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Na Irlanda ainda é tempo de Dondon

O samba do grande Nei Lopes imortalizou Antonio de Paula Filho, o Dondon, zagueiro do Andarahy Athletico Club, já extinto time de futebol da zona norte do Rio de Janeiro. Na canção, o jogador é o símbolo de um tempo em que a vida era mais simples de viver. “Não tinha tanto miserê nem tinha tanto ti ti ti. No tempo que Dondon jogava no Andaraí”.

Dondon, para mim, também acabou virando um símbolo daquele futebol das primeiras décadas do Século XX. Um tempo de sportsmen apaixonados, amadores, que jogavam pela honra de defender a camisa e a bandeira de seus clubes. Tudo bem que nem sempre era exatamente assim, pelo menos nos idos da década de 1930, quando o profissionalismo, mesmo ainda velado, em muitos casos, já se mostrava inevitável na prática do bom e velho esporte bretão em nossas canchas.

Dondon, craque de seu tempo. Fonte: Primos Pobres RJ FC

Mas o que um defensor, que atuava no modesto field da antiga Rua Prefeito Serzedello Correa, no bairro do Andaraí, tem a ver com a distante Irlanda? Na prática, nada, mas na cabeça deste autor, trata-se de uma relação inevitável. É que na viagem que fiz recentemente a Dublin, capital daquele país, tive o prazer de ser apresentado ao futebol gaélico, um esporte que, de acordo com um guia do estádio Croke Park, é uma mistura de futebol, rúgbi, handebol e basquete. Ficou confuso? Eu explico.

A modalidade teria sido originada por um jogo popular na região ainda no século XVI, o caid, mas só teria chegado ao formato atual nas primeiras décadas de 1800. Hoje são quinze jogadores de cada lado, num gramado um pouco maior do que um campo de futebol normal (130m x 90m). As traves são do mesmo tamanho que as do futebol comum, só que os postes laterais se estendem, lembrando uma trave de rúgbi ou futebol americano. Se a bola ultrapassar a linha final entre as traves, o time pontua. Passando por cima do travessão, é assinalado um ponto, mas se passar por baixo, onde há um goleiro, aí são três pontos.

O imponente Croke Park, em Dublin. Acervo pessoal/ Rafael Casé.

As partidas têm menor duração (dois tempos de 30 minutos) e, se terminar empatada, há prorrogações de 20 minutos até que saia um vencedor. A bola parece com a de vôlei, porém, é mais pesada do que a de futebol e pode ser conduzida de várias formas: carregada, através de pequenos chutes, quicada e passada com as mãos para companheiros. Os arremates a gol são através de chutes, mas a bola também pode ser socada em direção à meta. Sei que parece meio complicado de imaginar, mas, se você der uma olhada nesse vídeo (uma coletânea dos melhores momentos de 2022), vai poder entender melhor.

O time da cidade de Kerry derrota a equipe de Galway e conquista o campeonato de 2022. Fonte: www.kerrygaa.ie

A modalidade também tem um campeonato nacional disputado por mulheres. As regras são exatamente as mesmas. Em dois domingos de setembro acontecem as finais masculina e feminina (nos outros dois domingos é a vez das finais do hurling, esporte nacional da Irlanda, jogado com tacos e uma pequena bola e que mereceria um outro artigo apenas para ele). O palco é o Croke Stadium, com capacidade para quase 90 mil espectadores. E o mais bacana de tudo é que nessas finais não há ingressos pagos. A lotação é dividida, meio a meio, entre os moradores das cidades dos times finalistas.

As Meath Ladie´s, de um condado do norte do país conquistaram o título de 2022. Fonte: Irish Examiner

E é aqui que se dá o link entre a Irlanda e Dondon (finalmente…). Todos os atletas que disputam o futebol gaélico são amadores. Têm outras profissões e se dedicam ao esporte por paixão, pela honra de defenderem suas cidades. Um sentimento bem parecido com aquele dos primórdios do futebol em terras tupiniquins.

Um detalhe muito interessante da visita guiada pelo estádio é que além de conhecermos vestiários, tribunas, cabines de transmissão, arquibancadas, fomos levados a um salão onde acontecem, após cada uma das finais, uma recepção para o congraçamento dos atletas dos dois times. Ali eles se confraternizam, bebem juntos, como colegas que praticam o mesmo esporte. Diante de nosso espanto com esse tipo de circunstância, o guia nos explicou que todos eles jogam entre si desde as categorias de base e que, apesar da disputa árdua em campo (e algumas delas são, fisicamente, bem duras), o que reina, após o apito final, é a camaradagem.

Aqui já foi assim. Quando clubes visitavam outras cidades, as delegações eram recebidas nos portos ou estações de trem pelos jogadores adversários e sempre havia uma festa programada para reunir os atletas na véspera da partida. Algo inimaginável nos dias de hoje, quando vemos a animosidade tomar conta do futebol e não apenas entre os torcedores.   

Palco de glórias e de uma tragédia

O Croke Park é, definitivamente, um belo passeio para os amantes do esporte. Na entrada estão estampados os escudos das equipes que integram GAA (Gaelic Athletic Association). Ao todos são 2.200 times de futebol gaélico, nos 32 condados irlandeses.

A estátua de Michael Cusack, fundador da GAA. Fonte: divulgação

O estádio tem um belo museu, não só voltado para o futebol gaélico, mas também para o hurling. Um ambiente interativo com peças históricas e lembranças de campeonatos e jogadores que marcaram época. O espaço também mostra que, graças aos imigrantes irlandeses, os esportes gaélicos se espalharam pelo mundo e, hoje, são praticados em mais de 70 países ao redor do mundo (no Brasil não há registro da prática dessas modalidades). 

Uniformes dos selecionados irlandeses de Futebol Gaélico e Hurling. Acervo pessoal/Rafael Casé

Contudo, a parte mais emocionante é a que relata os acontecimentos do chamado Domingo Sangrento. Era dia de jogo entre o Dublin Team e o Tipperary Team, mas a capital irlandesa se encontrava em pé de guerra. O IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava pela independência do país, então parte do Império Britânico, havia emboscado e matado nove oficiais ingleses. A represália foi violenta e teve como cenário justamente o estádio, onde se encontravam cerca de dez mil pessoas. Pouco antes do jogo começar, um avião fez dois rasantes sobre a plateia. Era a senha para que atiradores começassem a disparar contra a multidão. O pânico, obviamente, se instalou no local. Foram cerca de dois minutos de muitos tiros e o que se viu depois foi desolador: 14 pessoas mortas, incluindo um jogador do Tipperary e cerca de 100 feridos. Um episódio marcante que os irlandeses decidiram nunca mais esquecer.

Para os apaixonados por esporte, o passeio a esse local tão emblemático de Dublin se torna obrigatório. Eu, um sentimental “juramentado em cartório e com firma reconhecida” me emocionei várias vezes: ao ver o vídeo sobre as finais disputadas ali, ao entrar no gramado ao som de uma gravação que reproduzia o som do estádio lotado e ao ver a cumplicidade de um pai com sua jovem filha vivendo aquela experiência única em um local de tanto significado para o povo irlandês. 

Fica bem claro para qualquer visitante que o futebol gaélico e o hurling são mais do que meros esportes. Basta ler os painéis que se encontram nos vestiários. Mensagens aos jogadores sobre importância de estar ali e que pregam valores como disciplina, comprometimento, despojamento da vaidade, foco, prazer, trabalho duro e, principalmente, jogar em paz.

Frases e palavras que definem o espírito dos esportes gaélicos. Acervo pessoal/Rafael Casé

Nada é mais tocante, porém, do que um cartaz na área de acesso dos torcedores. Um lembrete a todos que ali passam sobre o lema da GAA. Palavras que me tocaram fundo e me fizeram ter a nostalgia de um tempo que nem vivi. Uma utopia do esporte apenas pelo valor da competição. Um sonho que, em boa parte do mundo, não tem mais lugar e que, no entanto, resiste bravamente numa pequena ilha do Mar do Norte.

Acervo pessoal/Rafael Casé

“Todos nós pertencemos a este lugar. Não por causa de quem somos ou de onde viemos. Estar aqui significa pertencer. Pertencer significa saber que você faz parte de uma comunidade. Uma comunidade que tem um lugar para todos. Onde o potencial é nutrido, onde os indivíduos se tornam equipes que honram aqueles que vieram antes e se esforçaram para construir um legado. Alguns de nós jogam. Alguns costumavam jogar. Alguns de nós nunca jogaram. Todos nós pertencemos. Pertencer significa que temos voz, significa poder dizer o que você acha certo. Ser ouvido. Pertencer significa respeitar um ao outro, significa estar lá, um para o outro, em campo; fora do campo. Pertencer é arregaçar as mangas e fazer o que tem que ser feito. Todos nós pertencemos, seja no nosso primeiro dia ou no nosso centésimo ano. Todos nós pertencemos a isso aqui, porque este lugar pertence a todos nós. Nosso GAA. Onde todos nós pertencemos” (tradução livre do autor).

Como não se emocionar?

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Afinal, quem determina quem é campeão mundial?

Apesar dos ruídos provocados pelas “novas verdades instantâneas” das redes sociais, persiste forte convergência, na academia, sobre apontar o intervalo de 1958 a 1970 como a era de ouro do futebol brasileiro. Foi quando a seleção brasileira venceu três (1958, 1962 e 1970) de quatro Copas do Mundo disputadas. Para além do respeito conquistado pelos títulos, o futebol nacional, em tal período, ganhou a admiração, interna e externa, por produzir, em profusão, jogadores que uniam excelência técnica e elevada capacidade competitiva, como Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Rivelino, Gerson, Jairzinho e Tostão, para citar apenas alguns dos que foram campeões mundiais naquela fase.

A equipe do Botafogo campeã brasileira em 1968. Créditos: Globoesporte

No entanto, apesar do reconhecimento dos seus contemporâneos, incluindo imprensa e torcida, parte do jornalismo esportivo, a partir de determinado momento, passou a dedicar-se a um contínuo processo de apagamento da memória dos feitos memoráveis das gerações da era de ouro quando se trata dos títulos dos clubes em que atuaram esses jogadores. Tal processo dá-se em duas frentes: nas conquistas nacionais pré-1971 e nos títulos internacionais que não sejam o que a imprensa local convencionou chamar de Mundial de Clubes[1].

Até hoje, não são muito explícitas as razões pelas quais, em algum momento, o jornalismo esportivo deixou de considerar os vencedores dos campeonatos disputados entre 1959 e 1970 campeões brasileiros, embora, naquele período, tal forma de tratamento fosse “divulgada a milhões de pessoas através dos veículos mais importantes da imprensa nacional” (CUNHA, 2009, p. 8): “Até o popular ‘Canal 100’, documentário que levava a emoção e a beleza do futebol a cinemas de todo o país, transmitia a mesma mensagem” (Id., ibid.).

Uma das hipóteses levantadas por Cunha, autor do dossiê que serviu de base para a equiparação daqueles títulos ao de campeão brasileiro pós-1970, é que a Revista Placar, lançada em março de 1970 e principal publicação esportiva do país durante cerca de duas décadas, não teria interesse em valorizar um período do futebol brasileiro anterior a sua existência. Válida ou não a hipótese, a revista, durante longo período, não tratou como campeonatos brasileiros os títulos anteriores a 1971. Isso embora, curiosamente, a manchete do número 41 da mesma revista tenha sido: “O Flu é campeão do Brasil” (Placar, 25/12/1970). Na mesma edição, Placar publicou o tradicional pôster do time campeão de 1970 da Taça de Prata, uma das três nomeações adotadas no período entre 1959 e 1970. Ou seja, por razão nunca explicitada, a revista desconsiderava o tratamento que ela própria dera ao campeão da última edição que antecedeu a versão do Brasileiro a partir de 1971[2].

Os títulos internos da era de ouro do nosso futebol foram, enfim, em 2011, equiparados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) às versões do Campeonato Brasileiro disputados a partir de 1971. Por isso, esta comunicação pretende se concentrar nas conquistas internacionais que a própria imprensa e os demais contemporâneos aclamavam como “campeões do mundo”, mas continuam a sofrer forte processo de invisibilização, quando não desqualificação, pelo jornalismo esportivo brasileiro, que adota lentes contemporâneas para revisitar o passado glorioso.

Num período em que comunicações e telecomunicações eram bem mais precárias e a mercantilização do futebol bem menos acentuada, foram criados torneios variados, na Europa e na América Latina, para buscar definir quem era “o melhor time do mundo”. Com formatos variados, tais torneios tinham, ao menos, duas coisas em comum: reuniam alguns dos maiores clubes da época e nenhum era reconhecido, para fins de estabelecer um hegemon, pela Fifa, que apenas a partir de 2005 passou a realizar regularmente um torneio mundial de clubes. Dessa forma, a condição de campeão mundial, reivindicada por seus organizadores, era sancionada – à margem do aval institucional da cúpula do futebol – pela imprensa, brasileira e internacional, como é fácil constatar, mesmo em pesquisas aligeiradas na internet. 

São, ao menos, quatro os torneios, todos iniciados entre os anos 1950 e 1960, cujos organizadores reivindicavam tal condição: Torneio Internacional de Clubes Campeões (Copa Rio)[3]; Copa Presidente Marcos Pérez Gimenez[4]; Torneio Triangular de Caracas[5] e Copa Intercontinental[6]. Sem nos estendermos numa historiografia exaustiva, é possível perceber que o principal argumento usado pelos defensores do monopólio do Mundial Interclubes – a inexistência de critérios fixos de classificação – não foi respeitado em pelo menos três edições dessa competição, sem que Independiente (1973), Boca Juniors (1977) e Olimpia (1979) sejam considerados menos campeões do que os demais. 

Além disso, em 2000, houve dois campeões: Boca Juniors, campeão da Libertadores do ano anterior, e Corinthians, campeão brasileiro do ano anterior e um dos dois convidados da Fifa como representantes do país anfitrião, quebrando a tradição de um único convidado do local em que a competição é realizada. O outro foi o Vasco da Gama, finalista com o Corinthians e que poderia ter sido campeão sem ser nem campeão da Libertadores nem do Brasileiro em 1999.

Mais importante, porém, do que se fixar em comparações entre os diversos torneios simultâneos do período examinado cujas hierarquias são construídas posteriormente, é destacar como seus campeões eram retratados na imprensa brasileira. Citaremos apenas algumas manchetes de jornais daquele período. Em 23 de julho 1951, a Gazeta Esportiva mancheteou: “Palmeiras campeão do mundo”, a propósito do título da Copa Rio daquele ano. Em 1 de fevereiro de 1967, a propósito do título do Botafogo no Torneio de Caracas, o Correio da Manhã, um dos principais jornais brasileiros até o fim dos anos 1960, teve como manchete: “Fogo em Caracas – O Glorioso carioca é campeão do Mundo”.

As conquistas eram reconhecidas não apenas por veículos dos estados dos campeões. Em 5 de agosto de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, proclamava: “Fluminense, campeão do mundo – Empate com o Corinthians por 2 x 2, na decisiva do Torneio Internacional de Clubes – A campanha dos tricolores”

E, não apenas a imprensa brasileira. Quando o Botafogo voltou a vencer o Torneio de Caracas, em 1968, o jornal português Record, deu na primeira página: “Implacável!!! Vitória alvinegra em Caracas, Botafogo conquista a Mini Taça do Mundo em um jogo incrível contra o Benfica de Eusébio, Colina e Simões”. Ao lado, acompanhada da ilustração da taça como direto a “eco” na palavra campeão: “Botafogo campeão ooo do Mundo”. A matéria é acompanhada, ainda, pela foto dos dois times perfilados antes da partida. 

Definir quem deve ser tratado ou não como campeão mundial escapa aos objetivos desta comunicação. O que nos move é contribuir para um debate que leve a uma explicitação das razões que autorizam a imprensa não contemporânea dos acontecimentos a retificar e desqualificar o que os jornais do período registrado, incluindo veículos dos mesmos grupos, registraram. Quais as razões da reinterpretação dos fatos à luz de outros critérios e num contexto do futebol fortemente informado por valores comerciais?

Publicamos a seguir a relação dos times considerados por seus contemporâneos, incluindo – insistimos – a imprensa, campeões mundiais da era de ouro do futebol brasileiro, mas, posteriormente, descredenciados. Lembramos que a lista restringe-se à primeira fase dos torneios que, após interrupção mais ou menos prolongada, foram reativados, mas já num período de consolidação do Torneio Interclubes como única instância, ainda que sem o aval institucional da Fifa, como única instância definidora do campeão mundial de clubes.

Os campeões esquecidos

Copa Rio: Palmeiras (1951) e Fluminense (1952)

Pequena Taça do Mundo: Corinthians (1953) e São Paulo (1955)

Torneio de Caracas: Bangu (1958), Botafogo (1967, 1968 e 1970) e Cruzeiro (1970)

Bibliografia

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009. SOUTO, Sérgio Montero. Uma revisita à era de ouro do futebol – quando os títulos do passado têm de ser driblados pelo hegemon do ‘mercado’. Belo Horizonte: Fulia v.4, n.2, 2019.

Notas

[1]  Oficialmente, essas competições são chamadas pela Fifa de Mundial Interclubes.

[2] Para ler mais sobre os campeões brasileiros pré-1971, vide SOUTO (2019) e CUNHA (2009).

[3] Mais conhecida como Copa Rio foi organizada pela então Confederação Brasileira de Desportos (CDB) – antecessora da CBF – com apoio da Fifa. Teve apenas duas edições (1951 e 1952). Em 1953, foi rebatizada de Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, e sofreu alterações, quantitativa e qualitativa, no número de clubes estrangeiros convidados.

[4] Ou Troféu Marcos Pérez Jiménez ou Pequena Taça do Mundo era organizado pela Federação Venezuelana de Futebol e por empresários locais, sendo disputado entre equipes europeias e sul-americanas. Teve dois períodos. O de maior relevância entre 1952-1957. Após interrupção de seis anos, foi rebatizada de Troféu Cidade de Caracas, teve uma edição em 1963, para retornar em 1965, sendo , então, disputada de forma não contínua por até 1975. No período, a partir de 1963, a competição sofre um esvaziamento, tanto em prestígio, quanto em número de participantes. Este trabalho se atém à primeira fase.

[5] Disputado entre equipes europeias e sul-americanas e seleções nacionais, como a argentina e a soviética, era chamado, ainda, de Torneio de Caracas e Triangular de Caracas. Teve duas fases, sendo a de maior prestígio entre 1958 e 1970, que teve duas edições em 1970. A segunda fase (1976-1981) teve apenas quatro versões e menor prestígio esportivo. É à primeira que nos detivemos.

[6] Organizada pela União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sua primeira versão ocorreu em 1960, sendo realizada anualmente, com dois hiatos, até 1979, com diferentes formas de disputa, variando de uma a três partidas. Em 1975 e 1978, incompatibilidades entre o calendário das duas entidades levaram ao cancelamento da competição. Em três ocasiões (1973, 1977 e 1979), a final foi entre o campeão sul-americano e o vice-europeu, já que os campeões do continente naqueles anos se recusaram a participar. Com as seguidas recusas dos europeus ameaçando esvaziar o torneio, a partir de 1980 até 2004 foi transferida para o Japão, sendo rebatizada de Copa Toyota, nome da patrocinadora do torneio e disputada numa única partida. A partir de 2005, a Fifa, que já promovera uma edição em 2000, paralela à ocorrida no Japão, assume a organização da competição de forma contínua, incorporando os campões continentais africano, asiático e da Oceania.

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O Napoli campeão é a vitória do dionisíaco 

Por Jorge Santana 

Professor de História do IFPR Campo Largo 

Doutor em Ciências Sociais ( PPCIS/UERJ)

A Sociedade Esportiva Napoli sagrou-se campeã do campeonato italiano de futebol temporada 2022-2023, uma campanha para lá de encantadora, após três décadas de insólito jejum de títulos. Uma festa sem tamanho, sem fim e sem ordem tomou conta das ruas, repletas de citadinos celebrando efusivamente. Alguns dizem que o título é um presente dos céus de um semideus ou até Deus que dá nome ao estádio. 

Nápoles é a cidade astral mais importante da Península Itálica, contudo marcada pelo estigma e pelo imaginário negativo propagado pelas cidades nortistas como Milão, Turim, Florença, entre outras. Ao pensar em Nápoles, pensamos mais na Camorra (máfia) do que nas belas praias, mais na pobreza do que na vitalidade do povo napolitano, mais na suposta desordem do que na Universidade de Nápoles (sétima mais antiga da Europa). As marcas do preconceito propagado pelo Norte são pegajosas e apagam aquilo que a metrópole banhada pelo mar Tirreno tem de melhor. Nessa visão discriminatória, os sulistas são supostamente poucos afeitos ao trabalho, preguiçosos, festeiros, emotivos, desordeiros e ignorantes, enquanto os nortistas são trabalhadores, racionais, ordeiros e civilizados.  

O filósofo Friedrich Nietzsche desenvolveu uma concepção dual do mundo a partir da filosofia e da mitologia grega, em que o mundo se divide em razão/ordem/equilíbrio (apolíneo) e prazer/desordem/paixão (dionisíaco), o primeiro representado a partir do Deus grego Apolo e o segundo pelo Deus Dionísio. Na prática, pode-se aplicar essa divisão do filósofo na divisão racista da Itália em que os nortistas detêm as características do apolíneo e os sulistas as características do dionísico – claro, os segundos com características negativas. 

Entretanto, preconceitos regionais não são apenas uma dádiva negativa da Itália, mas também de outras nações. Como no Brasil a abjeta discriminação que os “sudestinos ” praticam contra os nordestinos ou nos Estados Unidos em que os ianques do Norte gozam e insultam os sulistas. Quase todo país tem uma região que é vítima de preconceito.

As desigualdades econômicas e sociais existem em todos territórios ou nações (ou comunidades imaginadas como nomeou o historiador Benedict Anderson), pois nenhum país é homogêneo. Entretanto, tais desigualdades não podem estar à serviço do preconceito e do racismo. Em 2023, na partida Milan X Napoli, pelas quartas de final da Champions League, os torcedores milaneses ergueram uma faixa com os dizeres ” Água e Sabão ” insinuando que napolitanos são porcos e não tomam banho. Outra faixa tinha a seguinte mensagem: “Mais títulos do que dedos” acusando os napolitanos de terem mais títulos nacionais (2 títulos) do que dedos nas mãos. Alguns cânticos dizem que seria ótimo o Vesúvio (vulcão nas redondezas de Nápoles) entrar em erupção para varrer os napolitanos da terra. Um dos cânticos contra a torcida do maior time do Sul da Itália diz:

Sintam o cheiro

Até os cachorros fogem 

Estão chegando os napolitanos 

Os coléricos 

Filhos do terremoto

Quase nunca se lavaram com sabão 

Merda de Napoli

O preconceito aberto contra os italianos do Sul faz com que compreendemos melhor um episódio marcante do futebol mundial. Na semifinal da Copa do Mundo 1990, enfrentaram-se Itália e Argentina, no estádio de Nápoles, parte dos napolitanos torceram pelas sul-americanas, devido a Maradona – pois a Azzurra, apesar de ser a seleção nacional, é aquela que os torcedores xingam os sulistas. Nesse sentido, torcer por Diego Armando, pela Argentina, era torcer pelo homem que liderou o triunfo do primeiro título de um clube ao Sul de Roma, o impávido Pibe que amassou milaneses, florentinos, genoveses, etc. 

Faixa da torcida do Bologna em 2014 com dizeres: “ Vai ser um prazer quando o Vesúvio fizer o seu dever”

No verão de 1984, quando Diego estreou pelo time napolitano, logo entendeu que não era apenas futebol. Porque em uma partida no Norte do país deparou-se com uma faixa direcionada a sua equipe com as seguintes palavras ” Bem-vindos à Itália “. Segundo o eterno ídolo argentino, ali ele soube que eram os racistas do Norte contra os pobres do Sul, era luta de classes e de identidade regional que tinha como uma das arenas de combate os gramados. 

O primeiro caneco nacional não poderia ter outro protagonista que não fosse Dieguito, que trazia em seu sangue o espírito de um garoto de vila portenha (menino de favela). Maradona era boquirroto, falador, sanguíneo, polêmico, exagerado, emotivo e extremamente dionisíaco. Como disse o velho escritor Eduardo Galeano “Diego é o mais humano dos Deuses” e tomo a liberdade para acrescentar o mais napolitano das divindades. Os sulistas encontraram nele um Brancaleone para comandar a esquadra napolitana que, pela primeira vez, abateu os elitistas do Norte e levou a taça para o Sul. Para Itália negada pelos Italianos. A festa realizada na cidade, nunca antes vista no país, ficou conhecida como “a louca tarantela”.

A história, como gosta de brincar e surpreender, traz novamente um protagonista do Sul global para liderar a esquadra italiana em mais um triunfo. O nigeriano Victor Osimhen de apenas 24 anos. Um jovem atacante versátil, com faro de gol apurado, que não foi apenas o melhor jogador do Calccio como o artilheiro. Para azar dos racistas do Norte sempre afeitos a defender a deportação dos africanos que chegam em condições trágicas nas praias italianas em busca de refúgio.  

Festa na cidade de Nápoles ( maio de 2023) Carlos Harmann AFP

Esse ano, os ricos times do Norte sucumbiram diante do Napoli, liderado por um nigeriano. Ou seja, o prazer venceu a razão, a pólis dionisíaca sublevou os apolíneos nortistas. Se o Sul está feliz, a festa está garantida, ” a louca tarantela ” é reeditada para celebrar uma vitória contra o racismo, o preconceito e a discriminação. Fogos irrompem na noite escura de Nápoles, que iluminada vira dia, Dionísio se deleita com garrafões de vinho a beira do Vesúvio, que repousa tranquilo, Maradona celebra no céu e Victor Oshimen é coroado em terra. O Napoli campeão é sempre dionisíaco.

“Havia uma bola ao pé da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisa azul do Nápoles. Havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a Maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. Campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. Em Milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados.” GALEANO, Eduardo.  Futebol ao sol e à sombra. LM& Pocket.

Fonte:

Podcast Copa Além da Copa

Nápoli: a cidade, o time, o Maradona, o novo-scudetto- Copa Além da Copa #61

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Há cem anos: a inauguração de Wembley recebeu 250 mil pessoas – e quase terminou em tragédia

Final da Copa da Inglaterra de 1923 teve público estimado em mais de 250 mil presentes, contou com a presença do Rei, deixou milhares de feridos e marcou a memória do futebol inglês

Até a criação do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, o símbolo maior da popularidade atingida pelo futebol cabia ao Wembley, estádio localizado na cidade de Londres, capital do Reino Unido. Utilizado pela primeira vez em 28 de abril de 1923, na final da Copa da Inglaterra (FA Cup) em que o Bolton venceu o West Ham por 2 a 0 para um público estimado em mais de 250 mil pessoas, essa que é uma das arenas mais famosas do mundo agora completa 100 anos de uma história repleta de curiosidades, antes, durante e depois de sua inauguração.

Hoje, transformado em moderna arena após longo período reforma entre 2000 e 2007 – quando passa a ser propriedade de The Football Association (a federação inglesa) –, o estádio de Wembley foi originalmente projetado como parte da British Empire Exhibition de 1924, um dos muitos eventos do tipo “exposição universal” realizados à época.

Wembley na época da inauguração — Foto: Divulgação

Essas grandes e custosas exibições serviam como momento especial para projetar a imagem desses países – no caso das potências, as suas ambições imperialistas (o Brasil, por exemplo, realizou a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922).

Era uma oportunidade de apresentar inovações tecnológicas, proporcionar oportunidades comerciais e, de certa forma, também impulsionar o interesse dos grupos econômicos locais ao redor do globo. O nome do Wembley, inicialmente, não à toa, era “The Empire Stadium” (O Estádio Imperial).

Portanto, erguia-se naquele momento um símbolo do poderio do império e da grandiosidade dos feitos do capitalismo britânico, elaborado exatamente para causar impacto visual e projetar uma imagem de solidez do Reino Unido e de suas colônias após a I Guerra Mundial.

Quase demolido

Desenvolvido por um grupo de empreiteiros e projetado para receber até 126 mil espectadores, o estádio de Wembley não tinha previsão de ter tanta longevidade. Assim como quase toda a estrutura da grandiosa “Exhibition” realizada em um imenso terreno de Wembley Park, no subúrbio de Londres, a ideia original era simplesmente demolir o estádio logo em seguida, uma vez que desde o começo a estrutura era considerada financeiramente inviável.

Isso só não aconteceu porque o investidor imobiliário James White teve a ousada ideia de adquirir o que sobrou do evento, especular sobre a estrutura e repensar sobre a demolição do estádio. White morre pouco depois (em suicídio, em razão de problemas financeiros) e quem acaba ficando com o Wembley é seu funcionário, o jovem Arthur Elvin, um rapaz de 25 anos que havia lutado na guerra e depois trabalhado como vendedor de cigarros em um quiosque da “Exhibition” (!). 

Foi Arthur Elvin quem se responsabilizou, ao longo de muitas décadas, por manter o gigantesco estádio de Wembley de pé, através de uma sociedade criada para adquirir a estrutura. O fato era que praças daquela magnitude não eram comuns. Era uma época em que os clubes esportivos de futebol e rugby já construíam as suas próprias praças desportivas que, ainda que com menor capacidade, já eram capazes de receber públicos de mais de 60 mil espectadores (como se imagina, em condições bem pouco confortáveis).

Diferente do que ocorreu no Brasil e nos principais centros do futebol da Europa nas décadas seguintes, a Inglaterra não costumava erguer grandes estádios públicos. Isso obrigava a Football Association (FA, a federação inglesa) a buscar acordos para utilizar praças esportivas, companhias privadas e clubes (que já eram em sua maioria sociedades limitadas) na ocasião da grande final da FA Cup – prioritariamente na capital Londres.

Wembley recebeu a final da última Eurocopa entre Inglaterra e Itália — Foto: Lee Smith/Reuters

A FA Cup, que em 2023 será disputada entre Manchester United e Manchester City, é a competição de futebol mais antiga do mundo ainda em disputa, realizada desde 1872. Só não havia completado 50 anos quando da inauguração do Wembley porque foi interrompida por quatro edições durante a I Guerra Mundial.

É de se imaginar, portanto, o tipo de sensação de “tradição anual” que cinco décadas de um evento quase ininterrupto provocava na população local. Não apenas torcedores dos clubes finalistas, mas o público em geral se excitava para assistir ao evento decisivo da competição. O fluxo de pessoas no sofisticado sistema ferroviário britânico aumentava consideravelmente rumo a Londres e a própria população da metrópole se mobilizava em massa para testemunhar a final da copa.

É certo que já havia registros de finais com mais de 100 mil presentes no estádio Crystal Palace, como em 1901 (110 mil); em 1905 (101 mil), em 1913 (121 mil). Entretanto, em razão de problemas financeiros dos proprietários desse estádio, a final da FA Cup passou a ser realizada em Stamford Bridge após a guerra. Um estádio menor que não comportava a demanda desse grande evento anual – que recebeu no máximo 72 mil espectadores.

É em virtude desse quadro pouco estruturado de estádios que a FA vai se interessar no projeto de construção do Wembley e definir, ainda em 1921, que esta seria a sede da final da FA Cup de 1923. É quando a história começa a acontecer.

Artigo publicado originalmente no site GE.Globo.com, em 28 abr. 2023 por Irlan Simões.

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LEME recebe inscrições para o seminário “Nos gramados da democracia”

O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte – LEME realiza, de 22 a 24 de agosto, o Seminário LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia. O evento contará com a presença de profissionais de mercado, como o jornalista Caco Barcellos (Globo), Marcelo Barreto (Sportv) e Fabi Alvim (Sportv). Dentre os pesquisadores que já confirmaram presença, temos nomes como: Ronaldo Helal (UERJ), Lívia Magalhães (UFF), Adriano Freixo – (UFF), Renato Coutinho – (UFF), Rosana da Câmara (UFF), Nicolás Cabrera (UERJ/CONICET). O seminário conta ainda com a participação de Luiz Cláudio do Carmo, o Claudinho, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas). As palestras acontecerão no horário da noite e as discussões em GTs temáticos no decorrer dos dias. Para isto, o Laboratório receberá resumos expandidos de 5 de maio a 30 de junho.

O Seminário Internacional LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia busca promover discussões de cunho acadêmico e transdisciplinar, versando sobre a relação entre democracia e esporte. São bem-vindos trabalhos que perpassem pelo contexto histórico como: uso da Seleção Brasileira na propaganda política em regimes autoritários, apropriação da camisa da seleção por grupos de direita e extrema direita recentemente e ainda tentativas de resgate e preservação da democracia no país. Vale lembrar que são diversos os exemplos de práticas de liberdade promovidos por atletas, jornalistas, movimentos de torcidas e tantos outros atores sociais vinculados ao esporte, configurando-se, assim, como espaço de manifestação popular de reivindicação de direitos das mulheres, da população negra, LGBTQIA+ e tantas outras lutas cotidianas.

GRUPOS DE TRABALHO

GT1- Esporte, cidade e identidades

O esporte desempenha um papel fundamental tanto na construção quanto na afirmação de uma pluralidade de identidades que atuam dentro e fora de fronteiras territoriais. Essa relação com a territorialidade confirma a necessidade de compreensão do esporte como prática que se entrecruza com o espaço urbano, estabelecendo com ele uma trama de relações e significados que põe em movimento o jogo das identidades em um contexto de tensionamentos entre o local e o global.

Debatedor(a): Édison Gastaldo (CEP/Forte Duque de Caxias)

GT2- Mídia, esporte e representação

A mídia, gradualmente, se consolidou como um importante veículo mediador entre os esportes e o público, participando não apenas da circulação, mas também da produção de um vasto imaginário construído em diálogo com uma série de representações presentes dentro e fora do território esportivo. As representações produzidas são um material cuja análise pode nos possibilitar o acesso às tensões e contradições dos valores e discursos que estão em jogo.

Debatedor(a): Ana Carolina Vimieiro (UFMG)

GT3 – Estádios, arenas e os modos de torcer

A diversidade dos modos de torcer fomenta variadas possibilidade de construção identitária de torcedores e torcedoras nas arquibancadas. Essa pluralidade torna o ato de torcer um fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, e que faz dele um lócus de análise das reações, adaptações e resistência às mudanças ocorridas no cenário futebolístico, sobretudo em diálogo com as transformações geradas pelo intenso processo de mercantilização e midiatização dos eventos esportivos.

Debatedor(a): Antonio Jorge Soares (UFRJ)

SOBRE OS TRABALHOS

Devem ter no mínimo 7.000 e no máximo 12.000 caracteres, necessitam estar no template do evento. Devem ser enviados para o email: gramadosdademocracia@gmail.com . Serão aceitos para análise resumos em Português ou Espanhol e que versem sobre um dos GTs. Não será possível o envio de um mesmo resumo ou de resumos diferentes para mais de um GT. Serão aceitos textos de estudantes de graduação, pós-graduação e de pesquisadores. Um mesmo trabalho poderá ser escrito por até duas pessoas. Não será necessário o envio posterior de trabalhos completos. Há a possibilidade de publicação de anais.

AS APRESENTAÇÕES

Vão ocorrer de modo presencial, na UERJ- Campus Maracanã, no décimo andar. É necessário que pelo menos um dos autores esteja presente.

TAXA DE INSCRIÇÕES

O pagamento será realizado, somente após a divulgação da lista de aprovados e deverá ser feita diretamente para uma instituição a ser divulgada. O pagamento deve ser de no mínimo R$10 para estudantes de graduação e R$20 reais para graduados, pós-graduandos e pesquisadores. Sugerimos que, se possível, valores a mais sejam depositados. O comprovante de depósito deve ser enviado para o email gramadosdademocracia@gmail.com. Não será cobrada taxa de inscrição para ouvintes.

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O “eixo Rio-São Paulo” e a desigualdade do futebol brasileiro

Enquanto nordestino, venho utilizando este espaço no site Comunicação e Esporte para tratar de algumas especificidades sobre representação midiática dos clubes locais. Além de outras questões mais teóricas ligadas à Economia Política da Comunicação (EPC) aplicada ao futebol.

Para a coluna deste quadrimestre, minha pretensão era me voltar a um texto do segundo grupo, discutindo uma produção teórica da década de 1980 sobre futebol. Porém a nota oficial conjunta de quatro clubes de Rio de Janeiro e São Paulo sobre a regulação de apostas esportivas me chamou a atenção. Explicarei o porquê.

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Clubes de Rio de Janeiro e São Paulo se uniram na publicação de uma nota sobre apostas esportivas. Divulgação: Twitter/Palmeiras

Momento crucial para o futebol brasileiro

A extensão da mercantilização sobre o futebol é tema de constantes pesquisas nas últimas décadas minhas e de outros colegas, alguns inclusive ligados ao Leme (Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte). 

A procura para maior acumulação de capital a partir de um elemento com tamanha importância sociocultural domina o debate acadêmico com demonstração de preocupação. 

É desse caminho que apareceram as críticas à “arenização” dos estádios, gentrificação no entorno deles e a partir dos megaeventos esportivos no Brasil e à preocupação com a empresarização dos clubes, com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol sendo o ápice disto.

Do outro lado da moeda, a discussão sobre aproveitar melhor as receitas que o futebol supostamente pode dar sempre esteve presente. Mas, para isso, era preciso uma melhor organização do futebol brasileiro.

Há cerca de dois anos, dirigentes de clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro discutem uma melhor organização do futebol a partir de uma liga de clubes. Mas a divisão entre Forte Futebol e Libra mostra que é um caminho difícil, especialmente no que se refere a dividir melhor as receitas entre os clubes numa mesma competição – e para divisões inferiores.

Esta é uma das diferenças que não permitiram ainda unidade para uma proposta de liga no futebol brasileiro que possa começar em 2025, primeiro ano de um novo ciclo contratual de direitos de transmissão.

É justamente neste momento que Botafogo, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco resolveram se posicionar de forma isolada sobre receitas oriundas de apostas esportivas. A seguinte frase me chamou bastante atenção e, supostamente, justificaria esta atitude por fora, inclusive, da Libra, à qual todos estão ligados: “é inegável que o maior volume de transações feitas se dá em face dos grandes clubes do futebol brasileiro”.

Para mim, é um tema que poderia entrar facilmente no debate da liga, afinal, traria mais vozes para serem ouvidas e gerariam uma sinalização ao mercado de unidade para negociações futuras. Não foi esta a opção.

O “eixo”

Se quem me lê agora já ouviu alguém que torce para equipe do Nordeste, deve ter ouvido falar de tratamento desigual histórico, econômico e midiático. Na busca pela hegemonia do capital esportivo no futebol brasileiro, locais com maior industrialização e melhores relações políticas concentraram empresas, matrizes de veículos de comunicação nacionais, melhores relações políticas e, consequentemente, clubes que puderam nacionalizar ou contar com mais recursos.

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Imagem via satélite das luzes noturnas formando o “eixo” entre Rio de Janeiro e São Paulo. Divulgação: Anderson Santos

“G12” é um termo muito utilizado pela cobertura esportiva dita nacionalizada para tratar dos 8 clubes supracitados que assinaram a nota, agregados a Cruzeiro, Atlético-MG, Grêmio e Internacional. De vez em quando, um colunista ou outro tenta incluir Bahia ou Atlético-PR nesse grupo – curiosamente, não lembro de citação ao Fortaleza nisso.

Enquanto alguém que já atuou em mídia alternativa nordestina (o podcast Baião de Dois, da Central 3), não era incomum ver torcedores mineiros e gaúchos reclamarem também de tratamento midiático diferenciado. Pois então temos os próprios 8 clubes se considerando como “Grandes Clubes do Eixo RJ x SP”. 

“Eixo”, uma palavra que às vezes parece incomodar até parte mais progressista da mídia esportiva e da torcida dessas equipes por, talvez, sinalizar uma construção hegemônica que, definitivamente, não passa por “meritocracia”.

Mas há quem prefira reclamar de uma reação simbólica de parte da torcida (faixas “Vergonha do Nordeste” nos estádios) ou campanhas pontuais de clubes (como Fortaleza e Bahia, recentemente), que discutir como esses clubes acreditam que, realmente, só eles precisam ser ouvidos pelo poder público federal.

Lembrando ainda que na discussão sobre aprovação da Lei do Mandante e da Lei da SAF, houve representação de clubes direcionada para reuniões em Brasília após decisão coletiva. Isso para 2021. O que mudou de lá para cá?

E agora?

De lá para cá, o governo federal recebeu os clubes sem qualquer problema, assim como outros agentes. As casas de apostas, por exemplo, já criaram ou estão em três associações diferentes no Brasil, sinalizando que querem a regulação do mercado – que possibilitará também uma estabilidade neste, com provável concentração oligopólica.

Vale salientar que a muito necessária proposta de regulação das casas de apostas esportivas, seguindo a Lei nº 13.756/2018 que possibilitou que elas funcionassem para brasileiras/os, deveria ter saído em 2020. Entrou na agenda inicial do atual governo federal por só gerar receitas via impostos ao Estado na tributação do Imposto de Renda sobre ganhos de jogadores, mas nada de quem lucra com isso (as empresas).

Mas, por fim, não recordo de ter qualquer pressão naquele movimento de 2021, início de uma tentativa de unidade dos clubes, sobre este tema. Conseguiu-se aprovação de duas leis, uma delas a partir de Projeto de Lei do executivo, o que dá caráter de urgência à votação.

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Um homem possível

No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Créditos: O Dia.

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram. Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto para esse blog, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências


GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.

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Das “Copas Clandestinas” às edições televisionadas: o futebol de mulheres

Por Nathália Fernandes

O leitor e a leitora que acompanham meus textos já sabem que, por aqui, procuro sempre trazer algum assunto que relacione futebol, política e o panorama atual da nossa sociedade. Neste texto, trato especificamente do futebol de mulheres e da Copa do Mundo de futebol de mulheres que, em 2023, será realizada na Austrália e na Nova Zelândia. Desde 1991, a FIFA organiza uma Copa do Mundo de Futebol Feminino a cada quatro anos, mas nem sempre foi assim. Nesse sentido, vamos conversar um pouco sobre as proibições ao futebol de mulheres e de que maneira esse histórico se reflete nos campeonatos organizados para a categoria até os dias de hoje.

O futebol de mulheres foi proibido no Brasil pelo decreto nº 3.199 de 14 de abril de 1941. Este decreto não foi o primeiro cerceamento explícito ao futebol de mulheres no mundo, uma vez que vinte anos antes, a Federação Inglesa de Futebol (FA) já havia proposto um documento que estabelecia o banimento do futebol de mulheres e proibia sua prática nos campos e clubes dos times associados à federação. Contudo, mesmo com as proibições vigentes, as mulheres inglesas e brasileiras seguiram praticando o esporte, ainda que de maneira mais escondida.

Jornal no Museu do Futebol em SP. Reprodução.

Entretanto, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o futebol de mulheres ganhou cada vez mais evidência ao redor do mundo, fazendo com que clubes e times se formassem para a prática do esporte. Na década de 1960, o banimento inglês foi revogado, e algumas federações, como a Federação Italiana de Futebol Feminino, foram criadas.

Essa federação, com o apoio e o patrocínio de alguns empresários que passaram a ver no futebol de mulheres uma fonte de público e renda, iniciou um projeto para criar uma “Copa do Mundo” de futebol de mulheres.[i] As duas edições, realizadas na Itália e no México em 1970 e 1971, respectivamente, chamaram a atenção da sociedade, da mídia e, claro, da FIFA. Esses torneios, que se intitulavam “Campeonatos mundiais femininos,” não eram reconhecidos, nem organizados pela FIFA, entidade máxima gestora do Futebol Association. Por isso, são chamadas de “Copas Clandestinas”.[ii]

A edição de 1970 foi sediada na Itália. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, a cidade de Turim foi escolhida para sediar a final do campeonato por ser considerada o berço do futebol masculino italiano no final do século XIX. As outras partidas aconteceriam nas cidades de Nápoles, Palermo, Roma, Bolonha, Gênova e Milão.[iii] Ainda não foi possível confirmar se todas essas cidades efetivamente sediaram os jogos da Copa de 1970 – por falta de cobertura da imprensa –, mas há registros de que, na partida final disputada em Turim, a Itália foi derrotada pela Dinamarca pelo placar de 2×0.[iv]

A Copa de 1971, realizada no México, obteve uma maior cobertura das imprensas brasileira e mexicana – e foi o mundial feminino que mais chamou a atenção da FIFA. Jornais do México traziam reportagens de destaque sobre o evento no país. Em notícia intitulada “Copa del Mundo para Mujeres”[v], o jornal destacou o fim do banimento inglês, a realização de jogos entre selecionados da Grã-Bretanha e ainda a criação de uma Liga Inglesa de Futebol Feminino. A notícia ainda mencionava a criação da Copa do Mundo Feminina naquele ano. O interessante aqui é a ênfase dada à luta das mulheres – nesse caso, sobretudo as inglesas – para o reconhecimento e a validação da prática do futebol de mulheres, que vinha sendo praticado sob ares proibitivos havia décadas.

Copa Mundo Feminina ocorrida no México em 1971. Reprodução.

Em outra reportagem nomeada “La ‘fuerza’ de las italianas contra la técnica argentina”[vi], o periódico narrou a disputa pelo terceiro lugar, sediada na Cidade do México. É interessante observar que a nota efetivamente destacava qualidades técnicas de ambas as equipes e reproduzia o questionamento do técnico argentino quanto à arbitragem do mundial. Diferente do que acontecia em outras reportagens, esta não destacava os atributos físicos das jogadoras. A nota mencionava ainda a necessidade da apresentação de ingressos para a entrada no estádio e declarava que a partida seria disputada e interessante.

Na imprensa brasileira, a cobertura do mundial assumia ares um pouco distintos. Em notícia do Jornal dos Sports, lê-se que a segunda Copa agora seria organizada pela Federação Internacional de Futebol Feminino. De acordo com a mesma reportagem, “foi um torneio bem organizado, que os homens consideraram uma reação superentusiástica das mulheres à atuação dos astros como Pelé, Riva e Bobby Moore, que disputaram a última Copa do Mundo de futebol masculino no México”.[vii] É interessante perceber que, mesmo elogiando o campeonato organizado em 1970 e reconhecendo seu sucesso, o jornal, de certa maneira, menosprezava o interesse das mulheres em praticar futebol, associando a criação dos eventos a uma “reação entusiástica” à Copa masculina, realizada no México no ano anterior.

Em outra reportagem do Jornal dos Sports sobre o II Campeonato Mundial Feminino, o texto afirma que os mexicanos estavam se preparando com muito afinco para o campeonato e que lamentavam que o Brasil – considerado, segundo a notícia, o país com o melhor futebol de mundo – não participaria do evento. A reportagem terminava afirmando que os mexicanos “esperam que o Mundial de Futebol Feminino seja um sucesso sob o ponto de vista técnico, porque o êxito em termos de turismo já está praticamente garantido, já que muita gente quererá ver de perto se as garotas curvilíneas batem bem na bola como os marmanjos.”[viii]

A partir da reportagem citada acima, é possível reiterar o que já foi apontado em outros textos: os estereótipos baseados na feminilidade e a beleza que se espera das mulheres permanecem presentes nos discursos da imprensa e da sociedade, mesmo em locais onde a prática desse esporte é permitida – e mesmo durante um torneio. É interessante ressaltar que a reportagem não questiona se a expectativa de ter um grande público poderia ou não se basear na capacidade tática e técnica do jogo praticado. Pelo contrário: para o redator, a presença de público estaria garantida porque as meninas curvilíneas estariam em campo e iriam despertar a curiosidade do público para ver se sabiam ou não bater bem na bola.

Tais reportagens apresentam dois aspectos importantes. O primeiro diz respeito ao contraponto do tom adotado pela imprensa dos dois países – México e Brasil – acerca do campeonato. Enquanto a primeira destacava fatos sobre o evento, a segunda sempre ressaltava aspectos do corpo feminino – o que estava em acordo com o senso comum referente à prática do esporte no país à época: o futebol deveria ser praticado apenas por homens.

Copa Mundo Feminina ocorrida no México em 1971. Reprodução.

Além disso, é digno de nota que poucos jornais se preocuparam em referenciar os campeonatos femininos. No México, além do El Informador, o jornal Sol de México também apresentou algumas reportagens sobre as copas; enquanto no Brasil, em pesquisas feitas por mim, somente nas edições do Jornal dos Sports foi encontrada alguma referência sobre os eventos.

Um segundo ponto diz respeito ao destaque que o evento ganhou. É evidente que a Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino era um campeonato muito mais famoso e que recebia muito mais atenção da imprensa e do público mundial. Porém, é necessário ressaltar a atenção que um campeonato “clandestino” – ou seja, sem o aval da entidade gestora do futebol mundial – recebeu na imprensa internacional, inclusive de países nos quais a modalidade era proibida por lei, como no caso brasileiro.

As mudanças no caminho: Rumo às edições televisionadas

A FIFA assumiu as rédeas da organização e da gerência do futebol de mulheres no final dos anos 1980, quando a modalidade já havia sido liberada e regulamentada no Brasil. Em 1991, a China sediou a 1ª Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, demarcando que, a partir dali, o controle do futebol de mulheres estaria nas mãos da entidade – e mais, desconsiderando os mundiais que tinham acontecido anteriormente, relegando-os à “clandestinidade”.

Como já foi apontado por mim em outros textos, a proibição da modalidade e toda tentativa de apagamento deixaram legados à prática desse esporte ainda hoje. Foi somente em 2019 que o Grupo Globo transmitiu, pela primeira vez, a Copa do Mundo de Futebol Feminino no Brasil. Nos anos subsequentes, o grupo passou a transmitir partidas de outros campeonatos, como campeonatos estaduais (mesmo que a grande maioria dos jogos tenha sido transmitida em canais por assinatura pertencentes ao grupo, e não na TV aberta).

2023, como foi dito, é ano de Copa do Mundo de Futebol Feminino. O evento, que será sediado na Austrália e na Nova Zelândia, acontecerá entre os meses de julho e agosto e será o primeiro a contar com 32 seleções e a adotar formato semelhante ao que vigorou até 2022 para o futebol masculino. Contudo, se compararmos ao futebol de homens – que mesmo com o mundial tendo sido realizado em novembro de 2022, já contava com reportagens e coberturas especiais desde o início do ano –, a mídia ainda está um pouco silenciosa em relação à cobertura do evento.

Neste ano, o Grupo Globo também irá transmitir um novo campeonato de futebol de mulheres: a Supercopa de Futebol Feminino. O torneio teve sua primeira edição em 2022 e, para este ano, já há confrontos e tabela liberada pela CBF. O campeonato se iniciou no dia 4 de fevereiro e inaugurou o calendário de transmissões de futebol feminino na Globo.

Final do Campeonato Brasileiro Feminino A-1 – Corinthians x Palmeiras. Créditos: Staff Images Woman/CBF. Reprodução.

Todavia, esse campeonato despertou comentários e indignação de mulheres envolvidas na modalidade por conta da premiação. A Supercopa Masculina deste ano teve a premiação de R$ 10 milhões para o campeão e de R$ 5 milhões para o vice-campeão – os maiores valores já pagos na competição. Para as mulheres, contudo, às vésperas do início da competição, a CBF ainda não tinha divulgado o valor dos prêmios. Como na edição de 2022 não houve prêmio, ocorreram muitos comentários e chacotas nas redes sociais.

Segundo reportagem de página esportiva, a técnica do Atlético Mineiro teria ironizado em suas redes sociais que a premiação da Supercopa Feminina seria “andar de ônibus”. Outra atleta também divulgou em suas redes que a premiação do ano passado havia sido “50 medalhas e 1 troféu”. O debate nas redes sociais tem se apresentado entre, de um lado, pessoas que defendem uma maior valorização do futebol feminino – inclusive, reivindicando premiações semelhantes às do masculino – e, de outro, aqueles que não veem sentido nas reclamações.

No fim das contas, foi divulgado um pagamento para o torneio no valor de 500 mil reais para o time vencedor e de 300 mil para o segundo colocado. Após as cobranças nas redes, a própria CBF divulgou a notícia sobre o valor da recompensa em sua página, chamando a premiação para o torneio de histórica.

Sem entrar no mérito do debate, acredito que, a partir do que foi exposto neste texto, podemos chegar a duas conclusões: a primeira e mais direta é que o futebol de mulheres ainda tem um caminho importante a percorrer no sentido da igualdade de condições e, também, de premiações. A segunda diz respeito à história do futebol de mulheres. A tentativa – inclusive fomentada pela FIFA – de apagamento de competições e práticas do futebol de mulheres, faz com que a modalidade perca ainda mais sua bagagem e credibilidade aos olhos de parcelas da sociedade. Alguns grupos apareceram em comentários de redes sociais – diante da demora da CBF em divulgar o valor da premiação – justificando o seu não pagamento. O principal argumento utilizado por eles era o de que o futebol de mulheres é recente e que ainda precisava se aprimorar e adquirir mais tempo de jogo para que a igualdade aconteça.

Isso, como sabemos, não é verdade: as mulheres praticam futebol no Brasil desde, pelo menos, o início do século XX e, apesar das dificuldades e proibições no país e no mundo, seguiram se dedicando ao esporte. A duras penas, elas conseguiram reconhecimento e a proposição de campeonatos que, a cada ano, se multiplicam e atraem cada vez mais público e renda. Qual seria, então, a justificativa para a demora na divulgação do valor, ou ainda, para o pagamento de um valor tão inferior – chamado de “histórico” – para a competição feminina? Essa, sim, é uma pergunta que deveria fomentar inúmeros debates e que, ao fim e ao cabo, reflete a discriminação de gênero presente de maneira geral nos esportes e, de maneira específica, no futebol.

A busca pela visibilidade e igualdade no futebol de mulheres é algo que precisa ser constante. Mesmo quando existe uma conquista, a dificuldade em obter igualdade de condições se apresenta. É somente com o conhecimento da história e da historicidade dessa modalidade, de suas proibições e permanências, que poderemos ampliar a luta por respeito e igualdade no futebol.

Notas

[i] “Turim vai ter em julho a primeira Copa do Mundo de futebol para as mulheres”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 de março de 1970, p. 22. [ii] “Mais uma”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 16 de julho de 1970, p. 2. [iii] O termo “Copa do Mundo” é usado aqui entre aspas pois o nome do campeonato está diretamente relacionado àqueles organizados pela FIFA. No caso das copas mencionadas, não é a entidade responsável pela organização.

[iv] Uso aqui o termo “Copas Clandestinas” como mencionado por Jean Williams, em seu livro que menciona os mundiais. Nos documentos da própria FIFA, o evento é referido como “Os assim chamados Campeonatos Mundiais femininos” (Tradução livre). Cf. WILLIAMS, Jean. Globalising Women’s football. Europe, Migration and profissionalization. Berna: Peter Lang AG, Internationaler Verlag der Wissenschaften, 2013.

[v] El Informador. Guadalajara, 3 de junho de 1971, p. 5.

[vi] El Informador. Guadalajara, 2 de setembro de 1971, p. 1. [vii] “Um futebol diferente”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 14 de julho de 1971, p. 2.

[viii] “Elas também dão no couro”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1971, p. 2.

Texto postado originalmente por Nathália Fernandes no dia 10/04/23, na página História da Ditadura. Link da matéria original: https://www.historiadaditadura.=com.br/post/das-copas-clandestinas-as-edicoes-televisionadas

Referência do artigo: FERNANDES, Nathália. Das “Copas Clandestinas” às edições televisionadas: o caminho das competições de futebol de mulheres. História da Ditadura, 10 abr. 2023. Disponível em: [https://www.historiadaditadura.=com.br/post/das-copas-clandestinas-as-edicoes-televisionadas]. Acesso em: 25 abr. 2023.

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Recreio sem futebol

Antes mesmo da posse, a ministra do Esporte, Ana Moser, deixou clara a prioridade da pasta, recriada após quatro anos: promover acesso universal e igualitário à prática esportiva. Após o ciclo encerrado de megaeventos no Brasil e de investimentos bilionários em um grupo seleto de atletas de ponta, o orçamento agora tem outro foco [1], pelos próximos quatro anos: o esporte na escola.

O objetivo é combater o sedentarismo, promover igualdade de gênero, reduzir a agressividade entre os alunos, promover sociabilidade entre os jovens e tirá-los da rota das drogas. Mas e se isso começasse justamente desmontando aquilo que mais simboliza a educação física, a típica quadra de futebol?

 Pátio do colégio Nossa Senhora de La Paloma, em Madrid. Foto: Claudio Álvarez

Arquitetos verificaram como é positivo para o cotidiano escolar que as duas traves não sejam o centro das atenções de um pátio. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Viena [2] analisou o design e a estrutura de 20 áreas de recreação de escolas austríacas.

Os pesquisadores concluíram que os meninos ocupam o espaço do pátio com o futebol, enquanto as meninas permanecem em lugares periféricos, menores e realizavam atividades com menor gasto calórico. Nem a maior difusão do futebol feminino foi capaz ainda de mudar o apartheid entre os gêneros nas áreas de recreação, que são 80% “futebolcêntricas”, segundo a Equal Saree [3], organização não-governamental de arquitetura e urbanismo feminista na Espanha.

Para mudar esse cenário, as arquitetas da Equal Saree mudaram a dinâmica dos pátios de algumas escolas. Novas modalidades, como o vôlei, foram incluídas, mas o difícil rompimento com o esporte dominante resultou em interações mais igualitárias. As meninas aumentaram a atividade física, o jogo ficou mais compartilhado, e o recreio foi ocupado de forma mais equilibrada pelos alunos, que mudaram a percepção equivocada que tinham do futebol e de outros esportes serem apenas masculinos.

Nas avaliações, os alunos também afirmam sentir maior conforto e redução de conflitos após a reformulação dos pátios. Portanto, o modelo tradicional de quadra de futebol transmite uma imagem “cinzenta”, de muito cimento e “pesada” para quem a utiliza e quer um equipamento esportivo mais tranquilo e com mais vegetação, por exemplo.

No Brasil, no entanto, o desafio não é só pensar em uma adaptação, mas também construir do zero. Levantamento feito pelo Ministério da Cidadania, em 2021, aponta que quase metade das escolas de educação básica do país não tem nenhum espaço para os alunos praticarem esporte [4].

Referências:

[1] Ana Moser toma posse e diz que prioridade será esporte para todos, não alto rendimento. Folha de S.Paulo, 4 de janeiro de 2023. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2023/01/ana-moser-toma-posse-e-diz-que-prioridade-sera-esporte-para-todos-e-nao-alto-rendimento.shtml>. Acesso em: 20 abr. 2023.

[2] Disponível em: <https://www.univie.ac.at/schulfreiraum/index.htm>. Acesso em 20 abr. 2023.

[3] Disponível em: <https://equalsaree.org/wp-content/uploads/2018/03/Patis-igualitaris_-Equal-Saree_-Article-Vocento_Ganar-el-Patio.pdf>.  Acesso em 20 abr. 2023.

[4] Quase metade das escolas brasileiras não têm local para prática de esporte. UOL, 14 de dezembro de 2021. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar-olimpico/2021/12/14/quase-metade-das-escolas-brasileiras-nao-tem-local-para-praticar-esporte.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 20 abr. 2023.

Artigos

Futebol: entre o sagrado e o profano

Embora devido à força popular o futebol tenha adquirido um caráter sagrado, especialmente no Brasil onde não faltam trabalhos acadêmicos que ressaltem o locus futebolístico como um espaço fértil para se pensar articulações do esporte inclusive com a religião, pode-se dizer, também, até pela própria natureza dialógica do discurso (BAKHTIN, 2002), que o sagrado por si só pressupõe o profano. Transportando essa reflexão para o contexto atual, em especial para a discussão a que se propõe este artigo, que tem por objetivo pensar nas implicações dos usos das ferramentas tecnológicas e das regras para tornar o futebol ainda mais atrativo para o consumidor, pergunta-se: o “sagrado” ou sobrenatural sobreviverá ao secular? Se ao invés da goleada do título, no domingo passado, o Fluminense tivesse sido derrotado pelo Flamengo como na final do Campeonato Carioca de 1991, quem seria o vilão? O árbitro ou o Sobrenatural de Almeida, personagem de Nelson Rodrigues que era responsabilizado por tudo de ruim que acontecia ao tricolor das Laranjeiras?

Essa discussão vem ao encontro das últimas decisões tomadas em Londres durante a reunião da IFAB (International Football Association Board), órgão da Fifa que regula o futebol mundial. [1] Ideias ventiladas antes do encontro apostavam para mudanças significativas nas regras do esporte mais popular do mundo que, segundo dados divulgados no ano passado pela Fifa [2], movimenta cerca de US$ 286 bilhões por ano. Com as cifras girando em torno do valor do PIB da Finlândia ainda existe espaço para pensar no esporte apenas como paixão ou, como diria Rita Lee, como poesia?

Há quem acredite que esse romantismo tenha diminuído bastante e seja quase uma coisa do passado, como o ex-árbitro FIFA Claudio Vinícius Cerdeira, que fazia parte da comissão de arbitragem da CBF até abril do ano passado.

“Hoje em dia você vê muito jogador que ama o clube até o momento que não aparece uma proposta um pouquinho melhor de outro clube. Aí ele passa a amar o outro. E se aparecer no ano seguinte uma proposta melhor de um terceiro clube, ele beija o escudo e a nova paixão dele passa a ser o novo clube. Então, realmente o romantismo hoje não tem mais espaço no futebol porque as cifras envolvidas são muito grandes. Os salários dos jogadores hoje são uma coisa fora do normal. O romantismo ficou em quinto plano. Nós tivemos aí craques de futebol no passado, até num passado recente, que não ganhavam a décima parte que um menino vindo das categorias de base e subindo para equipe dos profissionais ganha hoje em dia. Hoje se fala num salário de R$ 800 mil, R$ 1,5 milhão. É uma coisa de louco. Não tem mais romantismo. Tem é dinheiro no bolso. Tem o clube que paga mais e o jogador passa a amar, passa a beijar o escudo. Fora isso, o romantismo é perto de zero”, constata (CERDEIRA, 2023).

Mas para o torcedor, a paixão pelo time de coração continua em alta. Haja vista as costumeiras reações às derrotas, que vão do choro à revolta. No meio desse misto de sentimentos, muitas vezes está o árbitro, frequentemente vítima de agressões e ofensas morais dentro e fora de campo. E, num país em que a impunidade ainda impera, frequentemente os jogadores se livram de uma punição mais rigorosa. Tudo em prol do espetáculo. E é justamente para manter a espetacularização do esporte e minimizar os erros dos árbitros que foi implantado na Copa da Rússia o sistema eletrônico de apoio à arbitragem, conhecido como VAR (Video Assistant Referee). A tecnologia, usada em situações que envolvam lances duvidosos ou possíveis cartões vermelhos, hoje, até pelos vultosos investimentos dos clubes, é considerada imprescindível em jogos importantes de qualquer campeonato de futebol. Ainda mais porque competições importantes como a Copa do Brasil, a Libertadores, a Sul-Americana têm premiação por fases, o que torna cada jogo decisivo na medida em que quantias importantes para os clubes estão em jogo e, justamente por isso, erros são inadmissíveis. Daí a importância do VAR, como explica Cerdeira.

Fonte: acervo pessoal Cláudio Cerdeira

O VAR chegou para corrigir erros grosseiros que a gente via na televisão. O árbitro só tinha um ângulo de visão e muitas vezes era humanamente impossível observar todos os detalhes de um determinado lance. O VAR tem no mínimo oito câmeras para o árbitro consultar. Tem a câmera um, a câmera que aproxima, a câmera lenta, a câmera invertida. Então, você disseca o lance e a decisão é muito mais correta. Os erros grosseiros não acontecem mais. Pode acontecer um ou outro erro porque na verdade o VAR é um outro árbitro. Então, ele pode interpretar de uma forma e, o árbitro de campo, de outra. E, mesmo com todas as câmeras, algumas situações ainda provocam dúvidas e decisões controversas. Uns acham que sim, outros que não. Isso faz parte do futebol (CERDEIRA, 2023).

Cerdeira sabe bem o peso que é apitar uma partida decisiva como a que aconteceu no último dia 9 de abril. No Campeonato Carioca de 91, sofreu com as reclamações do Fluminense após ter expulsado dois jogadores. Independentemente de as expulsões terem sido justas e as regras cumpridas, ou não, as polêmicas foram inevitáveis.

Fonte: Lance!

O ex-jogador Junior, que disputou aquela final vestindo a camisa do Flamengo, não lembra de nenhum erro de atuação de Cerdeira.

Fonte: GloboEsporte.com

Cerdeira sempre foi um árbitro muito correto. Quando era escalado dava muita tranquilidade pra gente pela qualidade dele. Mas erros sempre existiram e sempre vão existir por parte da arbitragem porque eles são humanos, né? Ainda mais quando você tem regras de interpretação. No entanto, na minha opinião, agressões a árbitros deveriam receber penas bem severas. Não tem nem o que discutir (JÚNIOR, 2023).

Essas agressões voltaram a se repetir no estadual deste ano. No primeiro FlaxFlu da decisão, o árbitro Wagner Nascimento Magalhães depois de dar o cartão vermelho para o jogador Samuel Xavier acabou tendo que expulsar também o técnico do Fluminense, Fernando Diniz, por causa de um xingamento. Embora nas duas situações o árbitro estivesse respaldado pelo regulamento, as revoltas só foram amenizadas após a goleada do segundo jogo, que contou com uma arbitragem ainda mais cuidadosa.

Portanto, se as polêmicas e o nervosismo fazem parte das decisões, tudo indica que a comunicação do VAR com público não vá resolver de todo o problema. No entanto, a oportunidade de os árbitros poderem apresentar explicações para os espectadores presentes ou não no estádio, o que já acontece no futebol americano, promete dar mais transparência às decisões tomadas após o auxílio do VAR. A primeira experiência aconteceu no Mundial de Clubes, no Marrocos, quando as imagens do VAR foram transmitidas no telão no estádio, e serão novamente testadas no mês que vem, na Indonésia, no Mundial Sub-20 e, também, no Campeonato Brasileiro. A ideia da IFAB é fazer uma avaliação durante 12 meses para poder optar com segurança pela implantação definitiva do sistema.

O comentarista Junior acha a iniciativa de mostrar nos telões o que está sendo checado pelo VAR bem interessante.

Você tem a participação do próprio público que no momento também vai ver e decidir o que está sendo analisado pelo árbitro. Essa tecnologia veio para contribuir, sim, apesar de ainda termos muitos problemas com quem opera o mecanismo do VAR. Mas eu acho que é justo usar o VAR porque é muito difícil você perder um jogo por uma jogada ilegal. Tudo que for trazido para tornar o futebol mais justo é importantíssimo (JÚNIOR, 2023).

Fonte: Divulgação/FIFA

Outrossim, algumas mudanças vistas com bons olhos por parte da torcida como a substituição do relógio corrido pelo relógio parado, como acontece nas partidas de basquete, não têm prazo definido nem para implantação nem para teste. Embora a questão do tempo perdido durante as partidas seja bastante sensível também para as associações britânicas, que detêm quatro dos seis votos necessários para mudança de regras no futebol, não foi dessa vez que a mudança passou. A tendência é que os árbitros sigam dando acréscimos longos como os verificados durante a Copa do Catar e apenas algumas restrições para poupar tempo sejam adotadas.

Junior acha muito difícil que essa possibilidade do cronômetro parado venha um dia a ser adotada no futebol.

Eu acho que os acréscimos que fizeram durante a Copa do Mundo em alguns pontos foram até exagerados. Hoje como você tem cinco substituições de cada lado, perde no mínimo três minutos. Aí fica por conta do árbitro os acréscimos. Mas no futebol de campo fica mais complicado adotar o cronômetro parado, não vejo vantagem. A mudança aconteceu no futebol de salão pelas dimensões do campo. Além disso, as mudanças de regras no futebol ao longo da história foram poucas (JÚNIOR, 2023).

Os jogadores poderão continuar comemorando os gols de forma espontânea, claro que com o cuidado de não tirar a camisa ou subir em alambrados. No entanto, todo esse tempo de comemoração passará a ser devidamente medido e acrescido ao tempo de jogo.

Assim como para a filosofia a grande arte do homem seja roubar momentos do tempo para eternidade, o futebol reivindica a própria eternidade durante os 90 minutos. E, para isso, vai tentando diminuir as malandragens com novas regras, como a proibição dos goleiros atrasarem as cobranças de pênaltis, como fez o argentino Dibu Martínez na Copa do Mundo do Catar usando o jogo psicológico para desestabilizar os cobradores.

Mas outras mexidas nas regras ainda ficarão pendentes como a mudança da regra 15, que fala do arremesso lateral. Hoje a regra obriga que o lateral seja cobrado com as mãos embora a possibilidade da cobrança com os pés pudesse dar uma maior dinâmica ao jogo.

Independentemente da aparência de arbitrariedade que envolve essas definições de regras, o rito e a festa do futebol continuam vivos.  Caberá aos jogadores, clubes, árbitros, torcidas e federações derrotarem o caos presente nas disputas pra dotarem de sentido as partidas e manterem, assim, a poesia e a sacralidade do esporte.

Referências

BAKHTIN,Mikhail. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec Annablume, 2002.

CERDEIRA, Claudio Vinícius. Entrevista concedida à Andréa Bruxellas. Rio de Janeiro, 10 de abr. 2023.

ELIADE,Mircea. O sagrado e o profano: a essência das religiões. São Paulo: Martins Fontes, 2001.

JÚNIOR, Leovegildo L.G. Entrevista concedida à Andréa Bruxellas. Rio de Janeiro, 11 de abr. 2023.


[1] Disponível em: < https://extra.globo.com/esporte/ifab-decide-manter-jogos-com-90-minutos-acrescimos-longos-irao-continuar-2567056  > Acesso em: 10 de abr. 2023.

[2] Disponível em: <: https://valor.globo.com/mundo/noticia/2022/09/27/futebol-movimenta-o-equivalente-ao-pib-da-finlandia-diz-presidente-da-fifa.ghtml > Acesso em: 10 de abr. 2023.