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A importância da transmissão audiovisual do Campeonato Alagoano de futebol masculino

O objetivo deste texto é apresentar uma síntese dos resultados do projeto de pesquisa de iniciação científica “A importância da transmissão audiovisual do Campeonato Alagoano de futebol masculino (2007-2023): padrões tecnoestéticos e incentivo ao torcer a times locais”, desenvolvido na Unidade Educacional Santana do Ipanema da Universidade Federal de Alagoas de setembro de 2022 a agosto de 2023.

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Introdução

O futebol profissional masculino se difunde a partir de duas possibilidades: acompanhamento dos jogos nos estádios e a partir da sua versão midiática, com transmissão em audiovisual. No projeto de pesquisa nos interessou a segunda, pois é a que demarca uma importante fonte de receitas e de criação de capital simbólico para aglutinação de torcida.

No caso do futebol brasileiro, a expansão se dá de forma irregular, dada a dimensão territorial do país. A preocupação com torneios nacionais de clubes ocorre apenas em 1959, mas já após o estabelecimento de Rio de Janeiro e São Paulo como centros importantes desta prática esportiva.

Além disso, especialmente a partir da difusão da Rádio Nacional na então capital do país, os clubes do Rio de Janeiro conseguem se espacializar para outros estados ainda na primeira metade do século XX. Da mesma forma, conforme Santos (2021), o desenvolvimento de conglomerados midiáticos que se consideram nacionais, ou são nacionalizados, reproduzem o desenvolvimento socioeconômico desigual do país, o que será definitivo com o modelo de redes de televisão, cujas matrizes ficavam em Rio de Janeiro e São Paulo.

Assim, conseguimos perceber que quando as transmissões audiovisuais dos jogos de futebol ganham a regularidade enquanto programa midiático pertencente às grades de programação, desde os anos 1980, eram as equipes de Rio de Janeiro e São Paulo as exibidas em rede nacional. O que, conforme Figueiredo Sobrinho e Santos (2020), fez com que clubes desses dois estados tivessem ainda maior visibilidade nos noticiários esportivos que os de outros locais.

A opção pelo estadual de Alagoas se deu por se tratar ainda de um Estado com dados socioeconômicos dentre os piores do Brasil, mesmo após os programas de distribuição de renda dos governos do Partido dos Trabalhadores (Gomes, 2014). Além de o primeiro Campeonato Alagoano de futebol masculino totalmente transmitido ter ocorrido apenas em 2007.

O projeto analisou as evidenciações contábeis da Federação Alagoana de Futebol (FAF) e dos clubes ASA (Associação Sportiva Arapiraquense), CRB (Clube de Regatas Brasil) e CSA (Centro Sportivo Alagoano); e o padrão tecnoestético da transmissão do Campeonato Alagoano, considerando ainda resultado de pesquisa de opinião realizada de forma virtual depois da realização do torneio em 2023, que contou com 317 respostas.

Fonte: print a partir do YouTube

Metodologia

O tema foi discutido a partir de investigação qualiquantitativa que usou os métodos bibliográfico, estatístico e descritivo, com apresentação de dados de pesquisa de opinião realizada por formulário digital disponível no Google Forms de 29 de maio a 9 junho de 2023, com 317 respostas.

Pretendemos entender com a pesquisa de opinião, por um lado, os elementos do padrão tecnoestético reproduzidos pela transmissão de um torneio local, ao mesmo tempo em que se tentou verificar o que refletiria o estímulo à identidade alagoana nos elementos estéticos e nas narrações. Por outro, a partir da opinião de torcedores de clubes locais, como o cenário de transmissão de 2023 foi recebido quanto aos seguintes aspectos: narração; qualidade de imagens; valorização dos clubes locais; e reportagem de campo.

Quanto à coleta das informações obtidas das demonstrações contábeis, realizou-se em dois momentos, considerando que os dados de 2022 deveriam ser divulgados até abril de 2023. Após isso foram elaborados gráficos com as receitas e despesas separadas de acordo com os casos de: Receitas das Séries A e B, Copa do Brasil, Copa do Nordeste, direito de transmissões ou Cotas TV, já no caso das Despesas apenas direitos de imagem/arena.

O conceito-chave utilizado na pesquisa foi o de padrão tecnoestético, que representa:

[…] uma configuração de técnicas, de formas estéticas, de estratégias, de determinações estruturais, que definem as normas de produção cultural historicamente determinadas de uma empresa ou de um produtor cultural particular para quem esse padrão é fonte de barreiras à entrada […]. (Bolaño, 2000, p. 235).

Considera-se que o modelo tecno-estético constituído tem o potencial de reduzir o caráter aleatório da produção de mercadorias culturais.

A amostra para a análise do padrão tecnoestético contou com as finais de 2008 a 2022 e 9 jogos da competição em 2023, entre melhores momentos e jogos completos, conforme disponibilidade no YouTube. Os critérios estabelecidos foram os seguintes: direção de imagem; variações no estilo de transmissão na direção de uma cobertura esportiva ao vivo pelo infotretenimento – em que a informação pode ser sobreposta ao entretenimento (Santos; Borges; Figueiredo Sobrinho, 2020); e marcadores locais na narração, na reportagem e nos comentários.

Resultados e discussões

Considerando que a transmissão pela transmissão não é suficiente, gostaríamos de entender o impacto econômico direto da transmissão do Alagoano nos clubes, pelas evidenciações contábeis; como se deu o padrão tecnoestético de transmissão; e como torcedores de clubes alagoanos viram o torneio em 2023. A edição deste ano contou com transmissão multiplataforma: Band (TV aberta) – com TV UFAL, afiliada da TV Brasil, exibindo o último jogo do torneio; Nosso Futebol+ (pay-per-view); Canal FAF (YouTube); e DAZN (streaming).

Sobre as evidenciações, os gráficos presentes no arquivo do link https://onedrive.live.com/redir?resid=BA3C4CE63BA5B123!249&authkey=!AN1Bg_dGUGZ_7_E&ithint=file%2cxlsx&e=5O9wTQ apresentam os resultados da análise das informações coletadas da publicação das demonstrações contábeis dos clubes e da FAF.

Com os dados obtidos, pudemos analisar que há baixo nível de evidenciação contábil nos clubes locais. Além disso, observamos a importância da visibilidade dos clubes em campeonatos das séries A e B do Brasileiro, como também em campeonatos de maior porte, como a Copa do Nordeste e a Copa do Brasil.

Receitas do Alagoano apareceram só duas vezes: 2017 (CSA) e 2020 (CRB). Porém, juntando outras formas ligadas ao jogo, que não a transmissão: bilheteria e publicidade.

Quanto à transmissão, percebemos o modelo hegemônico: câmera central como a principal em boa parte da transmissão, com as demais (na altura do gramado ou com foco em cada área) sendo alternativas para replays e imagens da torcida.

Como pode ser visto na Figura 2 a seguir, algo semelhante ocorre quanto às representações gráficas na tela, com placar no canto superior e vinhetas com cartões, gols e substituições aparecendo no canto inferior esquerdo.

Figura 2– Transmissão da FAFTV do Alagoano de 2023

Fonte: Print do canal da FAFTV no YouTube

O que diferencia, a partir de 2023, é a utilização das cores da bandeira de Alagoas (vermelho, branco e azul), com a ordem exatamente abaixo dos números de gols, que interliga à identidade do estado.

Quanto à narração dos jogos, previamente identificamos que a equipe normalmente foi oriunda do rádio e da cobertura esportiva anual das equipes locais. Assim, mesclou-se elementos de conteúdo ligados ao rádio com aprimoramentos da linguagem da internet nos últimos anos para tentar viralizar trechos. Dentre outros destaques, há ainda o foco ao pitoresco, especialmente em jogos no interior de Alagoas.

Em paralelo a isso, buscou-se observar como a torcida alagoana avaliava alguns aspectos do padrão tecnoestético na edição de 2023. O filtro para recorte foi de quem torcia para clubes locais, que reduziu a amostra para 281 respostas.

Dentre outros resultados: 1- 171 avaliaram a narração como “regular”, 48 como “ruim”, 23 como “péssima” e apenas 30 responderam “ótimo”; 2- sobre a qualidade de imagens, apenas 19 responderam “ótimo”, enquanto 135 optaram por “razoável”, 85 por “ruim” e 33 como “péssima”; 3- por fim, sobre a valorização dos clubes locais, foi onde houve maior índice para “ótima”, 42 respostas, porém, 66 avaliaram que a transmissão foi “ruim” e outras 43 identificaram como “péssima”, sobrando 121 respostas em regular.

Melhor descrição e análise dos resultados consta na pasta seguinte, de publicações do projeto: https://ntiufalbr-my.sharepoint.com/:f:/g/personal/anderson_gomes_santana_ufal_br/EndQdxEpEp5Il48.

Considerações finais

Compreende-se que as restrições do desenvolvimento desigual socioeconômico, que atravessa a mídia e os clubes afetam também as questões econômicas e simbólicas no caso do Campeonato Alagoano de futebol masculino.

O destaque negativo para a qualidade das imagens reproduz o padrão tecnoestético de transmissão de jogos ao vivo que o público se acostumou. Frente à restrição orçamentária de um torneio que mal paga pelos direitos de transmissão, temos uma situação complicada de se resolver em curto prazo – com exceção da melhor qualidade específica das finais da competição, que recebem mais câmeras.

Por fim, para detalhar a importância econômica da transmissão do estadual, percebemos que seria necessário partir para uma etapa de pesquisa que envolvessem entrevistas com agentes envolvidos, considerando que são muito poucos clubes que disponibilizam evidenciações contábeis (e de forma rotineira). Além disso, não há detalhamento adequado para identificarmos, como em torneios regionais e nacionais, o peso positivo para as receitas dos clubes.

REFERÊNCIAS

BOLAÑO, C. R. S. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: Hucitec/Pólis, 2000.

FIGUEIREDO SOBRINHO, C. P.; SANTOS, A. D. G. dos. Do jornalismo esportivo ao infotretenimento: o caso do contrato entre Neymar Jr. e Globo como paradigma. Comunicação, Midia e Consumo, São Paulo, v. 17, p. 322-343, maio/ago. 2020.

GOMES, F. G. Ensaios sobre o subdesenvolvimento e a economia política contemporânea. São Paulo: Hucitec Editora, 2014.

SANTOS, A. D. G. dos. A identidade torcedora alagoana no século XXI: CSA, CRB e ASA na tela, no campo e nas pesquisas. In: HELAL, Ronaldo; COSTA, L.; FONTENELLE, C. (Orgs.). Esporte, mídia, identidades locais e globais: uma produção do Seminário Copa América. Rio de Janeiro: Autorale; Faperj, 2021. p. 238-251.

SANTOS, A. D. G. dos; BORGES, M. A. R. dos S.; FIGUEIREDO SOBRINHO, C. P. Quando um treinador substitui o nome do clube: uma análise do “Time de Ceni” como exemplo da lógica do clickbait na cobertura esportiva do Brasil. Fulia, Belo Horizonte, v. 5, n.1, p. 119-138, jan./abr. 2020.

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Sem Ana Moser, o ministério será do Esporte ou das Apostas?

Quando estava definido que Ana Moser seria nomeada ministra do Esporte do novo governo Lula, tive um misto instantâneo de empolgação e ceticismo.

Não dava para negar: era um conto de fadas ver um ministério recriado após 4 anos ser comandado por uma mulher que mescla a experiência de ex-atleta de ponta e o conhecimento de políticas públicas para o setor. 

Fonte da imagem: Poder 360.

Algo, de fato, precisava ser diferente no esporte brasileiro. O país conseguiu o feito raro de, em apenas dois anos, organizar com excelência os dois maiores eventos esportivos do mundo, a Copa do Mundo e os Jogos Olímpicos, mas quase metade das nossas escolas continuavam sem uma quadra poliesportiva sequer [1].

Ana Moser era a pessoa no lugar certo e engajada em redirecionar o Esporte para o que realmente importa: seu papel na educação, na saúde e na juventude. Porém, o trabalho de base, a longo prazo e sem obras faraônicas raramente traz voto. Por isso, a dúvida era constante: até quando seu trabalho na pasta iria durar?  

Como jogadora, ela já havia vencido disputa contra treinador e superou contusões para ganhar uma medalha olímpica [2], mas, na política, masculina, não conseguiu vencer sendo mulher e sem filiação partidária.

O Ministério, ainda sim, é importante: graças a ele, a verba pública para o esporte saltou de R$ 600 milhões em 2004 para R$ 3,5 bilhões em 2015, no ciclo de grandes eventos que o Brasil sediou, [3] e o Bolsa-atleta se tornou programa referência de suporte a atletas. No entanto, desde que passou a ser uma pasta autônoma, há 20 anos, somente homens, filiados a partidos da base governista e com pouca experiência em esportes, assumiram o cargo nos governos Lula, Dilma e Temer. O mais próximo da exceção e por um período curto, de 1 mês e meio, às vésperas da Rio-2016, foi Ricardo Leyser, de perfil mais técnico [4].

Este é o presidencialismo de coalizão, ou de sobrevivência, em estado puro. Em um sistema político fragmentado como o nosso, a consequência é ter tantos ministérios quanto partidos políticos para acomodar as indicações.

Em troca da governabilidade, do apoio incerto ou da chantagem do “Centrão”, sai uma campeã do vôlei e entra André Fufuca, apadrinhado pelo presidente da Câmara dos Deputados, Arthur Lira (PP), que tem, sim, o poder de ser o “Eduardo Cunha” de Lula. Quem pouco tolerou isso – uma presidenta mais corajosa do que muitos de seus pares homens – caiu.

Fonte da imagem: O Globo.

Com Fufuca, o olho grande está em gerir os recursos provenientes dos impostos que serão cobrados dos sites de apostas esportivas e direcioná-los para obras de valores questionáveis em redutos eleitorais. Já no início deste mês, com a iminente troca de comando, o Ministério do Esporte liberou cerca de R$ 4,7 milhões para a reforma do estádio da cidade de Peritoró, no Maranhão, onde o atual ministro recebeu mais votos em sua campanha vitoriosa a deputado federal no ano passado [5]. 

O que falta para virar esse jogo em que o Ministério do Esporte é, infelizmente, uma moeda de troca? Entre outros fatores, a militância dos atletas. Lula manifesta, desde o início do mandato, estar “incomodado” com a menor atuação de movimentos sociais, como forma de pressão contra canetadas indesejadas e retrocessos [6]. 

A saída de Ana Moser é um desses, e poucos atletas e movimentos reivindicaram a permanência da ministra, como o campeão mundial Raí, a medalhista olímpica Hortência, a ex-nadadora Joanna Maranhão e o coletivo “Esporte pela Democracia”. 

Não houve mobilização de classe, pressão de sindicato, ameaça de greve ou paralisação de campeonatos. Portanto, o esporte continuará sem prestígio em governos enquanto grande parte de suas figuras mais influentes se mantiverem encasteladas ou cooptadas pelo bolsonarismo, que, paradoxalmente, extinguiu o Ministério enquanto comandou o Executivo Federal. 

Foi por essa mobilização existir em outras áreas, como a Saúde, que Nísia Trindade, ministra da pasta, nome técnico e sem partido, conseguiu ser blindada e permanecer no cargo, o primeiro alvo de cobiça do Centrão. Já Ana Moser foi a que menos tempo ficou no Ministério do Esporte em sua história [7].

Referências:

[1] Quase metade das escolas brasileiras não têm local para prática de esporte. UOL

[2] Ana Moser: A força de uma “tigresa” do esporte derrubada pelo Centrão. O Globo

[3] Investimentos do Ministério do Esporte caem ao menor nível em 14 anos. Poder 360

[4] Interino, Ricardo Leyser é confirmado como novo ministro do Esporte. GE.globo

[5] “Arena Fufuca”: Esporte liberou verba para estádios em reduto do novo ministro antes mesmo de sua posse. O Globo

[6] Lula se queixa de dormência dos movimentos sociais durante o seu governo. Folha de S. Paulo

[7] Ana Moser é a ministra do Esporte a ser demitida mais rapidamente desde a criação da pasta. O Globo

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Futebol, você bem me quer ou mal me quer?

Recentemente, em um seminário, tive a oportunidade de escutar pela primeira vez um trecho do livro “Fome de Bola”, de Nick Hornby. Confesso que a existência da obra não me era desconhecida, eu apenas não tinha tomado a iniciativa de procurá-la ainda, contudo, de repente, ela felizmente se colocou em meu caminho. O livro, que age como um relato autobiográfico, reúne as experiências do autor com o futebol e, também, mostra as suas vivências com o Arsenal, time inglês por quem é fanático desde a infância. 

No trecho que me inspirou a redigir este trabalho, ou, melhor definindo, este relato, o autor nos conta sobre uma lembrança de sua infância. O trecho se passa em 1967, quando, em um jogo do Arsenal, Hornby percebeu pela primeira vez a imersão emocional e os sentimentos irracionais provocados pelo futebol:

Eu já tinha ido a espetáculos públicos antes, claro; tinha ido ao cinema e a peças de Natal, e visto minha mãe cantar no coral do White Horse Inn, no Salão Municipal. Mas aquilo era diferente. As plateias das quais eu havia feito parte até então pagavam o ingresso pra se divertir e, embora aqui e ali se pudesse flagrar uma criança impaciente ou o bocejo de um adulto, nunca antes eu vira rostos como aqueles, contorcidos de ódio, desespero e frustração. O sofrimento como entretenimento era uma ideia completamente nova pra mim, e parecia ser alguma coisa pela qual eu estava esperando.” 

(HORNBY, 2000, p. 19 – 20).

Diferente de Nick Hornby, sou mulher, brasileira e flamenguista, mas, mesmo em um continente distinto, com uma cultura completamente diferente do autor, eu consegui entender plenamente o que ele dizia. E, mais do que apenas me promover uma identificação, a citação acima fez com que os seguintes questionamentos passassem pela minha cabeça: por que eu sofro tanto pelo futebol? E quando foi que esse sentimento começou?

Durante a infância e adolescência, cresci em uma casa com dois torcedores fanáticos por futebol: o primeiro, o meu avô José Mário, tricolor ávido pelo Fluminense, cadastrando-se até no plano de sócio torcedor do time e, o segundo, o meu irmão mais velho, Alessandro, um dos flamenguistas mais emotivos e incontidos que eu já conheci na vida. Diferente do que o cenário sugere, o clima em dia de jogo era de paz e poucas brincadeiras fomentadas pela rivalidade aconteciam. Inclusive, quando meu irmão ainda não podia andar sozinho, o meu avô se encarregava prontamente de levá-lo de trem aos jogos do Flamengo no Maracanã.  

Fonte da imagem: Fla Resenha.

Em meio a essa dualidade, a famosa influência exercida pelos irmãos mais velhos venceu e, logo na infância, passei a me identificar como flamenguista. Na época, eu não percebi, mas acho que foi uma das primeiras grandes escolhas que eu fiz na vida. Digo isso, porque eu não escolhi o país em que nasci, não opinei sobre o meu nome e nem agendei a data do meu aniversário, mas eu pude escolher o meu time e, entre todas as opções, entre todas as histórias, eu escolhi o Clube de Regatas do Flamengo.

Acredito que ao abraçar um time, não estamos tomando uma decisão passageira, mas sim, uma decisão definitiva e agora, na fase adulta, vejo que o meu eu da infância fez uma escolha que me definiria para o resto da vida. Acho válido informar aos leitores deste relato que, para o azar do meu avô, apenas um de seus seis netos fez a escolha de ser tricolor e, enquanto isso, todos os outros cinco escolheram ser flamenguistas.

Fonte da imagem: Torcedores.

Bom, mas cadê o sofrimento como entretenimento que Hornby menciona? Devo dizer que antes de escolher o meu time, eu não entendia porque o meu irmão chorava nas derrotas do Flamengo, eu achava engraçado e só conseguia pensar que bastava ganhar no próximo jogo, o mundo não tinha acabado. Quero dizer, aparentemente não tinha, mas, um tempo depois, as lágrimas passaram a fazer sentido pra mim e, as rachaduras responsáveis por destruir o planeta terra, que o levariam a se tornar pó, passaram a ser visíveis aos meus olhos.

Desse modo, a nova questão que surgiu em minha mente foi: por que o meu irmão via esse mundo acabar todas as vezes e, mesmo assim, não parava de ser flamenguista, não parava de torcer, não desistia do time e nem deixava de ir aos jogos, por que continuava lá? Porque o futebol é incerto e, onde existem as derrotas, também existem as vitórias, os grandes momentos de glória, as viradas sofridas aos 45 do segundo tempo, os tão sonhados títulos, existe a torcida e toda a sua emoção, existe de tudo.

E, por mais que a tristeza, a raiva, o ódio e o sofrimento fossem indissociáveis do futebol, também era possível ter esperança e fé de que a glória e a alegria poderiam surgir em qualquer momento. Acredito até que a imprevisibilidade é um dos grandes atrativos do esporte, pois, por mais que ela seja extremamente sofrida, é o que faz a gente ansiar pela vitória e isso não tem preço. Quero dizer, caso a dor de cabeça, o nervosismo e o choro já não sejam considerados um bom pagamento.

Em fevereiro deste ano fui ao Maracanã assistir ao jogo do Flamengo contra o Independiente Del Valle, pela taça da Recopa Sul-Americana. Cinco horas antes do jogo, eu estava no estágio e ainda não tinha o ingresso, mas recebi uma mensagem tentadora da minha prima, Larissa, perguntando se eu iria com ela caso a gente encontrasse um vendedor de última hora. Eu só não sabia que, cinco minutos depois, eu encontraria esse vendedor e, para nossa euforia, ele não teria só dois, mas três ingressos, permitindo que meu primo Felipe também fosse incluído nesta travessia ao grande Maracanã.

Fonte da imagem: Fla Resenha.

O jogo foi angustiante e durante o primeiro tempo, nenhum time marcou gols, contudo, o Independiente Del Valle já tinha um gol no jogo de ida e o 0x0 lhes dava a vitória. Desse modo, o jogo parecia correr cada vez mais rápido, o fim parecia cada vez mais próximo e a angústia só crescia, porém, já nos acréscimos do segundo tempo, levando os torcedores ao delírio e o Flamengo a prorrogação, Arrascaeta marcou um gol com a assistência de Everton Cebolinha.

Neste jogo em específico, não haviam torcedores visitantes, apenas Flamenguistas e a emoção de ver aquele gol tão esperado em um “Maraca” lotado, com todo mundo cantando e torcendo pelo mesmo time, foi emocionante. A prorrogação seguiu sem gols e a final da Recopa seguiu para a decisão de pênaltis. Diferente da explosão e do tremor provocados pelo gol de Arrascaeta, o resultado da disputa de pênaltis promoveu um silêncio “ensurdecedor” no Maracanã e, por 5×4, o Flamengo perdeu a disputa e o Independiente Del Valle levou a Recopa.

A tristeza e a melancolia após o final do jogo foram inevitáveis, parecia que o gol do Arrascaeta, que tinha nos dado tanta esperança, havia acontecido há semanas atrás. A alegria estonteante, responsável por dominar a torcida, foi substituída bruscamente por um vazio coletivo e a primeira pergunta que surgiu em minha cabeça, foi: por que eu vim?

Eu sabia que o resultado poderia ser ruim e que eu poderia presenciar o Flamengo perdendo uma disputa de pênaltis ao vivo, mas, ao mesmo tempo, tinha o conhecimento de que poderia ver o time conquistando mais um título, fazendo história e, bom, por isso eu fui e, por esse motivo, eu não me arrependo.

Acho, então, que é exatamente por essa razão que eu sofro pelo futebol, pois, no fim dos resultados, sendo eles bons ou ruins, o time que eu tanto amo ainda estará ali, à minha espreita. Não é possível ignorá-lo, não terei paz se fizer isso, estarei negando uma parte de mim, estarei fechando os olhos para algo que me representa e que, muitas vezes, é a fonte da minha alegria.

 A relação com o time não é puramente devoção, é, também, uma relação onde você quer saber o que o outro faz, como anda, se está bem e eu quero continuar sabendo do Flamengo para sempre, mesmo que as novidades sejam desanimadoras e me façam repensar escolhas que eu não posso controlar. Escolhas que, na verdade, eu não tenho.

No final de 2016, o meu amado avô tricolor faleceu e, no dia de seu enterro, eu e meu irmão vestimos camisas do Fluminense com muito orgulho. E sabe por que com orgulho? Porque, no fim das contas, aquela camisa era sobre ele, o Fluminense representava o meu avô, era uma parte inesquecível de sua personalidade que eu vou lembrar pra sempre, assim como as outras pessoas também vão. E acho que esse amor é maior do que qualquer decepção futebolística.

Fonte da imagem: Fluminense Football Club.

Hornby e minha família me fizeram concluir que, vestir as camisas de nosso time e torcer sem impedimentos é a melhor solução, pois, a escolha pelo sofrimento já está feita, não se tem mais como voltar atrás. Por isso, chorem livremente nas derrotas, mas também não deixem de liberar urros de muita alegria nas vitórias, pois, a jornada com o nosso time é longa, mas, os resultados ainda estão incertos.

Desse modo, vamos viver com orgulho nessa incerteza eterna do futebol, pois não há muito que possamos fazer, já fomos os escolhidos. E que sorte a nossa!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

HORNBY, Nick. Febre de bola. RJ: Rocco, 2000.

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Jornalismo esportivo na imprensa negra gaúcha:  o foot-ball nas páginas de O Exemplo (1892 – 1930)¹

Soraya Damasio Bertoncello ²

Surgido em Porto Alegre, RS, no final do século XIX, o jornal O Exemplo foi um dos mais longevos periódicos da imprensa negra no Brasil. Considerando a invisibilidade histórica das conquistas e do patrimônio cultural da população negra, este trabalho surge com o objetivo de colaborar nas pesquisas existentes acerca da imprensa negra gaúcha, em especial, na discussão sobre o futebol, afinal, “a história no do futebol no meio popular porto-alegrense, nomeadamente negro, é uma das páginas mais desconhecidas e controversas do esporte” (Santos, 2018, p. 15).

O período histórico que sucede a assinatura da Lei Áurea, em 13 de maio de 1888, foi marcado pela luta da população afro-brasileira por reconhecimento à cidadania e participação política e social no país.  Foi uma pequena elite formada por “negros e mulatos livres” que existia nas áreas urbanas da época, a responsável pelo surgimento da imprensa negra no Brasil nos séculos XIX e XX.

Por imprensa negra, compreendem-se os veículos de comunicação especializados na temática racial e comprometidos com a construção de narrativas a partir de uma ótica negra sobre os temas tradicionalmente abordados na imprensa. Ela surge da carência de um espaço de fala, de valorização da população negra e da necessidade de denúncia do preconceito racial (Santos, 2011).  Na sua primeira edição, de 11 de dezembro de 1892, O Exemplo já deixa explícito o seu propósito: “o nosso programa é simples e podemos exará-lo em duas palavras: a defesa de nossa classe e o aperfeiçoamento de nossos medíocres conhecimentos” (O Exemplo, 11 dez. 1892, p.1).

Durante os seus quase 40 anos de existência, O Exemplo passou por interrupções, renovações em seu quadro e fechamentos. Perussatto (2018, p. 31) divide a existência do jornal em três fases: “a primeira entre dezembro de 1892 e janeiro de 1897; a segunda entre outubro de 1902 e junho de 1911; e a terceira, entre fevereiro de 1916 e janeiro de 1930”. As edições da primeira fase d’O Exemplo trazem, basicamente, publicações voltadas às questões da comunidade negra porto-alegrense, com denúncias de preconceito, registros de atividades sociais e textos sobre hábitos culturais da época. Na sua segunda fase, o jornal recebe a inclusão do subtítulo “Jornal do Povo” e começa a abordar assuntos das classes populares em geral, não necessariamente da comunidade negra. A terceira e última fase do jornal é marcada pelos anúncios de muitos bancos, uma tentativa de ampliar o público leitor.

Fonte: O Exemplo – 10 de abril de 1921.

O esporte também tinha espaço nas páginas de O Exemplo. Os relatos de turfe, futebol e remo – modalidades mais populares da época – pouco se assemelham à prática de jornalismo esportivo contemporâneo. O jornal circulou anos antes da popularização e espetacularização do futebol, iniciada nos anos 1930, e poucos anos depois da consolidação da educação física como atividade formativa importante, algo que só ocorre em 1882 com a “Reforma do Ensino Primário, Secundário e Superior” de Rui Barbosa (Ramos, 1982).

A imprensa esportiva também irá se desenvolver após o fim de O Exemplo. O Jornal dos Sports, primeira publicação inteiramente dedicada ao esporte no país, data da década de 1930.  O futebol surge no Rio Grande do Sul no final do século XIX nas cidades da fronteira com os países do Rio da Prata – Uruguai e Argentina e “mesmo os jornais da comunidade negra tinham certa desconfiança com o novo esporte e tardaram a divulgá-lo” (Santos, 2018, p. 63).

Metodologia

Para o mapeamento da cobertura esportiva e de futebol n’O Exemplo, utilizou-se a análise de conteúdo proposta pela francesa Laurence Bardin (2010), porque permite a identificação de conteúdo recorrentes e sua exploração dentro do contexto do jornal.

Foram analisadas 724 edições de O Exemplo, sendo 52 da primeira fase do jornal (de 1892 a 1897), 132 da segunda (edições publicadas entre 1902 e 1911) e 544 edições da terceira fase (jornais publicados entre 1916 e 1930). Estes jornais estão disponibilizados nos cinco acervos digitalizados que armazenam edições de O Exemplo: Acervo Pessoal de Oliveira Silveira, acervo da Biblioteca Pública Rio-Grandense, acervo do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, acervo do Museu de Comunicação Social Hipólito José da Costa, e acervo do Núcleo de Documentação Histórica a Universidade Federal do Rio Grande do Sul, que traz as coleções do Arquivo Histórico de Porto Alegre Moysés Vellinho e da Biblioteca Nacional.

O esporte em O Exemplo

A primeira análise se refere à quantidade de edições disponíveis e analisadas em cada uma das três etapas do jornal, e quantas destas edições traziam textos sobre esporte.

Tabela 1: quantidade de edições mencionando esportes, por fase de O Exemplo

 Primeira fase (1892 a 1897)Segunda fase (1902 a 1911)Terceira fase (1916 a 1930)Total
Com esporte13 – 25%65 – 49%400 – 74%481 – 67%
Sem esporte39 – 75%67 – 51%140 – 26%243 – 33%
Total52132540724

                                                (Fonte: a autora)

Foram contadas nesta análise textos sobre eventos esportivos (jogos, corridas de turfe, touradas etc.), notícias com resultados dos eventos (resultados de jogos, de corridas de cavalo), palpites sobre turfe, notas sociais acerca dos clubes esportivos da época (convocação para assembleias, anúncios de troca de direção etc.), notícias sobre atletas e campeonatos.

A primeira notícia identificada foi publicada na edição número 41, de 24 de setembro de 1893, e traz palpites para uma corrida de cavalos. “PRADO BOA-VISTA Por obsequio de um nosso amigo, habilitado por seus conhecimentos hypicos, principiamos hoje a publicar palpites sobre os diversos pareos do programma de corridas” (O EXEMPLO, 1893, grifo da autora).

Fonte: O Exemplo – 24 de setembro de 1893.

Observa-se um aumento percentual da presença de temas esportivos ao longo das fases, o que aponta a popularização do tema, das práticas e do interesse do público leitor. Quanto à modalidade esportiva relatada, todas as 13 edições da primeira fase são sobre turfe e trazem palpites ou resultados sobre as corridas nos prados de Porto Alegre.

Na segunda etapa do jornal, foram identificados 10 textos sobre tauromaquia, 53 textos sobre turfe, um texto sobre remo, um texto sobre balonismo, um texto sobre boxe e dois textos sobre futebol. É na segunda etapa do jornal, a partir da edição de primeiro de janeiro de 1905, que passa a existir uma coluna sobre turfe chamada “Sport-Hyppico”. A coluna, porém, não aparece em todas as edições subsequentes, nem na mesma posição do jornal.

Nas 400 edições da terceira fase de O Exemplo, que compreende jornais publicados entre 1916 e 1930, a quantidade de citações de cada esporte é a que mostra a tabela abaixo. Importante lembrar que são 400 edições com esportes, e, por vezes, uma mesma edição do jornal trazia notas sobre mais de uma modalidade. Por esse motivo, o número de textos não é o mesmo número de edições.

Tabela 2: quantidade de textos por modalidade esportiva na terceira fase de O Exemplo

ModalidadeTextos
Turfe272
Futebol238
Remo14
Atletismo1
Basquete1
Tiro1

(Fonte: a autora)

Na edição publicada com a data de 20 de fevereiro de 1916, surge a coluna chamada Pelo Sport, trazendo notícias (em sua maioria, resultado de jogos e corridas) sobre futebol e turfe. Nas edições analisadas, o esporte é capa uma única vez: o futebol ilustra a primeira página de O Exemplo de 10 de abril de 1921.

O foot-ball em O Exemplo

O futebol surge a partir da segunda fase de O Exemplo, que contém publicações de outubro de 1902 e junho de 1911, com duas menções. A primeira delas é na edição de 25 de julho de 1909 e relata o primeiro clássico Gre-Nal da história.

Fonte: O Exemplo – 25 de julho de 1909.

A segunda menção ao futebol, de 16 de janeiro de 1910, chama a atenção para a crescente popularização da modalidade. Na época, o futebol era uma prática majoritariamente das elites, entretanto, o texto salienta que o jogo estava “invadindo todas as classes sociais” (O EXEMPLO, 1910).

Fonte: O Exemplo – 16 de janeiro de 1910.

Na terceira fase de O Exemplo, foram identificadas 238 menções sobre futebol – número muito próximo aos textos sobre turfe (272), uma modalidade que é noticiada desde os primeiros anos do jornal.

Além de Grêmio e Internacional, mencionados na nota sobre o GreNal de 1909, também são identificadas nas notícias de O Exemplo os seguintes clubes (todos eles já extintos): F.B.C. União, S.C. Rio Branco, Gaúcho F.B.C, S.C. Nancy, S.C. Garibaldi, S.C. Rio Grandense e seu grande rival da época, S.C. Bento Gonçalves,  S.C. Cruzeiro (não há como identificar se se trata do Esporte Clube Cruzeiro, ainda em atividade, hoje com sede em Cachoeirinha, na Grande Porto Alegre), S.C. Colombo, Primavera, S.C. Carlos Gomes, 1º de Novembro, 8  de Setembro F. B. C., F.B.C. Aventureiro, S. C. Municipal, Palmeiras, Aquidabã, Venezianos, Ruy Barbosa, Frisch Auf, S. C. Brazil, Fusil FBC, Americano, S. C. São José, Globo, Guarany, Folha Verde, Operário, Arvoredo, Ancora; 7 de Setembro, Nacional Foot Ball Club, Football Club Montenegro, Sport Club Lomba Grande da região do Vale dos Sinos; F. B. Estrela e 15 de Novembro de Cachoeira do Sul e S. C. América do Sul de Pelotas.

Quanto às ligas mencionadas, aparecem, a partir das edições da década de 1920, a Liga Nacional de Futebol Porto-Alegrense (LNFP), disputada por times de atletas de classes populares – em sua maioria, pretos e pardos – e que teve seu primeiro campeonato organizado em 13 de maio de 1920 (essa é a liga que, mais tarde, ficou pejorativamente conhecida por Liga da Canela Preta – denominação de cunho racista que nunca foi identificada na imprensa da época), a Associação Porto Alegrense de Foot Ball e a Associação Sportiva de Foot Ball, além de torneios comemorativos diversos e excursões dos times da capital ao interior.

Algumas considerações

Esta pesquisa se propôs a fazer um levantamento quantitativo inicial sobre o esporte – especialmente, o futebol – em O Exemplo. A abordagem foi adotada para mostrar o crescimento do tema ao longo das décadas de existência do jornal, e era a mais adequada considerando o tamanho do corpus de pesquisa. Uma futura abordagem qualitativa do material identificado permitirá não apenas descobertas mais aprofundadas sobre o modo de fazer jornalismo esportivo mesmo antes de tal denominação existir, bem como o tensionamento da temática racial na sociedade da época.

Sobre os dados levantados, o aumento da presença dos esportes em O Exemplo, ao longo do tempo, não chega a ser uma surpresa, uma vez que o jornal acompanhou a popularização do futebol, o período imediatamente anterior ao surgimento dos Jogos Olímpicos Modernos e os princípios da prática da Educação Física no Brasil. Também, por ser um jornal que circulou em um momento de transformação na sociedade do trabalho no Brasil, é natural que temas de lazer se tornassem cada vez mais frequentes.

O futebol foi a única modalidade que não apareceu apenas nas colunas dedicadas aos esportes (quando estas já existiam), mas em partes do jornal dedicadas também aos clubes sociais e cidades do interior. Mesmo antes de ser considerado o esporte nacional por excelência, o futebol mostrava sua crescente popularidade “para além das quatro linhas”. Isso se deve à facilidade da prática da modalidade, que não exige materiais de difícil acesso ou locais específicos – como no caso dos esportes náuticos ou do ciclismo.

A imprensa é importante fonte histórica, e estudar a imprensa negra permite uma nova perspectiva sobre o período de circulação de O Exemplo e, consequentemente, uma nova forma de pensar a própria história do Brasil enquanto república ainda muito jovem.

Referências bibliográficas

BARDIN, Laurence. Análise de Conteúdo. 4. ed. Lisboa: Edições 70, 2010.

O EXEMPLO. Porto Alegre.11 dez. 1892

O EXEMPLO. Porto Alegre. 24 set. 1893

O EXEMPLO. Porto Alegre. 16 jan. 1910

PERUSSATTO, Melina. O Exemplo, a imprensa e os homens “de cor” em Porto Alegre no pós-abolição. Intellèctus, Porto Alegre, v. 17, n. 1, p.28-47, 2018. Disponivel em: https://www.epublicacoes.uerj.br/index.php/intellectus/article/viewFile/36014/25706. Acesso em: 10 de maio de 2023.

RAMOS, Jayr Jordão. Os exercícios físicos na história e na arte. São Paulo: Ibrasa. 1982.

SANTOS, José Antônio dos. Intelectuais negros e imprensa no Brasil meridional. Ìrohìn. Brasília, ano XI, n.16, abril-maio, 2006

SANTOS, José Antônio dos. Prisioneiros da História: trajetórias intelectuais na Imprensa Negra Meridional. 2011. Tese (Doutorado em História) – Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2011. Disponivel em: http://repositorio.pucrs.br/dspace/handle/10923/3805. Acesso em: 10 de maio de 2023.

SANTOS, José Antônio dos. Liga da Canela Preta: a história do negro no futebol. Porto Alegre: Diadorim Editora, 2018


[1] Este trabalho é um resumo do que foi apresentado na no GP Comunicação e Esporte, do 46º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação, e é a primeira parte de uma pesquisa em andamento que buscará compreender o futebol praticado pelas comunidades afro-gaúchas na Porto Alegre do começo do século XX.

[2] Jornalista, publicitária, mestra e doutoranda em Comunicação Social pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. E-mail: Soraya.bertoncello@edu.pucrs.br

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O Futebol Goiano no Campeonato Brasileiro: Três Grandes Desafios

O futebol goiano já fez história como um dos mais assíduos do campeonato brasileiro de futebol. De 1959 a 1999, foram realizadas 45 competições nacionais de primeira divisão (com diversas denominações: Taça Brasil, Torneio Roberto Gomes Pedrosa e Taça de Ouro, entre outros). Nas quatro disputas do Torneio Roberto Gomes Pedrosa (1967-1970) foram admitidos apenas clubes convidados e as equipes de Goiás ficaram de fora. Mas nos outros 41 campeonatos nacionais, o futebol goiano esteve presente 31 vezes, o que o colocou acima da média quando se falava em número de participações.

Do ano 2000 em diante, a frequência continuou alta. Em 23 campeonatos nacionais de primeira divisão (2000-2022), o futebol goiano só esteve ausente duas vezes: em 2016 e 2018. Nas divisões inferiores, a assiduidade dos clubes de Goiás também é alta. Na Série B, por exemplo, houve clubes goianos em 20 dos últimos 22 campeonatos disputados (2001-2022). Assim pode-se dizer que a história do futebol goiano passa, em grande parte, pelos grandes feitos e pelos fracassos de seus clubes nas disputas nacionais.

Nesta longa e rica relação com o Campeonato Brasileiro, o futebol goiano deixou sua marca, tornou-se respeitado e se viu diante de situações desafiadoras. Hoje, há três desafios consolidados. Eles pairam sobre os dirigentes e torcedores e, para alguns, já se tornaram quase assombrações. 

PRIMEIRO DESAFIO: FAZER O INTERIOR ASCENDER ÀS DIVISÕES MAIS ALTAS

Os clubes do interior de Goiás costumavam ficar mal colocados nas competições nacionais de futebol das décadas de 1970 e 1980. Esta era a regra. Mas às vezes surpreendiam. A Anapolina, na primeira divisão de 1982, eliminou o Cruzeiro na segunda fase. Depois, na primeira partida das oitavas-de-final, venceu o São Paulo, chamado na época de “Máquina do Morumbi”. A vitória por 3 a 1 entrou para a história do clube e encheu de orgulho a sua torcida. Isso não mudou nem depois da derrota na partida da volta, pelo placar de 4 a 0. O Itumbiara Esporte Clube, na segunda divisão nacional de 1983, enfrentou em partida decisiva a Portuguesa, clube tradicional de São Paulo. Venceu por 3 a 2, desclassificou o adversário da competição e passou às oitavas-de-final. Foram exceções, mas deixaram boas memórias.

Quando a segunda divisão nacional passou a se transformar em Série B, ganhando normas mais estáveis ao longo da década de 1990, o interior goiano esteve presente na maioria das vezes (não teve representantes apenas em 1998 e 1999). No ano 2000, a Anapolina participou do módulo amarelo da Copa João Havelange (equivalente à Série B) e se manteve nessa divisão até 2005, quando foi rebaixada. Esse ano foi o último em que clubes do interior de Goiás participaram da Série B. Daí em diante, houve pouco a comemorar para cidades como Anápolis, Itumbiara e Catalão. 

O interior goiano, reduzido às Séries C e D, não conseguia mais subir de divisão. Em 2012, finalmente, um clube do interior ascendeu. O CRAC, vice-campeão da Série D, passou à Série C, onde ficou apenas dois anos. Em 2014, terminou a disputa entre os últimos colocados do campeonato e caiu de volta à última divisão do Campeonato Brasileiro. De 2015 a 2021, o futebol do interior de Goiás não teve clubes participantes sequer da Série C.

Era vexatório e para os dirigentes esse passou a ser o grande desafio: como voltar à Série C, depois à Série B e, enfim, sonhar com uma nova participação do interior goiano na Série A? A pergunta se tornava ainda mais incômoda quando clubes do interior de outros Estados conseguiam subir de divisão. Em 2013, o Luverdense, do interior de Mato Grosso, conseguiu subir à Série B. Se o futebol de Goiás era considerado tão superior ao de Mato Grosso, por que nenhum clube do interior goiano conseguia fazer o mesmo que o Luverdense? O Novorizontino, que é de uma cidade com apenas 38.000 habitantes, subiu em 2021 para a Série B. Anápolis, com quase 400.000 habitantes, não conseguia ter um clube nem na Série C. Pior ainda foi ver o Tombense, da cidade de Tombos (Minas Gerais), com menos de 10.000 habitantes, chegar à Série B naquele mesmo ano de 2021.

Contar com o apoio de uma cidade que seja grande em população e tenha economia vigorosa é muito importante para angariar recursos e montar uma boa equipe. Mas não basta. Os dirigentes dos clubes precisam ser hábeis para maximizar esse apoio e precisam também saber lidar com outros fatores que melhoram o desempenho do time. Muitos torcedores achavam que não havia dirigentes assim no interior de Goiás. 

Em outubro de 2021, enfim, um clube do interior de Goiás voltou a subir de divisão. Para ser mais exato, não é um clube do “interior”, mas sim da região metropolitana de Goiânia. Foi a Aparecidense (da cidade de Aparecida de Goiânia, vizinha da capital). A proximidade não pode ser ignorada, mas também há quem diga que se não é da capital, é do interior. 

A Aparecidense foi a campeã da Série D naquele ano de 2021. No ano seguinte, esteve perto de subir novamente. Caso vencesse sua última partida na Série C de 2022, contra o Mirassol, seria promovida. Perdeu por 2 a 1. E assim o interior de Goiás permanece diante do desafio de retornar, pelo menos, à Série B. Já faz 17 anos que a Anapolina disputou pela última vez essa divisão.

Aparecidense campeã da Série D 2021. O interior goiano de volta à Série C depois de 7 anos. (Imagem: CBF)
SEGUNDO DESAFIO: FAZER O VILA NOVA CHEGAR À SÉRIE A

A última partida do Vila Nova na primeira divisão nacional foi disputada em 21 de abril de 1985, feriado nacional de Tiradentes. O Vila Nova perdeu por 3 a 0 para o Joinville, no estádio Ernestão (Joinville-SC). Até hoje, tenta voltar à primeira divisão. É um anseio que, com o passar dos anos, tornou-se quase obsessão.

Em 1999, o Vila Nova quase conseguiu. O time tinha o famoso atacante Túlio no ataque e chegou ao quadrangular final, ao lado de Santa Cruz, Bahia e Goiás. Subiam dois para a Série A. Na penúltima rodada daquele quadrangular, aconteceu a partida decisiva. Justamente contra o Goiás, o arquirrival. Para frustração de sua torcida, o Vila Nova foi derrotado por 2 a 0 no Estádio Serra Dourada (diante de 35.000 torcedores) e ficou em péssima situação na tabela. O Goiás subiu. O Vila Nova, não. Em 2008, o Vila Nova chegou bem perto de novo, mas sofreu derrotas decisivas nas últimas rodadas e terminou em sexto lugar.

O Vila Nova se tornou, nitidamente, um clube de segunda divisão. Primeiro, porque não consegue chegar à Série A. Segundo, porque quando é rebaixado à Série C, rapidamente retorna à Série B, a “sua casa”. Aconteceu quatro vezes nesse século:

1. Em 2006, na disputa da Série B, o Vila Nova foi rebaixado para a Série C. Em 2007, ficou em terceiro lugar e garantiu o retorno rápido.

2. O Vila Nova foi novamente rebaixado para a Série C em 2011. Em 2012, ficou na 11ª colocação, mas em 2013 terminou em quarto lugar e voltou à Série B.

3. Em 2014, novo rebaixamento. O Vila Nova disputou a Série C em 2015, chegou à decisão, venceu o Londrina e voltou à Série B como campeão.

4. Em 2019, mais um rebaixamento para a Série C. E em 2020, o Vila Nova repetiu a façanha de 2015: chegou à decisão do campeonato, venceu o Clube do Remo e retornou à Série B festejando mais um título.  

Para agravar o sofrimento dos torcedores do Vila Nova, o Atlético Goianiense viveu uma fase de notável recuperação na década de 2000 e alcançou a primeira divisão nacional após uma longa ausência. Os atleticanos disputaram a Série A sete vezes nos últimos anos (2010, 2011, 2012, 2017, 2020, 2021 e 2022). Foi um desgosto terrível para os vilanovenses e aumentou ainda mais a ansiedade para chegar lá também.

Em 2020, o comentarista André Isac recebeu o seguinte questionamento de um internauta: por que o Vila Nova não consegue chegar à Série A? Ele respondeu em seu canal no YouTube. Falou em instabilidade política interna do clube, problemas de planejamento e falhas no investimento para melhorar a infraestrutura e reforçar as divisões de base. Quem não falha é a torcida vilanovense, respeitada e reconhecida por sua candente paixão ao clube. Uma torcida que, apesar dos protestos contra a diretoria, mantém vivo o sonho da Série A.

Na Série B deste ano, os torcedores estão agitados de novo. O time terminou o primeiro turno dentro do G-4 e os vilanovenses, entusiasmados, passaram a cantar e dançar o “bonde do tigrão” a cada partida em seu estádio, o Onésio Brasileiro Alvarenga. Alguns já falam abertamente em ir ao Maracanã ver o Vila Nova enfrentar o Flamengo na Série A de 2024, entre outras partidas deste quilate que fazem questão de assistir ao vivo. Começa a surgir a certeza de que 2023 é, finalmente, o ano de subir. A conferir.

Programa de TV sobre o “sonho da Série A” (2023). Entusiasmo vilanovense. (Imagem: Record TV Goiás – YouTube)
TERCEIRO DESAFIO: FAZER O GOIÁS E.C. CONQUISTAR UM TÍTULO NACIONAL

A revista Placar, em 2006, rasgou elogios ao Goiás Esporte Clube. Falou da boa estrutura, das boas contratações, dos bons resultados e o tratou como “a nova força do futebol brasileiro”. Mas advertiu: “falta ao Goiás consolidar essa nova condição — e isso só virá com um título nacional” (Placar, jun.2006, p. 107).

Dezessete anos depois daquela reportagem, o Goiás continua em busca do tal título nacional.

No ano de 1987, o Goiás foi alçado a uma situação diferenciada. Os clubes de maior expressão do país romperam com a CBF, fundaram uma associação chamada Clube dos Treze e decidiram organizar entre si um novo campeonato nacional. Seria, na prática, um campeonato apenas com grandes clubes. A CBF reagiu e uma crise política tomou conta do futebol brasileiro, mas o campeonato dos clubes grandes realmente aconteceu (com o nome de Copa União). Além dos fundadores do Clube dos Treze, outras três equipes foram admitidas. A do Goiás foi uma delas, o que deixou seus dirigentes e torcedores muito satisfeitos e orgulhosos, claro.

O Goiás não teve bom desempenho na Copa União, mas nos anos seguintes consolidou seu status de clube que merecia estar entre os grandes, ou seja, clube de primeira divisão. De 1988 a 1999, o Goiás disputou a segunda divisão apenas duas vezes (1994 e 1999). E mais: em 1996, chegou à semifinal do Campeonato Brasileiro.

No século 21, nenhuma mudança. O Goiás, de 2000 a 2022 (23 campeonatos), esteve 17 vezes na Série A. É um dos clubes mais assíduos da primeira divisão nacional. O que falta é conquistar o título. Chegou às oitavas-de-final na Copa João Havelange de 2000, ficou em sexto lugar na Série A de 2004, em terceiro no ano seguinte, em sexto no ano de 2013, mas nada além disso.

A terceira colocação na Série A de 2005 foi marcante, mas houve frustrações maiores: as derrotas nas finais da Copa do Brasil de 1990 e da Copa Sul-Americana de 2010. Ao contrário do Atlético Paranaense, que já foi campeão da Série A, da Copa do Brasil e duas vezes da Sul-Americana, o Goiás só chegou perto. E chegar perto, para a sua torcida, já não basta. O Atlético Paranaense já considera legítimo declarar-se um clube grande ou “novo-grande” do futebol brasileiro. O Goiás ainda não.

No campeonato de 1996, o Goiás jogou a primeira partida da semifinal no Estádio Serra Dourada e foi derrotado pelo Grêmio. Derrota decepcionante, óbvio. Armando Nogueira, no dia seguinte, disse que o time, “no frigir dos ovos, fraquejou” (Jornal do Brasil, 8.dez.1996, p. 46). Não fraquejar mais e vencer uma decisão importante ainda é o desafio maior do Goiás, 27 anos depois daquela semifinal do campeonato brasileiro.


REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 8.dez.1996.

Placar. São Paulo: Ed. Abril, jun.2006.

SANTA CRUZ, Fábio. Futebol no Centro-Oeste: dos primórdios ao profissionalismo (1905-2018). Jundiaí: Paco Editorial, 2020.

www.bolanaarea.com  (consultado em 14.ago.2023)

www.futeboldegoyaz.com.br  (consultado em 14.ago.2023)

www.youtube.com/watch?v=ALuqxp3aCUk . Por que o Vila Nova não consegue subir para a Série A? (consultado em 14.ago.2023)

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Passado, presente e os novos ventos no futebol

Era 2011. 27 de julho. A data pode passar despercebida frente aos 90 minutos lendários que se sucederam ali. 

O camisa 11 do Santos arrancava pela esquerda do ataque com tanta facilidade que fazia seus marcadores parecerem cabras-cegas batendo cabeça e tropeçando em seus próprios passos. Era um pandemônio a cada vez que pegava na bola. Uma dessas vezes a memória tratou de guardar. De Léo para o camisa 11. 1,2,3 toques em curto espaço ainda na lateral esquerda e a marcação dupla de Léo Moura e Willams era transformada em pó. Passe para Borges, que abre a defesa atraindo um dos zagueiros adversários e devolve fazendo o pivô, deixando o camisa 11 em condição de um contra um com Ronaldo Angelim. O controle de bola e o drible eram sua especialidade. Por uma fração de segundo, o agarrão insistente de Renato Abreu decretaria o fim da trama santista. Mas, o camisa 11 era o mágico de um jogo cujo bruxo observava a somente alguns metros de distância. Ele tirou da cartola um truque de puro ilusionismo. Bola no pé direito em velocidade, não está mais, rola para o esquerdo, marcador para um lado, bola para o outro, meia-lua em Angelim, cavadinha em Felipe, bola na rede. Gol de Neymar.

Vibração na Vila, e melancolia na minha casa. As lágrimas copiosas que escorriam sobre o meu rosto encharcavam de sofrimento as listras vermelha e preta da minha camisa. Era a primeira vez que eu presenciava o meu time tomando um sonoro três a zero ainda aos 20 minutos do primeiro tempo. Só que também era a primeira vez que eu sentia o quanto um esporte pode ser cruel e apaixonante ao mesmo tempo, capaz de pisotear e menosprezar o coração, à medida que o aquece e o deixa mais leve. Mesmo tendo visto o final de Adriano Imperador e de Ronaldinho Gaúcho, nos meus recém-completados onze anos de vida, quem fazia eu me encantar pelo futebol era um moleque magrelo e ousado de 19 anos de idade.

Por dois anos, assistir Neymar jogar era um afago aos olhos curiosos. Mesmo criado como um “monstro”, o menino mágico transformava toda partida em um espetáculo à parte. Arrancadas, dribles e gols inacreditáveis saíam da imaginação geniosa de um garoto e eram produzidos com agilidade pelos seus pés toda quarta e domingo. Um verdadeiro showman.

Foto Fernando Dantas/Gazeta Press

Os anos se passaram, para Neymar e para quem o admirava, e o peso das escolhas foi se tornando cada vez mais preponderante a curto, médio e longo prazo – motivo que faz a vida adulta ser tão inquietante para todo mundo. Após ser o número dois, e às vezes o três, do trio de ataque mais letal deste século e virar o protagonista não-reconhecido de uma remontada pelo Barcelona na Champions League, o já adulto Neymar decide abraçar a ideia de ser a única estrela a brilhar no plantel, juntando-se ao PSG, clube que ele mesmo havia eliminado. A promessa era de encabeçar um time que lhe oferecesse todas as condições de brigar pela glória continental, ao passo que se colocaria como favorito natural dos títulos individuais. Um passo de ousadia, visto que o mais cômodo seria permanecer onde estava e continuar empilhando taças na Espanha ao lado de Messi, Suárez e Iniesta. 

Mas, o que aconteceu foi o desencontro entre as expectativas grandiosas a partir de uma escolha e a realidade nada séria do clube francês e do próprio craque brasileiro. Após ter seu nome ilustrado na Torre Eiffel e se cercar de “parças” dentro de campo, Neymar transforma o que deveria ser a estrela de um projeto em momentos de estrelismo, ao tentar impôr poder frente a Cavani, então maior artilheiro do PSG e ídolo da torcida. Entra em rota de colisão com os torcedores e com a diretoria ao vazar a informação de que queria deixar o time. Volta, decide jogos importantes e bate na trave do título da Super-Champions de 2020. Em fúria, esbravejou por não ter sido lembrado algumas posições acima no ranking de melhor jogador do mundo. Talvez tudo não passasse de um azar à francesa. O ano seguinte marcaria o fim do capítulo mais frustrante da sua carreira, mas de forma inexplicável aceita uma renovação que amarra o seu destino a mais quatro anos de turbulências na França. Tudo isso para, ao final, ser relegado novamente ao segundo posto no projeto e enfim ser chutado do clube por outro jogador cujo ego só não supera o gigantesco flop que foi a passagem de Neymar por Paris. 

Se antes o craque conseguia decidir partidas com uma dose de magia ao iludir seus adversários, em dado momento ele se tornou o seu próprio ilusionista, enganando-se profundamente quanto aos motivos que fazem um jogador permanecer no topo e que dividem esportistas comuns de atletas de alto-nível. Apesar de ser dono de uma habilidade rara dentro de campo, fora dele Neymar foi incapaz de driblar os rumos que acabariam mais tarde o tornando refém das próprias escolhas.

Hoje, doze anos depois daquele jogo memorável, o sentimento é de pura tristeza ao perceber que toda a paixão pelo futebol que um menino parecia pulsar acabou sendo inferior a sua busca por mais cifras milionárias que esse mesmo esporte é capaz de oferecer. A todos cabe refletir: o que será quando se perceber que ainda havia tempo para fazer mais do que não foi feito? Qual será a sentença de uma carreira na qual todas as expectativas iniciais de glórias e conquistas acabaram por fim se transformando em uma miragem em meio a um deserto de areia e muito dinheiro? 

Andando por São Gonçalo, na mesma semana do aceite de Neymar ao Al-Hilal, percebo crianças jogando bola em um campinho, três delas vestindo a camisa do Real Madrid. Coincidentemente, os três moleques usam o mesmo 20 nas costas. Era o antigo número do Vini Jr., cria da cidade, protagonista do Real e atualmente o maior craque do Brasil. De Vinícius, passando por Rodrygo e chegando até Endrick e Vitor Roque, o futebol nunca morre porque sempre haverá alguém para inspirar e ser inspirado, em um ciclo viciosamente intrigante, no qual o tempo é o grande juiz das escolhas tomadas por cada um. 

No futebol e na vida: o dinheiro oferece possibilidades, abre caminhos os quais permaneceriam fechados sem uma força financeira. Porém, ele não pode ser encarado como sinônimo de boas escolhas. Ao aceitar a proposta saudita, Neymar dá as costas para o sucesso que ainda poderia ter, na plenitude dos seus 31 anos. A boa notícia é que novos ventos sempre sopram no futebol. Mais e mais memórias afetivas serão criadas por novos moleques ousados que surgirão.

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Pesquisando emoções no futebol

Por Fábio Daniel Rios

Como se trata de minha primeira contribuição ao blog do LEME, creio que seja oportuno começar com uma breve apresentação, um resumo de meu perfil como pesquisador. Sou doutor em Ciências Sociais pelo PPCIS/UERJ e venho me dedicando principalmente à área da antropologia das emoções, investigando objetos relacionados ao universo cultural do futebol.

 Meu interesse tem sido, sobretudo, a experiência afetiva de torcedores e torcedoras, que podem ser considerados como o lócus da emoção neste domínio. Isso porque, se é verdade que as emoções permeiam fortemente as experiências de todos os agentes envolvidos nesta área, aos torcedores não só é permitido, como também esperado, que se comportem de modo apaixonado, aproximando-se muitas vezes dos limites da loucura ou desrazão. 

Sendo assim, em minha dissertação (2014), abordei a relação entre futebol, emoção e masculinidade a partir das memórias de torcedores dos quatro “grandes” do Rio de Janeiro. Memórias que, a um só tempo, são coletivas e individuais. Por um lado, constroem-se a partir de quadros, marcos ou referências que são definidos e compartilhados coletivamente, produzem a sensação de pertencimento a algo maior e, assim, conferem um pouco de sentido à vida, livrando-nos do sentimento de solidão sempre iminente, porque inerente ao individualismo na modernidade ocidental. 

Mas, também por sermos individualistas, são as peculiaridades das nossas lembranças de cada gol, cada título, cada vitória ou derrota que emprestam um colorido especial a esses eventos, transformando-os em experiências pessoais significativas, que passam a fazer parte daquilo que somos.

Fonte da imagem: Vascaíno.net

Embora seja ainda um universo hegemonicamente masculino (ou justamente por isso), o futebol franqueia aos homens uma vivência afetiva que lhes é vedada em outros contextos, por serem as emoções culturalmente definidas como um atributo feminino, assumindo conotações negativas ligadas às noções de excesso e descontrole (Abu-Lughod e Lutz, 1990). 

Mas não seriam justamente essas as qualidades que compõem o tipo ideal do “torcedor apaixonado”, que canta, vibra, berra e chora, sendo capaz de realizar loucuras e sacrifícios por seu “clube do coração”? Tipicamente, o sentimento dos torcedores pelos clubes é definido em termos de amor, paixão e fidelidade, em conformidade com o ideário romântico que serve de base à formatação cultural dessa relação (Damo, 2002).

Em minha tese (2018), abordei a relação dos torcedores do C.R. do Flamengo com o Novo Maracanã, buscando entender como vinham se relacionando com o novo espaço produzido pela reforma de arenização do estádio, justificada pela realização da Copa FIFA de 2014 e dos Jogos Olímpicos de 2016. Com essa reforma, além das profundas mudanças estruturais promovidas, observamos também o avanço de um processo de elitização e domesticação do público, visando atender aos novos padrões de conforto e segurança estipulados internacionalmente. 

Estaríamos diante de um processo civilizador, no sentido eliasiano de contenção das emoções (1992), que colocaria em xeque a importância das vivências afetivas historicamente tão valorizadas na “cultura do futebol”? 

Em minhas observações de campo, pude observar uma série de “desrespeitos” às novas regras estabelecidas, que podem ser entendidos como formas variadas de resistência por parte dos torcedores. Já em seus depoimentos, eles procuraram distinguir-se como “torcedores de verdade” com base na efusividade de suas performances corporais e emocionais nas arquibancadas, em contraste com a alegada frieza, passividade e indiferença do novo público.  

Na visão dos entrevistados, o “verdadeiro torcedor” é aquele que vai ao estádio com frequência para apoiar o time e se comporta de modo efusivo, cantando e vibrando o tempo todo como forma de participar ativamente, influenciando o resultado da partida. Já o novo público seria composto por turistas, que vão ao estádio apenas quando o time está bem e se limitam a assistir aos jogos sentados, tirando fotos para postar nas redes sociais. Trata-se, portanto, de uma hierarquização que tem como base os diferentes níveis de “engajamento emocional” dedicados ao clube.

Fonte da imagem: Clube de Regatas do Flamengo.

O sentimento pelo Flamengo foi inicialmente caracterizado como “inexplicável” ou “imensurável”, definindo-se posteriormente pelas noções de amor, paixão e fidelidade. Mas para melhor qualificar esse afeto, os torcedores enumeraram uma série de práticas que atestariam seu nível elevado de engajamento, especialmente a frequência ao estádio, a realização de loucuras e sacrifícios, a compra de produtos do clube e o fato de serem sócios-torcedores. 

Esses dois últimos itens me chamaram a atenção, por consistirem em formas “mercadológicas” de relação com o clube, que se manifestam através do consumo, por intermédio do dinheiro. 

Os programas de sócios-torcedores vêm se consolidando como um novo modelo associativo no Brasil, uma fonte alternativa de receitas, e funcionam segundo a lógica do mercado, oferecendo vantagens e benefícios em troca do pagamento de mensalidades, sendo maiores os benefícios para aqueles que contratam os planos mais caros – ou seja, teriam um caráter elitista ou excludente. 

Ao lado do Estatuto do torcedor, da arenização dos estádios e da conversão dos clubes em empresas, representariam o avanço da lógica de mercado no futebol, levando à conversão dos torcedores em consumidores, em detrimento de seu laço afetivo com os clubes. 

Em minha pesquisa, encontrei resultados que contestam esse diagnóstico. Ao apontarem o desejo de ajudar o clube como principal motivação para terem se tornado sócios-torcedores, os entrevistados rechaçavam sua qualificação como meros consumidores, reforçando que sua relação com o clube se daria com base nas lógicas da dádiva e dos afetos. 

Minimizando as vantagens recebidas, em prol da ajuda ao clube como motivação primeira, caracterizavam a assimetria dessa troca como um sinal de abnegação e desapego, configurando, assim, uma nova forma de sacrifício. 

Teríamos aí, portanto, uma combinação especial entre emoção e mercado no mundo do futebol, uma reapropriação de instrumentos mercadológicos, ressignificados como meios de expressão da paixão dos torcedores. 

Tais resultados indicam a necessidade de uma visão mais nuançada sobre a relação entre consumo e afeto na experiência de sócios-torcedores (ou dos torcedores, de modo geral), o que venho buscando construir agora em meu projeto de pós-doutorado, como bolsista de PDJ do CNPq. Sigo, assim, investigando qual seria o lugar destinado às emoções na chamada “nova economia do futebol”. Mas esse é um assunto para minhas próximas contribuições. Saudações!

Referências bibliográficas

ABU-LUGHOD, Lila; LUTZ, Catherine. Language and the politics of emotion. New York: Cambridge University Press, 1990. 

DAMO, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: UFRGS, 2002.

ELIAS, Norbert; DUNNING, Eric. Em busca da excitação. Lisboa: Difel, 1992.

RIOS, Fábio Daniel. Futebol, masculinidade e emoção: memórias apaixonadas de torcedores. 2014. 142f. Dissertação (Mestrado em Ciências Sociais) – Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2014. ______. Os torcedores e o Novo Maracanã: emoção e espaço nas arenas esportivas contemporâneas. 2018. 276f. Tese (Doutorado em Ciências Sociais). Instituto de Ciências Sociais, Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2018.

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O saldo da seleção brasileira feminina na Copa do Mundo de Futebol: mais vitórias que derrotas

Por Soraya Barreto Januário

Este texto começou a ser escrito em dias muito dolorosos, dias que se seguiram a eliminação precoce da seleção brasileira de mulheres da Copa do Mundo de 2023, durante a fase de grupos, na Austrália e Nova Zelândia. Um resultado que ninguém esperava, nem nos piores pesadelos. Diante da infinidade de assuntos que poderia debater neste momento, uma fala sobre a eliminação que ecoou nas redes sociais digitais e na mídia hegemônica me chamou a atenção: segundo o tribunal da internet e da mídia esportiva, hegemonicamente masculina, a seleção feminina não podia, justamente agora, que tem “alguma” estrutura, decepcionar dessa forma. É interessante notar a misoginia que empacota este pensamento travestido de opinião. O deboche e o discurso de ódio é , de forma evidente,  fruto da estrutura machista que a nossa sociedade ostenta, somado ao discurso neofascista no qual este país foi parcialmente tomado. Caso estrutura ganhasse Copa, a nossa seleção de homens tinha a obrigação de ter muito mais estrelas que as cinco que ostentam no peito – e devo lembrar que a história do futebol das mulheres no Brasil é recente, começa profissionalmente quando a modalidade masculina já era tricampeã mundial.

Finalmente assistimos a mídia abraçar e publicizar este percurso, contando o histórico de  proibições, seja por força de lei, como o Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, seja pelas invisibilidades pautadas em premissas patriarcais. Essa história vem sendo escrita e contada ao longo dos anos por pesquisadoras e ativistas do futebol das mulheres, como exemplos ressalto os trabalhos de Silvana Goellner (2003; 2005; 2021), Ludmilla Mourão e Marcial Morel (2005), Leda Costa (2017), Aira Bonfim (2019), Lu Castro e Darcio Ricca (2021) e meu último livro organizado em parceria com o Jorge Knijinik (2022). As motivações do afastamento, invisibilidade e proibições para que as mulheres  participassem da construção da cultura futebolística brasileira estão claramente associadas a premissas biologizantes, pautadas numa ideia de que a “condição de mulher” e a “natureza feminina” seriam impeditivas de certas práticas, dentre elas o futebol. Um claro mecanismo biopolítico de coerção e vigilância do corpo feminino. Retomo essa história aqui devido à grande influência que este fato histórico tem na falta de desenvolvimento e no apagamento das mulheres no mundo clubístico e futebolístico, bem como nas dificuldades enfrentadas pela modalidade até os dias atuais (Barreto Januário; Knijnik, 2022).

Se formos traçar um paralelo histórico mais recente, devemos lembrar que a Copa de 2015, no Canadá, pouco ecoou na mídia hegemônica, seja noticiosa ou publicitária, como demonstrei com outras pesquisadoras, em trabalhos realizados no OBMIDIA UFPE (Barreto Januário; Veloso, Cardoso, 2016). Assistimos  ao inegável crescimento, com  aumento em 533% de peças jornalísticas veiculadas sobre a competição (Barreto Januário; Lima; Leal, 2020), da Copa do Mundo de Futebol de 2019, na França. Além disso, foi a primeira em que todos os jogos da seleção foram televisionados. Lá em 2019 ouvimos também o Guaraná Antárctica, que já patrocinava a seleção masculina e feminina há anos, ativar o patrocínio com a seleção das mulheres de forma efetiva. Até aquele momento, essa havia sido a competição com maior visibilidade da história da modalidade e que permitiu o fortalecimento do debate em torno do futebol de mulheres no Brasil. Devo ressaltar que essa ascensão não ocorreu do dia para a noite, e se deve a muita luta, persistência e insistência de muitas mulheres, jogadoras, técnicas, jornalistas e ativistas do futebol de mulheres e ainda, dos feminismos. Somado a isso, o fenômeno conhecido como “primavera feminista” que observou o aumento do agendamento midiático de pautas e bandeiras feministas, permitiu também uma maior abertura da visibilidade da modalidade. O mau desempenho da seleção brasileira masculina em 2018 também foi um fator  que despertou o debate e gerou interesse de uma parte da população sobre a seleção de mulheres.

A Copa do Mundo de 2023, sem sombra de dúvida, está sendo ainda maior que o divisor de águas que foi a edição de 2019. Alguns pontos merecem ser ressaltados, como a cobertura para além dos jogos da seleção, com apresentação e biografia das principais atletas brasileiras e estrangeiras, acompanhamento das famílias das jogadoras nacionais e abordagem de tópicos da vida delas; cobertura dos jogos das outras seleções; publicidade de diversas marcas nacionais e internacionais; e claro, a ajuda inestimável do consumo on demand, streamings e plataformas digitais, como o canal no Youtube Cazé TV, que comprou o direito de transmissão de todos os jogos e montou um time respeitável de comentaristas, narradoras e repórteres, além de uma equipe que produziu conteúdo e entretenimento in loco. Tudo isso reforça a maturação de uma possível mudança significativa na cobertura midiática hegemônica e independente.      

Esse fato dialoga com a melhora significativa da cobertura esportiva entre as edições de 2019 e 2023 que, mesmo com uma pandemia no meio, parece ter diminuído substancialmente o chamado “movimento sanfona” – Ludmila Mourão e Márcia Morel (2005) defenderam a existência desse movimento em referência ao interesse sobre o futebol de mulheres na mídia, e observaram que a modalidade não teria encontrado um espaço permanente na sociedade e no jornalismo esportivo. As autoras pontuam ainda que este interesse tinha o comportamento de ondas, oscilando de acordo com a visibilidade  de certas competições, como é exemplo as Olimpíadas e a própria Copa do Mundo. Leda Costa (2017) observa o mesmo movimento, afirmando haver alguns booms de pautas do futebol de mulheres na mídia de massa, que acabam se dissipando quando as competições finalizam. 

Com efeito, posso dizer sem medo, que a Copa de 2023 marca um período de continuidade significativo. Como exemplos, posso citar que a maior rede de TV nacional agora apresenta os melhores momentos e gols do brasileirão feminino e a “equipe” de cavalinhos, mascote lúdico que apresenta a corrida entre os times na disputa do campeonato brasileiro, personagem do programa dominical Fantástico da Rede Globo, conta  agora com uma “eguinha” para falar do futebol de mulheres. Outro ponto de destaque é o aumento significativo de mulheres jornalistas cobrindo, comentando e narrando a Copa. Na própria TV Globo, que em 2019 tinha apenas Ana Thaís Matos comentando os jogos, compôs uma equipe com 11 profissionais entre narradoras, comentarista e a jornalista Bárbara Coelho que cobriu a Copa na Austrália (Sá, 2023). É um momento de consolidação do espaço da mulher, inclusive no jornalismo esportivo. São processos mediaticamente pedagógicos que começam a fomentar uma continuidade com consistência. Outro tópico a destacar é o aumento de perfis em redes sociais digitais, sites e blogs, que além de ativistas produzem conteúdo especializado, como Dibradoras, Miga Esporte Clube, Passa no DM, @futebolfeminino.e-arte, @futebolporelas, @paginafutebolfeminino, @planetafutebolfeminino, entre outros. Somado a isso, importa ressaltar que a ampla cobertura da mídia de massa em torno da eliminação, com comentários, análises e críticas embasadas e duras é sinal de avanço também, já que por muito tempo a eliminação da seleção rendia no máximo uma chamada e notas menores, para além de comentários condescendentes, tratando a modalidade como café com leite, ao que finalmente a modalidade é vista de forma mais profissional com as cobranças devidas.

E voltando a falar em estrutura, o fato de que a seleção finalmente teve voo fretado, camisa com escudo próprio, linha de uniformes feitos para elas, a maior delegação da história do futebol de mulheres do Brasil com 31 integrantes e dentre eles, 18 eram mulheres (em 2019 foram apenas 4), devo dizer que ainda é o mínimo. Assistimos com alegria ao despertar de um novo cenário, fruto de muita luta, ativismo, briga e talento. Todavia, o momento é de cobrança, seja pelo futebol desastroso apresentado contra a Jamaica, seja por uma técnica inerte ao que ao mundo estava assistindo nas duas últimas partidas ou ainda pela apatia apresentada no jogo de eliminação. Cobrar e criticar é respeitar o futebol das mulheres, lamentar é respeitar a dor de ver uma saída precoce num momento histórico tão importante para a modalidade nacional. Marta merecia um final de carreira mais coerente com sua trajetória, não necessariamente precisava ser o título, mas um último ato digno de sua grandiosidade e este é um dos meus maiores lamentos.

Por fim, resta dizer que foram muitas conquistas sim, é preciso celebrá-las. Tivemos um número recorde de seleções disputando a Copa, pulamos de 24, em 2019, para 32, em 2023. Ampliamos o número de técnicas a frente das seleções, foram 12 contra nove na última copa. O futebol das mulheres segue vivo e precisa continuar lutando. São muitas lutas que precisam ser travadas ainda, como nos disse a rainha, “tem que chorar antes para sorrir depois”. Enxuguemos as lágrimas e sigamos!


Referências:

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, DanielFutebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019Observatório (OBS*), v. 14, n.4, December, 2020.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya; KNIJNIK, Jorge D. Novos rumos para as mulheres no futebol brasileiro. Futebol das mulheres no Brasil: emancipação, resistências e equidade, p. 434-458, 2022.

Bomfim, Aira. F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019, Dissertação – Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro.

CASTRO, Luciana; RICCA, Darcio. Futebol feminista: ensaios, 2021.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

GOELLNER, Silvana. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. 

GOELLNER, Silvana. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 19(2), 143-151, 2005

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campoRevista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 26, n. 2, p. 73-86, 2005.

SÁ, Luiza. Globo aposta em diversidade e quer bater recordes na Copa feminina. UOL, 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/07/12/globo-aposta-em-diversidade-e-quer-bater-recordes-na-copa-feminina.htm Acesso: 02 ago. 2023.

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Da ficção à realidade: os homens que odeiam as mulheres

Assim como no ano passado, dois mil e vinte e três também é ano de Copa do Mundo. Agora é a vez das mulheres entrarem em campo para um jogo que vai além das quatro linhas do gramado. Forças políticas, sociais, esportivas se entrelaçam nesse megaevento que coloca em evidência, tanto a potência das mulheres, quanto o ódio destilado a elas.

A intolerância com aquelas que rompem os padrões normativos de feminilidade não é de hoje. No esporte não é novidade que o futebol e outras modalidades foram proibidas – por lei – para o gênero feminino. Isso acontece em pleno Estado Novo, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas. Durante 38 anos (1941 a 1979), as mulheres praticavam um futebol de guerrilha e de guerreiras. Clandestino. Marginal. Sagaz. Resistente.

A justificativa para a proibição se encontrava na – suposta – fragilidade dos corpos femininos, que serviam para engravidar, não para jogar bola. O mesmo corpo que pare é o corpo que corre, é o corpo que se retrai, é o corpo que é machucado. Corpo que é atacado diariamente por homens, os mesmos que nos julgam frágeis, os famosos “cidadãos de bem”. Inseguros. Complexados. Covardes. Violentos.

O título desse texto faz alusão a uma coleção de livros do autor sueco Stieg Larsson “Os homens que não amavam as mulheres” ou “Os homens que odeiam as mulheres”, dependendo da tradução. O livro, embora fictício, narra de forma bem verossímil como os homens se apropriam dos corpos femininos e, como um sistema social falho, pode também estar à serviço da misoginia.

A escolha por este título em específico também veio após me deparar com a entrevista da jornalista Milly Lacombe, no videocast “Desculpa alguma coisa”, no qual ela afirma: “homem gosta de homem, das mulheres eles só querem o sexo”. Há quem diga que essa frase é forte demais, ou que “as coisas não são bem assim”. Fica difícil, porém, contestá-la quando, em um dia que era para ser festivo para os amantes de futebol, uma estreia de Copa do Mundo, você se depara com a notícia de que a CazéTV teve que desativar os comentários da transmissão Nova Zelândia x Noruega, o jogo de abertura da competição, por estarem recebendo centenas de mensagens preconceituosas.

O que leva um sujeito a acordar de madrugada (a partida começou às 04h30 da manhã), abrir o computador, buscar a transmissão do jogo, e escrever coisas para menosprezar as mulheres? Em qualquer rede social, as postagens relacionadas à Copa do Mundo Feminina são inundadas de comentários preconceituosos feitos por homens que, além de ignorantes, propagam desinformação, e não têm base nenhuma para serem feitos.

Fonte da imagem: Terra / Foto: Brendan Moram/Sportsfile via Getty Images

Outra situação que movimentou os bastidores da Copa foi a denúncia anônima de uma atleta da Zâmbia relatando abuso sexual por parte do treinador da seleção, Bruce Mwape. O relato veio à tona através de uma reportagem do The Guardian. O resultado: duas atletas afastadas. A goleira Hazel Nali, por lesão, embora ela tenha dito que nunca recebeu os exames médicos. E mais recentemente a meio campista Grace Chanda, uma das lideranças da seleção, também foi cortada por “indisciplina”. Esse é o recado que a Associação de Futebol da Zâmbia dá para as mulheres que ousam lutar pelos seus direitos: denuncie que é vítima de violência e perca uma Copa do Mundo. Uma forma de violência institucional apoiada na desqualificação da experiência feminina e na validação do comportamento masculino.

Em uma conversa com a jornalista Gabriela Moreira, ela relatou que tinha mais facilidade de se conectar com as jogadoras mulheres do que com os atletas homens, quando o assunto eram pautas sociais, pois a trajetória das mulheres é indissociável dessas causas. Ou seja, se na Copa do Mundo Masculina os homens recuaram no protesto de usar a braçadeira em apoio à causa LGBTQIA+ por medo da punição com cartão amarelo, para as mulheres, o que é um cartão em meio a tanta violência que elas já sofreram e sofrem? São sentidos diferentes porque são sofrimentos diferentes.

Como dito no início, porém a história das mulheres é de luta, e não de ressentimento. Resiliência. Força. De alguns anos para cá soma-se a essas palavras: companhia. A consciência é de que a caminhada é longa, mas não mais só. Mulheres torcedoras, mulheres jogadoras, mulheres pesquisadoras, mulheres apropriadas de seus corpos. Mulheres que não odeiam as mulheres.

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Por que a Revista Placar optou por não “manchetar” a Copa do Mundo Feminina 2023?

Por Daniel Leal

*Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e membro do ReNEme – Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte. @lealdaniel87 (IG).

Passado o ciclo de quatro anos de duas históricas edições relativas ao futebol de mulheres, a Revista Placar voltou a dar um espaço de maior destaque à modalidade. Se por um lado, existe uma inequívoca frustração por ver a mais longeva e importante revista nacional esportiva (RIBEIRO, 2007) perder a oportunidade de trazer a Copa do Mundo Feminina 2023 como manchete, por outro não se pode desprezar mais uma casa andada com avanços que pontuaremos. O ponto é: já não era momento suficiente para solidificar essa evolução com uma nova capa dedicada à modalidade?

Em dezembro de 2020, publiquei a dissertação Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres sobre a mutabilidade acerca dos critérios de noticiabilidade nas últimas três décadas na Placar. Valores-notícia (VN) como “Musa ou modelo atleta”, pouco a pouco, ficaram para trás em detrimento de outros que surgiram – como, por exemplo, a figura de “Marta” como VN por si mesma.

O fato é que, historicamente, existe uma espécie de “estica e puxa” com o desenvolvimento do futebol de mulheres. Isso faz com que especialmente as pesquisadoras e pesquisadores, mas também torcedores, as próprias atletas e pessoas que fazem a modalidade, estejam sempre “armados” para contra-atacar ao mínimo sinal de retrocesso. Talvez até mais: a quebra no ritmo de evolução é, hoje, suficiente para críticas. Difícil julgar sem sentir na pele. E não é só sentir, há ciência envolvida nesse protesto.

Faz quase duas décadas que Ludmila Mourão e Marcia Morel (2005) observaram o que chamaram de “efeito sanfona” na cobertura do futebol de mulheres no Brasil. Mais de dez anos depois, Leda Costa (2017, p. 505) basicamente repetiu o cenário em outro contexto, já mais próximo ao atual, ao afirmar (e prever) que “outros booms do futebol feminino poderão ser notados de tempos em tempos”. Eu entendo que as duas afirmações são didáticas para que evitemos precipitações na análise que cerca a modalidade e, mais do que isso, as citações permanecem atualíssimas.

Seguramente, sem tensionamento, pouco teria mudado. Foi, por exemplo, fruto do jornalismo feminista das Dibradoras que a Placar, na histórica edição 1453 de julho de 2019, realizou o passo mais emblemático do seu revisionismo histórico relativo ao futebol de mulheres. Aquele editorial, sob o título “A busca pela igualdade”, trouxe um pedido de desculpas histórico pela trajetória machista da revista ao noticiar, não só o futebol de mulheres, mas as mulheres no esporte como um todo. “Nas décadas de 1980 e 1990, olhávamos o futebol feminino com uma visão equivocada, quase objetificando as mulheres jogadoras. Pedimos perdão por aquele período de ignorância e buscamos evoluir” (PLACAR, 2019, ed. 1453). Mas a Placar, a instituição precisa entender que não adianta se desculpar na teoria e falhar na prática.

Fonte da imagem: Twitter.

O editorial foi escrito pelo jornalista Ricardo Corrêa, à época no comando da revista. Apesar de não estar assinado, ele confirmou à nossa pesquisa ter escrito o texto e que a ideia partiu de uma publicação das Dibradoras. O sucesso da Copa do Mundo, com audiências recordes nas televisões do Brasil e do mundo (BARRETO JANUÁRIO; LIMA; LEAL, 2020) aguçou ainda mais o progressivo interesse da Placar pelo futebol de mulheres. A edição 1457, mais uma vez histórica, trouxe pela primeira vez na história do cinquentenário periódico (LEAL, MESQUITA, 2021) uma jogadora de futebol sozinha na capa: Marta. Foi uma edição inteira – e até hoje única – dedicada exclusivamente ao futebol de mulheres.

Placar, edição 1501, julho de 2023

No mês da nona edição do Mundial Fifa para o futebol de mulheres, a revista Placar ficou entre a frustração e o progresso. O primeiro, obviamente, por não ver novamente uma edição exclusiva ao futebol de mulheres e, pior, não ter sequer a capa da revista dedicada ao tema. Avanço porque, sim, a revista, na obrigação jornalística de noticiar o fato, deu um passo adiante na sua lenta, mas gradual caminhada de evolução.

Primeiramente, vale salientar que a revista está novamente sob nova direção. Desde o final de 2022 a Editora Abril realizou um acordo de licenciamento da marca, que passou a ser administrada pela Score Editora, do empresário carioca Alan Zelazo. Leal e Mesquita (2021) trazem um histórico detalhado da história do periódico.

A mudança, obviamente, impacta diretamente na linha editorial da revista. Internamente, a decisão de escolher Casemiro, jogador do Manchester United, em detrimento à Copa Feminina, foi questionada e alvo de debates. A partir de fontes consultadas pela nossa pesquisa, ficamos sabendo que foi difícil convencer parte da direção de que valeria ter um guia da Copa – o primeiro já feito.

Fonte da imagem: Placar.

Teria pesado a favor da capa com um jogador o “público raiz” da revista, composto majoritariamente por consumidores homens e do futebol masculino. Neste contexto, a revista ainda recebeu um convite para ir à Inglaterra entrevistar Casemiro. A negociação para essa exclusiva era ter o atleta da Seleção Brasileira como capa da revista.

A solução encontrada foi dividir os esforços: metade Especial Premier e metade guia da Copa feminina. Na capa, inclusive, há uma chamada para o guia feminino em que a atacante Debinha, destaque da Seleção, aparece numa fotografia menor, no canto inferior. O esforço de alguns por ter uma mulher na capa acabou sendo um tiro pela culatra, a partir de uma questão semiótica em que a mulher aparece inferiorizada em detrimento do homem, reforçando o lugar de subalternidade dado pela revista ao futebol de mulheres mesmo às vésperas da maior competição mundial da modalidade.

Outro ponto destacado, de acordo com a nossa apuração, foi a dificuldade em entrevistar nomes como Bia Zaneratto e Marta, com assessorias de difícil diálogo. Diante isso, a Placar trouxe 33 páginas, com ótimo conteúdo – incluindo material de colaboradores, como a historiadora Aira Bonfim, hoje uma das maiores referências sobre a modalidade no país.

O balanço interno da equipe comandada pelo jornalista Fábio Altman é de que a decisão foi acertada. A repercussão mundial com a entrevista exclusiva com Casemiro teria valido a pena. Além disso, a revista comemora o fato de ter mais repórteres na equipe – casos de Bianca Molina, Isabela Labate e Maria Fernanda Lemos. Existe, de fato, um quê de progresso que é freado por iminentes questões mercadológicas e mesmo construcionistas – afinal, no mundo, há um machismo enraizado. É inegável, e louvável, o esforço que parte da equipe faz para dar espaço (com conteúdo qualificado!) ao futebol feminino.

Mas até que ponto, na sociedade atual, ignorar a relevância de ter uma manchete com uma jogadora de futebol na capa seria menos impactante? Quanto de imagem positiva a revista conseguiu agregar à marca com a capa de Marta em 2019? Que mensagens ao mercado/público a Placar passa, ou deixa de passar, ao perder a oportunidade de “manchetar” o Mundial Feminino? Será que o “impacto mundial” pontual com a entrevista de Casemiro seria mesmo maior do que uma Debinha reinando à frente da maior revista esportiva do país? São ponderações a fazer.

No editorial, inclusive, a revista traz uma nova reflexão sobre a relevância de dar espaço ao futebol de mulheres e à evolução da modalidade. Num trecho, o texto diz:

“Haverá sempre algum incômodo relativismo, ‘porque os humores eram outros, a sociedade era outra, o machismo imperava etc. etc.’ – nós mesmos, de PLACAR, fomos dar a primeira capa da revista exclusivamente dedicada a mulheres em 2019, com uma foto da rainha Marta. Mas não pode ser assim, o jogo tem de mudar”.

De fato, o jogo tem de mudar. Vamos juntos?

REFERÊNCIAS

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, Daniel. Futebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019. Observatório (OBS*), VOL. 14, Nº4, December, 2020.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

LEAL, Daniel. Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2020.

LEAL, Daniel, MESQUITA, Giovana. A singularidade da cinquentenária Placar para o contexto histórico do jornalismo esportivo no Brasil. Sur le journalisme, About journalism, Sobre jornalismo [En ligne, online], Vol 10, n°2 – 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: A diferença que faz uma medalha de prata. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 2005.

PLACAR. São Paulo: ed. Abril, edição 1453, jul., 2019.

______. São Paulo: ed. Abril, edição 1457, nov., 2019.

______. São Paulo: ed. Score, edição 1501, jul., 2023.

RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. São Paulo: Terceiro Nome, 2007.