazendo com a tecnologia e criando as próprias ondas”. Já o sul-africano Jordy Smith diz que a piscina é previsível e realmente “não é tão emocionante para os telespectadores depois de assistir o décimo surfista voltar para o tubo[12] por mais dez segundos. É o evento mais desinteressante da turnê.”

Durante as disputas das semifinais dos jogos olímpicos de Tóquio, o caráter subjetivo do julgamento do surfe ficou mais explícito. Gabriel Medina foi eliminado pelo japonês Kanoa Igarashi após ambos terem executado manobras semelhantes, porém a nota do adversário foi muito superior a de Medina. Se a competição fosse em uma piscina com ondas idênticas, talvez a avaliação dos juízes sobre a dificuldade que ambos tiveram na execução da manobra fosse menos discrepante. De qualquer forma, o surfe já está confirmado para os próximos jogos olímpicos de verão, que serão realizados em Paris, França. As disputas do surfe acontecerão no Tahiti, na polinésia francesa, nas ondas de Teahupoo, que normalmente apresentam condições mais desafiadoras e melhores para a execução de manobras.

Se depender dos números da audiência, o esporte também deverá ser confirmado para os jogos de 2028, em Los Angeles, já que segundo o COI, entre as modalidades estreantes, o surfe e o skate impulsionaram a audiência dos jogos, principalmente no Brasil. O acesso ao grande público deu uma projeção midiática além dos espectadores de nicho e isso fez com que os atletas do surfe aumentassem em até dezoito vezes o número de seguidores nas redes sociais em comparação ao período pré-olímpico. Em entrevista ao jornal Los Angeles Times, Kelly Slater foi perguntado se a sua piscina poderia ser utilizada para o surfe nos jogos olímpicos de 2028. Ele respondeu: “Eu não pensei nisso[13]”, mas acrescentou em seguida: “É algo que poderia ser feito[14]”. Será que ainda veremos um brasileiro ganhar uma medalha olímpica em uma piscina de ondas?


[1] “Filmes de praia / surfe de Hollywood, como Gidget (1959), trazem uma caricatura dos estilos de vida do surfe para um público mais amplo, enquanto The Endless Summer (1964) cristaliza a sensação e o sonho de surfar da perspectiva de “um insider”. Tradução nossa: “Hollywood beach/surf movies such as Gidget (1959) bring a caricature of surfing lifestyles to a wider audience, while The Endless Summer (1964) crystallizes the feel and dream of surfing from “an insider’s” perspective (FORD e BROWN, 2006, n.p.).”

[2] Tradução nossa: “There are 370 million people across the world interested in surfing and more than 40 million active surfers.” Disponível em: < https://www.worldsurfleague.com/posts/397536/ikea-and-world-surf-league-riding-a-wave-of-sustainability?isearch=true&scategory=article&gt;. Acesso em 22 ago. 2021.

[3] É interessante ressaltar que na WSL há uma subdivisão entre atletas dos Estados Unidos e atletas do Havaí. 

[4] A praia de Tsurigasaki, na cidade de Ichinomiya, costa do Pacífico da Província de Chiba fica a cerca de 100 km do Estádio Olímpico de Tóquio. Disponível em: <https://falauniversidades.com.br/tudo-sobre-a-estreia-do-surfe-nas-olimpiadas-2021/&gt;. Acesso em 22 ago. 2021.

[5] Tradução nossa: “The history of surfing’s courtship of the IOC is one of cyclical hope and disappointment”

[6] Tradução nossa: “it shouldn’t be long before surfing is entered on the Olympic calendar”

[7] Tradução nossa: “the olympics at last”

[8] Tradução nossa: “surfing takes its the first big step toward the Olympics”

[9] Tradução nossa: “surfing can’t be shrink-wrapped and taken to market without losing its character, spontaneity and appeal”

[10] Tradução nossa: “With the late 1960s counter-culture, the ‘soul surfing’ tendency emphasized a reinterpretation of the values of spirituality, aesthetics and the quest for inner peace and authenticity. With the growth of surfing’s popularity and concomitant business opportunity, in congruence with late capitalism, business packaged these very values of authenticity and distinctiveness. Furthermore the mediatization of surfing amplified these values in a wider cultural dissemination.”

[11] Kelly Slater, onze vezes campeão mundial de surfe.

[12] Manobra que consiste em permanecer dentro da onda. “Entubar”.

[13] Tradução nossa: “I didn’t think about that”

[14] Tradução nossa: “It’s something that could be done”.

Referências

FORD, Nick; BROWM, David. Surfing and social theory. New York: Routledge, 2006.

FORTES, Rafael. O Surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura. Rio de Janeiro: Apicuri, 2011.

GUIMARÃES, Pedro; FORTES, Rafael. A transmissão ao vivo de campeonatos de surfe pela internet: padrões televisivos, inovação e questões para a história do esporte. História: Questões & Debates. Curitiba v. 68, n. 37, p. 55-76 mês jul./dez. 2020

JAY, Martin. Cantos de Experiência: variaciones modernas sobre um tema universal. – 1ª ed. – Buenos Aires: Paidós, 2009.

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O torneio de futebol olímpico que merece ser lembrado: Los Angeles, 1984

Nos Jogos Olímpicos de 1984, realizados em Los Angeles, o torneio de futebol passou por uma mudança radical. Atletas profissionais passaram a ser admitidos. Até a Olimpíada anterior, apenas amadores podiam participar. Essa restrição havia sido decisiva para o sucesso dos países comunistas nos torneios de 1952 a 1980. Seus atletas, oficialmente, tinham outras profissões e praticavam o esporte como atividade de lazer, o que era uma falsidade (uma falsidade evidente e comentada às claras, aliás). Eram atletas, na realidade, que se dedicavam muito ao futebol. Estavam em nível comparável ao dos jogadores profissionais dos países capitalistas. E enfrentavam, nas Olimpíadas, seleções formadas por amadores (juniores, muitas vezes). Acontecia o que era óbvio. Hungria, União Soviética, Iugoslávia, Polônia, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia foram as seleções campeões olímpicas no período 1952-1980, sendo a Hungria campeã três vezes. Predomínio absoluto dos países que estavam à sombra do regime comunista sediado em Moscou.

Com a mudança de 1984, equipes da América do Sul, da Europa capitalista e até de outras regiões do planeta passariam a ter chances reais de êxito. Isso deveria despertar o interesse dos seus torcedores. Consequentemente, aumentaria o público que acompanhava as partidas nos estádios e, em especial, nas transmissões televisivas. A expectativa era de audiência alta e bons lucros. Um acordo entre o COI e a FIFA, então, extinguiu a distinção entre atletas amadores e profissionais no futebol olímpico. Para a FIFA, que defendia e promovia a expansão do profissionalismo no futebol, foi uma vitória de grande significado. Seu presidente, João Havelange, enfatizava a importância daquela mudança ao falar sobre o acordo com o COI.

Mas para que a hegemonia do futebol comunista não fosse substituída por uma outra hegemonia (a das poderosas seleções da CONMEBOL e da UEFA), criou-se uma outra restrição. Ficou estabelecido que as equipes vinculadas a essas duas entidades não poderiam ter jogadores que já tivessem disputado partidas da Copa do Mundo. Assim, países da África e da Ásia, por exemplo, ganhavam uma vantagem considerável, já que podiam escalar atletas profissionais e com experiência em partidas de Copa do Mundo ou de qualquer outra competição. A disputa, desse modo, ficava mais nivelada. Era necessário promover esse nivelamento para que o torneio fosse, de fato, atraente e mantivesse a audiência alta (algo que não acontecia nos torneios olímpicos de futebol).

Alemanha Oriental – Medalha de ouro em 1976

No Brasil, as novas regras não fizeram surgir maior interesse pelo futebol olímpico. Os torcedores continuaram mais interessados nos campeonatos estaduais do que na seleção que viajaria para os Estados Unidos. O torneio em Los Angeles era considerado uma disputa de importância inferior. Nem a CBF parecia muito atenta aos Jogos Olímpicos. Na primeira convocação dos atletas, foram chamados apenas amadores, como se a antiga restrição ainda existisse. Alguns dias depois, a Confederação divulgou uma outra lista: foi convocada uma seleção com 17 atletas, sendo onze jogadores titulares do Internacional (de Porto Alegre) e mais seis. O técnico, Jair Picerni, havia trabalhado em apenas três clubes paulistas: Ponte Preta, Internacional de Limeira e Santo André. Não era um currículo de peso. Aquela, afinal, era uma seleção que não tinha a admiração da torcida e não inspirava confiança na imprensa.

Na primeira fase, o Brasil estava no grupo C e enfrentou as seleções da Arábia Saudita, Alemanha Ocidental e Marrocos. Foram três vitórias brasileiras. A partida mais difícil foi contra os alemães. O resultado final foi 1 a 0, com um gol de Gilmar Popoca (em cobrança de falta) aos 43 minutos do segundo tempo. Contra a Arábia Saudita, o placar foi 3 a 1. Contra o Marrocos, 2 a 0.

Veio, então, a partida contra o Canadá nas quartas-de-final. Foi quando a seleção brasileira começou a atrair maior atenção. Os canadenses, sem grande tradição futebolística, se mostraram mais fortes do que se esperava. Começaram vencendo, com um gol de Mitchell aos 13 minutos do segundo tempo. O Brasil empatou 14 minutos depois (gol de Gilmar Popoca, que já era tratado como um dos melhores jogadores da seleção). A partida foi para a prorrogação e, depois, para a disputa por pênaltis. Foi a vez de outro Gilmar se destacar (o goleiro). Defendeu duas cobranças e a seleção brasileira venceu por 4 a 2.

No ano seguinte, o futebol do Canadá voltaria a mostrar força. Contando com vários jogadores desse time olímpico de 1984, a seleção canadense ficou em primeiro lugar nas eliminatórias da CONCACAF e se classificou pela primeira vez para uma Copa do Mundo. 

Na semifinal, a adversária do Brasil foi a Itália. A disputa olímpica, enfim, se tornou interessante para os torcedores brasileiros. Comentava-se bastante sobre a possibilidade da seleção chegar à final do torneio de futebol e conquistar, pela primeira vez na história, uma medalha. Os mais animados chegavam a dizer, com exagero, que aquela semifinal era uma revanche da traumática vitória italiana na Copa do Mundo de 1982. A partida foi emocionante. Houve empate em 1 a 1 no tempo regulamentar. Na prorrogação, o Brasil venceu por 1 a 0 e se classificou. Uma medalha, pelo menos, já estava garantida.

Gol do Brasil em Los Angeles (1984)

Na noite de 11 de agosto de 1984, os brasileiros tinham duas finais olímpicas para assistir. No futebol, Brasil contra França. No vôlei, a seleção masculina enfrentaria os Estados Unidos. Havia muita confiança e milhões de televisores ligados por todo o país. O Brasil podia comemorar, naquela noite, duas vitórias que entrariam para a história esportiva nacional.

A decepção foi dupla. A seleção de vôlei norte-americana, com o apoio de sua torcida e enorme confiança, venceu por 3 sets a 0. Na final do torneio de futebol, a França se impôs e venceu por 2 a 0.

O futebol francês passava por uma das suas melhores fases. Menos de dois meses antes, a sua seleção profissional havia sido campeão da Europa. O técnico da seleção olímpica da França era o próprio técnico campeão europeu, Henri Michel, que montou para as Olimpíadas um ótimo time, com jogadores jovens, mas já inseridos no futebol profissional francês. Alguns desses jogadores campeões em Los Angeles foram escalados para a Copa do Mundo de 1986. Entre esses estava o atacante Xuereb, que foi o artilheiro do torneio olímpico com 5 gols (empatado com Cvetkovic, da Iugoslávia).

Gilmar Popoca foi considerado pelo COI o melhor jogador da competição. Era um dos seis convocados que não jogavam no Internacional. Seu clube, naquele ano de 1984, era o Flamengo. Jogou por mais 14 anos e chegou a ser contratado por clubes de Portugal, México e Bolívia. A conquista da medalha de prata em Los Angeles foi a que lhe deu maior projeção.

A decisão foi disputada no Estádio Rose Bowl e teve público de 102.000 pessoas. Outras partidas também tiveram públicos numerosos. Um sucesso indiscutível, para satisfação de João Havelange, que tanto havia defendido as novas regras para o torneio de futebol. No entanto, as emissoras de TV dos Estados Unidos falavam pouco sobre a competição, o que levou Havelange a reclamar publicamente e a exigir uma atitude do presidente do COI, Juan Antonio Samaranch.

Brasil- Medalha de prata em 1984 

Uma novidade marcante foi a presença de nomes famosos do futebol profissional. Além do já citado Henri Michel, o italiano Enzo Bearzot, técnico campeão da Copa de 1982, esteve em Los Angeles. Era o técnico da seleção olímpica da Itália. Esteve em Los Angeles também o camaronês Roger Milla, que havia ficado famoso na Copa do Mundo de 1982 ao marcar o gol de empate de sua seleção contra a Itália. Ele participou do torneio olímpico e até marcou um gol, mas a seleção de Camarões não passou da primeira fase. Henri Michel, Bearzot e Milla foram os pioneiros. Depois vieram outros. E o torneio passou a exibir, principalmente da década de 1990 em diante, atletas e técnicos conhecidos mundialmente (e até campeões da Copa do Mundo). Ronaldo Fenômeno e Messi foram alguns desses. Na Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, Neymar participou e foi campeão.

E assim o torneio olímpico de futebol perdeu a sua aparência de disputa amadora e de “campeonato das seleções comunistas”. Mas ainda haveria uma última vitória olímpica “vermelha”: a União Soviética, em 1988, venceu o Brasil na final e foi a campeã nos Jogos Olímpicos de Seul. 

A inclusão de atletas profissionais no torneio de 1984 satisfez João Havelange, mas a ideia não era seguir adiante até criar uma competição de tanto prestígio que pudesse ser considerada uma “segunda Copa”. Manter o torneio olímpico abaixo da Copa do Mundo foi uma preocupação constante da FIFA ao longo de várias décadas e assim continua sendo até hoje, com a manutenção de normas restritivas para os atletas dos times masculinos. Atualmente, impõe-se um limite de idade, admitindo-se três exceções.

O torneio olímpico, então, continuou sendo, mesmo com as mudanças de 1984, um torneio cheio de atletas jovens e alguns muito promissores. Promissores como havia sido o goleiro Carlos, que participou da Olimpíada de 1976 e dez anos depois foi titular da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1986. Os jovens promissores em 1984 foram o alemão Brehme (campeão na Copa do Mundo de 1990), o brasileiro Dunga (campeão na Copa do Mundo de 1994) e o italiano Baresi (vice-campeão na Copa do Mundo de 1994), entre outros que também poderiam ser destacados.

Por tudo o que trouxe de novo (atletas profissionais, a primeira medalha brasileira, altíssima audiência televisiva, participação do técnico campeão da última Copa do Mundo,…) e por ter iniciado uma nova fase na história do torneio olímpico de futebol, aquela competição de 1984 merece ser lembrada e relembrada várias vezes. Foi, sem dúvida, uma das mais interessantes.

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Quando a pira se apagar em Tóquio, desafio do COI é manter a chama olímpica acesa

Dois anos atrás, nos arredores do templo budista Senso-ji, o mais antigo de Tóquio, máquinas faziam um ruído que afrontava a tranquilidade característica do local e da religião asiática. O mundo acreditava que os Jogos Olímpicos aconteceriam em julho de 2020, como era o previsto, então a obra não tinha tempo a perder.

O objetivo era recapear todos os 42 quilômetros de ruas por onde passariam os maratonistas durante os Jogos. Como os meses de julho e agosto são os mais quentes do ano na capital japonesa, havia o receio, por parte dos organizadores, de que o calor emitido pelo asfalto pudesse causar mal-estar nos atletas. Nos eventos-teste, vários corredores não se sentiram bem. O novo revestimento, portanto, dissiparia melhor o calor. Mutirões avançavam com o trabalho em todas as madrugadas, o único momento em que a frenética cidade permitia uma tarefa como essa.

No entanto, o esforço se tornaria inútil. Dois meses depois do início das obras, a maratona foi transferida para a cidade de Sapporo, no norte do Japão e de clima mais fresco. O novo asfalto virou uma cena incompleta e lamentável, símbolo do desperdício e síntese do dilema atual em torno dos Jogos Olímpicos: Tudo isso vale a pena? E para quem?

Paris e Los Angeles só vão sediar as edições de 2024 e 2028, respectivamente, porque o Comitê Olímpico Internacional (COI) chegou a um acordo com as cidades. Brisbane, na Austrália, só foi escolhida sede das Olimpíadas de 2032 por ter sido candidata única.

Quem chega para a festa só de quatro em quatro anos (ou em cinco por causa da covid-19) pode até não ter percebido antes, mas os dezoito dias de Jogos Pandêmicos de Tóquio trazem, como nunca antes, a inevitável pergunta: “Que diabos estamos fazendo aqui, no mais próximo do apocalipse que já vivemos?”. Nem mesmo os recordes e atuações de gala dos atletas podem calar essa pergunta.

Japonesa protesta contra modelo atual dos Jogos Olímpicos. Movimento “Nolympics” (“Não às Olimpíadas) ganhou força na última década. Foto: Hiro Komae / AP

Apenas 22% dos japoneses acham que os Jogos deveriam acontecer. A olimpíada que já seria a mais cara da história sem a pandemia deve ultrapassar R$ 90 bilhões com os gastos do adiamento por um ano e da adesão de protocolos sanitários. No Rio de Janeiro em 2016, foram R$ 41 bilhões.

O COI ganha muito e devolve pouquíssimo para levar sua “Família olímpica” em turnê a cada quatro anos. A cidade-sede, as autoridades locais e a população local, através de impostos, pagam pelas obras e estádios, enquanto o COI tem lucrado bilhões com a venda de direitos de transmissão para as TVs do mundo, ingressos e cotas para empresas patrocinarem o evento. Até os milhares de voluntários são uma forma de o COI não assumir tantas despesas.

Diante desse acordo tão desequilibrado entre as partes envolvidas, demorou até demais para políticos e cidadãos se movimentarem para evitar que suas cidades se candidatassem a receber os Jogos. A chama olímpica corre risco de se apagar, já que a honra de sediar os Jogos desapareceu, ainda mais com os recentes escândalos de compra de votos nos processos de escolha das olimpíadas no Rio de Janeiro e em Tóquio.

Resta de legítimo apenas o desejo de atletas de participarem do maior evento comercial do mundo camuflado de competição esportiva. Mas até que ponto a presença deles nos Jogos é para satisfazer esses interesses comerciais, em vez de um reconhecimento pelas inúmeras gotas de suor despejadas em treinamentos severos? As performances e os recordes são a força motriz da engrenagem que gera bilhões de dólares a patrocinadores e ao COI. Em troca, uma medalha. É muito pouco. Grande estrela dos Jogos de Tóquio, a ginasta Simone Biles, vivendo essa pressão desde criança, cansou, priorizou fazer apenas o que queria e deixou de lado algumas provas em que competiria. A prova de que o sistema está falido.

O objetivo não é acabar com os Jogos Olímpicos. O dia mais feliz da minha vida foi no Maracanã, em 5 de agosto de 2016, quando assisti à cerimônia de abertura no Rio de Janeiro. Mas da forma como são atualmente, as olimpíadas não despertam o melhor de nós.

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O novo lema olímpico e suas implicações

O lema citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte) é amplamente reconhecido e reverenciado no Movimento Olímpico. Foi adotado em 1894 quando o Barão francês Pierre de Coubertin instituiu o Comitê Olímpico Internacional (COI). Ele pegou emprestado esse lema de seu compatriota Henri Didon, um padre dominicano que Coubertin ouviu recitar a frase em 7 de março de 1891 durante a cerimônia de premiação de um evento esportivo na Escola Albert Le Grand, em Arcueil, perto de Paris, na qual ele era o reitor. Impressionado, Coubertin citou o futuro lema olímpico em uma reportagem publicada na revista Les Sports Athlétiques alguns dias depois.

Barão de Coubertin, responsável por introduzir o lema olímpico. Fonte: Olimpíada todo dia

Em seu website, o COI afirma que o lema olímpico “resume uma filosofia de vida ou um código de conduta” que “incentiva os atletas a darem o seu melhor durante as competições”. Além disso, de acordo com a Carta Olímpica, a mesma “expressa às aspirações do Movimento Olímpico”. O COI esclarece em seu site que o lema olímpico compreende não apenas um significado esportivo e técnico, mas também uma perspectiva moral e educacional. Nesse sentido, Coubertin já havia dito em 1929 que “a chamada sonora” dessas três palavras e os enormes esforços para melhorar o rendimento são necessários “para a vida esportiva e as proezas excepcionais indispensáveis ​​à atividade geral”. Assim, o lema olímpico implica uma postura perfeccionista sobre a vida humana com ênfase na excelência individual.

A persistente pandemia de coronavírus gerou uma mudança imprevista e incomum no lema olímpico. Perturbado por seus efeitos sobre o Movimento Olímpico e motivado pelas reformas que vem promovendo desde sua eleição como presidente do COI em 2013, o alemão Thomas Bach propôs em março deste ano “complementar este lema adicionando, após um hífen, a palavra juntos”, para o qual evocou a palavra latina communis.

Sua proposta, realizada durante o discurso de aceitação de sua reeleição como Presidente do COI, reconhece que “aprendemos do jeito mais difícil durante esta crise do coronavírus que podemos estar de acordo com nosso lema olímpico ‘mais rápido, mais alto, mais forte’, no esporte e na vida, somente se trabalharmos juntos em solidariedade”. Encorajando seus colegas do COI a imaginar metas mais ambiciosas para o mundo pós-coronavírus, Bach proclamou: “Precisamos de mais solidariedade dentro das sociedades e entre as sociedades e isso se tornou óbvio no início do coronavírus, quando se pôde ver que o fosso social estava se ampliando”. Prosseguiu explicando que “o mundo é tão interdependente que ninguém consegue mais resolver os grandes desafios sozinho” e insistiu que sua proposta expressa “essa necessidade de solidariedade”. Não surpreende que, quase um século antes, Coubertin disse que, no Olimpismo, a filosofia constituinte do Movimento Olímpico, “tudo gira em torno das ideias obrigatórias de continuidade, interdependência e solidariedade”.

No mês seguinte, em uma reunião virtual, o comitê executivo do COI endossou a proposta de Bach e decidiu submetê-la aos seus membros para consideração durante a assembleia geral a ser realizada antes do início dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Já é dado como certo que o novo lema olímpico será aprovado com entusiasmo. Por um lado, explicita que o esporte, a prática social estruturante do Movimento Olímpico, é um projeto comunitário que exige reconhecimento, cooperação e cuidado dos adversários. Por outro lado, enfatiza o caráter ecumênico do Movimento Olímpico, assim como sua aspiração, conforme consta na Carta Olímpica, de “favorecer o estabelecimento de uma sociedade pacífica e comprometida com a manutenção da dignidade humana”. Uma preocupação central do Olimpismo é a criação de uma communitas de iguais morais que respeitem suas diferenças. Desta forma, o Olimpismo propõe, tomando emprestado livremente do filósofo francês Emmanuel Levinas, o reconhecimento celebrativo da alteridade e nos convida a cultivá-la no caminho compartilhado em direção à excelência.

A Sessão do Comitê Olímpico Internacional (COI) aprovou a mudança no lema olímpico. Foto: IOC/Greg Martin

O novo slogan olímpico resume melhor, esclarece e torna muito mais coerente a ideologia olímpica. É razoável esperar que o COI, como líder do Movimento Olímpico, se esforce para torná-lo realidade e o utilize para orientar suas políticas e iniciativas. Por isso, também é razoável esperar que o COI indique claramente sua posição sobre os próximos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022 e a repressão violenta por parte das autoridades chinesas contra as pessoas uigures e outras minorias predominantemente muçulmanas em Xinjiang. Um setor da comunidade internacional argumenta que o genocídio está sendo cometido contra essas minorias e que mais de um milhão de pessoas foram transferidas para prisões e campos de doutrinação. Vale a pena perguntar o lugar dessas minorias no “juntos” do novo lema olímpico. O que deve implicar a solidariedade invocada por Bach para justificar tal acréscimo no caso dessas minorias? Imputando a inação do COI, o antropólogo cultural estadunidense John J. MacAloon declarou recentemente que os verdadeiros movimentos sociais se levantam e se opõem a ele. Ver-se-á se o COI, estimulado pelo novo lema olímpico e pelos demais preceitos, se comporta dessa forma.


Texto originalmente publicado no site Página 12 no dia 21 de julho de 2021

Tradução: Eduardo Ribeiro e Fausto Amaro

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“Eu tô pagando!”. Quando o capital se apropria do lúdico

“Tô pagando!!”. Esse era o bordão da personagem Lady Kate interpretada pela atriz Katiuscia Canor. Uma sátira ao processo de financeirização [1] do cotidiano e do comportamento dos chamados “novos ricos”. Nessa lógica, tendo dinheiro, qualquer coisa se consegue. Indo mais além, é possível submeter outros seres humanos a sua vontade já que “você está pagando”. A transformação do cidadão em consumidor passa por essa compreensão. “Eu quero tudo do meu jeito”, já que eu paguei, posso consumir o que eu quiser, não importando como se alcançará a minha vontade. A naturalização deste pensamento é apenas uma das ações perversas do capital. Ele retira a dignidade do outro ser humano que precisa vender a sua força de trabalho e fica a mercê dos interesses da empresa/patrão. Se estou pagando, eu escolho como, onde, e em quais condições o outro trabalha. O empregado não pode reclamar, afinal, ele precisa daquilo para sobreviver. A narrativa das revistas de gestão empresarial “ensina” técnicas de como fazer o trabalhador naturalizar essas ações e se sentir parte da empresa, alguém que deve se esforçar ao máximo para entregar tudo que lhe é pedido. Para isso se utilizam de metáforas oriundas do mundo esportivo com “vestir a camisa” da empresa.

Na última semana, dois casos específicos ocorridos com jogadores do Flamengo evidenciam o poder do capital sobre o lúdico. Logicamente que faz tempo que esse processo ocorre, mais precisamente desde a profissionalização do esporte. A partir deste momento o jogador recebia para praticar a atividade e estava sujeito a regras do clube. Neste cenário o papel do treinador emerge como o responsável por “vigiar e punir” os atletas. O lúdico vai perdendo terreno para a necessidade de acumulação de vitórias. Nossa intenção nesta coluna é mostrar como o discurso desta financeirização está entranhado no cotidiano que não só legitima esse “eu tô pagando” mas também torna quem o contesta quase um extraterrestre, alguém que “não entendeu como o mundo funciona”.

Começamos pelo caso Gerson. O volante, visivelmente emocionado ao dar uma entrevista após o fim da sua última partida pelo Flamengo ao repórter Eric Faria, da TV Globo, deixou claro o seu “pesar” por deixar o clube. Em uma análise rápida de seu discurso já se evidencia que a ideia de que “é preciso fechar as contas” sacrificou a sua vontade de se manter no clube do coração. Por mais que procure se desdenhar e sacramentar que o jogador não tem mais o lúdico, ou seja, o sonho de criança, de jogar no clube do coração, no estádio que ele ia para ver o Flamengo jogar quando menino, é esse lúdico que é atacado pelo capital. Percebam que sair do clube é uma forma de ter dinheiro e “equilibrar as contas”. Se tem alguém pagando por ele, o seu lúdico, sua vontade e seu desejo deixam de ser respeitados e são apropriados pelo dinheiro. Sei que a essa altura, o leitor acostumado com a normalidade da financeirização bravejará: “então como se fecha a conta do clube?”. Essa é a lógica do capital: submeter as ações humanas à acumulação. Gerson não foi o primeiro, não será o último. Até Zico já “teve que ser vendido”. É sobre essa imposição do “tô pagando” que este texto procura refletir e causar incômodo no leitor, ou seja desnaturalizar esse discurso.

Gerson chora em entrevista após sua última partida pelo Flamengo
Fonte: ESPN

Outro caso, no mesmo clube, é do atacante Pedro. Convocado para disputar os Jogos Olímpicos pela seleção brasileira em Tóquio, Pedro não será liberado pelo clube. Nos grupos de whatsapp surgem as frases prontas de flamenguistas ensandecidos: “o Flamengo que paga, o Flamengo decide”. A clara defesa de que: quem está pagando decide o que fazer com a vida do atleta. Pedro está querendo jogar os Jogos Olímpicos. Por mais que tenha passado por reapropriações do sentido original desejado pelo Barão Pierre de Coubertin no final do século XIX, os Jogos ainda se sustentam no imaginário social como o local da disputa por si só, do jogo e do lúdico. Pedro tem o desejo de participar desse evento. Um sonho de menino para alguns. Um sonho de ganhar novos contratos para outros. Seja qual for real desejo do atleta, o clube se apodera da narrativa do “tô pagando” para validar a sua decisão. Uma empresa (neste caso, o clube atua totalmente como empresa) deveria ter realmente este poder? Ela pode escolher as ações de seu comandado desta forma? Ela é “dona” do atleta simplesmente porque paga o seu salário? Se é alto ou não, o certo é que ninguém deveria se prender a essa lógica. Pedro não é nenhum revolucionário, não quer tomar os bens de produção, ele quer apenas jogar o jogo.

Pedro atuando pela seleção olímpica. O jogador não deve ser liberado para a competição em Tóquio
Fonte: Gazeta Esportiva

Neste viés, naturaliza-se essa apropriação do corpo e da vontade do cidadão pelas empresas e patrão. Os manuais de gestão de pessoas, maravilhosos na prática e raramente seguidos pelas empresas brasileiras, indicam que um funcionário feliz “rende mais”. As empresas hoje, no nosso caso os clubes, por pagarem o salário, se acham no direito de decidir o que seria a felicidade alheia. A felicidade de Gerson seria “jogar na Europa” e “ficar rico”. Talvez esse não seja a vontade de todos os mortais. Adriano “Imperador” já demonstrou isso. A realização de Pedro será “ficar no banco de Gabigol”, esperando a oportunidade, porque o clube está pagando? Um mínimo de bom senso, até mesmo no sentido financeiro, no caso de Pedro, liberaria o jogador, ele voltaria “valorizado” e “empolgado”, mais “confiante” (termos usados pelos coachs) para voltar a “vestir a camisa” do Flamengo (em todos os sentidos). Podia-se até negar a convocação, mas a condução do caso mostrou a narrativa típica de uma elite escravocrata, arrogante e exploratória.

Enfim, o extraterrestre aqui se incomodou demais com a normalização da financeirização nas análises dos colegas de imprensa. Aquele que bate palmas para essa argumentação hoje dá aval para que o seu patrão decida os rumos de sua vida simplesmente por “estar pagando” o seu salário. Vou pegar minha nave de volta ao mundo em que o ser humano vem antes do dinheiro, com o desejo de ter colocado várias pulgas atrás das orelhas dos terráqueos que idolatram o capital.


[1] Aqui a dotamos a interpretação de financeirização de Bryan e Rafferty (2006) ao compreender que este processo significaria não apenas que o setor financeiro está maior, mas que as formas financeiras de cálculo estão se tornando mais difundidas socialmente.