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E torcedor entende de futebol?

A pergunta provocativa surge a propósito do antagonismo, aparentemente cada vez mais crescente, entre as expectativas de torcedores dos mais variados times e os diagnósticos de treinadores e do jornalismo esportivo. Não é incomum que vaias ou críticas nos estádios e nas redes sociais sejam apontadas por jornalistas esportivos como fruto do “imediatismo do torcedor” e sejam seguidas de conclamações, como a de que é “preciso dar tempo para o treinador mostrar os frutos do seu trabalho”. 

Embora o resultado dessa tensão pareça soar um tanto esquizofrênico – se só um time pode ser campeão e, se para um time vencer, o outro tem de perder, a conta não tem como fechar – é possível, no entanto, admitir que determinadas reclamações dos torcedores são críveis e portadoras de alguma consistência. Apesar de, teoricamente, um trabalho de médio e longo prazo ter mais chances de mostrar resultados, essa não é uma tese que independa da qualidade do treinador contratado. 

Afinal, como ensina um antigo ditado do mercado publicitário a melhor forma de destruir um produto ruim é expô-lo ao máximo. Ou seja, o torcedor não precisa esperar ver o seu time sofrer por cinco rodadas para ter a convicção – com grande margem de acerto – de que um determinado técnico não tem condições de produzir resultados. Um exemplo emblemático foi a apresentação de Waldemar Oliveira como treinador do Flamengo, em outubro de 2003. 

Uma rápida busca no Google por “O novo técnico do Flamengo é o senhor Waldemar”, pronunciada pelo então diretor de Futebol do clube, Eduardo Moraes, confirma que a reação da torcida rubro-negra ao anúncio virou um dos memes mais longevos do futebol. No entanto, para além do folclore, o tempo confirmou que os torcedores tinham razão para recusarem a contratação. Waldemar foi demitido, em dezembro daquele mesmo ano, após dirigir o time por apenas 11 partidas. O breve desfecho mostrou que os torcedores não precisavam esperar dois meses para formar seu juízo sobre a inconveniência da contratação, contrariando os tradicionais pedidos do jornalismo esportivo por mais tempo para os treinadores desenvolverem seu trabalho.

Fonte: Lei em Campo.

O mesmo feeling torcedor vale para determinadas contratações apresentadas como reforços que “precisam de tempo para mostrarem seu futebol”. Com poucas exceções que servem para reforçar a regra, muitos desses “reforços” costumam ser recebidos com desconfiança que, não raro, se confirma. Obviamente, que todas as torcidas erram, e muito, como confirma a perseguição de torcedores do São Paulo ao então jovem Kaká, cujo desempenho oscilava enquanto maturava o desenvolvimento do talento que viria a exibir na Europa, onde recebeu o prêmio de melhor jogador da temporada, que o forte marketing europeu promoveu a “Melhor jogador do mundo”. 

No entanto, embora possa errar e, eventualmente, não entender de meandros da técnica, o torcedor tem uma espécie de sentimento de que as coisas não vão dar certo, seja numa partida ou numa competição. Tal sentimento parece vir da experiência empírica forjada no acompanhamento do mesmo clube temporada após temporada, jornada que, não rara, começa na infância e vai sendo maturada, mas não desidratada com o passar dos anos.

Além disso, ele tem vantagens comparativas simbólicas e concretas sobre o jornalismo esportivo e, eventualmente, até sobre o treinador do momento: conhece a história do clube e segue de perto seus jogadores. O técnico, embora por obrigação profissional deva estudar o maior número de times, seja por ser um adversário, seja por ser um potencial futuro empregador, nem sempre tem a mesma compreensão do ethos do clube, não raro, tão ou mais decisivo para o desenvolvimento do trabalho do que seus méritos táticos, como comprovam declarações vistas como depreciativas pelos torcedores, principalmente quando envolvem comparações com os rivais que estes julgam desfavoráveis. 

Já o jornalismo esportivo se limita a acompanhar um número reduzido de clubes, basicamente os três grandes da capital de São Paulo e o Flamengo, no Rio, com acréscimos residuais de intrusos que se apresentem numa fase excepcional, situação que não afeta o espaço destinado aos quatro eleitos. 

Tais escolhas podem ser conferidas, tanto nos espaços extremamente assimétricos destinados nas mesas redondas ao quarteto num Campeonato Brasileiro com 20 clubes, dos quais, ao menos 12 tradicionais nacionalmente, quanto em comentários aleatórios nas transmissões de partidas de times fora do quarteto. Assim, vemos comentaristas, como Roger Flores, pedindo, para surpresa e revolta dos alvinegros que, num jogo da segunda divisão do ano passado em que o Botafogo lutava, no fim de uma partida, para conter o ímpeto do adversário para manter o resultado positivo , a entrada do He Man, que, próximo da aposentadoria, trotava em campo.

As percepções, cada vez mais divorciadas, entre jornalismo esportivo e torcedores são alimentadas, ainda, pelo fato de as ponderações para que os segundos reduzam suas expectativas de curto prazo sofram modulações diferentes quando a mesma questão apresenta-se em relação a outros times, em geral superestimados, tanto por seus torcedores, quanto por jornalistas.

A interseção do clubismo entre pontas que, oficialmente, se apresentam de lugares de fala diferentes, porém, está cada vez mais exposta na era da polifonia palavrosa e prolixa das mídias digitais. E também ajuda a explicar, ao menos parcialmente, o processo de erosão da credibilidade do jornalismo esportivo, que, durante muito tempo, foi reconhecido como autoridade sênior na matéria. Embora, por tratar-se de universo catártico como o futebol, tal poder sempre tenha sido passível de questionamentos, parece indiscutível que gozava de reconhecimento bem superior ao do que, ainda, lhe resta na era das mídias sociais.

O crescimento dos questionamentos à isenção dos profissionais desse campo contribui para o aumento das fricções quando se trata de analisar a expectativa dos torcedores em relação à performance dos seus times. Tem-se o choque entre torcidas (quase) permanentemente insatisfeitas com suas equipes e os pedidos de “moderação” e “paciência” de jornalistas esportivos, que, no entanto, não estendem tais conclamações aos torcedores de determinados clubes, percebidos pelos demais como favorecidos pela cobertura da imprensa.

É preciso, ainda, reconhecer que, enquanto tenha aparecido aqui como sujeito único, o torcedor ou a torcida deve ser visto como ente plural que engloba uma polissemia de fatores constitutivos do futebol, como idiossincrasias em relação a determinados jogadores, análise do nível dos adversários, maior ou menor tolerância a críticas ao seu time. No entanto, mesmo com a ressalva de que não deve ser considerado um ser monolítico nem muito menos infalível, o torcedor também tem as suas razões e, por vezes, mostra um número de acertos nas suas críticas superior ao dos movimentos prospectivos do jornalismo esportivo, principalmente quando este acompanha aquele clube apenas de forma panorâmica e/ou bissexta.

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A leifertização da transmissão da Copa do Brasil

Na noite do Dia do Trabalho, o Flamengo venceu o Altos-PI por 2×1, para a alegria de quase 30 mil espectadores no Albertão em Teresina. A última vez que o Flamengo jogou no estado foi há 10 anos, em crise com a iminente saída de Ronaldinho Gaúcho. Mas o inusitado ficou muito além de um jogo de Copa do Brasil em pleno domingo. A partida foi exibida com exclusividade no Amazon Prime Video, serviço de streaming da Amazon, e contou com Casemiro e Tiago Leifert na transmissão.

A ação envolvendo os influenciadores é uma mudança no planejamento da Amazon, que, em dezembro do ano passado, anunciou um acordo com a Globo para sublicenciar os direitos de transmissão da Copa do Brasil. Inicialmente, porém, a empresa receberia não apenas o sinal da emissora de TV, mas também a narração, os comentários e as reportagens dos jogos. Isso aconteceu nas duas primeiras rodadas da competição. Agora, porém, com o torneio entrando em suas fases mais decisivas e com a entrada de times mais populares, como Flamengo e Corinthians, a Amazon decidiu investir em uma equipe própria de transmissão.

Tiago Leifert, apresentador com notável trabalho na Rede Globo, através dos campeões de audiência como o Big Brother Brasil e The Voice Brasil, foi responsável por grandes mudanças nos formatos do jornalismo da Globo, principalmente no esporte. Os visuais menos sérios e o humor do Globoesporte chamou a atenção do público mais jovem, agregando na audiência do programa.

Apenas no Instagram Tiago Leifert tem mais de 8,2 milhões, enquanto Casimiro conta com mais de 2,5 milhões de seguidores. Mas convenhamos, nessa rede social o Cazé está jogando fora de casa. O streamer de 28 anos despontou na Twitch, como um dos nomes mais carismáticos do momentos. Casimiro reagiu a pré-estreia do primeiro episódio da série sobre a vida de Neymar na Netflix, e mesmo acostumado com números expressivos, o streamer se assustou com os quase 540 mil espectadores sintonizados na live.

A transmissão

Para a partida, a Amazon ofereceu outra opção de transmissão, com Clayton Carvalho e comentários de Pedro Moreno, que seguiram todas as regras e técnicas do bom jornalismo tradicional. A gigante do streaming falhou em não comunicar essa possibilidade de divisão de interesses do público. Enquanto existiam os espectadores que privilegiam a informação contínua durante a transmissão e foco total na exibição, surge uma nova geração multi-tela e, cada vez mais, multitarefa, que parou de assistir tv e não tem paciência para ouvir um áudio na sua velocidade padrão de reprodução. Esse público, curtiu.

Do outro lado, muitos dos comentários negativos vêm carregados de uma intolerância rubro-negra à figura de Cazé e Leifert, marcados pela ligação com times rivais. Prova de que os pré-conceitos foram preponderantes no tom das críticas, foi o elogiado trabalho da repórter Pâmella Maranhão da TV Cidade Verde, afiliada do SBT, que foi cedida para a transmissão. A piauiense esbanjou referências locais, explicou a história do futebol piauiense de forma didática, em doses homeopáticas durante toda a transmissão e também usou do humor para conquistar a audiência. Passou detalhes sobre a atuação do técnico Diá e arrancou ótimas gargalhadas. 

Outro ponto de discussão é sobre a formação e oportunidade de mercado de trabalho de profissionais do futebol em praças não tão competitivas, como no caso do poderoso Campeonato Piauiense. Muito mais do já batido “estava no lugar certo, na hora certa”, Pâmella qualificou-se, soube aguardar a oportunidade e possivelmente teve a maior vitrine da sua carreira. Passou pelo teste bem avaliada e mostrou que está preparada para vôos mais altos. 

Outros não entenderam o conceito. O perfil @falso92 conhecido por conteúdo voltado para debate táticos de partidas, fez duras críticas à transmissão e em seguida se retratou.

“Sobre a polêmica da transmissão estilo gamer, eu já mudei de opinião e todas as vezes que o fizer, admitirei aqui que fui infeliz no comentário anterior. A empresa disponibilizou dois tipos de transmissão, logo, não excluiu ninguém. Pelo contrário, acabou abrangendo um público maior. Isso acaba trazendo um público novo pro futebol, ou fidelizando quem estava em vias de ser perdido. Podem evoluir em algumas coisas, como falar menos e deixar o som ambiente mais alto, mas é uma tendência pra atender uma geração nova, que tem que consumir o jogo também! A opinião que dei anteriormente foi antes de saber que era possível assistir da forma mais tradicional. O fiz e achei muito boa de outra maneira, inclusive. Viva a diversidade, sempre”, disse @falso92.

A leifertização

O termo “leifertização” representa essa mudança nos padrões do jornalismo esportivo, trazendo um ar mais cômico e menos sério para o estilo (que é utilizado até hoje). Ao mesmo tempo em que muitos espectadores e profissionais apoiaram esse movimento, muitos também o criticaram, como o jornalista esportivo Juca Kfouri, que em entrevista ao programa Voz Ativa, no ano de 2018, criticou esse fenômeno, falando do excesso de gracinhas presentes nas produções jornalísticas atualmente. 

Fonte: Purepeople

Marcio Telles, Doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS, aborda a sobreposição do entretenimento em relação ao jornalismo esportivo.

“No  que  também parece  ser  consensual  à  crítica  teórica  da  “leifertização”  do  telejornalismo esportivo, o novo “Padrão Globo de Jornalismo Esportivo” não passa de  um   epifenômeno do capitalismo avançado, do espetáculo, da indústria cultural e sua voraz  fome  por  dinheiro/audiência, que  leva  à  “prostituição”  da  informação  travestida  de  entretenimento”

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Discutindo valores-notícia na cobertura de futebol

A discussão sobre noticiabilidade, valor-notícia e seleção noticiosa, amplamente abordada nos estudos de Comunicação, é bastante pertinente ao campo porque traz consigo possibilidades outras de se pensar tais variáveis para além da vertente convencional, que tende a tratar esses três conceitos como sinônimos no newsmaking (ou fazer-notícia). Alguns pesquisadores demarcam bem essa diferenciação, dando o devido peso a cada um desses fatores que interferem expressivamente no cotidiano de produção jornalística.

Na visão de Silva (2005), a noticiabilidade é como um grande guarda-chuva que abrigaria os outros dois conceitos, funcionando “como todo e qualquer fator potencialmente capaz de agir no processo da produção da notícia” (p. 52). Já os valores-notícia seriam os atributos que orientam a seleção primária dos fatos, isto é, que selecionam aqueles acontecimentos que, por determinado motivo/valor, importa noticiar. A seleção noticiosa, por sua vez, estaria relacionada à hierarquização desses fatos e ao tratamento que lhes será dado nas páginas dos jornais.

Partindo dessa perspectiva, proponho-me a discutir os modos como esses conceitos atuam no jornalismo esportivo, mais precisamente na cobertura de futebol, que, por seu teor subjetivo – envolvendo paixão, emoção, preferências etc. – considero dotada de certas particularidades editoriais. Um dos pontos que me interessa discutir é que os valores-notícia (VNs) clássicos do jornalismo como um todo – tragédia, proeminência, governo, conflito etc. – podem adquirir outras dimensões em se tratando da cobertura futebolística, de modo que, por exemplo, quando se fala no valor-notícia governo, a intenção é se referir à administração dos clubes; quando se fala no valor-notícia tragédia/drama, ele se refere ao contexto dramático de uma situação decisiva dentro campo; quando se fala no valor-notícia proeminência das pessoas envolvidas, ele se refere ao protagonismo dos personagens do jogo, e assim por diante.

É importante ressaltar que, ao mencionar os valores-notícia clássicos do jornalismo, estou me baseando na nomenclatura proposta pelos principais autores que abordaram o tema, como Sousa (2002), Traquina (2001) e Wolf (2003), os quais também embasam a diferenciação entre noticiabilidade, valor-notícia e seleção noticiosa proposta por Silva (2005) e descrita no início deste texto. Pensando mais especificamente na cobertura de futebol, me propus um breve exercício para tentar compreender quais atributos fazem determinado acontecimento virar notícia na editoria esportiva. Para tanto, desconsiderei alguns VNs tidos como óbvios para o fazer-notícia de um modo geral, como atualidade – visto que esse valor já é um pré-requisito do jornalismo – e importância – sobretudo considerando-se que a editoria em análise pressupõe que o tema esportivo por si só já é relevante para os consumidores do segmento.

Por consequência, esses conteúdos seriam também os mais contestados em termos de verdade, objetividade e credibilidade jornalísticas. Esse último quesito ganha destaque na ótica das pesquisadoras Lisboa e Benetti (2016), que o compreendem para além de um conceito acessório no jornalismo. Na visão das autoras, a credibilidade é algo imprescindível para que os sujeitos possam presumir que o discurso jornalístico diz a verdade – mesmo nesta editoria onde a subjetividade de jornalistas e espectadores tende a ser mais atuante tanto na produção quanto na interpretação dos conteúdos noticiosos, já que na maioria das vezes o jornalista que escreve sobre esportes está se reportando a um público tão apaixonado (e entendido do assunto) quanto ele.

Não à toa, os jornalistas esportivos tendem a ficar mais suscetíveis aos julgamentos de parcialidade. Isso faz com que permeie nos profissionais da área a necessidade de reforçarem que seu trabalho é realizado em conformidade com os fundamentos da profissão, como a constante busca pela verdade, objetividade e isenção no fazer-notícia. Uma perspectiva semelhante se dá nas editoras de política e de economia, áreas em que interesses vitais das empresas jornalísticas estão “em jogo” e nas quais o jornalista também precisa lidar com suas preferências rondando o seu cotidiano profissional.

Ao se ancorar nesses fundamentos básicos da profissão, a intenção do jornalista é balizar seu trabalho e proteger-se das eventuais críticas da audiência, isentando de culpa o profissional que, mesmo de maneira involuntária, acaba se envolvendo sentimentalmente com a cobertura, visto que o evento, por si só, já carrega um misto de paixão e emoção intrínseco ao universo dos esportes. Embora tais fundamentos por vezes sejam tratados como grandezas absolutas nos manuais de redação, caberia relativizá-los, apesar de não ser este o foco deste texto. Mas vale lembrar que, relativizar o caráter romântico dos fundamentos da profissão não significa negligenciar os rigorosos métodos e técnicas de produção noticiosa, mesmo que isso às vezes seja ainda mais desafiador para o jornalista esportivo.

É o que Heródoto e Rangel chamam de “desafio da paixão”, na obra Manual do Jornalismo Esportivo, onde afirmam que o jornalismo é para ser realizado com paixão.

“Porém não pode exceder aos limites éticos da profissão. Seres humanos não são exatos como relógios de quartzo, mas nada justifica que o entusiasmo e a alegria se transformem em manipulação e distorção.” (BARBEIRO & RANGEL, 2006, p. 122).

Ainda conforme Barbeiro e Rangel, é justamente pelo fato de o esporte ser visto como diversão e entretenimento para a maioria dos brasileiros, que é praticamente impossível relatá-lo com o nível de formalidade característico de outras editorias, até porque “a descontração, o bom humor, o sorriso não afrontam a credibilidade nem a seriedade do trabalho. É preciso ser isento, ético, exato, mas não carrancudo.” (2006, p. 77).

Inclusive, nas últimas décadas, essa vertente do jornalismo esportivo como entretenimento ganhou destaque no ambiente acadêmico, a exemplo do conceito de INFOtenimento, inicialmente debatido por Dejavite (2006). Relendo a sistematização de valores-notícia feita por Silva (2005), noto que a autora categoriza o tema esportivo como assunto de potencial noticioso enquanto “entretenimento/curiosidade”, categoria esta que, segundo a autora, engloba também temáticas voltadas para o divertimento, comemorações e aventuras, conforme aponta a tabela seguinte:

No entanto, embora Silva (2005) insira a temática esportiva dentro da categoria de entretenimento, o esporte visto sob outra ótica é um tema repleto de potencialidades noticiosas únicas que, em alto grau, justificam a existência de uma editoria específica para o gênero – editoria esta que perdura há quase um século desde sua consolidação na imprensa brasileira, no contexto de popularização e consequente profissionalização do futebol. Mas, se por um lado, o esporte estabeleceu-se como editoria permanente e de destaque nos principais veículos brasileiros, por outro, foi relegado a uma visão estigmatizada que, embora em menor escala, ainda perdura, caracterizando a atividade como uma área de menor prestígio quando comparada às demais coberturas, fato este que, mesmo passível de contestação, talvez tenha justificado a categorização proposta pela autora.

O que se pretende nesta discussão é tomar a temática esportiva como segmento dotado de potencialidades noticiosas próprias, sobre o qual os valores-notícia clássicos sistematizados por Silva atuariam de maneira análoga às editorias mais universais. Para ilustrar esse raciocínio, estabeleci a seguir uma correlação entre os doze VNs clássicos apontados na tabela da autora e alguns dos modos como, por exemplo, eles poderiam atestar a noticiabilidade dos acontecimentos em uma cobertura futebolística:

  • VN impacto: número de pagantes nos estádios e, sobretudo, número de torcedores que acompanham o dia a dia dos clubes;
  • VN proeminência: personagens do jogo;
  • VN conflito: rivalidades clubísticas;
  • VN entretenimento/curiosidade: bastidores da partida;
  • VN conhecimento/cultura: esporte como prática educativa e cidadã;
  • VN polêmica: escândalos dentro ou fora de campo;
  • VN raridade: situação inusitada dentro ou fora de campo;
  • VN proximidade: abrangência dos campeonatos (local, estadual, nacional etc.);
  • VN surpresa: placares inesperados;
  • VN governo: administração dos clubes;
  • VN tragédia/drama: situação dos clubes das últimas posições da tabela;
  • VN justiça: decisões contratuais envolvendo contratações de atletas.

Importante ressaltar que os valores-notícia aqui elencados não são independentes e, na maioria das vezes, devem ser compreendidos de forma conjunta, pois dizem respeito a uma série de inter-relações possíveis entre os acontecimentos do universo esportivo ou de qualquer outra editoria em questão. Em muitos casos, inclusive, é a complementaridade de tais fatores o que torna noticiáveis certos acontecimentos, além, é claro, dos critérios organizacionais que são parte intrínseca às rotinas produtivas.

Acredito que resida aí um dos maiores compromissos do jornalista, sobretudo o esportivo que, lidando com a subjetividade da editoria e ancorando-se aos fundamentos canônicos da profissão – como a constante busca pela verdade, equilíbrio e isenção no trato noticioso – sobrevive de apurar informações inéditas e condizentes com o interesse público, construindo histórias bem encadeadas e, por consequência, atraentes e credíveis. Mas que, acima de tudo, ofereçam subsídios para estimular o pensamento crítico, o debate e a reflexão, justificando porque é limitante enquadrar a temática esportiva como mero entretenimento ou curiosidade. Afinal, como bem assinala o jornalista esportivo Paulo Vinicius Coelho em seu livro clássico sobre essa editoria:

“a única maneira de mostrar que o esporte é viável é mostrar que o jornalismo esportivo não é feito apenas por esporte”. (COELHO, 2003, p. 115).

Referências

BARBEIRO, Heródoto; RANGEL, Patrícia. Manual do Jornalismo Esportivo. São Paulo: Contexto, 2006.

COELHO, Paulo Vinícius. Jornalismo esportivo. São Paulo: Editora Contexto, 2003.

DEJAVITE, Fábia Angélica. INFOtenimento: Informação + Entretenimento no Jornalismo. São Paulo: Ed. Paulinas, 2006.

LISBOA, Silvia e BENETTI, Marcia. O jornalismo como crença verdadeira justificada. Brazilian Journalism Research. v. 11, n. 2, p. 10-29, 2016.

SILVA, Gislene. Para pensar critérios de noticiabilidade. Estudos em Jornalismo e mídia, v.2, n.1. Florianópolis: Insular, 2005, p. 95-106.

SOUSA, Jorge  Pedro.  Teorias  da  Notícia  e  do Jornalismo. Chapecó, SC: Argos, 2002.

TRAQUINA, Nelson. O estudo do jornalismo no século XX. São Leopoldo, RS: Editora Unisinos, 2001.

WOLF, Mauro. Teorias da comunicação de massa. São Paulo: Martins Fontes: 2003.

*Uma versão mais abrangente deste texto encontra-se publicada no vol. 8 (n. 2) da revista Âncora – Revista Latino-americana de Jornalismo, vinculada ao Programa de Pós-Graduação em Jornalismo da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).

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Show do Esporte

Para aqueles leitores com mais tempo de janela como eu, a associação do título é inevitável, porém é necessária uma explicação aos mais novos. No começo dos anos 1980 do século passado, o locutor esportivo Luciano do Valle comandava, todos os domingos, na TV Bandeirantes, uma maratona esportiva com diversas modalidades, muitas delas sem qualquer tradição na televisão brasileira, era o Show do Esporte. O jornalista, que chegou a ser chamado de Luciano do Vôlei, por sua importância no desenvolvimento da popularidade da modalidade no país, também trouxe para a telinha a Fórmula Indy, o campeonato italiano, o futebol master, o futebol feminino e até o futebol americano. Também ajudou a criar ídolos, um tanto quanto efêmeros, é verdade, como Rui Chapéu (sinuca) ou Maguila (boxe), mas a maior virtude da atração foi acreditar na força do esporte como entretenimento de massa bem além dos tradicionais gramados do velho esporte bretão e, isso, muito antes das TVs por assinatura e seus canais esportivos 24 horas.

Quem se interessa por Comunicação Social já ouviu falar, em algum momento, do termo infotenimento. Surgido também nos anos 1980, ele é uma tentativa de denominação para um tipo de conteúdo informativo menos formal, no qual jornalismo e entretenimento se mesclam. Os talk shows logo surgiram como seu principal exemplo, mas a tentação de aumentar audiências através dessa fusão fez com que os telejornais e outros programas de conteúdo informativo adotassem essa linha, digamos assim, mais leve, pelo menos para os conteúdos que assim o permitiam.

 O jornalismo esportivo embarcou de “mala e cuia” no trem do entretenimento. Não bastava mais informar, era quase que obrigatório descontrair, jogar com as palavras, fazer piadas, criar personagens, caçar emoções. O jornalista alagoano Márcio Canuto, que nessa época era um dos poucos a se aventurar por esse lado histriônico do noticiário de esportes, passou a fazer escola. E seus alunos, mesmo moderando o tom circense do colega, passaram a se tornar verdadeiros entertainers. Não é à toa que um dos maiores representantes dessa nova linha, o ex-repórter paulista Tiago Leifert, acabou se tornando apresentador de reality shows e programas de variedades na TV Globo.

Márcio Canuto, o “pioneiro”. (reprodução TV Globo)

 Impulso digital

Se essa tabelinha entre esporte e entretenimento já dava bons resultados antes da internet, depois da popularização dos PCs e dos smartphones, passou a ser forma de sobrevivência. A concorrência é pesada demais para os antes hegemônicos meios de comunicação tradicionais. Os elevados custos da produção para suprir a exigência de alta qualidade técnica tornaram as emissoras de TV em pesados brontossauros que tentam competir diariamente com os ágeis velociraptors digitais (como estamos falando em infotenimento, nada como uma citação de Jurassic Park). E pra complicar ainda mais a situação, o mercado consumidor da informação também mudou. A velocidade informacional dos meios digitais nos contaminou.  

De acordo com uma pesquisa apresentada pela Kantar/IBOPE, 80% dos brasileiros assistiram vídeos online gratuitos em 2020. Em outros países a média foi de 65%. A mesma desproporção vale para vídeos em redes sociais (72% x 57%) e vídeos em serviços por assinatura (62% x 50%). Um desafio para os grandes grupos de telecomunicação nacionais que, por enquanto, ainda resistem, como mostra o mesmo estudo. Mais de 204 milhões de brasileiros consumiram conteúdo em vídeo na televisão em 2020. E o tempo que cada pessoa passou em frente à TV foi 37 minutos maior do que em 2019, totalizando 7h09 horas diárias – recorde dos últimos cinco anos.

Só que não é preciso ser um profeta para ver que a diluição da oferta de conteúdo em vídeo vai ser cada vez maior e com isso dilui-se também o investimento publicitário que, no fim das contas, é o que faz a roda da comunicação girar.  Vejam essa declaração de Arthur Bernardo Neto, Diretor de Desenvolvimento de Negócios para Media Owners: “Em um mundo onde a interação entre pessoas passa a ser cada vez mais virtual, marcas e anunciantes buscaram novas formas de se aproximar do público. Apesar do distanciamento físico, estamos próximos. A interatividade está em alta. Em agosto, por exemplo, 8% dos brasileiros disseram ter escaneado um QR Code pela primeira vez na pandemia”.

Para continuar faturando é preciso aprender os novos passos dessa dança, porque em nenhum momento a “música” vai parar de tocar.

Transmídia sem limites

Os grandes grupos de comunicação já se deram conta há um bom tempo de que precisavam estar presentes além de suas plataformas originais. Uma emissora de TV que não conversasse com seu público através das mídias sociais, achando que seu histórico de audiência a garantiria, certamente já teria sucumbido. E não basta ter perfis no Instagram e Facebook ou material disponível no YouTube ou TikTok. É preciso que o conteúdo seja atraente, diverso e agregador.

É aí que entra a transmídia, utilizando todas os arranjos midiáticos disponíveis de forma estratégica, na qual conteúdos se completam e oferecem um mar de entretenimento e informação ao consumidor.

Em tempos de grandes conglomerados de mídia, essas possibilidades crescem em progressão geométrica, porque todos os empreendimentos desses gigantes midiáticos podem se cruzar, se complementar.

Como estamos falando mais especificamente de esportes trago dois exemplos. O primeiro deles mostra a ligação entre o grupo ViacomCBS com a NFL, liga de futebol americano dos Estados Unidos.

Além da rede de TV CBS, a Viacom também é proprietária do canal infanto-juvenil americano Nickelodeon e, neste ano de 2021 propôs à NFL a transmissão de uma partida dos playoffs, entre Chicago Bears e New Orleans Saints nos dois canais. Sendo que no canal alternativo, a partida teria características muito mais voltadas ao entretenimento do que ao jornalismo esportivo. A transmissão teve a inclusão de efeitos de desenhos animados da Nickelodeon sobre a imagem e ainda contou com comentários de artistas do canal, como Gabrielle Green e Lex Lumpkin.

A partida ganhou design gráfico próprio. (reprodução Nickelodeon)
Os touchdowns ganharam jatos virtuais de slime. (reprodução Nickelodeon)
E o Bob Esponja foi parar no meio das traves. (reprodução Nickelodeon)

A estratégia foi lucrativa para ambas as partes. A Viacom usou seus direitos de transmissão para atingir um público maior que o normal e aumentou seu faturamento com espaços publicitários, já que muitos anunciantes voltados ao público infanto-juvenil tiveram um novo produto à disposição. Para a NFL também foi proveitoso; além do faturamento extra, ganhou com a exposição de seu produto a um público novo e potenciais consumidores no futuro.

A Disney não ficou atrás e usou a ESPN, seu selo de esportes, para divulgar personagens da Marvel, empresa que também pertence ao grupo, em uma partida da NBA, a liga de basquete profissional norte-americana. E abusou da criatividade para contextualizar a experiência que recebeu o título de Arena de Heróis.

Jogadores transformados em heróis de quadrinhos. (reprodução ESPN)

De acordo com o roteiro, depois de uma vitória apertada sobre um exército alienígena invasor, os Vingadores recebem uma nova ameaça, o inimigo promete retornar com reforços. Reconhecendo as habilidades físicas superiores, agilidade e tenacidade dos atletas da Terra, o Pantera Negra e o Homem de Ferro decidem realizar uma série de competições para selecionar quem vai lutar ao lado deles como Campeões da Marvel.

Na partida entre Warriors e Pelicans, competiram três estrelas de cada equipe. No time da Califórnia, Stephen Curry representou a Capitã Marvel; Draymond Green, o Doutor Estranho e Andrew Wiggins, o Pantera Negra. Já pela equipe de Nova Orleans, a estrela da nova geração Zion Williams, representava o novo Capitão América; Brandon Ingram, a Viúva Negra e Lonzo Ball, o Homem de Ferro. A disputa entre eles se deu através de seus desempenhos em quadra, com uma pontuação paralela à do jogo, na qual acertos e erros somavam e diminuíam a contagem. Os detalhes podem ser conferidos clicando aqui

Pontuação paralela dos jogadores selecionados. (reprodução ESPN)

Como na outra iniciativa citada, a transmissão nos EUA foi feita em dois canais da ESPN, uma normal e outra com diversos efeitos visuais e com o acompanhamento da disputa paralela. No estúdio, vários elementos do universo Marvel estavam presentes, como o martelo de Thor ou a luva de Thanos com as Joias do Infinito. A transmissão também contou com a participação do ator Anthony Mackie, que interpreta o novo Capitão América em série recém-lançada pela plataforma de streaming Disney +. No Brasil apenas a transmissão especial foi exibida.

Cenário temático para os apresentadores. (reprodução ESPN)

Esses são apenas dois exemplos da ampla possibilidade de ações envolvendo mídia, entretenimento e esporte. Em nosso país esse tipo de iniciativa ainda é bastante incipiente. Quando muito, emissoras de TV colocam estrelas de seus elencos participando de reportagens, transmissões ou programas esportivos. Mas isso terá que mudar. Afinal, é como afirma o velho jargão do mundo dos espetáculos: The show must go on (O show não pode parar).

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Uma provocação: as cotas mudaram o ranking do Brasileiro?

Com o rebaixamento de Botafogo e Vasco, no Brasileiro de 2020, e o não retorno do Cruzeiro à primeira divisão em 2021, pela primeira vez, três das 12 equipes mais tradicionais do país [1] vão disputar, numa mesma edição, a série B. O fato de 1/4 dos integrantes do que chamamos aqui de tradicionais nacionalmente (TN) estarem excluídos, ao menos provisoriamente, da elite do futebol brasileiro ensejou diversas tentativas de explicação e hipóteses.

Má gestão e incompetência são as mais recorrentes. O diagnóstico tecnicista parece ganhar maior densidade explicativa quando contraposto a um reivindicado maior profissionalismo dos clubes que têm se mantido no topo do ranking do Brasileiro. Sem desconsiderarmos ambas, queremos analisar outro ângulo que parece negligenciado, principalmente pelo jornalismo esportivo: os efeitos da implosão do Clube dos 13, em 2011, com a consequente concentração das cotas de televisão em apenas dois clubes.

Fábio Koff, ex-presidente do Clube dos 13
Fonte: Trivela

Pergunta-se se o novo paradigma deflagrou um processo de reconfiguração do TN, instaurando novo patamar de competitividade, em que, da multiplicidade de candidatos a campeão nacional, tem-se padrão próximo ao da maioria dos principais campeonatos europeus, restritos a dois ou, no máximo, três concorrentes ao título. Para responder a essa hipótese, comparou-se a classificação nos noves Brasileiros seguintes ao fim do Clube dos 13, de 2012 a 2020 – o novo modelo de contrato da TV Globo só começou a vigorar em 2012 – com as nove edições imediatamente anteriores, de 2003 a 2011. Vamos nos abster de uma historiografia da criação e do fim do Clube dos 13 [2]. O que nos mobiliza aqui são as consequências, nos níveis de competitividade, dos times TN a partir da negociação individual da Globo com as equipes.

Optou-se por uma visão panorâmica, em que não se cotejou apenas os campeões do Brasileiro nos dois períodos. A comparação estendeu-se aos que, num intervalo e outro, alcançaram as quatro primeiras posições – o G4 – com vaga automática à Libertadores, competição que se tornou o principal foco de clubes, torcedores e imprensa. Analisou-se, ainda, os rebaixados à segunda divisão – o Z4 – o que, também, dá pistas sobre a reconfiguração em curso. Neste último recorte, subdividiram-se as equipes entre os 12 tradicionais nacionalmente (TN) e as não integrantes desse grupo, os tradicionais regionalmente (TR) ou localmente (TL).

O primeiro intervalo de nove anos tem início em 2003, quando instaura-se o sistema de pontos corridos no Brasileiro. A partir dessa edição, os quatro primeiros classificados garantem vaga à Libertadores. Não se considerou, na comparação, nem o campeão da Copa do Brasil nem o da Sul-Americana, ambos com vaga à Libertadores – no caso da segunda apenas a partir de 2010. Por se tratar de competições que envolvem jogos mata-mata, estão sujeitas a maior imprevisibilidade, diferentemente do campeonato por pontos corridos, o que distorceria o objetivo aqui buscado.

Descartou-se, ainda, a inclusão, no comparativo, do quinto e do sexto lugares do Brasileiro, que, a partir de 2016, quando a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) ampliou o número de vagas na Libertadores para Brasil, Argentina, Chile e Colômbia, asseguram vaga à fase eliminatória da Libertadores. Pensa-se que nossa opção metodológica dá uma percepção mais nítida sobre o caráter competitivo dos clubes, antes e depois, da implosão do Clube dos 13.

Cotas (quase) iguais no TN até 2011

Concentrou-se, basicamente, no valor pago pela TV aberta, ainda a principal plataforma do país e a mais valorizada por grande parte dos anunciantes de futebol. Da criação da Copa União, em 1987, até 2000, a cota da TV era dividida em partes iguais pelos filiados ao Clube dos 13, com quantias inferiores aos “convidados”. Segundo cálculo do jornalista Mauro Beting, citado no blog do jornalista Allan Simon, em 1987, cada integrante da associação recebeu 12,8 milhões de cruzados, equivalente a quase R$ 2 milhões em valores atualizados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) entre dezembro de 1987 e dezembro de 2019. (SIMON, 2000).

A partir de 2001, a entidade separou Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Vasco em um grupo que ganharia mais, e outro com Botafogo, Fluminense, Santos, Grêmio, Internacional, Atlético-MG, Cruzeiro e Bahia, com valores menores. Outros ajustes ocorreram até que, em 2011, a última divisão antes do fim do Clube dos 13 contemplava quatro grupos distintos:

Fonte: LEITE JR (2015, P.61) [4]

Com tal distribuição de valores, tivemos, entre 2001 e 2010, seis clubes campeões: São Paulo (3 títulos), Corinthians (2), Flamengo, Fluminense, Cruzeiro e  Santos (1 cada). Classificaram-se para o G4, nesse novênio, 13 equipes: São Paulo (6 vezes); Santos e Cruzeiro (4 cada); Grêmio, Palmeiras, Internacional, Flamengo e Fluminense (3), Corinthians, Vasco, Athletico-PR, São Caetano e Goiás (1). Foram rebaixados à segunda divisão, nesses nove anos, quatro clubes do TN: Vasco, Corinthians, Grêmio e Atlético-MG – todos com uma única queda. Entre as equipes fora desse grupo, 25 caíram de série: Fortaleza, América-MG, Coritiba, Vitória, Avaí e Guarani (2 vezes cada); Bahia, Ceará, Portuguesa-SP, Sport, Santa Cruz, Paraná, Juventude, Figueirense, Ipatinga, Santo André, Náutico, Goiás, Barueri, São Caetano, Ponte Preta, Payssandu, Crisciúma, Brasiliense, Athletico-PR (1).

Vê-se, assim, uma briga bastante competitiva pelo título, com apenas dois clubes, São Paulo (3) e Corinthias (2), vencendo mais de uma vez a competição, e com seis campeões diferentes em nove anos. O G4 também mostra grande pluralidade: dez dos 12 TN – Botafogo e Internacional são as exceções – participaram, ao menos uma vez, em nove anos, da Libertadores, assim como três equipes TR: São Caetano, Athletico-PR e Goiás. Os clubes TN rebaixados no período – 4 – só caíram uma vez de divisão em nove anos, com todos retornando à série A após apenas um ano na B.

Com o fim do Clube dos 13, o contrato para o triênio 2012 a 2015 já ampliou consideravelmente a assimetria do pagamento pelas partidas na TV aberta:

Fonte: LEITE JR. (2015, p. 83)

No triênio 2016 a 2018, a concentração se acentuou ainda mais.

Fonte: LEITE JR. (2015, p. 84)
* Demais clubes: negociações anuais com a Globo, a depender da participação na Série A

Com isso, a partir de 2016, Flamengo e Corinthians elevam a diferença de R$ 30 milhões sobre o São Paulo para R$ 60 milhões. Em relação a Vasco e Palmeiras, avança de R$ 40 milhões para R$ 70 milhões. Sobre o Botafogo, que na transição do Clube dos 13 para as negociações individuais, vira sua cota avançar de R$ 16 milhões para R$ 45 milhões, a distância para o Flamengo saltou, de R$ 9 milhões em 2011, “para inacreditáveis R$ 110 milhões”. (LEITE JR, p 85).[5]

Nesse modelo, entre 2012 a 2020 temos cinco campeões brasileiros: Corinthians (3 vezes); Cruzeiro, Palmeiras e Flamengo (2 cada) e Fluminense (1). Classificaram-se para o G4, no período, 12 equipes: Grêmio e Flamengo (5 vezes); São Paulo, Corinthians, Atlético-MG e Palmeiras (4); Internacional e Santos (3), Cruzeiro, Fluminense e Athletico-PR (2); Vasco e Botafogo (1). O número de rebaixados do TN avançou de quatro para cinco – Vasco (3 vezes); Botafogo (2); Internacional, Cruzeiro e Palmeiras (1 cada). Entre os clubes fora do TN foram 20: Avaí (3); América-MG, Vitória, Goiás, Figueirense, Coritiba e Ponte Preta, Atlético-GO e Sport (2); Crisciúma, Joinville, Santa Cruz, Paraná, CSA, Chapecoense, Athletico-PR, Ceará, Portuguesa-SP [6], Náutico e Bahia (1).

Vê-se que, entre um período e outro, o número de campeões recuou de seis para cinco. Para além dessa redução, parece mais significativo que, nos últimos seis anos, apenas dois times de São Paulo – Corinthians e Palmeiras (2 vezes cada) – e um do Rio – Flamengo (2) venceram o Brasileiro. Se na década anterior, houve seis campeões diferentes em nove edições, no intervalo seguinte, em seis dos últimos anos, foram só três os vencedores, sinalizando concentração rara na história do futebol brasileiro. O número de times no G4 caiu só de 13 para 12, sendo 11 do TN – a exceção foi o Vasco – contra dez no intervalo anterior. A estabilidade no número de frequentadores da Libertadores permite duas leituras complementares. Por um lado, à parte Flamengo e Corinthians, temos seis dos outros dez clubes do TN em ao menos três das nove edições – Grêmio (5) São Paulo, Palmeiras e Atlético-MG (4), Internacional e Santos (3). Isso pode indicar que, com a emblemática exceção do Palmeiras [7], os demais, sem condições de brigar pelo título, tiveram de se contentar com a ida à Libertadores.

Simultaneamente, o número de quedas de alguns integrantes do TN deu salto importante: de uma vez para três (Vasco) e de zero para duas (Botafogo). E, pela primeira vez desde o início dos pontos corridos, em 2003, um integrante do grupo – o Cruzeiro, campeão do primeiro ano da segunda década – não logrou retornar à série A no ano seguinte [8]. Também pela primeira vez, três TN – Cruzeiro, Botafogo e Vasco, 1/4 daquele universo – vão disputar a série B. Fora do TN, a presença no G4 caiu de dois para um, embora este – Athletico-PR – tenha se classificado duas vezes, sinalizando que o time paranaense pode ter encontrado um modelo competitivo superior ao de outros mais tradicionais, mas insuficiente para disputar, e vencer, o Brasileiro.

Expostos os dados comparativos, nos limitamos a deixar uma provocação à reflexão dos que pensam o futebol como manifestação cultural e identitária para além do clubismo: seria a gestão explicação suficiente e única para a nova configuração de competividade no TN?



[1] Considera-se aqui como tais 12 clubes: quatro do Rio de Janeiro (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco); quatro de São Paulo (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos); dois de Minas Gerais (Atlético-MG e Cruzeiro); e dois do Rio Grande do Sul (Grêmio e Internacional). Serão doravante nomeados tradicionais nacionalmente (TN), em contraponto aos tradicionais regionalmente (TR) ou localmente (TL).

[2] Para uma análise detalhada do Clube dos 13 ver SANTOS, 2019; LEITE JR, 2015 e CHRISTOFOLETTI, 2015.

[3] Por estar na segunda divisão, recebeu apenas 50%.

[4] Os clubes que não faziam parte do Clube dos 13 tinham que negociar diretamente com a entidade e não recebiam mais do que 45% do valor do Grupo 3.

[5] Em 2019, um ano após o Grupo Turner, via Esporte Interativo, entrar na disputa da TV fechada, a Globo mudou a fórmula de cotas da TV aberta: 40% dos valores passaram a ser distribuídos igualmente pelos clubes, 30% pela colocação no campeonato e 30% pelo número de partidas exibidas. Embora essa mudança aparentasse reduzir as assimetrias, a Globo ampliou o número de partidas do Corinthians na TV aberta e, aproveitando o ano excepcional do Flamengo, priorizou transmitir os jogos deste time via pay-per-view. Com essas duas opções, elevou ainda mais a diferença dos valores pagos à dupla. O detalhamento das consequências dessa mudança ampliaria excessivamente o espaço desta comunicação. Consideramos que os números já expostos já dão conta do foco aqui escolhido.

[6] O rebaixamento da Portuguesa-SP, em 2013, ocorreu por fatores extracampo. Sob a alegação de que, quase ao fim do último jogo – 0 x 0 contra o Grêmio –, a equipe paulista colocou em campo o meia Heverton, suspenso por duas partidas, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu a Lusa com a perda de quatro pontos (três da partida disputada mais o ponto do empate). Com isso, a equpe caiu de 48 pontos, no 12º lugar, para 44 pontos, no 17º lugar, salvando o Fluminense, que, com 46 pontos, ocuparia essa posição, sendo rebaixado no campo. O STJD também retirou quatro pontos do Flamengo, por escalar o lateral esquerdo André Santos, suspenso por um jogo. Com isso, o rubro-negro caiu de 49 pontos, na 11º posição, para 45 pontos, na 16ª colocação.

[7] Com uma injeção de € 24 milhões (cerca de R$ 153 milhões) desde 2015 até 2021, o time paulista passou a deter um dos maiores patrocínios do mundo, atrás apenas dos espanhóis Barcelona e Real, do alemão Bayern de Munique, “do novo rico francês Paris Saint-Germain e do top 6 inglês: Liverpool, Manchester City, Manchester United, Arsenal, Chelsea e Tottenham”.

[8] Sobre a crise financeira do Cruzeiro

Referências bibliográficas

CHRISTOFOLETTI, Danilo Fontanetti. O fim do Clube dos 13: Como a Rede Globo controla o futebol brasileiro. São Paulo, Monografias Brasil Escola UOL, 2015.

LEITE JR., Emanuel. Cotas de televisão “apartheid futebolístico” e risco de “espanholização”. Recife, Ed. do Autor, 2015.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol. Curitiba: Appris, 2019

SIMON, Allan. Brasileirão: como o dinheiro da TV foi distribuído entre os fundadores do C!3 desde 2001, São Paulo: https://allansimon.com.br/2020/01/12/brasileirao-como-o-dinheiro-da-tv-foi-distribuido-entre-os-fundadores-do-c13-desde-2001 acessado in 12/05/2021

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Artigos

A História feminina do esporte argentino

Há mais de 100 anos, em seu relatório anual de 1918, P.P Phillips, diretor de educação física da Asociación Cristiana de Jóvenes (ACJ) de Buenos Aires, escreveu: “Ao contrário de sua tendência tradicional, os argentinos agora estão desenvolvendo uma sede insaciável pela educação física e os esportes estrangeiros”. Por outro lado, ressaltou que em um rápido olhar para os estudantes em seu ginásio, podia observar “os tipos de homens e crianças bem educados” que a ACJ atraía, assim como “o clima democrático, gentil” que se mantinha nelas. Para mostrar a aprovação que geravam as iniciativas da instituição, Phillips citou um médico local, para quem seus colegas portenhos poderiam enviar mulheres jovens o suficiente para abrir uma seção feminina se a ACJ estivesse disposta a realizar o mesmo trabalho “para nossas meninas gordas”.

O Relatório de Phillips demonstra a crescente importância do esporte na Argentina no começo do século XX e a ordem genérica que prevalecia. O esporte estava reservado e era controlado por homens, que estavam habilitados para beneficiarem-se de todos os valores atribuídos à sua prática. Entretanto, como indica a prescrição do médico, as mulheres tinham permissão para participar dos esportes se isso resultasse na melhora da saúde (sobretudo reprodutiva), e não alterasse o ideal feminino estabelecido. Vale a pena destacar que a Asociación Cristiana Femenina (ACF) de Buenos Aires teve seu início em 1890, sendo uma das instituições femininas mais antigas do país. O fato do médico citado por Phillips ignorá-la também expõe as enormes dificuldades que enfrentava, e ainda enfrenta, o esporte feminino. 

A história da ACF demonstra que, apesar dos discursos esportivos dominantes que durante muito tempo o silenciaram ou minimizaram, e que ainda o fazem, sempre houve, e há, mulheres e instituições que favoreceram, materializaram e exemplificaram a emancipação e o empoderamento feminino através da prática esportiva. Se pode, e deve, considerá-las como pioneiras no sentido de que eram, e muitas ainda seguem sendo, as primeiras a ingressarem em um espaço novo. Da mesma forma que se pode, e deve, considerá-las lutadoras e militantes no sentido de que nesse corajoso ingresso, criaram novos espaços participativos por meio dos quais se questionaram estereótipos de gênero e se imaginaram visões políticas alternativas. Teria mencionado algo sobre isso Alicia Moreau quando a ACJ a convidou para falar sobre “O feminismo como problema social” em seu ciclo de conferências de 1919?

Sabe-se relativamente pouco da vida dessas mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes do campo do esporte, visto que elas estão em grande parte ausentes da narrativa histórica e jornalística tradicional. Felizmente, o trabalho paciente de várias colegas começa a interpretar o complexo processo pelo qual as mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes, em suas buscas, suas conquistas, e seus fracassos, contribuíram para resistir, negociar e ressignificar a ordem genérica que operava no esporte ao longo do último século. Ao torná-las visíveis, percebemos sua larga e importante, mas agora latente, presença no esporte nacional. 

O exemplo de Lilian Harrison é norteador. Anos depois de converter-se como a primeira pessoa a cruzar a nado o Río de la Plata em 1923, declarou:

“Nunca posso me esquecer que um dos presentes [em Colonia] não se cansava de dizer que eu estava louca e que não chegaria nem ao penhasco. Veja que estranho, quando toquei a terra, em Punta Colorada, próximo de Punta Lara, a primeira coisa que me aconteceu foi pensar naquela pessoa que havia comentado de minha loucura um dia antes”.

Lilian Harrison

Se nos interessa a produção de discursos e de sentidos genéricos, assim como a igualdade de gênero no esporte, nem a fala e nem a vida de figuras como Harrison, nem o seu significado, deveriam ser esquecidos. Resgatá-las, mantê-las presentes e problematizá-las ajuda a tornar visível o papel vital da mulher no esporte e em outros espaços sociais.


Texto originalmente publicado no site El Equipo no dia 29 de maio de 2021

Tradução: Abner Rey e Fausto Amaro

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Produção audiovisual

Já está no ar o trigésimo quinto episódio do Passes e Impasses

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no Spotify*, Deezer*, Apple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O tema do nosso trigésimo quinto episódio é “O futebol na obra de Nelson Rodrigues”. Com apresentação de Mattheus Reis e Leticia Quadros, gravamos remotamente com Zeca Marques, professor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru).

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o trigésimo quinto episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “A Vida Como Ela É, Bonitinha, Mas Ordinária… Assim Falou Nelson Rodrigues”, samba-enredo da escola de samba Viradouro no Carnaval de 2012, homenageando o centenário do escritor e dramaturgo.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):

Fla-Flu… E As Multidões Despertaram! – organizado por Oscar Maron Filho e Renato Ferreira [livro]

O boca de ouro [peça teatral de Nelson]

A vida como ela é – Nelson Rodrigues [livro]

O futebol em Nelson Rodrigues – José Carlos Marques [livro]

Equipe

Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Leticia Quadros, Fausto Amaro e Carol Fontenelle
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Mattheus Reis e Leticia Quadros
Convidado: Zeca Marques

Artigos

As limitações da cobertura esportiva da Globo em campeonatos não transmitidos

No início deste mês, escrevi para a coluna da ReNEme (Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte) no Ludopédio sobre o fato de o Fantástico não ter dado a música para o atacante Gilberto, do Bahia, após ter feito 4 gols contra o Altos, em partida válida pela Copa do Nordeste.

Naquele texto optei por focar nas opções de transmissão da Liga do Nordeste para o torneio regional nos últimos anos, que não passava pela Globo. Neste, tratarei exclusivamente da cobertura esportiva do conglomerado comunicacional.

Fonte: Perfil da Copa do Nordeste no Instagram

Critérios de noticiabilidade

Quando se fala em “critérios de noticiabilidade” ao estudar ao que leva à transformação de determinado fato em acontecimento jornalístico, logo, sob mediação de profissionais, sintetizamos que não é notícia se “um cachorro morde um homem”, por ser algo corriqueiro. Apenas será se fugir do que deveria ser natural, ou seja, “quando um homem morde um cachorro”.

Mas também é necessário lembrar que, mesmo na segunda possibilidade, depende de quem era o homem, quem era o dono do cachorro e qual o local em que ocorreu. Dependendo ainda do nível de poder das pessoas envolvidas, até mesmo o como e o porquê podem ter versões a se apresentarem de formas diferentes – se é que só isso não baste para que o fato não se torne notícia.

A discussão sobre o entretenimento na cobertura esportiva é bastante realizada, mas é necessário destacar que as opções editoriais do jornalismo (esportivo) também passam por questões político-econômicas, com maior ou menor efeito no que é difundido.

Fonte: O Planeta TV – A Globo foi patrocinadora dos Jogos Rio 2016

Os negócios na transmissão de eventos esportivos

O século XXI é o que consolida no Brasil os efeitos da liderança do Grupo Globo na transmissão de eventos esportivos muitas vezes de forma isolada na TV aberta, gratuita, ou em plataformas midiáticas sob pagamento (Sportv e Premiere).

A forma incisiva de atuar no mercado ficou marcada especialmente no Campeonato Brasileiro da Série A. Além da construção das barreiras para transmiti-lo, a possibilidade de concorrência via licitação a partir do torneio de 2012 abriu espaço para um modelo de negociação individual, acabando com a “União dos Grandes Clubes do Brasil”, o Clube dos 13 – ver mais em Santos (2019).

Este processo não ocorreu sem estratégias de concorrentes para trazer para si o potencial de audiência deste tipo de programa. A Record tentou enfrentar a líder de mercado e, se não conseguiu sucesso com torneios de futebol importantes no final da década de 2000, adquiriu exclusividade para transmissão de Jogos Pan-Americanos e Jogos Olímpicos.

Anos mais tarde, o então Esporte Interativo, atual TNT Sports, conseguiu fechar contrato com alguns clubes para transmissão de jogos da Série A, em TV fechada, a partir da edição de 2019. Isso gerou alguns jogos sem transmissão e mudanças nas possibilidades de transmissões pelas plataformas do Grupo Globo.

Mas o que a Globo faz na sua cobertura esportiva, seja nos programas específicos (Globo Esporte e Esporte Espetacular) ou nos telejornalísticos gerais, para tratar de torneios que estão sendo transmitidos por concorrentes?

Sem veto, mas sem grande atenção

Eu me recordo de num Globo Esporte gerado de São Paulo no início da década de 2010, ainda apresentado por Thiago Leifert, de ele comentar que era opção editorial da Globo não tratar de eventos esportivos com direitos de outras emissoras – acredito que possa ter sido sobre vitória de piloto brasileiro nas 500 Milhas de Indianápolis, da Fórmula Indy, que tinha transmissão da Band.

A lógica era simples: não chamar a atenção para um produto que poderia levar a audiência da Globo, líder, para a outra emissora. Podemos dizer que um dos critérios de noticiabilidade para a cobertura esportiva era a difusão de conteúdo de propriedade da rede.

A venda de qualquer pacote de publicidade para torneios esportivos sempre contou com entrega da emissora em telejornalísticos generalistas. Os gols da rodada têm destaque, por exemplo, no Jornal Nacional e no Fantástico, mas com a vinheta do pacote “Futebol 2021” passando antes do bloco.

Enquanto líder, com audiência maior em outros momentos que na transmissão do jogo em si, por muito tempo isso foi uma barreira importante no mercado de TV: maior visibilidade das marcas envolvidas – ainda que com o contrapeso de não abrir espaço para as específicas de torneios, especialmente se concorrentes das parceiras do pacote.

Segundo Bolaño (2000), a mercadoria audiência é o foco da empresa de TV por ser principal fonte geradora de receitas, pois é ela que é vendida aos anunciantes a partir da publicidade. Assim, na concorrência com outros grupos econômicos, isso é considerado para a linha editorial.

O cenário mudou nos últimos anos. Por um lado, houve a necessidade de flexibilizar nas negociações com clubes pelos direitos da Série A a partir da edição de 2018, com concorrência numa das mídias.

Além disso, há alteração no perfil do conglomerado, seguindo para ser uma mediatech, com redução de custos e direcionamento melhor de investimentos – caso das mudanças de contratos com seu corpo de artistas. A pandemia da Covid-19 acentuou o processo de mudança, com a perda de transmissão de torneios para concorrentes.

Fonte: Reprodução do site RD1

Casos de 2021

Com toda a disputa do Flamengo com a Globo, os efeitos da Medida Provisória 984/2020 do governo federal sobre a transmissão do Campeonato Carioca fizeram com que a emissora deixasse de transmitir o estadual, que foi para a Record TV. Além disso, Flamengo e Fluminense também estão na Libertadores, torneio que passou ao SBT.

Tratarei aqui da minha experiência de quem recebe o Globo Esporte produzido para a rede a partir do Rio de Janeiro, após um primeiro bloco local (de Alagoas).

A cobertura sobre os times do estado segue no mesmo formato do mesmo período do ano passado, com reportagens sobre a preparação para os jogos do Carioca e da Libertadores e a repercussão deles. O que mudou é a logomarca de uma das concorrentes na tela ao tratar dos resultados – ainda que no Carioca a Globo tenha tentado usar apenas o crédito da agência responsável pelo torneio, a Sportsview.

Reproduziu em escala nacional o que acontece no local, com a cobertura esportiva seguindo de acordo com a atuação dos times do estado, independente se tem ou não o direito de transmitir os jogos ao vivo.

No caso da rede, ainda teve o percalço da paralisação do Campeonato Paulista por algumas semanas, ou seja, sem conteúdo considerado “nacional” de torneios que o grupo ou alguma de suas afiliadas podem transmitir – além dele, Catarinense, Gaúcho, Goiano, Mato-grossense, Mineiro e Pernambucano.

O que mudou foi na estratégia de programação para concorrer com os jogos ao vivo, ainda que as concorrentes tenham fugido dos horários tradicionais da Globo (quarta à noite e domingo à tarde).

Seguindo a definição de 5 tipos de estratégias de programação de TV elaborada por Brittos (2001), a Globo atuou com “contra-programação”. “A efetivação desta estratégia implica também em desprogramação, no sentido de alterar o horário e o conteúdo em si previamente anunciado, conforme as ações dos demais agentes” (BRITTOS, 2001, p. 158). Assim, a emissora buscou superar a concorrente com conteúdo de grande audiência, casos do reality-show Big Brother Brasil e da novela das 21h.

Enquanto isso, a Copa do Nordeste só apareceu, creio eu, para tratar do título do Bahia contra o Ceará. Por isso, escrevi no Ludopédio que “não há surpresa de um jogo de primeira fase da Copa do Nordeste, especialmente, não ter os gols reproduzidos”. Por isso também destaquei o “local”, mais acima, como um dos critérios, pois está presente no jornalismo que tem difusão nacional – e que merece bastante crítica.

Observar como os critérios de noticiabilidade são definidos é algo bastante interessante para quem se interessa em estudar a cobertura esportiva, considerando ainda que críticas mais diretas a torneios que determinada emissora transmite, mesmo nos telejornais generalistas, podem interferir no interesse do público em determinada competição e trazer prejuízos comerciais ao conglomerado comunicacional.

A atenção a possíveis limitações no que é, porque é e como é demonstrado, especialmente considerando as questões político-econômicas, é importante para não nos surpreendermos com omissões em coberturas midiáticas.

Referências

BOLAÑO, C. R. S. Indústria Cultural, Informação e Capitalismo. São Paulo: HUCITEC, 2000.

BRITTOS, V. C. Capitalismo contemporâneo, mercado brasileiro de televisão por assinatura e expansão transnacional. 2001. 425f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Culturas Contemporâneas, Universidade Federal da Bahia – UFBA, Salvador, BA, 2001.

SANTOS, A. D. G. dos. A visibilidade midiática buscada e conquistada pela Copa do Nordeste. Ludopédio, São Paulo, v. 143, n. 7, 2021.

SANTOS, A. D. G. dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de Futebol. Curitiba: Appris, 2019.

Artigos

Dizer não ao assédio também é um ato de resistência

Volta e meia assisto e ainda fico chocada com as cenas de violência que são exibidas nos noticiários locais. Constato com tristeza que de tão frequentes em grandes cidades como o Rio de Janeiro, crimes nas favelas envolvendo populações vulneráveis são banalizados, relegados ao lugar do comum. Em relação ao assédio sexual as coisas não são diferentes. Embora considerado crime pela Lei 10.224/2001, na prática, o tipo penal quase não é usado e os casos de assédio acabam sendo solucionados por outros ramos do ordenamento jurídico.

No ambiente de trabalho as histórias de assédio e impunidade se repetem. Segundo dados publicados pelo G1 de uma pesquisa feita pelo LinkedIn em parceria com a consultoria de inovação social Think Eva que, no fim do ano passado ouviu 414 profissionais de todo Brasil, quase metade das mulheres já sofreu algum assédio sexual no trabalho.

No último dia primeiro de abril, em uma atitude inédita, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) determinou  a perda temporária do mandato do deputado Fernando Cury (Cidadania) que, durante uma sessão extraordinária, vergonhosamente passou a mão no seio da deputada Isa Penna (PSOL). O futebol coleciona atitudes vexaminosas como a desse deputado.

Nos estádios, nos clubes e em ambientes tidos no passado como redutos masculinos, há anos jornalistas esportivas são desrespeitadas. E, por incrível que pareça, isso não surpreende com a frequência que deveria surpreender. Muitos assistem impassíveis às provocações e ouvem os coros nas arquibancadas dos estádios que repetem em alto e bom som xingamentos como “piranha, vagabunda, etc”. Como se o simples fato de trabalharem e, por que não, gostarem de futebol,  pudesse colocá-las num patamar de igualdade com as chamadas Marias-chuteiras, mulheres que se aproximam de jogadores de futebol com interesse em engatar um romance ou algum tipo de relação em troca de visibilidade ou vantagem financeira.

Vale lembrar que o próprio termo Maria-chuteira nasceu lá atrás impregnado de preconceitos machistas em relação à presença feminina nos estádios. Esse personagem carrega estereótipos que associam malícia e astúcia ao feminino.

Driblando o machismo estrutural

Mesmo depois do futebol ter perdido a fidalguia que levava apenas as mulheres das classes mais abastadas às arquibancadas, a presença feminina resistiu às interdições e está cada vez mais atuante nas torcidas dos estádios.  Mas nem mesmo lá, no espaço de quem olha, sente e vibra com o espetáculo do futebol elas estão livres de comportamentos masculinos inadequados. Tampouco as jornalistas esportivas.  Nos seus mais diferentes papéis, seja como repórteres, comentaristas ou narradoras elas também vivenciam no dia-a-dia esses comportamentos sexistas. Mesmo assim, não são todas que associam essas atitudes com preconceito em relação a participação da mulher no jornalismo esportivo.  É o caso, por exemplo, de Marluci Martins, que começou a cobrir futebol no início dos anos 90. Nessa época as entrevistas em vestiário eram comuns, o que não deixava nem a jornalista nem os jogadores à vontade.

Com seis copas do mundo no currículo, Marluci acredita que a estranheza e as dúvidas em relação a competência das mulheres eram motivadas pela quantidade reduzida de mulheres no jornalismo esportivo. Elas sempre tinham que provar alguma coisa.

 “Teve jogador entrando no meu quarto. Mas acho que isso não é nem preconceito, é outra coisa muito mais grave. Um assédio horroroso. Mas sempre compreendi que fui vítima disso tudo por ser uma das pioneiras. Naquela época a gente nem sabia que aquilo era preconceito. Hoje em dia a gente tem uma percepção muito maior desses fatos. Eu era muito nova e não gostava que duvidassem da minha competência. Queria provar que podia fazer como os homens faziam. Era um desafio pra mim.”

Marluci Martins

Marluci provou por diversas vezes que tinha competência para estar ali. Foram mais de 30 anos enfrentando cobranças em jornais populares como O Dia, Extra, O Globo e em programas dos canais por assinatura SporTV e Fox Sports.  Como conseguiu se impor e chegar aonde queria, não acha que foi vítima de preconceito. Ficava muito mais incomodada com fato de ser chamada para dar palestras sempre para falar de preconceito e nunca sobre temas como técnicas de reportagem e táticas de futebol, assuntos sobre os quais tinha pleno domínio.

Por ter trabalhado a maior parte da carreira em jornal, Marluci se livrou da terrível experiência de ouvir xingamentos entoados em coro pelo público no Maracanã e em outros estádios.  Como repórter de televisão, não tive a mesma sorte. Gostaria de pensar que esses foram ecos de um tempo que ficou para trás.  Mas, infelizmente, o que vivi no passado se repetiu muitas vezes com jornalistas que atuaram depois de mim e com as que estão hoje na linha de frente.

Fonte: Imagem enviada pela autora

A diferença é que atualmente a voz das jornalistas ecoam com mais força e rapidez. A consciência por parte das mulheres aumentou e elas hoje se  organizam em coletivos como o Jornalistas Contra o Assédio, criado no Facebook em 2016, e botam a boca no trombone para denunciar abusos em todos os espaços. As redes sociais ajudam a dar peso a essas denúncias.  Em 2015 a repórter do SporTV Gabriela Moreira, então na ESPN, fez um desabafo no Facebook depois de constatar com indignação o que na época ela chamou de licença poética para o machismo no futebol.

Depois de passar cinco anos como repórter policial, Gabriela não imaginou que enfrentaria preconceito de gênero justamente na editoria de esportes. Acostumada a ter chefes mulheres em outras editorias, Gabriela de cara se surpreendeu com a quantidade diminuta de mulheres em cargos de comando na editoria de esportes. Mas a surpresa maior viria depois.

Eu conheço o machismo de perto. Ontem pude sentir o bafo dele. Úmido, quente. Não pisquei o olho. Não me movi. Eu conheço o pior do ser humano e não é de hoje.

Na morte do Gaguinho, miliciano, grávida, vi a perícia levantar a pele que sobrava do rosto dele entre os 20 buracos de bala de fuzil do qual foi alvo. Ouvi de perto também os prantos da mãe de Matheus, que aos 4 anos fora morto no Complexo da Maré. Nas mãos da criança, uma moeda de R$ 1 que usaria para comprar pão. Os prantos da mãe de Matheus ainda não consigo esquecer.

Por ter visto o pior do ser humano de tão perto é que não me abalo quando vejo um machista pela frente. Ao contrário, respiro o mesmo ar que ele. De preferência, bem de perto. O machismo não se instala somente no futebol. É que aqui, ele ganha ares de licença poética.

 O machismo que vi na polícia e na política é o mesmo. Mas aqui, ele sai entre um “olê, olê, olá” e vez em quando, depois de um “Chupa”. Se o ouvinte é um homem, o “chupa” é “verbo” sem complemento. Para nós, mulheres, ele sempre vem acompanhado. E ontem, ele foi acompanhado de muitas coisas mais, durante muito tempo.

 “Você vai ver eu te chupando todinha, sua vagabunda”, foi um dos gritos que ouvi por longos 40 minutos. Gritado por dezenas de torcedores, na frente de pessoas com as quais me relaciono diariamente. Não pisquei, não desviei o olhar. Respirei bem de perto.

Para que entenda o machista que nem o ar que ele respira eu não posso ter. Nada terão eles que nós não possamos ter. Ouvir o que ouvi hoje é para os fortes. Falar o que disseram, não.

 Aos covardes, um aviso: essa luta já está perdida. Pelo filho que eu crio, que nós criamos. Pela força dos que estão porvir. Não tenham dúvida, esse título já é nosso!”

Gabriela Moreira (texto publicado pela jornalista no Facebook)

Segundo a jornalista, diferentemente da cobertura policial onde o machismo existe mas é velado pelo fato dos policiais saberem o que é crime e conduta imprópria, no esporte o assédio ainda é  normal e, o que é pior, existe uma omissão por parte dos próprios colegas jornalistas. Chegou a essa constatação na época da publicação do desabafo acima, depois de ser agredida por torcedores com palavras obscenas na final da Copa do Brasil entre Palmeiras e Santos, em 2015.

O preconceito, não apenas o de gênero, está de tal forma entranhado na nossa sociedade, que muitas vezes o teor sexista de determinadas ações passa despercebido. Para Marluci as mulheres estão dando um show de competência no jornalismo esportivo. Ela não sente que haja mais qualquer diferença nem na forma como o trabalho delas é feito nem recebido. Mas, num ato falho, repetiu: “Tem gente que fala assim: elas estão fazendo jornalismo como homem.” Riu e, depois, emendou:  “Frase preconceituosa, né? Elas fazem como homem fazia antigamente. Hoje em dia é normal.”

Referências bibliográficas

COSTA, Leda M da. Marias-chuteiras x  torcedoras “autênticas”. Identidade feminina e futebol, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ

Artigos

O jormachismo esportivo precisa entrar em pauta

O Esporte Espetacular, da Rede Globo de Televisão, exibiu durante os domingos 10[1] e 17[2] de janeiro de 2021 uma série de reportagens assinada por Henrique Arcoverde e produzida por Amanda Kestelman, Bárbara Mendonça e Renata de Medeiros sobre a Violência contra mulher. Ainda antes do início da matéria, a apresentadora Bárbara Coelho contextualizou o cenário nacional de violência contra a mulher no Brasil mostrando como acusações de agressões, estupros e assassinatos têm aparecido no cenário do futebol brasileiro.

O assassinato de Eliza Samúdio foi lembrado e ilustrado com uma fala do, então, goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, em 2010, naturalizando agressões entre casados. A agressão do, atualmente, goleiro do Atlético GO, Jean, sobre a ex-mulher Milena Bemfica, em 2019, também apareceu na matéria. Apesar de ter seu contrato suspenso com o São Paulo, o goleiro seguiu atuando na série A do Campeonato Brasileiro. A ex-esposa criticou que seu agressor possa seguir sua trajetória futebolística como se nada tivesse acontecido.

A matéria argumentou que o caso Robinho marcava um novo momento na relação entre o futebol e a violência contra a mulher. O jogador condenado na Itália por violência sexual de grupo, em 2017, foi contratado pelo Santos, em 2020, enquanto aguardava julgamento de recurso. A divulgação de escutas telefônicas de conversas do jogador sobre o episódio com seus amigos fez com que torcida, imprensa e, especialmente, patrocinadores pressionassem o clube que suspendeu o contrato do jogador condenado novamente em dezembro de 2020 ainda tendo um último recurso na justiça italiana disponível.

No segundo domingo de apresentação da matéria, além de uma rápida definição sobre o que seria “ser homem”, a reportagem questionou a importância da intervenção nos clubes em que muitos postulantes a atletas acabam convivendo em ambientes de pouco contato com a diferença de gênero dificultando a criação da empatia nas relações com as mulheres. Existiu certo consenso na fala dos entrevistados e das entrevistadas na responsabilidade das instituições em procurar criar um ambiente que permita o surgimento de outro tipo de masculinidade desde as categorias de base.

A narrativa da reportagem encerrou apostando na necessidade de uma maior valorização da presença das mulheres no futebol com cargos de destaque. Se evidencia como hipótese que uma maior presença de mulheres permite a criação de espaços com menos machismo. Regiani Ritter, repórter de campo na década de 1980 e 1990, lembrou que ao contrário dos homens que tinham seus erros transformados em piadas, os erros dela eram associados a seu sexo/gênero seguido das ordens de retorno ao fogão ou à cozinha. A árbitra FIFA Edina Alves, que será a primeira mulher da história a apitar uma partida do campeonato mundial de clubes de futebol masculino em 2021, afirmou que ainda tem seus erros justificados por ser uma mulher.

Me parece muito importante que um programa tão relevante de nosso jornalismo esportivo consiga pautar temas tão urgentes em nossa cultura. Nas linhas que seguem, porém, quero pensar o quanto esse mesmo jornalismo esportivo, entendendo-o como espaço de disputa e não como um espaço homogêneo, ajuda a construir essa narrativa masculina e machista no ambiente do futebol de espetáculo jogado por homens em nosso país.

Com Arlei Damo (2006) entendo que o futebol de espetáculo pode ser dividido em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os mediadores especializados são os profissionais que trabalham na espetacularização do futebol e produzem narrativas sobre os eventos futebolísticos. Eles podem ser profissionais da comunicação ou ex-atletas e ex-dirigentes que teriam a função de “explicar” os eventos para o público que, de alguma forma, não seria “apto” a lê-los sozinho. Esses mediadores, apesar de suas diferentes origens, são chamados, costumeiramente, de cronistas esportivos e são os principais atores do que se pode nomear de jornalismo esportivo ou de imprensa esportiva.

As narrativas construídas pelo jornalismo esportivo produzem significados diversos e ampliam o fenômeno futebolístico. Segundo as teorias literárias e culturais, as narrativas possuem centralidade na cultura. São as histórias que nos permitem entender as coisas e pensar no mundo e em nossas vidas como certa progressão lógica que leva a algum lugar (CULLER, 1999). As narrativas possuem a potencialidade de nos ensinar diferentes pontos de vista e de entender as posições dos outros. Ao mesmo tempo, as narrativas policiam autorizando ou desautorizando a construção de significados, por exemplo, sobre a masculinidade.

No primeiro domingo de exibição, a reportagem lembrou a acusação de 4 ex-jogadores – Henrique, Fernando, Eduardo e Cuca (atual treinador do Santos) – do Grêmio que em uma excursão à Europa, em 1987, mantiveram relações sexuais com uma menina de treze anos. O jornalista Cláudio Dienstimann que acompanhou a excursão reconheceu, passados mais de trinta anos, que, infelizmente, a cobertura não pensou no ponto de vista da menina agredida. Segundo ele, o foco da reportagem era ver os atletas em liberdade para retornarem ao Brasil. A reportagem lembrou que a época parte da torcida apoiou a atitude dos jogadores. Podemos ler esse apoio em um diálogo muito estreito entre clubismo e machismo, não necessariamente nesta ordem. Carmen Rial lembrou que a imprensa esportiva gaúcha fez o mesmo. Junto com Miriam Grossi ela publicou um texto na revista Mulherio em que mostrava algumas das impressões dos torcedores e da imprensa gaúcha naquela oportunidade. Acompanhando o retorno dos quatro agressores, elas afirmaram que a “crônica esportiva (…) conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vítimas de um ‘juiz nazista’ e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma ‘travessura’ inconsequente” (1987, p. 3). Em uma das falas, o jornalista Lauro Quadros tentou “ensinar” para o público o que poderia se imaginar ser certo consenso cultural da época (ou ainda estaria entre nós?):

(…) eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender, não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do Grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer (GROSSI; RIAL, 1987, p. 4).

Em 2020, o ex-jogador Caio Ribeiro, hoje comentarista esportivo, se autorizou a dar o “benefício da dúvida” a Robinho afirmando que apenas a justiça deveria julgá-lo. Aparentemente ele não se sentia confortável em criticar a conduta do jogador, naquele momento já condenado em primeira instância. Após acesso a novas reportagens o comentarista modificou sua percepção: “Na hora que eu vejo, ainda mais eu que tenho uma filha menina, a forma como ele se dirige à vítima, a forma baixa como ele fala do estado da menina… Cara, me caiu mal. Me deu dor de estômago”[3]. Curiosamente o reforço de seu posicionamento aparece na sua posição enquanto homem, pai de menina. A percepção de violência ainda aparece na relação entre homens. A lógica dessa justificativa que aproxima a agressão de um homem ao sofrimento de outro homem, pai de menina, não estabelece a plenitude da humanidade para as meninas ou mulheres. Se ele não fosse pai de uma menina, não seria possível criar empatia e condenar a violência contra mulheres?

Muito mais do que as opiniões sobre casos de violência extrema, o problema de nosso jormachismo esportivo está em suas ações cotidianas. Ele vai da absurda defesa do comportamento machista de um treinador como realizada por Maurício Saraiva:

Guto Ferreira gosta de mulher, é casado, não sei se tem filha, mas certamente não tem nada contra mulheres. (…). O mundo da bola ainda é assim. Muito homem junto, mulheres recém começando a ocupar a arquibancada e muitas ainda mais atentas ao bonitinho do que ao bom jogador. Também as mulheres estão na transição de gostar do futebol pelo futebol, capazes de ir ao futebol sem marido, amigo ou namorado. Então, todos em aprendizado. [4]

E também é alimentado pelas “brincadeiras” do Carlos Cereto que pergunta sobre novela para Ana Thaís Matos[5], o Peninha Bueno mandando a Eduarda Streb[6] voltar para a cozinha… Escondidas atrás de “piadas”, essas manifestações dão pouca margem para que a violência apareça. Para as ofendidas acaba sendo oportunizado apenas o lugar de mal humoradas. Nas redes sociais os torcedores cobram engajamento de jornalistas mulheres que “ousaram” reclamar do machismo em alguma oportunidade ao mesmo tempo em que o silêncio dos jornalistas homens não é colocado em questão.

Após classificar o Grêmio para final da Copa do Brasil nesse interminável 2020, Renato Gaúcho – machista quando perde “até mulher grávida faria gol na gente” – voltou a fazer uma manifestação machista, desta vez após uma vitória. Questionado sobre ter menos posse de bola que o adversário, Renato contou uma “historinha”:

Teve um cara que pegou uma mulher bonita e levou ela para jantar. Levou para jantar à luz de velas, conversou bastante. Saiu do restaurante, foi na boate e ficou até às 5 horas da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Aí, na boate, chegou um amigo meu, conversou com ela 15 minutos e levou ela para o motel. Entendeu? Se não entendeu outra hora eu explico. Meu amigo ganhou o jogo [7]

Para Cosme Rímoli, do R7, “Este é Renato Portaluppi, finalista da Copa do Brasil 2020…”[8]. Na conta do Instagram do Fox Sports Brasil a fala foi acompanhada de risos:

No Programa Redação Sportv, o apresentador Marcelo Barreto chamou a jornalista Renata Mendonça para tentar entender se a escolha das palavras de Renato foi boa ou ruim. Renata reforçou como a frase do treinador objetificava as mulheres ao definir que o objetivo dos homens seria apenas levá-las ao motel mostrando que a única importância da mulher seria satisfazer o homem, e pelo exemplo do treinador, sexualmente. Ela reforçou que não seria possível “inverter” a “piada” uma vez que os homens, em nossa cultura, não são entendidos como objetos para satisfação dos desejos das mulheres[9]. Ao mesmo tempo em que é bastante produtiva a participação das mulheres nessa discussão, essa metodologia acaba desconvocando os homens para o debate sobre o machismo. Um homem não seria qualificado para ver o machismo presente nesta manifestação?

A frase de Renato parece fazer tanto sentido dentro da lógica desse jormachismo esportivo que a conta do Instagram da Fox Sports Brasil já a replicou ao ilustrar a vitória de uma equipe com menor posse de bola.

Situações como essa mostram que esse machismo atravessa as narrativas do futebol de espetáculo no Brasil. Frases como a de Renato, Lauro Quadros, Caio Ribeiro, Carlos Cereto, Peninha Bueno e tantos outros não são atitudes individuais de sujeitos desajustados. Ao contrário, elas fazem sentido nessa péssima lógica machista da nossa cobertura esportiva.

Esse é mais um espaço de enfrentamento contra as desigualdades de nossa cultura. Pautar esse jormachismo esportivo é urgente. E ela é uma luta de todos os que militamos neste espaço como profissionais, pesquisadores e torcedores. Nós, homens, não temos o direito de terceirizar o protagonismo deste enfrentamento às mulheres. Precisamos nos posicionar ao lado delas nesta trincheira e não podemos abrir mão de agir quando situações como essa, infelizmente, se repetirem.


[1] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9166660/. Acesso em 23/01/2021, às 13h34.

[2] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9185792/. Acesso em 23/01/2021, às 16h44.

[3] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/caio-ribeiro-fala-sobre-o-caso-robinho-tem-que-pagar-como-qualquer-outra-pessoa.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 9h32.

[4] Disponível em: http://globoesporte.globo.com/rs/blogs/especial-blog/vida-real/post/guto-e-mulheres.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h22.

[5] Disponível em: https://www.lance.com.br/fora-de-campo/ana-thais-matos-incomoda-com-pergunta-machista-apresentador.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h13.

[6] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2018/04/27/peninha-pede-desculpas-apos-piada-machista-e-comentarista-chora-ao-lembrar.htm. Acesso em 24/01/2021, às 11h16.

[7] Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/renato-compara-posse-de-bola-a-pagar-jantar-e-nao-levar-mulher-ao-motel-31122020. Acesso em 24/01/2021, às 11h31.

[8] Ver nota anterior.

[9] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sportv/programas/redacao-sportv/video/renata-mendonca-sobre-fala-de-renato-nao-seria-nem-engracado-se-ele-fizesse-o-contrario-9143513.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 11h56.

Referências:

CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. São Paulo: Beca Produções, 1999.

DAMO, Arlei Sander. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.39-72.

GROSSI, Mirian; RIAL, Carmem. Os estupradores que viraram heróis. In: Mulherio. Fundação Carlos Chagas, outubro 1987, p.3-4.