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Em busca da onda perfeita: experiência, imaginário e representação do surfe no contexto das piscinas de ondas

A uma semana de embarcar para a minha primeira surftrip1 internacional, me vejo prestes a realizar cada momento idealizado e sonhado há pelos menos vinte anos. Nado e surfo desde os cinco anos de idade2 e da década de oitenta até os dias de hoje muita coisa na cultura do surfe3 mudou: a evolução da previsão das ondas, que estão cada vez mais assertivas; os equipamentos como as roupas de neoprene para surfar em águas mais frias; coletes infláveis, como itens de segurança, e a inclusão de jet-skis, que possibilitaram o surfe de ondas gigantes; a ascensão e “queda” da surf music, majoritariamente produzida na Austrália; a invasão dos surfistas da geração da “Tempestade Brasileira” no circuito mundial. Porém, destaco sobretudo o surgimento da terceira geração de piscinas de ondas que, diferentemente das tecnologias anteriores, que não conseguiam reproduzir ondas consideradas de qualidade pelos surfistas, tem o potencial de deslocar essa cultura de um ambiente natural e imprevisível para espaços artificiais, privados e controlados.      

Para a maior parte dos surfistas, surfar está ligado à conexão com a natureza, à leitura do tempo, das ondas, das correntes, saber entrar e sair do mar. Algumas das minhas experiências mais memoráveis surfando têm mais a ver com o contexto vivido dentro e fora d’água do que com o ato de deslizar sobre uma onda. Por exemplo, quando tive a oportunidade de surfar próximo a cardume de golfinhos em Ilha Grande, ou quando surfei no Canadá, em um lugar improvável e distante das representações do surfe em praias tropicais. Nessas duas ocasiões, as ondas estavam no máximo razoáveis, mas, mesmo assim, são momentos inesquecíveis para mim. No entanto, como surfista apaixonado pelo mar, que cresceu lendo revistas que mostravam paraísos perdidos no mundo onde ondas perfeitas quebravam sem ninguém, sempre mantive esse sonho de fazer uma viagem internacional para um destino conhecido mundialmente pela qualidade das ondas. No meu caso, a Indonésia. Ponting e McDonald (2013), criaram uma teoria relacionada a esses espaços de surfe que são idealizados e mitificados no turismo de surfe internacional: a chamada Nirvanificação. Para eles, a construção social do Nirvana é baseada em quatro elementos simbólicos: “ondas perfeitas; condições sem aglomeração; aventura amortecida (uma sensação de aventura apesar dos consideráveis níveis de conforto e segurança proporcionados pela indústria do turismo); e um ambiente tropical intocado.4” (PONTING; MCDONALD, 2018, p. 9). Atualmente as tecnologias utilizadas nas piscinas de ondas têm a capacidade de reproduzir o Nirvana a partir de alguns aspectos, como a onda perfeita, condições sem crowd e até a ideia de aventura, afinal, surfar, mesmo em um espaço controlado, envolve riscos de acidentes. Porém, elas suprimem a referência das ondas do oceano (natureza) da cultura costeira do surfe, o que para muitos sufistas é o cerne da construção social de autenticidade do esporte.

Além de considerável investimento financeiro, as viagens de surfe envolvem a possibilidade de não haver condições para o surfe em si. Isso acontece porque para que ondas de qualidade se formem, há uma conjunção de fatores que devem se alinhar, como tamanho do swell, período e direção das ondas, maré, direção e força do vento e batimetria. Portanto, no período de estadia do surfista nestes destinos de surfe naturais a onda sonhada, idealizada, pode ficar apenas na imaginação, sem a confirmação se ela de fato existe e preenche todas as expectativas criadas previamente pelo esportista, podendo inclusive gerar frustrações. Como ainda não realizei esse sonho e nunca surfei em uma piscina de ondas, continuo vislumbrando as possibilidades e prazeres que essas opções de surfe podem me proporcionar. Confesso que era meio cético em relação à experiência de surfar em uma piscina de ondas, mas após dissertar sobre o assunto e conversar com pessoas que já tiveram essa experiência, creio que, quando chegar a minha vez, ficarei satisfeito, apesar de achar que a aura em torno do esporte praticado no mar seja abalada pela falta de contato com a natureza.


1 Viagem com a intenção de surfar ondas de qualidade internacional.

2 Aqui vale um adendo sobre o meu lugar de fala. Sou negro, de classe média, não me enquadro no estereótipo de surfista representado pela mídia e, apesar de morar relativamente longe da praia, tive acesso muito cedo a piscinas, praias com ondas e equipamentos que não são facilmente acessados pela maior parte da população brasileira.

3 Aqui incluo de um modo geral os esportes praticados com prancha e sem prancha, no mar. Exemplo: Surfe de Peito (Jacaré), Body Board, Skin Board e o próprio Surfe.

4 O trecho em inglês é: “perfect waves; uncrowded conditions; cushioned adventure (a sense of adventure despite considerable levels of comfort and safety provided by the tourism industry); and a pristine tropical environment.”

Referências

ROBERTS, Michael e PONTING, Jess. Waves of simulation: Arguing authenticity in an era of surfing the hyperreal. International Review for the Sociology of Sport, 2018.

PONTING, Jess. Simulating Nirvana: surf parks, surfing Spaces, and Sustainability. In: Sustainable Surfing, Routledge, 2017.

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A audiodescrição chega aos jogos com transmissão ao vivo no Brasil

O serviço de audiodescrição tem sido realidade durante algumas competições esportivas no país, de um ano para cá. Durante a Copa do Mundo Masculina, em 2022, cerimônias de abertura e encerramento e jogos puderam ser ouvidos em audiodescrição, na TV Globo. Já a operadora de TV paga Claro disponibilizou um canal, onde foi possível ouvir a audiodescrição por meio de um QR code. Mais recentemente, o Campeonato Paulista de Futebol também teve alguns jogos com este recurso.

Na TV Globo, a transmissão foi possível por meio da tecla SAP e, em muitas vezes, o áudio da narração de Galvão Bueno e o áudio do audiodescritor ficaram sobrepostos. No caso da transmissão da Claro, foi disponibilizado o canal 533. Por meio do QR code foi possível ouvir a audiodescrição em um aparelho auxiliar (celular, tablet e computador). Já no Campeonato Paulista, os jogos São Paulo x Corinthians, Palmeiras x Santos, as quartas de final, semifinais e finais tiveram o recurso de audiodescrição por meio do Youtube. 

Ainda são poucos os estudos para avaliar a melhor maneira de se transmitir os jogos com acessibilidade. Nas entrevistas que tenho feito para minha tese de doutorado, há uma tendência de que as pessoas com deficiência visual prefiram o não uso da tecla SAP, devido à sobreposição de áudio. Por mais que nas duas outras opções aqui citadas, eles ouçam a audiodescrição em um meio e a narração tradicional em outro, minha população de pesquisa acredita que assim fica mais fácil ouvir a partida. Outro ponto destacado é que ouvir pela tecla SAP depende também de quem está junto no mesmo ambiente. Pessoas videntes nem sempre têm o entendimento da importância do recurso de audiodescrição e acham que este está atrapalhando. Com a audiodescrição transmitida por meio do celular, tablet ou computador, é possível usar um fone e continuar no mesmo ambiente, sem que os demais escutem a audiodescrição, facilitando assim, também, a sociabilidade.

É um erro pensarmos que o recurso de audiodescrição auxilia apenas pessoas com deficiência visual, pois ele é útil também para idosos, disléxicos, autistas, pessoas com déficit de atenção e pessoas com deficiência intelectual. A falta deste entendimento passa pela invisibilidade que as pessoas com deficiência têm na própria sociedade, apesar de políticas públicas recentes, principalmente após a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2008. Também é um equívoco pensar que somente a transmissão via rádio dá conta do mesmo nível de informação que uma pessoa vidente tem por meio da televisão.

Para evitarmos tal equívoco, creio que seja importante entendermos, de fato, o que é a audiodescrição. Para isto, recorremos à professora Flavia Mayer:

Em termos gerais, a audiodescrição constitui-se como uma atividade de interação entre videntes e não videntes com objetivo de contribuir para que pessoas com deficiência visual tenham um maior acesso às informações visuais oculares. Na atividade de audiodescrição, ocorre a descrição de detalhes visuais importantes como cenários, figurinos, indicação de tempo e espaço, movimentos, características físicas de pessoas/personagens e expressões faciais (MAYER, 2018, p. 16).

Sendo assim, trazendo para a realidade do futebol, vamos pensar num jogo da seleção na qual o jogador Neymar sofre uma falta. Informações como: ele parece com dor? Se sim, em que parte do corpo parece doer? Os demais jogadores parecem preocupados? Quais demais informações visuais aparecem na tela? – nem sempre são faladas pelos narradores de jogos transmitidos pela TV, não deixando a pessoa com deficiência visual no mesmo patamar de igualdade do vidente, em nível informacional. Ou seja, parte-se do pressuposto que o público está vendo a tela.

A ausência de informações visuais tão importantes faz do rádio um veículo de comunicação muito procurado pelas pessoas com deficiência visual. Segundo a Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, a relação deste público com o rádio chega a ser afetiva, mas, mesmo assim, são raros os programas voltados para este público[1]: “Num mundo que privilegia a imagem, um veículo voltado para o sentido da audição é inclusivo por sua própria natureza. No entanto, ainda é rara a programação de rádio que trate diretamente dos interesses e direitos das pessoas cegas e com baixa visão”. Podemos então concluir que as pessoas com deficiência visual se beneficiam da linguagem descritiva do rádio, mas isto não quer dizer que este veículo tenha conteúdo direcionado a este público.

O potencial do rádio como meio inclusivo é pouco explorado, ainda mais quando pensamos em seu acesso à população. Segundo Costa (2015), a popularidade do rádio acontece devido à dois fatores: capacidade do ser humano de escutar e interpretar as mensagens sonoras, independentemente do nível de alfabetização e a criação do transistor que possibilitou que os aparelhos de rádio fossem menores, mais leves e portáteis.  Desta forma, pode ser levado para vários lugares, precisa somente de acesso a uma tomada ou a pilha e ainda é barato quando comparável a uma televisão ou um celular – sem levar em consideração ainda que é mais barato que um serviço de TV a cabo ou de internet.

Apesar de toda esta popularidade do rádio, em minha pesquisa de doutorado, 56 pessoas com deficiência visual, das cinco regiões do país, responderam a um formulário que teve como objetivo entender um pouco como o futebol afeta as pessoas com deficiência visual. Dentre várias descobertas, 57,1% respondeu preferir a televisão para assistir jogos, contradizendo a ideia de que a pessoa com deficiência visual só acompanha futebol pelo rádio. Dentre o público pesquisado, 57,1% precisa pedir informações sobre o que está acontecendo no momento da partida para amigos e familiares. Desta forma, podemos ver o quanto o direito à acessibilidade comunicacional está sendo infringido, direito este garantido por meio da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Além disso, já que existe público com deficiência visual que prefere a TV, é urgente que novas iniciativas sejam criadas para garantir a inclusão destes indivíduos.

Enquanto isso, nós, pesquisadores, precisamos também pesquisar e contribuir para que as pessoas com deficiência não tenham barreiras arquitetônicas, mobiliárias, tecnológicas, linguísticas e de acessibilidade comunicacional. Para nós, comunicólogos, cabe entender como as informações chegam (se chegam) e são decodificadas pelas pessoas com deficiência visual, afinal, é necessário a garantia de que elas tenham o mesmo nível informacional que nós, videntes.


[1] Mais informações estão disponíveis em https://www.adveg.org.br/radio%20adveg. Acesso 15 maio 2023.

Bibliografia

ADVEG. Rádio Adveg – falando sobre nós. Disponível em https://www.adveg.org.br/radio%20adveg. Acesso 15 maio 2023.

MAYER, Flavia. A importância das coisas que não existem: construção e referenciação.

de conceitos de cor por pessoas com cegueira congênita. Belo Horizonte: PUC Minas, 2018.

PALMEIRA, Carlos. YouTube vai inaugurar audiodescrição em jogo do Paulistão 2023. Tecmundo. Disponível em https://www.tecmundo.com.br/internet/259761-youtube-tera-audiodescricao-jogos-paulistao-2023.htm. Acesso em 15 maio 2023.

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Afinal, quem determina quem é campeão mundial?

Apesar dos ruídos provocados pelas “novas verdades instantâneas” das redes sociais, persiste forte convergência, na academia, sobre apontar o intervalo de 1958 a 1970 como a era de ouro do futebol brasileiro. Foi quando a seleção brasileira venceu três (1958, 1962 e 1970) de quatro Copas do Mundo disputadas. Para além do respeito conquistado pelos títulos, o futebol nacional, em tal período, ganhou a admiração, interna e externa, por produzir, em profusão, jogadores que uniam excelência técnica e elevada capacidade competitiva, como Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Rivelino, Gerson, Jairzinho e Tostão, para citar apenas alguns dos que foram campeões mundiais naquela fase.

A equipe do Botafogo campeã brasileira em 1968. Créditos: Globoesporte

No entanto, apesar do reconhecimento dos seus contemporâneos, incluindo imprensa e torcida, parte do jornalismo esportivo, a partir de determinado momento, passou a dedicar-se a um contínuo processo de apagamento da memória dos feitos memoráveis das gerações da era de ouro quando se trata dos títulos dos clubes em que atuaram esses jogadores. Tal processo dá-se em duas frentes: nas conquistas nacionais pré-1971 e nos títulos internacionais que não sejam o que a imprensa local convencionou chamar de Mundial de Clubes[1].

Até hoje, não são muito explícitas as razões pelas quais, em algum momento, o jornalismo esportivo deixou de considerar os vencedores dos campeonatos disputados entre 1959 e 1970 campeões brasileiros, embora, naquele período, tal forma de tratamento fosse “divulgada a milhões de pessoas através dos veículos mais importantes da imprensa nacional” (CUNHA, 2009, p. 8): “Até o popular ‘Canal 100’, documentário que levava a emoção e a beleza do futebol a cinemas de todo o país, transmitia a mesma mensagem” (Id., ibid.).

Uma das hipóteses levantadas por Cunha, autor do dossiê que serviu de base para a equiparação daqueles títulos ao de campeão brasileiro pós-1970, é que a Revista Placar, lançada em março de 1970 e principal publicação esportiva do país durante cerca de duas décadas, não teria interesse em valorizar um período do futebol brasileiro anterior a sua existência. Válida ou não a hipótese, a revista, durante longo período, não tratou como campeonatos brasileiros os títulos anteriores a 1971. Isso embora, curiosamente, a manchete do número 41 da mesma revista tenha sido: “O Flu é campeão do Brasil” (Placar, 25/12/1970). Na mesma edição, Placar publicou o tradicional pôster do time campeão de 1970 da Taça de Prata, uma das três nomeações adotadas no período entre 1959 e 1970. Ou seja, por razão nunca explicitada, a revista desconsiderava o tratamento que ela própria dera ao campeão da última edição que antecedeu a versão do Brasileiro a partir de 1971[2].

Os títulos internos da era de ouro do nosso futebol foram, enfim, em 2011, equiparados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) às versões do Campeonato Brasileiro disputados a partir de 1971. Por isso, esta comunicação pretende se concentrar nas conquistas internacionais que a própria imprensa e os demais contemporâneos aclamavam como “campeões do mundo”, mas continuam a sofrer forte processo de invisibilização, quando não desqualificação, pelo jornalismo esportivo brasileiro, que adota lentes contemporâneas para revisitar o passado glorioso.

Num período em que comunicações e telecomunicações eram bem mais precárias e a mercantilização do futebol bem menos acentuada, foram criados torneios variados, na Europa e na América Latina, para buscar definir quem era “o melhor time do mundo”. Com formatos variados, tais torneios tinham, ao menos, duas coisas em comum: reuniam alguns dos maiores clubes da época e nenhum era reconhecido, para fins de estabelecer um hegemon, pela Fifa, que apenas a partir de 2005 passou a realizar regularmente um torneio mundial de clubes. Dessa forma, a condição de campeão mundial, reivindicada por seus organizadores, era sancionada – à margem do aval institucional da cúpula do futebol – pela imprensa, brasileira e internacional, como é fácil constatar, mesmo em pesquisas aligeiradas na internet. 

São, ao menos, quatro os torneios, todos iniciados entre os anos 1950 e 1960, cujos organizadores reivindicavam tal condição: Torneio Internacional de Clubes Campeões (Copa Rio)[3]; Copa Presidente Marcos Pérez Gimenez[4]; Torneio Triangular de Caracas[5] e Copa Intercontinental[6]. Sem nos estendermos numa historiografia exaustiva, é possível perceber que o principal argumento usado pelos defensores do monopólio do Mundial Interclubes – a inexistência de critérios fixos de classificação – não foi respeitado em pelo menos três edições dessa competição, sem que Independiente (1973), Boca Juniors (1977) e Olimpia (1979) sejam considerados menos campeões do que os demais. 

Além disso, em 2000, houve dois campeões: Boca Juniors, campeão da Libertadores do ano anterior, e Corinthians, campeão brasileiro do ano anterior e um dos dois convidados da Fifa como representantes do país anfitrião, quebrando a tradição de um único convidado do local em que a competição é realizada. O outro foi o Vasco da Gama, finalista com o Corinthians e que poderia ter sido campeão sem ser nem campeão da Libertadores nem do Brasileiro em 1999.

Mais importante, porém, do que se fixar em comparações entre os diversos torneios simultâneos do período examinado cujas hierarquias são construídas posteriormente, é destacar como seus campeões eram retratados na imprensa brasileira. Citaremos apenas algumas manchetes de jornais daquele período. Em 23 de julho 1951, a Gazeta Esportiva mancheteou: “Palmeiras campeão do mundo”, a propósito do título da Copa Rio daquele ano. Em 1 de fevereiro de 1967, a propósito do título do Botafogo no Torneio de Caracas, o Correio da Manhã, um dos principais jornais brasileiros até o fim dos anos 1960, teve como manchete: “Fogo em Caracas – O Glorioso carioca é campeão do Mundo”.

As conquistas eram reconhecidas não apenas por veículos dos estados dos campeões. Em 5 de agosto de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, proclamava: “Fluminense, campeão do mundo – Empate com o Corinthians por 2 x 2, na decisiva do Torneio Internacional de Clubes – A campanha dos tricolores”

E, não apenas a imprensa brasileira. Quando o Botafogo voltou a vencer o Torneio de Caracas, em 1968, o jornal português Record, deu na primeira página: “Implacável!!! Vitória alvinegra em Caracas, Botafogo conquista a Mini Taça do Mundo em um jogo incrível contra o Benfica de Eusébio, Colina e Simões”. Ao lado, acompanhada da ilustração da taça como direto a “eco” na palavra campeão: “Botafogo campeão ooo do Mundo”. A matéria é acompanhada, ainda, pela foto dos dois times perfilados antes da partida. 

Definir quem deve ser tratado ou não como campeão mundial escapa aos objetivos desta comunicação. O que nos move é contribuir para um debate que leve a uma explicitação das razões que autorizam a imprensa não contemporânea dos acontecimentos a retificar e desqualificar o que os jornais do período registrado, incluindo veículos dos mesmos grupos, registraram. Quais as razões da reinterpretação dos fatos à luz de outros critérios e num contexto do futebol fortemente informado por valores comerciais?

Publicamos a seguir a relação dos times considerados por seus contemporâneos, incluindo – insistimos – a imprensa, campeões mundiais da era de ouro do futebol brasileiro, mas, posteriormente, descredenciados. Lembramos que a lista restringe-se à primeira fase dos torneios que, após interrupção mais ou menos prolongada, foram reativados, mas já num período de consolidação do Torneio Interclubes como única instância, ainda que sem o aval institucional da Fifa, como única instância definidora do campeão mundial de clubes.

Os campeões esquecidos

Copa Rio: Palmeiras (1951) e Fluminense (1952)

Pequena Taça do Mundo: Corinthians (1953) e São Paulo (1955)

Torneio de Caracas: Bangu (1958), Botafogo (1967, 1968 e 1970) e Cruzeiro (1970)

Bibliografia

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009. SOUTO, Sérgio Montero. Uma revisita à era de ouro do futebol – quando os títulos do passado têm de ser driblados pelo hegemon do ‘mercado’. Belo Horizonte: Fulia v.4, n.2, 2019.

Notas

[1]  Oficialmente, essas competições são chamadas pela Fifa de Mundial Interclubes.

[2] Para ler mais sobre os campeões brasileiros pré-1971, vide SOUTO (2019) e CUNHA (2009).

[3] Mais conhecida como Copa Rio foi organizada pela então Confederação Brasileira de Desportos (CDB) – antecessora da CBF – com apoio da Fifa. Teve apenas duas edições (1951 e 1952). Em 1953, foi rebatizada de Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, e sofreu alterações, quantitativa e qualitativa, no número de clubes estrangeiros convidados.

[4] Ou Troféu Marcos Pérez Jiménez ou Pequena Taça do Mundo era organizado pela Federação Venezuelana de Futebol e por empresários locais, sendo disputado entre equipes europeias e sul-americanas. Teve dois períodos. O de maior relevância entre 1952-1957. Após interrupção de seis anos, foi rebatizada de Troféu Cidade de Caracas, teve uma edição em 1963, para retornar em 1965, sendo , então, disputada de forma não contínua por até 1975. No período, a partir de 1963, a competição sofre um esvaziamento, tanto em prestígio, quanto em número de participantes. Este trabalho se atém à primeira fase.

[5] Disputado entre equipes europeias e sul-americanas e seleções nacionais, como a argentina e a soviética, era chamado, ainda, de Torneio de Caracas e Triangular de Caracas. Teve duas fases, sendo a de maior prestígio entre 1958 e 1970, que teve duas edições em 1970. A segunda fase (1976-1981) teve apenas quatro versões e menor prestígio esportivo. É à primeira que nos detivemos.

[6] Organizada pela União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sua primeira versão ocorreu em 1960, sendo realizada anualmente, com dois hiatos, até 1979, com diferentes formas de disputa, variando de uma a três partidas. Em 1975 e 1978, incompatibilidades entre o calendário das duas entidades levaram ao cancelamento da competição. Em três ocasiões (1973, 1977 e 1979), a final foi entre o campeão sul-americano e o vice-europeu, já que os campeões do continente naqueles anos se recusaram a participar. Com as seguidas recusas dos europeus ameaçando esvaziar o torneio, a partir de 1980 até 2004 foi transferida para o Japão, sendo rebatizada de Copa Toyota, nome da patrocinadora do torneio e disputada numa única partida. A partir de 2005, a Fifa, que já promovera uma edição em 2000, paralela à ocorrida no Japão, assume a organização da competição de forma contínua, incorporando os campões continentais africano, asiático e da Oceania.

Eventos

LEME recebe inscrições para o seminário “Nos gramados da democracia”

O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte – LEME realiza, de 22 a 24 de agosto, o Seminário LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia. O evento contará com a presença de profissionais de mercado, como o jornalista Caco Barcellos (Globo), Marcelo Barreto (Sportv) e Fabi Alvim (Sportv). Dentre os pesquisadores que já confirmaram presença, temos nomes como: Ronaldo Helal (UERJ), Lívia Magalhães (UFF), Adriano Freixo – (UFF), Renato Coutinho – (UFF), Rosana da Câmara (UFF), Nicolás Cabrera (UERJ/CONICET). O seminário conta ainda com a participação de Luiz Cláudio do Carmo, o Claudinho, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas). As palestras acontecerão no horário da noite e as discussões em GTs temáticos no decorrer dos dias. Para isto, o Laboratório receberá resumos expandidos de 5 de maio a 30 de junho.

O Seminário Internacional LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia busca promover discussões de cunho acadêmico e transdisciplinar, versando sobre a relação entre democracia e esporte. São bem-vindos trabalhos que perpassem pelo contexto histórico como: uso da Seleção Brasileira na propaganda política em regimes autoritários, apropriação da camisa da seleção por grupos de direita e extrema direita recentemente e ainda tentativas de resgate e preservação da democracia no país. Vale lembrar que são diversos os exemplos de práticas de liberdade promovidos por atletas, jornalistas, movimentos de torcidas e tantos outros atores sociais vinculados ao esporte, configurando-se, assim, como espaço de manifestação popular de reivindicação de direitos das mulheres, da população negra, LGBTQIA+ e tantas outras lutas cotidianas.

GRUPOS DE TRABALHO

GT1- Esporte, cidade e identidades

O esporte desempenha um papel fundamental tanto na construção quanto na afirmação de uma pluralidade de identidades que atuam dentro e fora de fronteiras territoriais. Essa relação com a territorialidade confirma a necessidade de compreensão do esporte como prática que se entrecruza com o espaço urbano, estabelecendo com ele uma trama de relações e significados que põe em movimento o jogo das identidades em um contexto de tensionamentos entre o local e o global.

Debatedor(a): Édison Gastaldo (CEP/Forte Duque de Caxias)

GT2- Mídia, esporte e representação

A mídia, gradualmente, se consolidou como um importante veículo mediador entre os esportes e o público, participando não apenas da circulação, mas também da produção de um vasto imaginário construído em diálogo com uma série de representações presentes dentro e fora do território esportivo. As representações produzidas são um material cuja análise pode nos possibilitar o acesso às tensões e contradições dos valores e discursos que estão em jogo.

Debatedor(a): Ana Carolina Vimieiro (UFMG)

GT3 – Estádios, arenas e os modos de torcer

A diversidade dos modos de torcer fomenta variadas possibilidade de construção identitária de torcedores e torcedoras nas arquibancadas. Essa pluralidade torna o ato de torcer um fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, e que faz dele um lócus de análise das reações, adaptações e resistência às mudanças ocorridas no cenário futebolístico, sobretudo em diálogo com as transformações geradas pelo intenso processo de mercantilização e midiatização dos eventos esportivos.

Debatedor(a): Antonio Jorge Soares (UFRJ)

SOBRE OS TRABALHOS

Devem ter no mínimo 7.000 e no máximo 12.000 caracteres, necessitam estar no template do evento. Devem ser enviados para o email: gramadosdademocracia@gmail.com . Serão aceitos para análise resumos em Português ou Espanhol e que versem sobre um dos GTs. Não será possível o envio de um mesmo resumo ou de resumos diferentes para mais de um GT. Serão aceitos textos de estudantes de graduação, pós-graduação e de pesquisadores. Um mesmo trabalho poderá ser escrito por até duas pessoas. Não será necessário o envio posterior de trabalhos completos. Há a possibilidade de publicação de anais.

AS APRESENTAÇÕES

Vão ocorrer de modo presencial, na UERJ- Campus Maracanã, no décimo andar. É necessário que pelo menos um dos autores esteja presente.

TAXA DE INSCRIÇÕES

O pagamento será realizado, somente após a divulgação da lista de aprovados e deverá ser feita diretamente para uma instituição a ser divulgada. O pagamento deve ser de no mínimo R$10 para estudantes de graduação e R$20 reais para graduados, pós-graduandos e pesquisadores. Sugerimos que, se possível, valores a mais sejam depositados. O comprovante de depósito deve ser enviado para o email gramadosdademocracia@gmail.com. Não será cobrada taxa de inscrição para ouvintes.

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O “eixo Rio-São Paulo” e a desigualdade do futebol brasileiro

Enquanto nordestino, venho utilizando este espaço no site Comunicação e Esporte para tratar de algumas especificidades sobre representação midiática dos clubes locais. Além de outras questões mais teóricas ligadas à Economia Política da Comunicação (EPC) aplicada ao futebol.

Para a coluna deste quadrimestre, minha pretensão era me voltar a um texto do segundo grupo, discutindo uma produção teórica da década de 1980 sobre futebol. Porém a nota oficial conjunta de quatro clubes de Rio de Janeiro e São Paulo sobre a regulação de apostas esportivas me chamou a atenção. Explicarei o porquê.

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Clubes de Rio de Janeiro e São Paulo se uniram na publicação de uma nota sobre apostas esportivas. Divulgação: Twitter/Palmeiras

Momento crucial para o futebol brasileiro

A extensão da mercantilização sobre o futebol é tema de constantes pesquisas nas últimas décadas minhas e de outros colegas, alguns inclusive ligados ao Leme (Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte). 

A procura para maior acumulação de capital a partir de um elemento com tamanha importância sociocultural domina o debate acadêmico com demonstração de preocupação. 

É desse caminho que apareceram as críticas à “arenização” dos estádios, gentrificação no entorno deles e a partir dos megaeventos esportivos no Brasil e à preocupação com a empresarização dos clubes, com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol sendo o ápice disto.

Do outro lado da moeda, a discussão sobre aproveitar melhor as receitas que o futebol supostamente pode dar sempre esteve presente. Mas, para isso, era preciso uma melhor organização do futebol brasileiro.

Há cerca de dois anos, dirigentes de clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro discutem uma melhor organização do futebol a partir de uma liga de clubes. Mas a divisão entre Forte Futebol e Libra mostra que é um caminho difícil, especialmente no que se refere a dividir melhor as receitas entre os clubes numa mesma competição – e para divisões inferiores.

Esta é uma das diferenças que não permitiram ainda unidade para uma proposta de liga no futebol brasileiro que possa começar em 2025, primeiro ano de um novo ciclo contratual de direitos de transmissão.

É justamente neste momento que Botafogo, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco resolveram se posicionar de forma isolada sobre receitas oriundas de apostas esportivas. A seguinte frase me chamou bastante atenção e, supostamente, justificaria esta atitude por fora, inclusive, da Libra, à qual todos estão ligados: “é inegável que o maior volume de transações feitas se dá em face dos grandes clubes do futebol brasileiro”.

Para mim, é um tema que poderia entrar facilmente no debate da liga, afinal, traria mais vozes para serem ouvidas e gerariam uma sinalização ao mercado de unidade para negociações futuras. Não foi esta a opção.

O “eixo”

Se quem me lê agora já ouviu alguém que torce para equipe do Nordeste, deve ter ouvido falar de tratamento desigual histórico, econômico e midiático. Na busca pela hegemonia do capital esportivo no futebol brasileiro, locais com maior industrialização e melhores relações políticas concentraram empresas, matrizes de veículos de comunicação nacionais, melhores relações políticas e, consequentemente, clubes que puderam nacionalizar ou contar com mais recursos.

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Imagem via satélite das luzes noturnas formando o “eixo” entre Rio de Janeiro e São Paulo. Divulgação: Anderson Santos

“G12” é um termo muito utilizado pela cobertura esportiva dita nacionalizada para tratar dos 8 clubes supracitados que assinaram a nota, agregados a Cruzeiro, Atlético-MG, Grêmio e Internacional. De vez em quando, um colunista ou outro tenta incluir Bahia ou Atlético-PR nesse grupo – curiosamente, não lembro de citação ao Fortaleza nisso.

Enquanto alguém que já atuou em mídia alternativa nordestina (o podcast Baião de Dois, da Central 3), não era incomum ver torcedores mineiros e gaúchos reclamarem também de tratamento midiático diferenciado. Pois então temos os próprios 8 clubes se considerando como “Grandes Clubes do Eixo RJ x SP”. 

“Eixo”, uma palavra que às vezes parece incomodar até parte mais progressista da mídia esportiva e da torcida dessas equipes por, talvez, sinalizar uma construção hegemônica que, definitivamente, não passa por “meritocracia”.

Mas há quem prefira reclamar de uma reação simbólica de parte da torcida (faixas “Vergonha do Nordeste” nos estádios) ou campanhas pontuais de clubes (como Fortaleza e Bahia, recentemente), que discutir como esses clubes acreditam que, realmente, só eles precisam ser ouvidos pelo poder público federal.

Lembrando ainda que na discussão sobre aprovação da Lei do Mandante e da Lei da SAF, houve representação de clubes direcionada para reuniões em Brasília após decisão coletiva. Isso para 2021. O que mudou de lá para cá?

E agora?

De lá para cá, o governo federal recebeu os clubes sem qualquer problema, assim como outros agentes. As casas de apostas, por exemplo, já criaram ou estão em três associações diferentes no Brasil, sinalizando que querem a regulação do mercado – que possibilitará também uma estabilidade neste, com provável concentração oligopólica.

Vale salientar que a muito necessária proposta de regulação das casas de apostas esportivas, seguindo a Lei nº 13.756/2018 que possibilitou que elas funcionassem para brasileiras/os, deveria ter saído em 2020. Entrou na agenda inicial do atual governo federal por só gerar receitas via impostos ao Estado na tributação do Imposto de Renda sobre ganhos de jogadores, mas nada de quem lucra com isso (as empresas).

Mas, por fim, não recordo de ter qualquer pressão naquele movimento de 2021, início de uma tentativa de unidade dos clubes, sobre este tema. Conseguiu-se aprovação de duas leis, uma delas a partir de Projeto de Lei do executivo, o que dá caráter de urgência à votação.

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Um homem possível

No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Créditos: O Dia.

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram. Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto para esse blog, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências


GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.

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Recreio sem futebol

Antes mesmo da posse, a ministra do Esporte, Ana Moser, deixou clara a prioridade da pasta, recriada após quatro anos: promover acesso universal e igualitário à prática esportiva. Após o ciclo encerrado de megaeventos no Brasil e de investimentos bilionários em um grupo seleto de atletas de ponta, o orçamento agora tem outro foco [1], pelos próximos quatro anos: o esporte na escola.

O objetivo é combater o sedentarismo, promover igualdade de gênero, reduzir a agressividade entre os alunos, promover sociabilidade entre os jovens e tirá-los da rota das drogas. Mas e se isso começasse justamente desmontando aquilo que mais simboliza a educação física, a típica quadra de futebol?

 Pátio do colégio Nossa Senhora de La Paloma, em Madrid. Foto: Claudio Álvarez

Arquitetos verificaram como é positivo para o cotidiano escolar que as duas traves não sejam o centro das atenções de um pátio. Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Viena [2] analisou o design e a estrutura de 20 áreas de recreação de escolas austríacas.

Os pesquisadores concluíram que os meninos ocupam o espaço do pátio com o futebol, enquanto as meninas permanecem em lugares periféricos, menores e realizavam atividades com menor gasto calórico. Nem a maior difusão do futebol feminino foi capaz ainda de mudar o apartheid entre os gêneros nas áreas de recreação, que são 80% “futebolcêntricas”, segundo a Equal Saree [3], organização não-governamental de arquitetura e urbanismo feminista na Espanha.

Para mudar esse cenário, as arquitetas da Equal Saree mudaram a dinâmica dos pátios de algumas escolas. Novas modalidades, como o vôlei, foram incluídas, mas o difícil rompimento com o esporte dominante resultou em interações mais igualitárias. As meninas aumentaram a atividade física, o jogo ficou mais compartilhado, e o recreio foi ocupado de forma mais equilibrada pelos alunos, que mudaram a percepção equivocada que tinham do futebol e de outros esportes serem apenas masculinos.

Nas avaliações, os alunos também afirmam sentir maior conforto e redução de conflitos após a reformulação dos pátios. Portanto, o modelo tradicional de quadra de futebol transmite uma imagem “cinzenta”, de muito cimento e “pesada” para quem a utiliza e quer um equipamento esportivo mais tranquilo e com mais vegetação, por exemplo.

No Brasil, no entanto, o desafio não é só pensar em uma adaptação, mas também construir do zero. Levantamento feito pelo Ministério da Cidadania, em 2021, aponta que quase metade das escolas de educação básica do país não tem nenhum espaço para os alunos praticarem esporte [4].

Referências:

[1] Ana Moser toma posse e diz que prioridade será esporte para todos, não alto rendimento. Folha de S.Paulo, 4 de janeiro de 2023. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/esporte/2023/01/ana-moser-toma-posse-e-diz-que-prioridade-sera-esporte-para-todos-e-nao-alto-rendimento.shtml>. Acesso em: 20 abr. 2023.

[2] Disponível em: <https://www.univie.ac.at/schulfreiraum/index.htm>. Acesso em 20 abr. 2023.

[3] Disponível em: <https://equalsaree.org/wp-content/uploads/2018/03/Patis-igualitaris_-Equal-Saree_-Article-Vocento_Ganar-el-Patio.pdf>.  Acesso em 20 abr. 2023.

[4] Quase metade das escolas brasileiras não têm local para prática de esporte. UOL, 14 de dezembro de 2021. Disponível em: <https://www.uol.com.br/esporte/colunas/olhar-olimpico/2021/12/14/quase-metade-das-escolas-brasileiras-nao-tem-local-para-praticar-esporte.htm?cmpid=copiaecola>. Acesso em 20 abr. 2023.

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Apostando na regulamentação

Imagine arrecadar R$150 mil por um único movimento: derrubar seu adversário dentro da área no primeiro tempo do jogo. Essa foi a promessa que apostadores fizeram a três jogadores de três clubes da Série B do Campeonato Brasileiro. A proposta era simples, os jogadores deveriam cometer um pênalti no primeiro tempo de seus respectivos jogos, todos válidos pela última rodada da Série B do Brasileirão 2022. Se os jogadores cumprissem o combinado, cada um levaria para casa R$150 mil – R$10 mil pagos como sinal antes dos jogos e R$140 mil depois que a aposta [de que aconteceriam três pênaltis nesses três jogos] fosse vencedora. Já os apostadores esperavam faturar aproximadamente R$2 milhões com o “palpite”.

Apesar de toda a trama, o esquema não foi bem-sucedido. Duas marcações de pênalti chegaram a ocorrer no dia 5 de novembro: no jogo entre Sampaio Corrêa e Londrina, o lateral-direito Mateusinho, do Sampaio, sacramentou sua parte do combinado e derrubou um jogador do Londrina dentro da área aos 19 minutos do primeiro tempo; enquanto Joseph, zagueiro do Tombense, demorou um pouco mais, foi apenas aos 30 do primeiro tempo que o jogador empurrou Lohan e garantiu um pênalti para o Criciúma. Foi a partida entre Vila Nova e Sport, no dia 6 de novembro, que estragou o plano dos apostadores. Romário, volante do Vila Nova envolvido no esquema, sequer foi relacionado para o jogo e não houve qualquer penalidade máxima na partida.

Toda a trama foi descoberta justamente por ter dado errado. A denúncia ao Ministério Público de Goiás foi feita pelo presidente do Vila Nova, Hugo Jorge Bravo, que foi avisado por pessoas de fora do clube sobre o envolvimento do volante Romário em apostas esportivas. O clube investigou o caso e conseguiu contato com um empresário de São Paulo, que seria o articulador de todo o esquema. O homem até mesmo pediu ao presidente para cobrar do jogador o sinal de R$10 mil dado antes da partida ocorrer. Os suspeitos podem ser enquadrados em três crimes diferentes: associação criminosa, lavagem de dinheiro e corrupção em âmbito esportivo. Até o momento apenas o empresário suspeito de entrar em contato com os jogadores e articular o esquema foi preso preventivamente, os clubes foram isentos de qualquer participação no esquema.

O objetivo deste texto não é falar especificamente sobre esse caso, mas sim propor uma reflexão a respeito de algo que poderia evitar esse tipo de crime: a regulamentação das apostas esportivas. Desde 2018, quando, o então presidente da República, Michel Temer, sancionou a lei 13.756/18, a indústria de apostas esportivas online passou a ser legalizada no Brasil. Além de legalizar a prática, a referida lei determinava uma série de medidas: as casas só poderiam operar online (sem pontos de venda fixo), os sites deveriam estar hospedados fora do Brasil e uma regulamentação do setor deveria ser feita em até quatro anos. O prazo final para essa regulamentação estava previsto para dezembro de 2022, entretanto, o ex-presidente Jair Bolsonaro, por influência de bancadas conservadoras da Câmara, não assinou o decreto de regulamentação elaborado pela Casa Civil e Ministério da Economia. Agora, o processo fica a cargo do governo recém-eleito, que analisa a questão de maneira positiva e, de acordo com declarações dadas ao UOL Entrevista pelo Ministro da Fazenda, Fernando Haddad, um projeto para o setor já está em andamento.

Fonte: Agência Brasil

Um dos maiores receios em relação às apostas esportivas online é a manipulação de resultados. Entretanto, esse tipo de esquema não é algo recente no futebol, vide um dos casos mais emblemáticos no Brasil, a Máfia do Apito[1], que ocorreu em 2005, quando os sites estavam longe de fazerem o sucesso de hoje – de acordo com o site Mktesportivo, o setor movimentou R$7 bilhões em 2020. Ao contrário do que muitos pensam, a regulamentação das atividades de casas de apostas pode oferecer meios para impedir fraudes esportivas. Isso porque, como afirma Andreas Bardun, CEO global do site de apostas KTO, as plataformas possuem uma extensa base de dados sobre seus clientes e seus hábitos de apostas. Sendo assim, o monitoramento de suas atividades financeiras por órgãos governamentais seria crucial para rastrear atividades suspeitas. As próprias casas trabalham com inteligência artificial para identificar possíveis fraudes, uma vez que elas são as maiores prejudicadas com manipulações, pois pagam altos valores em apostas com chances improváveis. 

É claro que os problemas não irão se resolver automaticamente apenas com esse monitoramento e troca de informações, uma vez que há a possibilidade de apostadores usarem laranjas para despistar as autoridades. Nesse caso, a fiscalização fica obviamente mais difícil, mas algumas medidas podem ser impostas, como a obrigatoriedade de que qualquer movimentação relativa à aposta seja feita em conta bancária vinculada ao apostador cadastrado. De acordo com Rafael Marcondes, diretor da Associação Brasileira de Defesa da Integridade do Esporte, dessa forma, a Receita Federal conseguiria rastrear se essas movimentações são compatíveis ou não com a renda do apostador.

Outro ponto positivo é a alta arrecadação de impostos que essa indústria permite, o que vem sendo a principal motivação para o atual governo regulamentar as apostas esportivas. Hoje, as mais de 500 casas de apostas ativas no país operam com seus sites hospedados no exterior, o que dificulta até mesmo a estimativa de quanto dinheiro está envolvido nesse setor, os números podem estar entre R$8 bilhões e R$12 bilhões, quem sabe mais. Com a regulamentação, esses sites deverão operar 100% no Brasil, mantendo o dinheiro aqui, o que também deve gerar mais empregos. Empresas como a Esporte da Sorte acreditam que uma vez sediadas no país, as movimentações financeiras serão menos custosas e mais práticas, pois, mesmo operando em paraísos fiscais – países com baixa ou nenhuma taxação de imposto – a repatriação do lucro líquido fica cara.

Fonte: Vitor Silva/Botafogo / Em 2022, os patrocinadores master dos dois clubes eram as casas de apostas Blaze e Betano

O governo prevê uma arrecadação anual que beira a casa dos R$6 milhões oriunda da tributação dessas empresas. Nesse sentido, há uma preocupação com a incidência das cobranças. O modelo considerado ideal vem do Reino Unido, onde a taxação é feita em cima dos lucros dos operadores (as casas de apostas). Há a possibilidade de a taxação brasileira seguir o mesmo padrão da Loteria Federal, uma cobrança de 30% do valor do prêmio, nesse caso, a cobrança sairia do lucro do apostador. Para Andreas Bardun, da KTO, essa não é uma boa opção, uma vez que os apostadores poderiam recorrer ao mercado clandestino para conseguirem um ganho maior com seus palpites.

O marketing é um dos grandes trunfos dos sites de apostas esportivas. Atualmente, 11 marcas estampam as camisas de 19 dos 20 clubes da Séria A do Brasileirão 2023. Além disso, alguns sites chegam a patrocinar os campeonatos em si, como é o caso da Betnacional com o Campeonato Carioca, da Galera.bet com o Brasileirão e de outras quatro casas que patrocinam o Campeonato Paulista. Publicidades dessas casas estão presentes em todos os meios possíveis, desde outdoors nas ruas, passando por anúncios nas redes sociais e chegando aos comerciais de TV. Seus embaixadores são grandes estrelas do esporte mundial: Vinícius Júnior (Betnacional), Marcelo (Sportingbet), Denilson (Sportsbet.io), Zico (Pixbet), Edmundo (Pixbet), entre muitos outros; Aliás, essa questão é algo que gera muito debate, pois, de acordo com o regulamento da Fifa, atletas são proibidos de participarem de apostas, demonstrarem interesse em ações de casas de apostas esportivas ou se tornarem sócios de alguma plataforma. Em teoria, a legislação esportiva brasileira está sujeita às determinações da Fifa, mas sem a regulamentação algumas barreiras não são delimitadas.

Fonte: Gráfico produzido pela autora, tendo como base a matéria “Dos 20 times da Série A, 19 são patrocinados por casas de apostas”[2]. A Pixbet patrocina a maior quantidade de clubes: Flamengo, Vasco, Corinthians e Santos.

Apesar de ter um mercado gigantesco no Brasil, as empresas ainda precisam lidar com a insegurança que a falta de diretrizes legais traz. Sem a devida regulamentação, as operações em território nacional se tornam um tanto quanto perigosas, pois não é possível saber onde está a linha entre o lícito e o ilícito, nem há qualquer garantia para os investimentos tanto das empresas quanto dos próprios apostadores. A falta de legislação impede o crescimento do setor, uma vez que empresas ficam receosas de atuar no Brasil “às cegas”. A regulamentação, então, permitiria o fortalecimento das marcas e abriria caminho para uma relação mais transparente entre as casas e seus clientes, que teriam a quem recorrer quando um dos lados agir de má fé.

De todos os benefícios, talvez o combate à ludopatia (vício em apostas) seja o maior deles. Hoje é impossível que as entidades de saúde tenham acesso aos hábitos de apostas das pessoas cadastradas nos diversos sites atuantes no Brasil. Com a regulamentação, esses dados estariam à disposição das organizações governamentais e seria possível criar não apenas mecanismos de limite dessas apostas, como também políticas públicas eficazes para o controle da condição. A regulamentação, obviamente, não fará milagres nesse ou em qualquer outro sentido, mas é uma possibilidade a ser considerada como uma aliada para combater os vícios oriundos das apostas.

Por maiores que sejam as desconfianças com esse “novo” mercado e exista, com certeza, o medo de que as fraudes destruam o futebol, é preciso compreender que esses sites continuarão em expansão, pois, no Brasil especialmente, as apostas são tão antigas quanto o próprio esporte. Agora, para resguardar essa grande paixão do brasileiro, diretrizes rígidas e fiscalização constante se fazem necessárias. Tanto empresas quanto apostadores precisam estar dentro das quatros linhas da lei, só assim, o futebol continuará seguindo seu curso natural e encantando seus aficionados com suas loucuras e imprevisibilidades.


[1] A Máfia do Apito foi um esquema de manipulação de resultados do Campeonato Brasileiro de 2005 que beneficiava apostadores. No centro do caso estavam os árbitros Paulo José Danelon e Edilson Pereira de Carvalho, que chegaram a faturar R$10 mil por partidas fraudadas. 11 jogos apitados por Edilson foram anulados e disputados novamente, o que alterou a classificação e sagrou o Corinthians campeão.

[2] Disponível em: <https://www.metropoles.com/colunas/futebol_etc/dos-20-times-da-serie-a-19-sao-patrocinados-por-casas-de-apostas>.

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Para que servem os times “pequenos”?

Por Glauco Souza

“Sensação do Campeonato Paulista, o Água Santa está garantido na Série D do Brasileirão e na Copa do Brasil de 2024. Com as vagas em mãos, o clube de Diadema optou por interromper as atividades do elenco profissional no segundo semestre desta temporada. Assim, serão no mínimo oito meses sem jogar entre abril, numa possível final do Paulistão, e janeiro do ano que vem”.[1]

O ano de 2023 começou para o futebol brasileiro masculino de alto rendimento com as equipes profissionais disputando seus campeonatos estaduais. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a fase final das competições contou com a presença de alguns clubes considerados “zebras” e, no presente texto, damos um enfoque maior ao Água Santa e ao Volta Redonda, semifinalistas nos Campeonato Carioca e Campeonato Paulista.

O Esporte Clube Água Santa é uma equipe da cidade de Diadema, mesorregião metropolitana do estado de São Paulo, e foi fundado em 27 de outubro de 1981 “por imigrantes nortistas, nordestinos e mineiros, que viam no clube a única possibilidade de lazer”.[2] A versão histórica de criação da instituição presente em seu site oficial já mostra, por si só, relação com o surto migratório Nordeste-Sudeste fruto da rápida industrialização paulista a partir dos anos 1930,[3] bem como associa o nascimento da entidade a grupos de menor poder aquisitivo.

Fonte: Agência Brasil

O Volta Redonda Futebol Clube surgiu nos anos 1970 como parte do processo de reforço identitário da cidade homônima do Rio de Janeiro, famosa por ser o local de instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) durante a Era Vargas (1930 – 1945). Desde seu princípio, a agremiação contou com o apoio institucional de outras entidades do gênero, pois o “então presidente da Liga de Desportos de Volta Redonda, Getúlio Albuquerque Guimarães, iniciou então o projeto, juntamente com o presidente do Flamenguinho de Volta Redonda, Guanayr de Souza Horst, para criar um clube de futebol para representar a cidade no novo Campeonato Estadual do Rio de Janeiro”.[4] Ademais, o próprio poder público se envolveu para ajudar no desenvolvimento do projeto que necessitava de um campo de jogo adequado e, por isso, “Nessa época, o Estádio Raulino de Oliveira pertencia à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e era administrado, em regime de comodato, pelo Guarani Futebol Clube, tradicional time amador da cidade. A prefeitura, a CSN e a Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), fizeram um acordo para a reforma do estádio, a fim de que abrigasse o novo time”.[5]

Fonte: Torcedores

Ambas as equipes possuem histórias ligadas ao desenvolvimento industrial no Brasil, o qual pode ser visto como parte do processo de urbanização de partes do país, algo essencial para a difusão do futebol. Todavia, estas equipes ficaram condicionadas dentro da lógica do futebol masculino de alto rendimento como clubes pequenos, cuja existência, na maior parte das vezes, é ignorada e, portanto, sem utilidade. Dessa forma, cabe-nos perguntar: para que servem os clubes “pequenos”?

Se partíssemos da perspectiva de que o futebol só tem a relevância atual por causa dos grandes times, dos super astros e dos jogos marcantes em estádios lotados, certamente nossa resposta à pergunta “para que servem os clubes ‘pequenos’?”, seria “para fornecer jogadores aos clubes maiores”. A perspectiva de que em torno de um centro futebolístico orbitam aspectos para engrandecê-lo é antiga e existente no Brasil desde os primeiros chutes,[6] não podendo, aliás, ser vista como algo natural, mas fruto dos processos de construção excludentes que caracterizaram a Primeira República (1889 – 1930).[7] Esta perspectiva está tão enraizada na sociedade brasileira que ainda se faz presente na atualidade pela pouca relevância atribuída aos clubes “pequenos” ou mesmo em vinculando-os como sujeitos ativos apenas quando podem ser associados às equipes consideradas “maiores”.

A visão hierarquizada dos times futebolísticos traz consigo o caráter excludente por meio do qual clubes com menos títulos “de expressão” acabam sendo esquecidos, ignorados e/ou apenas são lembrados somente quando conseguem obter sucessos dentro de campo semelhantes às das grandes equipes. Contudo, a realidade é bem mais complexa do que isso e, principalmente, é preciso considerar estas equipes dentro das suas possibilidades e percebê-las enquanto agremiações ativas e independentes dos chamados times grandes.

+  Historicamente, muitos dos times ditos pequenos foram responsáveis pelo desenvolvimento cotidiano do futebol em bairros que os clubes grandes não se faziam presentes com frequência. Foi por meio deles, aliás, que as relações de identidade futebolísticas foram construídas e consolidadas, motivo forte o bastante para não associarmos os times pequenos como hierarquicamente inferiores àqueles chamados grandes, mas igualmente importantes para a história do esporte bretão no Brasil.


[1] Disponível em https://ge.globo.com/sp/futebol/times/agua-santa/noticia/2023/03/18/serie-d-em-2024-e-estadio-por-que-agua-santa-sensacao-do-paulista-vai-ficar-oito-meses-sem-jogar.ghtml. Acesso em 03 abr.2023.

[2] Disponível em https://www.ecaguasanta.com/historia. Acesso em 19 mar. 2022.

[3] BAENINGER, Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo / Rosana Baeninger. – Campinas: Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp, 2012.

[4]  Disponível em https://voltaco.com.br/nossa-historia/. Acesso em 19 mar. 2023.

[5] Disponível em https://voltaco.com.br/nossa-historia/. Acesso em 19 mar. 2023.

[6] O Imparcial, 22 mar.1919, p. 04.

[7] FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Perdidos na intensidade da multidão: uma entrevista com Hans Ulrich Gumbrecht

Por Marcio Telles

Em entrevista concedida ao professor assistente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Marcio Telles, Gumbrecht falou sobre sua paixão pelos esportes, o papel da presença na experiência do torcedor, as diferenças entre assistir ao esporte fisicamente no estádio e de maneira mediada, dentre outros temas. A entrevista completa foi publicada na revista Interin e foi gentilmente autorizada a publicação no blog no LEME.

Fonte da Imagem: Estado da Arte.