O serviço de audiodescrição tem sido realidade durante algumas competições esportivas no país, de um ano para cá. Durante a Copa do Mundo Masculina, em 2022, cerimônias de abertura e encerramento e jogos puderam ser ouvidos em audiodescrição, na TV Globo. Já a operadora de TV paga Claro disponibilizou um canal, onde foi possível ouvir a audiodescrição por meio de um QR code. Mais recentemente, o Campeonato Paulista de Futebol também teve alguns jogos com este recurso.
Na TV Globo, a transmissão foi possível por meio da tecla SAP e, em muitas vezes, o áudio da narração de Galvão Bueno e o áudio do audiodescritor ficaram sobrepostos. No caso da transmissão da Claro, foi disponibilizado o canal 533. Por meio do QR code foi possível ouvir a audiodescrição em um aparelho auxiliar (celular, tablet e computador). Já no Campeonato Paulista, os jogos São Paulo x Corinthians, Palmeiras x Santos, as quartas de final, semifinais e finais tiveram o recurso de audiodescrição por meio do Youtube.
Ainda são poucos os estudos para avaliar a melhor maneira de se transmitir os jogos com acessibilidade. Nas entrevistas que tenho feito para minha tese de doutorado, há uma tendência de que as pessoas com deficiência visual prefiram o não uso da tecla SAP, devido à sobreposição de áudio. Por mais que nas duas outras opções aqui citadas, eles ouçam a audiodescrição em um meio e a narração tradicional em outro, minha população de pesquisa acredita que assim fica mais fácil ouvir a partida. Outro ponto destacado é que ouvir pela tecla SAP depende também de quem está junto no mesmo ambiente. Pessoas videntes nem sempre têm o entendimento da importância do recurso de audiodescrição e acham que este está atrapalhando. Com a audiodescrição transmitida por meio do celular, tablet ou computador, é possível usar um fone e continuar no mesmo ambiente, sem que os demais escutem a audiodescrição, facilitando assim, também, a sociabilidade.
É um erro pensarmos que o recurso de audiodescrição auxilia apenas pessoas com deficiência visual, pois ele é útil também para idosos, disléxicos, autistas, pessoas com déficit de atenção e pessoas com deficiência intelectual. A falta deste entendimento passa pela invisibilidade que as pessoas com deficiência têm na própria sociedade, apesar de políticas públicas recentes, principalmente após a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2008. Também é um equívoco pensar que somente a transmissão via rádio dá conta do mesmo nível de informação que uma pessoa vidente tem por meio da televisão.
Para evitarmos tal equívoco, creio que seja importante entendermos, de fato, o que é a audiodescrição. Para isto, recorremos à professora Flavia Mayer:
Em termos gerais, a audiodescrição constitui-se como uma atividade de interação entre videntes e não videntes com objetivo de contribuir para que pessoas com deficiência visual tenham um maior acesso às informações visuais oculares. Na atividade de audiodescrição, ocorre a descrição de detalhes visuais importantes como cenários, figurinos, indicação de tempo e espaço, movimentos, características físicas de pessoas/personagens e expressões faciais (MAYER, 2018, p. 16).
Sendo assim, trazendo para a realidade do futebol, vamos pensar num jogo da seleção na qual o jogador Neymar sofre uma falta. Informações como: ele parece com dor? Se sim, em que parte do corpo parece doer? Os demais jogadores parecem preocupados? Quais demais informações visuais aparecem na tela? – nem sempre são faladas pelos narradores de jogos transmitidos pela TV, não deixando a pessoa com deficiência visual no mesmo patamar de igualdade do vidente, em nível informacional. Ou seja, parte-se do pressuposto que o público está vendo a tela.
A ausência de informações visuais tão importantes faz do rádio um veículo de comunicação muito procurado pelas pessoas com deficiência visual. Segundo a Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, a relação deste público com o rádio chega a ser afetiva, mas, mesmo assim, são raros os programas voltados para este público[1]: “Num mundo que privilegia a imagem, um veículo voltado para o sentido da audição é inclusivo por sua própria natureza. No entanto, ainda é rara a programação de rádio que trate diretamente dos interesses e direitos das pessoas cegas e com baixa visão”. Podemos então concluir que as pessoas com deficiência visual se beneficiam da linguagem descritiva do rádio, mas isto não quer dizer que este veículo tenha conteúdo direcionado a este público.
O potencial do rádio como meio inclusivo é pouco explorado, ainda mais quando pensamos em seu acesso à população. Segundo Costa (2015), a popularidade do rádio acontece devido à dois fatores: capacidade do ser humano de escutar e interpretar as mensagens sonoras, independentemente do nível de alfabetização e a criação do transistor que possibilitou que os aparelhos de rádio fossem menores, mais leves e portáteis. Desta forma, pode ser levado para vários lugares, precisa somente de acesso a uma tomada ou a pilha e ainda é barato quando comparável a uma televisão ou um celular – sem levar em consideração ainda que é mais barato que um serviço de TV a cabo ou de internet.
Apesar de toda esta popularidade do rádio, em minha pesquisa de doutorado, 56 pessoas com deficiência visual, das cinco regiões do país, responderam a um formulário que teve como objetivo entender um pouco como o futebol afeta as pessoas com deficiência visual. Dentre várias descobertas, 57,1% respondeu preferir a televisão para assistir jogos, contradizendo a ideia de que a pessoa com deficiência visual só acompanha futebol pelo rádio. Dentre o público pesquisado, 57,1% precisa pedir informações sobre o que está acontecendo no momento da partida para amigos e familiares. Desta forma, podemos ver o quanto o direito à acessibilidade comunicacional está sendo infringido, direito este garantido por meio da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Além disso, já que existe público com deficiência visual que prefere a TV, é urgente que novas iniciativas sejam criadas para garantir a inclusão destes indivíduos.
Enquanto isso, nós, pesquisadores, precisamos também pesquisar e contribuir para que as pessoas com deficiência não tenham barreiras arquitetônicas, mobiliárias, tecnológicas, linguísticas e de acessibilidade comunicacional. Para nós, comunicólogos, cabe entender como as informações chegam (se chegam) e são decodificadas pelas pessoas com deficiência visual, afinal, é necessário a garantia de que elas tenham o mesmo nível informacional que nós, videntes.
O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte – LEME realiza, de 22 a 24 de agosto, o Seminário LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia. O evento contará com a presença de profissionais de mercado, como o jornalista Caco Barcellos (Globo), Marcelo Barreto (Sportv) e Fabi Alvim (Sportv). Dentre os pesquisadores que já confirmaram presença, temos nomes como: Ronaldo Helal (UERJ), Lívia Magalhães (UFF), Adriano Freixo – (UFF), Renato Coutinho – (UFF), Rosana da Câmara (UFF), Nicolás Cabrera (UERJ/CONICET). O seminário conta ainda com a participação de Luiz Cláudio do Carmo, o Claudinho, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas). As palestras acontecerão no horário da noite e as discussões em GTs temáticos no decorrer dos dias. Para isto, o Laboratório receberá resumos expandidos de 5 de maio a 30 de junho.
O Seminário Internacional LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia busca promover discussões de cunho acadêmico e transdisciplinar, versando sobre a relação entre democracia e esporte. São bem-vindos trabalhos que perpassem pelo contexto histórico como: uso da Seleção Brasileira na propaganda política em regimes autoritários, apropriação da camisa da seleção por grupos de direita e extrema direita recentemente e ainda tentativas de resgate e preservação da democracia no país. Vale lembrar que são diversos os exemplos de práticas de liberdade promovidos por atletas, jornalistas, movimentos de torcidas e tantos outros atores sociais vinculados ao esporte, configurando-se, assim, como espaço de manifestação popular de reivindicação de direitos das mulheres, da população negra, LGBTQIA+ e tantas outras lutas cotidianas.
GRUPOS DE TRABALHO
GT1- Esporte, cidade e identidades
O esporte desempenha um papel fundamental tanto na construção quanto na afirmação de uma pluralidade de identidades que atuam dentro e fora de fronteiras territoriais. Essa relação com a territorialidade confirma a necessidade de compreensão do esporte como prática que se entrecruza com o espaço urbano, estabelecendo com ele uma trama de relações e significados que põe em movimento o jogo das identidades em um contexto de tensionamentos entre o local e o global.
Debatedor(a): Édison Gastaldo (CEP/Forte Duque de Caxias)
GT2- Mídia, esporte e representação
A mídia, gradualmente, se consolidou como um importante veículo mediador entre os esportes e o público, participando não apenas da circulação, mas também da produção de um vasto imaginário construído em diálogo com uma série de representações presentes dentro e fora do território esportivo. As representações produzidas são um material cuja análise pode nos possibilitar o acesso às tensões e contradições dos valores e discursos que estão em jogo.
Debatedor(a): Ana Carolina Vimieiro (UFMG)
GT3 – Estádios, arenas e os modos de torcer
A diversidade dos modos de torcer fomenta variadas possibilidade de construção identitária de torcedores e torcedoras nas arquibancadas. Essa pluralidade torna o ato de torcer um fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, e que faz dele um lócus de análise das reações, adaptações e resistência às mudanças ocorridas no cenário futebolístico, sobretudo em diálogo com as transformações geradas pelo intenso processo de mercantilização e midiatização dos eventos esportivos.
Debatedor(a): Antonio Jorge Soares (UFRJ)
SOBRE OS TRABALHOS
Devem ter no mínimo 7.000 e no máximo 12.000 caracteres, necessitam estar no template do evento. Devem ser enviados para o email: gramadosdademocracia@gmail.com . Serão aceitos para análise resumos em Português ou Espanhol e que versem sobre um dos GTs. Não será possível o envio de um mesmo resumo ou de resumos diferentes para mais de um GT. Serão aceitos textos de estudantes de graduação, pós-graduação e de pesquisadores. Um mesmo trabalho poderá ser escrito por até duas pessoas. Não será necessário o envio posterior de trabalhos completos. Há a possibilidade de publicação de anais.
AS APRESENTAÇÕES
Vão ocorrer de modo presencial, na UERJ- Campus Maracanã, no décimo andar. É necessário que pelo menos um dos autores esteja presente.
TAXA DE INSCRIÇÕES
O pagamento será realizado, somente após a divulgação da lista de aprovados e deverá ser feita diretamente para uma instituição a ser divulgada. O pagamento deve ser de no mínimo R$10 para estudantes de graduação e R$20 reais para graduados, pós-graduandos e pesquisadores. Sugerimos que, se possível, valores a mais sejam depositados. O comprovante de depósito deve ser enviado para o email gramadosdademocracia@gmail.com. Não será cobrada taxa de inscrição para ouvintes.
Em entrevista concedida ao professor assistente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Marcio Telles, Gumbrecht falou sobre sua paixão pelos esportes, o papel da presença na experiência do torcedor, as diferenças entre assistir ao esporte fisicamente no estádio e de maneira mediada, dentre outros temas. A entrevista completa foi publicada na revista Interin e foi gentilmente autorizada a publicação no blog no LEME.
O fenômeno dos haters nas redes sociais me fazem lembrar do futebol, afinal desde muito as arquibancadas e, até mesmo, as narrativas da imprensa são uma espécie de escola de formação de gente que destila opiniões raivosas, sem o mínimo pudor. É certo que esse sentimento é parte das nossas vidas e, também, é parte do futebol, afinal, em um espetáculo no qual as afetividades são constantemente acionadas, não podíamos imaginar que apenas o discurso do amor pudesse servir de alimento para o universo futebolístico. Há muito espaço para o seu reverso. A socióloga Janet Lever não deixou de reconhecer que o futebol é um poderoso produtor de símbolos compartilhados e, por isso, os “pontos focais de hostilidade também unem as pessoas” (1983, p. 157).
Olhando à primeira vista, o futebol poderia corroborar as constantes visões negativas acerca da humanidade sendo referencial as ideias que o filósofo Thomas Hobbes defendeu em seu Leviatã, e que partiam da hipótese de que o ser humano é naturalmente inclinado para o mal. Devido a essa característica, para Hobbes faz-se necessária a intervenção de leis rígidas para que o ser humano consiga sair de seu estado natural e adentre no estado civil.
De acordo com Rutger Bregman (2021), essa hipótese poderia ser denominada de “teoria do verniz”[1] o que implica dizer que as leis socialmente compartilhadas e estipuladas por alguma instância de poder – como por exemplo o Estado – serviriam como um mecanismo de controle da nossa tendência à maldade, à traição e diversas atitudes condenáveis. Mas esses mecanismos de contenção formariam uma camada de verniz fina que com certa facilidade pode ser descascada, trazendo à cena nossa “verdadeira natureza”.
O ambiente futebolístico é um daqueles em que essa camada de verniz se mostra por vezes frágil. Assim, como outros ambientes de trabalho, o mundo do futebol espetáculo está longe de ser um lugar acolhedor. A competitividade é grande e os interesses financeiros pautam grande parte das ações. A vaidade é imensa e as emoções são exaltadas, o que, frequentemente, deriva em variadas manifestações de violência. Em quais outros ambientes de trabalho, os profissionais são alvo de agressões verbais constantes no momento mesmo em que desempenham suas funções? E tudo isso ocorre de modo explícito e, muitas vezes, legitimado, por seus próprios colegas. E legitimado por nós torcedores.
No futebol, podemos ouvir afirmativas do tipo “a arbitragem roubou o jogo”, “tal jogador é limitado e não tem condições de vestir tal camisa”, “esse técnico é um burro” ou “esse técnico precisa ser demitido”. Frases desse tipo são ditas pela torcida, mas também por jornalistas que expressam sua opinião em veículos de comunicação massivos. E isso tudo é feito tendo como motivação, muitas vezes, emoções de momento que perdem a força com o tempo, mas podem deixar de herança estragos em carreiras ou mesmo na vida psíquica de alguém.
Esse ambiente hostil poderia ser diferente?
A série Ted Lasso[2] nos faz refletir sobre essa possibilidade.
Fonte: Beyond Games. biz
Nos últimos cinco anos, são diversas as produções seriadas – documentais ou ficcionais – que têm o esporte como tema. Nessa listagem grande e variada, Ted Lasso se destaca pelo humor simples e porque de modo despretensioso nos mostra que a convivência humana pode ser boa, mesmo em meio a um mundo tão competitivo no qual somos estimulados a desconfiar do outro, a menosprezá-lo e, frequentemente, tratá-lo como potencial inimigo.
Ted Lasso nos faz pensar sobre a possibilidade de um “novo realismo”, proposta trazida por Rutger Bregman em seu instigante livro Humanidade. Uma história otimista do homem.
Quem já não foi taxado de romântico ou mesmo iludido pelo simples fato de ter demonstrado algum tipo de fé na humanidade? Quantas vezes já não ouvimos – ou mesmo falamos – que na vida é preciso ter sempre cuidado, afinal somos cercados por pessoas que estão prontas para nos apunhalarem pelas costas. Geralmente essas afirmações são proferidas com profundo orgulho de quem se considera não uma pessoa pessimista, mas sim realista.
É absolutamente interessante o sentido que a palavra realismo adquiriu em nosso cotidiano. Ser realista significa basicamente compreender a natureza humana como essencialmente ruim. Bregman se pergunta: Por que não pensar o contrário? Por que ser realista implica olhar o mundo e as pessoas a partir de um viés negativo? O que chamamos de realismo, portanto, é uma interpretação possível, enviesada, e que está longe de corresponder a alguma verdade a respeito da nossa existência.
É verdade que não faltam exemplos do poder destrutivo que carregamos em nós mesmos. Guerras, violências cotidianas, a fome, a escravidão enfim, o “o horror, o horror” como gritou o personagem Kurts de Coração das trevas de Conrad, é uma das marca a breve história da espécie humana na terra.
Mas poderíamos listar evidências da nossa capacidade de ajudar quem precisa, de promovermos lutas pelo bem-estar coletivo, na possibilidade de sentirmos alegria no simples ato de olhar o dia nascendo e na nossa capacidade de inventarmos modos de estamos juntos.
O futebol, aliás, é uma dessas invenções
Rutger Bregman propõe que deveríamos construir um “novo realismo”, a partir de uma visão mais otimista sobre a humanidade. Exemplos não faltariam – e o autor elenca alguns – bastaria uma mudança de perspectiva em relação a narrativa construída acerca da nossa história.
O seriado Ted Lasso nos faz imaginar a viabilidade desse novo realismo.
Ted Lasso: um olhar otimista, mas não ingênuo
O personagem que dá nome a série nasceu, em 2013, de um comercial feito para promover a transmissão do campeonato inglês pela emissora americana NBC. Na campanha, o ator Jason Sudeikis interpreta um técnico de futebol americano que vai treinar o Richmond FC., um time da Premier League. O objetivo era brincar com características do futebol que provocam estranhamento no público americano como, por exemplo, o fato de o jogo terminar sem necessariamente ter um vencedor.
Em 2020, Ted Lasso – também interpretado por Jason Sudeikis – se transformou em protagonista de seriado homônimo. O mote da história é o mesmo da propaganda, o que representa um desafio e tanto, afinal não é nada fácil justificar a contratação de um técnico de futebol americano por um clube que disputa a Premier League, uma das mais importantes competições daquele futebol inventado pelos ingleses.
A solução narrativa encontrada soa como um tanto exagerada e um tanto melodramática ao recorrer a um tópos muito comum da ficção: a vingança. Mas nada é tão simples assim quando se trata da série Ted Lasso
Ted Lasso chega a Premiere League para treinar o modesto Richmond. Sua contratação foi parte dos planos da personagem Rebecca Welton que se tornou proprietária do clube como resultado da divisão de bens após um processo de divórcio. Por ter sido abandonada pelo marido que a troca por uma mulher mais jovem e publicamente sentir-se humilhada, Rebecca resolve vingar-se do ex-marido – e ex-dono do Richmond -, destruindo aquilo que ele mais amava. Para isso chama Ted Lasso, um treinador de futebol americano que havia ficado famoso após protagonizar a comemoração de uma vitória de seu time, com uma engraçada dança que viralizou na internet.
Você poderia pensar que dificilmente esse tipo de contratação seria possível, afinal de contas o futebol é um negócio e tratá-lo a partir de motivações pessoais, somente traria prejuízos financeiros. Mas prejuízo para quem? Rebecca Welton é milionária e sua fortuna não seria comprometida caso o Richmond, por exemplo, deixasse de existir. O mesmo poderíamos pensar em relação aos irmãos Avram e Joel Glazer que se tornaram proprietários do Manchester United ao herdarem o clube do pai, Malcom Glazer, falecido em 2014. A família Glazer deixaria de ser bilionária caso o Manchester United fechasse as portas?
O enredo de Ted Lasso, portanto, está longe de parecer impossível e até mesmo soa como uma provocação ao contexto esportivo contemporâneo. Afinal, a partir do momento em que um clube de futebol se torna propriedade de uma pessoa, são grandes os riscos dele ficar à mercê dos mandos e desmandos de seu dono ou sua dona. Os movimentos de resistência torcedora ao redor do mundo dão mostras do quanto torcedores sabem desse risco.
Sendo assim, com plenos poderes, Rebecca poderia fazer o que bem entendesse do Richmond, o que inclui insistir em seu plano de vingança. Mas Ted Lasso não um é seriado que reitera lugares comuns e nem os estereótipos da mulher abandonada e ressentida. Rebeca com o tempo se revela uma personagem complexa que vai ocupando seu espaço de protagonismo na série e no clube Richmond.
As mulheres mandam, mas quem joga são os homens e alguns chamam mais atenção fora do que dentro de campo como é o caso de Jamie Tartt. Habilidoso, vaidoso, arrogante, mulherengo e indisciplinado, o personagem é uma alusão – pouco disfarçada – a Cristiano Ronaldo e tantos outros jogadores-celebridade, figuras tão comuns no cenário atual do futebol. Como contraponto a Jamie, há o capitão Roy Kent. Dedicado aos treinamentos e aos jogos, Roy carrega um semblante austero e um temperamento forte, sendo temido e ao mesmo tempo respeitado pelos colegas. Mas esse protótipo de macheza frequenta um fã clube de novelas às escondidas, o que o ajuda a lidar com a necessidade de dar fim à carreira de jogador devido a problemas físicos.
E Ted Lasso?
Dono de uma simpatia que às vezes o torna inconveniente, o técnico é um homem atrapalhado, que não entende absolutamente nada de futebol inglês e que, antes de tudo, opta por tentar viver em harmonia com as pessoas, mesmo tendo motivos para agir de modo oposto. Quando Ted chega à Inglaterra é recebido com severas críticas da imprensa e xingamentos da torcida. Os jogadores o tratam com desprezo ou deboche, fazendo dele um motivo constante de piada. Mas para espanto de todos, mesmo sendo maltratado Ted Lasso não revida com a mesma moeda. E tão pouco oferece a outra face. O treinador tem plena consciência do tipo de tratamento que recebe, mas com o tempo sua relação com os profissionais do clube, com os atletas vai se modificando e transformando-se em amizade, como é o caso de Rebeca.
Pode parecer que estamos caminhando para mais uma história melodramática de redenção em que a mensagem principal a ser passada aos espectadores é a de que a vida é bela e que os conflitos, preconceitos e várias mazelas da vida são vencidos em prol do amor e da amizade. Mas não é bem assim que a série conduz sua narrativa. Embora o clube torne seu ambiente menos hostil, em grande medida, por causa da interferência da figura de Ted Lasso, o Richmond luta a duras penas para se manter na primeira divisão inglesa. As derrotas continuam a gerar preocupação e irritação na torcida, assim como continuam constantes os desafios de integrar, em um mesmo grupo, jogadores com histórias de vida e interesses tão díspares. Jogadores muitos dos quais vindos de fora da Inglaterra e alvos constantes de preconceito.
A série não oferece uma varinha de condão mágica capaz de mudar a realidade e nos fazer sentir algum tipo de catarse redentora ao final de cada episódio. Camaradagem não é um atributo que possamos entender como algo que seja natural ao personagem Ted Lasso. O comportamento de Ted é derivado de uma luta constante consigo mesmo, uma luta metaforizada no trabalho de preparar biscoitos para oferecer de cortesia aos colegas todas as manhãs.
Em Ted Lasso é evidente que o mundo está longe de ser perfeito, mas também está longe de ser uma ruína. Como já foi dito, o seriado Ted Lasso nos faz ver a viabilidade daquele “novo realismo” proposto por Rutger Bregman. E nesse sentido, não importa tanto descobrir se os seres humanos são essencialmente bons ou ruins.
Ted Lasso não nos dá essa resposta. A série apenas demonstra que é absolutamente possível construirmos formas de vidas comprometidas com a empatia. Esse compromisso não nos livrará da raiva ou das dores trazidas pela perda de um ente querido ou pela derrota de nossos clubes de coração. Esse compromisso não nos livrará do enfrentamento diário com nossos medos e traumas. Mas pode nos oferecer a oportunidade de entender que agir com empatia, solidariedade e optar pela alegria da coletividade também são ações absolutamente reais, verificáveis ao nosso redor e não somente ilusões.
Fonte da imagem: O Globo.
Talvez nesse aspecto resida parte dos motivos do sucesso de Ted Lasso junto ao público. Lançado na época da pandemia mundial de Covid, a série se transformou em um sucesso de público e de crítica especializada, chegando a ganhar o Emmy, em 2021 e 2022, de melhor série de comédia.
Em sites especializados e em resenhas críticas publicadas em jornais é comum lermos que uma das justificativas para o êxito de Ted Lasso é que a série nos trouxe leveza e humor em um momento tão delicado como foi o período pandêmico. O “novo realismo” de Ted Lasso fez sucesso.
Em sua terceira temporada, já lançada na metade do mês de março de 2023, a perspectiva positiva sobre a humanidade será colocada à prova, afinal a tomar pelo fim da 2ª temporada, estará em campo e fora dele, a inveja, a cobiça e a ingratidão.
Ted Lasso é uma série que nos faz refletir sobre profundas questões da nossa vida e o faz tendo o futebol como cenário e metáfora das nossas derrotas e vitórias diárias, sabendo sempre que amanhã o jogo continua.
Referências
BREGMAN, Rutger. Humanidade. Uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021
LEVER, Janet. A loucura do futebol. Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1983.
[1] Bregman afirma que a “teoria do verniz” foi assim denominada pelo biólogo holandês Frans de Waal (p.21)
[2]Ted Lasso é uma série estadunidense original da Apple TV, criada em 2020 por Bill Lawrence e Jason Sudeikis.
O dia 3 de março é celebrado pela torcida do Flamengo como o Natal Rubro-Negro, pois é aniversário daquele que é o maior de todos os tempos da História do clube: Zico. É como se existisse um Flamengo antes dele e outro após. Referência fundamental do nosso futebol a partir de meados da década de 1970 até o final da década de 1980, a idolatria a Zico é constantemente celebrada pela torcida do Flamengo em imagens do atleta em bandeiras, camisas e nos coros de “Zico é nosso rei”, mesmo após mais de 33 anos de sua última partida oficial no Brasil.
Uma curiosidade em sua biografia nos chama a atenção. É uma história que fala da vitória através do trabalho e de uma sucessão de obstáculos que ele teve que superar. O esforço como elemento fundamental para se alcançar êxito costuma ser relegado a um plano secundário nos discursos dos cronistas brasileiros dos universos das artes e do futebol. No caso específico do futebol, chega a ser até uma crítica contundente chamar um jogador de “esforçado”. Esta é uma maneira de se dizer que ele não tem talento, porém se esforça. A forma oposta seria o talento puro, inato, que não precisaria de treino ou esforço para ser aprimorado, como se não fosse possível ser talentoso e esforçado ao mesmo tempo. A biografia de Zico fala de uma realidade calcada primordialmente no predomínio do esforço e da determinação como atributos fundamentais para se alcançar êxito e, assim, refuta uma suposta ideologia de sucesso cultuada no imaginário brasileiro.
Fonte da imagem: Museu do Futebol.
É sabido que a ascensão de Zico foi sempre com muitos obstáculos no caminho, a começar pelo seu corpo franzino que quase o impediu de, aos 13 anos, fazer um teste no Flamengo. Por isso, logo após se firmar na escolinha, ele se submeteu a um árduo tratamento para reforçar a musculatura
Esse procedimento a que se submeteu ainda bem jovem fez com que Zico ficasse conhecido no início da carreira como “craque de laboratório”. Era como se de um planejamento “científico”, com a ajuda de médicos, nutricionistas e modernas técnicas e aparelhos de educação física, surgisse uma grande estrela do futebol. Era o racional, o trabalho, unindo-se ao talento. No entanto, apesar das biografias enfatizarem positivamente a dedicação de Zico a este trabalho, à época a alcunha “craque de laboratório” era utilizada de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, que fugiria das características “artísticas” do nosso futebol. Essa foi uma das primeiras provações que Zico teve que superar e evidencia que sua idolatria surge ancorada também em características de sua personalidade.
Junito de Souza Brandão em seu livro clássico Mitologia Grega fala de “honorabilidade pessoal”, “excelência” e “superioridade em relação aos outros mortais” como virtudes inerentes à condição do herói. A “superioridade” de Zico sempre ficou evidente na forma com que enfrentou os desafios e os obstáculos da vida tanto quanto em seu talento extraordinário para o futebol. Nesse sentido, a narrativa em torno de Zico enquadra-se no rol dos arquétipos universais dos heróis. Ela nos mostra que não basta o ato heroico em si, de forma isolada — no caso, as conquistas e os gols no futebol. O herói precisa preencher outros requisitos — tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo — para se firmar no posto. E Zico sempre os preencheu com bastante eficácia.
Fonte da imagem: Mundo Rubro Negro
É comum escutar que o Brasil não tem memória e esquece seus ídolos. Mas a idolatria a Zico e os festejos pelo seu aniversário nos mostram que a memória de Zico segue firme no universo da torcida do Flamengo. Não saberia dizer se isso seria uma exceção à suposta falta de memória do país, mas ouso afirmar que é Zico quem sempre foi exceção na união emblemática e necessária de talento e profissionalismo.
(Artigo originalmente publicado em 03 de março de 2023, no jornal O Globo.
A Seleção Francesa Masculina de Futebol é muito conhecida por suas atuações dentro de campo, porém sua popularidade alcança questões extracampo. A Seleção, para além de suas vitórias e histórico, é muito conhecida também pelas contradições no tratamento a seus jogadores e o que eles representam, muitas vezes conflitando com os posicionamentos da população e dos governantes do país. Posteriormente à não classificação nas edições de 1990 e 1994, a equipe transformou-se em um reflexo da questão migratória vivida há séculos pela por essa nação europeia, modificando também seu desempenho, disputado desde então três finais do campeonato e triunfado por duas vezes, em 1998 e 2018.
No entanto, o que tais vitórias representam para a sociedade e para a política do país é uma longa discussão, para a qual o presente artigo busca contribuir por meio da problematização do caso do atacante Karim Benzema, atual vencedor da Bola de Ouro (como melhor jogador da temporada) e emblemático das questões contemporâneas de imigração e identidade nacional francesa.
Fonte: Placar
Sem uma definição consensual jurídica no âmbito internacional, migração, segundo a Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas, pode ser entendida pela designação de qualquer pessoa que deixa seu lugar de residência habitual a fim de se estabelecer temporária ou definitivamente em outra localidade, atravessando fronteiras internacionais ou não e por razões diversas.
A França possui cerca de 68 milhões de habitantes, sendo por volta de 8,5 milhões migrantes internacionais (Migration Data Portal, 2020). Ao analisar as ondas migratórias ocorridas no país, é possível elencar a pobreza e as disparidades econômicas entre os Estados europeus, a descolonização e a globalização, a partir dos anos 80, como as principais causas para a migração.
O fluxo de imigrantes possui origem em diversos países, principalmente europeus e africanos, construindo, assim, a população multinacional existente atualmente na França. Contudo, o que se observa não é uma exaltação dessa multiculturalidade, visto que não há grande identificaçãoentre os franceses com os valores e costumes que passaram a compor significativamente a população, como, por exemplo, elementos muçulmanos. Outro aspecto observado refere-se ao tratamento de indivíduos nascidos em território francês como estrangeiros pelo fato de serem descendentes de imigrantes, complexificando ainda mais esta questão.
No tocante à relação entre a migração e o esporte, existe o esportista imigrante que representa a imagem de sucesso, como o ex-jogador de futebol e técnico Zinedine Zidane, e o imigrante que representa esportistas nas associações da classe trabalhadora da França, que compreende grupos de refugiados e imigrantes de ex-colônias francesas. A migração argelina é um exemplo que confere um melhor entendimento para o recorte aqui pretendido, já iniciada enquanto o país ainda era colônia francesa quando os trabalhadores nacionais eram empregados na metrópole.
Com o passar das décadas, se tornou um dos principais fluxos migratórios em direção à França, mantendo preservados seus hábitos e costumes identitários. Entretanto, apesar de serem vistos como fonte de mão de obra, ao ajudarem o país no restabelecimento pós-Segunda Guerra Mundial, os imigrantes passaram a ser enxergados, de forma negativa, como uma comunidade numerosa de estrangeiros. A partir da década de 1970, a lei francesa para imigração torna-se mais restrita e as relações com o Estado argelino oscilam, aproximando ou distanciando-os, de acordo com variantes como o terrorismo e crises econômicas. Em resumo, os argelinos e outros grupos estrangeiros que vivem na França hoje ocupam lugar à margem na sociedade francesa.
Assim, a imigração argelina representa uma parte da história francesa e uma parcela importante da sociedade, não somente em termos econômicos, mas políticos e culturais. Entretanto, a questão migratória ainda resulta em condições discriminatórias para muitas dessas populações, mesmo que elas representem um componente essencial para o desenvolvimento do Estado francês.
Importante citar que o esporte, em sua vertente profissional, é afetado pelo movimento migratório, uma vez que diversos clubes, principalmente aqueles sediados na Europa, atuam de modo análogo à divisão mundial do trabalho na medida em que jogadores são descobertos em países africanos e latinoamericanos como “jovens talentos” e são levados a esses times europeus. Cabe salientar, em torno dessa problemática, a relevância que os estrangeiros possuem para o esporte francês, principalmente para a Seleção Masculina de Futebol, mas que, ainda assim, estão sujeitos a uma discriminação política e social.
De acordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, a identidade se caracteriza pelo seu processo fluído de construção, portanto não é fixa nem imutável, sendo passível de transformações ao longo do tempo. Dessa forma, tanto identidade quanto pertencimento são conceitos revogáveis uma vez que estão ligados aos indivíduos e suas trajetórias. Importante frisar também que, ao longo da história, esses conceitos também foram motivo de disputa ao serem percebidos como “ameaçados” por um inimigo construído. A partir do surgimento do Estado-Nação e do conceito de soberania, surge a ideia de identidade nacional, em que a identidade individual passa a ser influenciada e sobreposta por uma ideia de identidade coletiva coesa, que se define como uma resposta à instabilidade do pertencimento. A ideia de uma identidade nacional não é algo natural ao indivíduo, mas sim desenvolvido pelo aparato moderno do Estado como uma tarefa que estimula seus membros a agir pela manutenção dessa identidade coletiva. Dessa forma, a identidade nacional é um fenômeno de contínua renovação, por meio do qual o indivíduo escolhe ativa e diariamente ser parte de um grupo nacional.
Stuart Hall (2006) entende que a cultura nacional é um modo de construir uma narrativa que influencia e organiza as ações e a concepção sobre o próprio indivíduo, atuando sobre a sociedade como um foco de identificação e um sistema de representações culturais. Dessa forma, o sentimento de pertencimento e identificação pela nação ocorre a partir da transmissão desse discurso para novas gerações e como essas novas gerações atribuem sentido a ele. Entretanto, a ideia de unificação da identidade cultural através da cultura nacional está sujeita a questionamentos, sobretudo pelo fato de que a maioria das nações têm culturas diferentes oriundas dos fluxos migratórios e da troca cultural entre povos.
A despeito de unificada politicamente, uma sociedade pode ser composta por diferentes grupos étnicos, e, portanto, a cultura dita como nacional não consegue atingir a todos. Além disso, o fenômeno da globalização tem como consequência a geração de um conflito entre a permanência das identidades nacionais e a absorção de novos hábitos, valores e elementos culturais devido à diminuição das fronteiras físicas e temporais que aumentam exponencialmente o nível de influência entre diferentes culturas. Portanto, é possível observar um declínio das identidades nacionais em novas identidades híbridas.
O futebol facilmente pode ser observado como um fenômeno afetado pela globalização, descrito como o esporte mais popular do mundo e que mobiliza diversos sentimentos, inclusive o de pertencimento. No âmbito internacional, o sentimento de pertencer pode ser observado, principalmente, pelas seleções nacionais como o mais alto grau de representação patriótica dentro do esporte. A disputa por campeonatos internacionais como a Copa do Mundo ilustra o poder de coesão do futebol quando une diferentes pessoas a torcer, unicamente, pelo seu país no torneio. Como grande fenômeno social que é, o esporte está sujeito aos impactos das transformações que sociedades ao redor do globo enfrentam, como dito anteriormente, tais como os movimentos migratórios ocorridos no decorrer da história da humanidade.
O papel outrora interpretado pela França de potência imperialista a torna uma comunidade de destino preferencial para milhões de migrantes, seja por vínculos históricos ou linguísticos. Os impactos das imigrações vivenciadas pela França em sua seleção nacional se confundem com o próprio começo da jornada desse país na Copa do Mundo, tendo em vista a crescente presença de jogadores de ascendência, em sua maioria, árabe e africana. “Black, blanc, beur” (Negros, Brancos e Árabes) é a definição dada à geração de campeões do mundo de 1998 e é um dos reflexos da forte miscigenação presente na sociedade francesa, sendo possível entender a Seleção como um retrato da nação.
Esse fato resulta em uma discussão dentro do país a respeito do impacto migratório na ideia de identidade nacional. A França é um dos países do mundo com maior porcentagem de população imigrante e descendente, o que faz com que a identidade francesa, ao longo dos anos, passe a contemplar diferentes origens, cores, etnias e religiões para além das originárias céltica e romana.
Fonte: Trivela
A fim de entender as mudanças no futebol francês vale mais uma vez destacar a ligação entre as ex-colônias francesas e sua antiga metrópole, uma vez que essa troca resultou em modificações sobre o que tradicionalmente se associa ao “ser francês” . O ponto central dessa discussão gira em torno do conceito de identidade nacional e da nacionalidade, pois o futebol, bem como o esporte em geral, pode ser considerado um elemento chave para compreender o sentimento de pertencimento nacional dos imigrantes e seus descendentes na França e no mundo.
Embora o esporte desempenhe uma função de coesão social e pertencimento, vale destacar que também é um reflexo das contradições existentes em uma sociedade. No caso do futebol francês, a Seleção é frequentemente alvo de ataques de cunho racista e xenofóbico, falas essas que podem ser representadas, por exemplo, pelo discurso do político da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, que afirmou que a seleção campeã de 1998 era “artificial” e que não refletia a “verdadeira” identidade nacional francesa. Entende-se, assim, que a fala do político não consta como uma opinião aleatória e descolada da realidade francesa, mas, sim, como uma dificuldade presente em tal sociedade de assimilar, como parte da identidade nacional, as variadas culturas, etnias, histórias e religiões presentes na França como parte de uma identidade nacional.
O autor Stuart Hall (2006) compreende que a identidade nacional é, muitas vezes, baseada na concepção de um povo originário, conferindo uma ideia de imutabilidade e homogeneidade ao desenvolvimento nacional, contudo essa ideia é, para o autor, um mito fundacional.
A chegada constante de imigrantes ao país traz consigo novos elementos culturais, étnicos e históricos a serem adicionados à realidade francesa, inclusive no seu futebol, expresso na sua Seleção que conta com uma face multicultural devido ao seu grupo miscigenado. Em 2018, muitos jogadores possuíam origens em antigas colônias francesas; no entanto, nota-se uma certa resistência de parte da população em aceitar uma identidade multicultural francesa, não apenas no futebol como também em outros âmbitos. Um grande exemplo disso é o relacionamento com o islamismo que, apesar de ser a segunda religião mais praticada em solo francês, não possui o status de um elemento cultural “tipicamente francês”.
Fonte: Extra
Desse modo, nota-se que, devido aos embates existentes nas questões culturais e étnicas e ao seu respectivo relacionamento complexo com a sociedade, a própria seleção francesa se constitui em um objeto político. Quando detentora de campanhas vitoriosas, é instrumentalizada como o exemplo de sucesso de um país culturalmente diverso e integrado, mas, quando seus resultados em campo são negativos, é apontada como uma falha na representação de sua comunidade nacional, atribuindo seus erros à presença da diversidade.
Como dito anteriormente, a opinião pública a respeito da seleção pode ser entendida como um ciclo de “vaivéns”, que transitam entre a identificação nacional com os bleus e o incômodo com o seu caráter multiétnico e multicultural. Um dos exemplos desses atritos é evidenciado, sobretudo, na exclusão de Karim Benzema da equipe nacional. Descendente de argelinos e comumente envolvido em polêmicas, o jogador sugere, em uma entrevista concedida ao jornal espanhol Marca, que sua exclusão ocorreu devido a existência de um lobby racista, embora a alegação oficial da Federação Francesa de Futebol seja o seu suposto envolvimento em um esquema de chantagem e extorsão.
Karim Mostafa Benzema é nascido e criado em Terraillon, na comuna de Bron, subúrbio de Lyon. Fez sua estreia como profissional em 2005 no time de sua cidade natal, onde permaneceu por cinco anos. Desde o início teve ótimas performances na Liga dos Campeões da Europa e nos jogos da primeira divisão do futebol francês, tornando-se rapidamente artilheiro e um dos jogadores mais bem pagos do país. Em 2009, Benzema foi vendido ao Real Madrid e virou coadjuvante no clube espanhol, apesar da boa relação com os companheiros.
A partir de sua ida para o time espanhol, o jogador passou a se envolver em polêmicas extracampo. Uma delas envolve a questão de que Benzema não canta a Marselhesa, hino nacional francês, em protesto à xenofobia presente em alguns de seus versos, postura essa que incomoda profundamente o país.
Além de não cantar o hino, o jogador causou fúria na extrema direita francesa ao realizar um gesto ambíguo durante um clássico entre Real Madrid e Barcelona. Antes do jogo, que estava sendo realizado dias depois do atentado terrorista em Paris no ano de 2015, o hino francês tocou no estádio e o atacante foi visto cuspindo no chão após a execução. Esse gesto foi interpretado por alguns como uma forma de desprezo pelo país.
Outra polêmica envolve a sua exclusão da seleção francesa mencionada anteriormente. Benzema justificou sua ausência na Eurocopa de 2016 como decorrência das “pressões” que o técnico Didier Deschamps teria sofrido de uma “parte racista da França”. O comentário foi muito malvisto, uma vez que o afastamento ocorreu devido ao seu envolvimento no caso de seu ex-companheiro Mathieu Valbuena. Na ocasião, Benzema foi acusado de extorsão e chantagem para não divulgar um vídeo com conteúdo erótico do meia, e a investigação fez com que ele ficasse suspenso até o encerramento do caso. O atacante regressaria à seleção no ano de 2020, mas, mesmo com pedidos de seu retorno vindo de figuras importantes como Zidane e Larqué, sua relação com a sociedade francesa é complexa.
Karim Benzema é produto de muitas histórias. Nunca foi um queridinho do país, uma vez que jamais se submeteu ao “comportamento francês”: é muçulmano praticante, não bebe álcool, observa obedientemente o Ramadã. Além disso, é introvertido, não costuma dar entrevistas e sempre viveu muito afastado do grande público francês. O jogador crescido na periferia de Lyon é o retrato de como a França ainda não sabe como lidar com sua população composta por imigrantes e seus descendentes que redesenham a identidade cultural do país.
Referências:
BAUMAN, Zygmunt.Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi.Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2005.
DE ANDRADE, Rodrigo C. Non seulement les bleus: a seleção francesa de futebol, o conceito de identidade nacional e seus impactos na política sobre imigração de Emmanuel Macron.Portal de Trabalhos Acadêmicos, v. 5, n.2, 2018.
GIULIANOTTI, Richard. O Esporte do século XX: futebol, classe e nação. In: Sociologia do Futebol.Nova Alexandria, 2002. Cap 2.
HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. A Identidade Cultural na pós-modernidade, v.3, 2006.
OLIVA, Anderson Ribeiro. Identidades em campo: discursos sobre a atuação de jogadores interculturais de origem africana e antilhana na seleção francesa de futebol. Revista de História (São Paulo), p. 395-425, 2015.
Neste mês de novembro retornei aos eventos acadêmicos presenciais. Passei três dias em Belo Horizonte, no IV Simpósio Internacional Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer e do III Futebol nas gerais. Foi a primeira vez desde outubro de 2019 que participei de um evento presencialmente. Uma curiosidade desimportante, naquele outubro, de 2019, mais precisamente no dia 24, fiz uma fala presencial no Leme, ali na UERJ, ao lado do Maracanã, onde estive um dia antes quando o meu Grêmio tomou um sonoro 5 a 0 do Flamengo.
Procurem as fotos do encontro nos canais do Leme e vejam como eu estava vestido. Voltando ao assunto verdadeiro do texto, entre o evento da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), na UFF, em Niterói, e o evento organizado pelo Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), na UFMG, por culpa da Covid-19 (ampliada pela estupidez negacionista que nos cerca) “estive” em congressos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Florianópolis e até em Montevidéu, todos eles sentando na mesma cadeira em meu escritório. Neste intervalo, porém, o que efetivamente revolucionou minha vida foi a chegada do meu filho Martin, na metade de 2021.
Fonte: Acervo pessoal.
Desde sua chegada, os três dias em BH foram os primeiros que fiquei inteiros longe dele. Pode parecer excessivamente romântico ou piegas, mas a alegria de reencontrar grandes amigas e amigos contrastou com um sentimento de falta que não conhecia até então.
Para a sequência deste texto, em alguma medida, quero falar sobre isso. Sobre diferentes paternidades que circulam no dispositivo pedagógico do futebol e que constituem conteúdos do currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Narrarei mais três episódios envolvendo homens e suas masculinidades e paternidades. Durante o Simpósio, em Belo Horizonte, um participante/torcedor, integrante de torcida organizada, afirmou que suas filhas torciam para o rival e odiavam o seu clube. Ele relatou, ao ser questionado pela filha, sem titubeio, que amava mais o time do que a própria filha.
Não satisfeito ainda ampliou seu relato informando que foi conhecer a filha somente em seu quarto dia de vida já que ela nasceu em dia de jogo e ele ainda ficou preso por três dias por ter se envolvido em uma briga de sua torcida. Além da naturalidade com que o relato foi feito chamou minha atenção como ele foi acompanhado de risos, não de deboche, mas de aprovação, por parte significativa da plateia.
Saindo do simpósio e acompanhando as notícias da Copa do Catar, esse fatídico evento que me obrigou a terminar o ano futebolístico que realmente importa – o do Grêmio – no início de novembro, duas delas me chamaram a atenção. Quatro dias antes da estreia, o menino Benício, de quatro anos, gritou pelo pai, Lucas Paquetá. Distantes desde a concentração da seleção brasileira, na Itália, o menino chorou pelo pai que subiu as arquibancadas para acudir o menino.
Ao mesmo tempo que a chamada do Instagram no GE falava do “momento fofura”, o comentarista esportivo João Paulo Cappellanes, da Rádio Bandeirantes, criticou o episódio no Twitter: “Cara, não quero ser chato, mas será que os jogadores não conseguem ficar 30 dias totalmente focados e longe da família?! 30 dias não vai [sic] tirar pedaço de ninguém, né?! Porra?”… Pedaço talvez não tire, mas se eu tive dificuldades em três dias, me parece que em trinta me atrapalharia bastante.
Mas acho que a pergunta mais pertinente deveria ser: precisa? É necessário ficar trinta dias longe da família? Um jogador de futebol não pode ser pai? A paternidade dificulta o desempenho esportivo do jogador? É isso que pode nos tirar o hexa? O eterno ídolo, estátua e dublê de treinador do Grêmio, Renato Portaluppi já havia justificado a antecipação de uma concentração dizendo que os jogadores tinham filhos pequenos que acordam durante a noite e atrapalham o sono dos atletas. A fala não sofreu questionamentos durante a coletiva de imprensa ou em repercussões no meio da imprensa esportiva.
Me parece bastante curioso como é fácil entender que a demanda de um filho, e que compete a qualquer adulto funcional, atrapalha um jogador. Sim, filho demanda, sim, filho atrapalha[1], sim, filho é responsabilidade dos adultos responsáveis por seus cuidados. Em 2018, seis dos onze titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia cresceram distantes do pai biológico[2]. Será que não é isso que atrapalha? Em agosto deste ano já tínhamos mais de cem mil crianças nascidas em 2022 no Brasil registradas sem o nome do pai[3]. Será que não é isso que atrapalha?
O último episódio escolhido para este texto envolve o principal destaque do jogo de estreia da Copa do Catar, entre a seleção local e o Equador. Em 2016, Enner Valencia, atacante que marcou os dois gols da equipe sul-americana, fingiu lesão para sair do estádio e não ser preso pela falta de pagamento de pensão para sua filha. A polícia não conseguiu prender o jogador por ele ter saído de ambulância direto para o hospital. Neste intervalo, seus advogados conseguiram reverter a ordem de prisão e o jogador permaneceu em liberdade. Existe uma troca de acusações dele com a mãe da criança, mas me pareceu bastante curioso o tom anedótico apresentado nas reportagens sobre o episódio. Não consegui perceber um esforço jornalístico para buscar verificar se se tratava de caso isolado ou se a relação de atletas com filhos de relacionamentos anteriores e o pagamento de pensão pode ser entendido como um problema com alguma regularidade.
Nos três episódios narrados consigo perceber uma naturalização da desresponsabilização paterna pelo cuidado de suas filhas ou de seus filhos. O riso de meus colegas de simpósio, o questionamento sobre a necessidade de acudir o filho associado ao conceito de que filho atrapalha, mais a “malandragem” para fugir da cobrança do pagamento de pensão são atravessados pelas disputas de gênero que tenho encontrado ao longo dos anos nas pedagogias do futebol e do torcer. Olhando em movimento podemos ver tímidos passos em busca de uma diminuição da desigualdade entre os gêneros nesse espaço, mas quando olhamos o cenário congelado, como uma fotografia, ele ainda é muito marcado por comportamentos que reforçam as diferenças e ampliam as desigualdades de gênero.
Infelizmente, os conteúdos que compõem essa pedagogia seguem sendo muito difundidos em nossa cultura. O futebol não produz uma cultura exclusiva. Quando se naturaliza a ausência paterna no futebol, também se naturaliza essa ausência em outros espaços. É preciso que nós, homens, saibamos que não somos cúmplices somente quando rimos de um desses episódios, mas que esses episódios nos beneficiam a todos. Eu posso ser considerado um bom pai apenas por ter sentido saudades do meu filho.
Lucas Paquetá, além de criticado, foi exaltado por ter abraçado seu filho. Se não enfrentarmos essas desigualdades ampliaremos nossos privilégios de gênero. Não me parece a melhor escolha se pensarmos em uma sociedade democrática e que valoriza os direitos humanos. Talvez criticar a falta de direitos humanos no Catar seja mais fácil do que reconhecer como as mulheres sempre, sempre (incluindo a mãe do meu filho) são mais responsabilizadas pelos cuidados da prole. A mim não parece possível aceitar essa naturalização. Sigamos questionando as construções de nossas subjetividades que nos trouxeram até aqui!
Há alguns dias, pensando sobre qual seria o tema que abordaria nesse artigo, achei que gostaria de falar sobre um que tem me interessado particularmente nos últimos tempos: como os hábitos funcionam e, de que forma eles influenciam positivamente ou negativamente a vida das pessoas.
No entanto, há nove dias do início da Copa do Mundo Catar 2022, me senti compelida a abordar outro tema que tem movimentado bastante as redes nos últimos dias, aconvocação dos jogadores.
Com a internet os consumidores perderam a inibição e a cada dia se sentem mais à vontade para exercerem seu direito à liberdade de expressão nas plataformas digitais, inclusive o “jus sperniandi”, ou melhor, o direito de espernear. Foi assim no último dia 7, depois do técnico Tite anunciar na sede da CBF a lista com os 26 jogadores que farão parte da seleção brasileira na Copa do Mundo. Como em convocações passadas, a lista sempre é motivo de polêmica. Dessa vez o alvo foi o lateral direito Daniel Alves, ex-jogador do Barcelona e atualmente no Pumas, do México, que ganha mais uma vez a oportunidade perdida em 2018 quando, por causa de uma lesão no joelho, não disputou a Copa do Mundo da Rússia.
No Twitter, a reação à convocação do jogador, que está treinando com o time B do Barcelona desde 12 de outubro pelo fato do Puma estar sem calendário de partidas, não demorou. Não faltaram discussões e memes, principalmente em alusão à idade do lateral-direito, que está com 39 anos. Em uma das imagens transmitidas, que viralizou na internet, um senhor pilotando uma scooter para idosos com a bandeira do Brasil parte pra cima de uma simpatizante petista. No texto que acompanha a imagem, “Daniel Alves dando carrinho no Mbappe em plena final da Copa do Mundo”, em alusão à suposta diferença de qualidade técnica em relação ao atacante Mbappé, um dos destaques da seleção francesa.
Outras imagens retiradas das manifestações políticas que geravam interações ininterruptas relacionadas a Lula e Bolsonaro no Twitter também foram aproveitadas nas postagens, que ultrapassaram a marca de um milhão de respostas. Numa delas, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, é convocado para impedir a ida de Daniel Alves para o Catar.
Na imagem abaixo, o motivo do protesto do homem no caminhão que já tinha movimentado as redes, passa a ser a convocação de Daniel Alves que, em 2021, ajudou Brasil a conquistar o ouro olímpico participando de todos os jogos e com uma atuação importante como capitão e líder do grupo. Além disso, com 42 conquistas, é o maior campeão da história do futebol. O que remete aos limites tênues existentes entre heróis e vilões no futebol ressaltados pela pesquisadora Leda Maria da Costa.
“Tanto a derrota quanto a vitória podem filtrar nossa opinião acerca de uma determinada jogada e de um determinado jogador. E os vilões nascem em meio ao turbilhão provocado por uma derrota (COSTA, 2008, p.12)”.
A vitória de Lula nas urnas talvez tenha contribuído, em parte, para a revolta da opinião pública em relação à convocação de Daniel Alves, que chegou a declarar publicamente apoio à candidatura derrotada à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Polêmicas à parte, a convocação e a proximidade da estreia da seleção brasileira tirou momentaneamente o foco na divisão existente na sociedade. O atual hábito de polarização que era comum entre os nossos antepassados, cuja sobrevivência dependia da lealdade e de tratar adversários como inimigos mortais, numa democracia, pelo menos teoricamente, deveria ter sido substituído pelo diálogo e pelo convencimento através de propostas claras. No entanto, orientadas por algoritmos, as próprias redes sociais fomentam esse e outros tipos de violência.
A partir de Pariser (2011), recorre-se a terminologia de “filtros-bolha”, que permitem apenas que determinados conteúdos circulem criando uma percepção falsa de Espaço Público e opinião pública onde, teoricamente, “todos” falam e a “maioria concorda”. Nesse sentido, Tite demonstrou em resposta às perguntas feitas durante a coletiva em que anunciou os convocados, um certo desdém em relação a essa maioria que movimenta as redes sociais.
Em conformidade com esse pensamento, Byung-Chul Han defende em entrevista ao jornal El País de Barcelona que a comunicação global contemporânea só tolera os iguais:
“Sem a presença do outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais iguais; o igual não dói!” (HAN, 2018, online).
Como disse o presidente eleito, talvez seja o momento, de diminuir a violência para com quem pensa diferente e substituir o hábito de vestir a camisa verde-amarela para fomentar disputas ou questionamentos em relação ao resultado das eleições, por outro mais saudável, o de torcer pelo hexa, pelo espírito de liderança de Daniel Alves e pela manutenção da democracia no país.
Referências
COSTA, Leda Maria da. A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo. Tese (doutorado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, 2008.
HAN, B-C. Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. [Entrevista concedida a] Carles Geli. Jornal El País, Barcelona, 7 de fevereiro de 2018.
Pense em uma criança de oito anos, quase nove que, sem querer, acabou descobrindo que o Papai Noel não existe. Os seus parentes contaram uma história extremamente convincente sobre um homem do Polo Norte, que, milagrosamente, com a ajuda de seus elfos mirabolantes e suas majestosas renas, conseguia distribuir presentes para todas as crianças do mundo em apenas uma noite. Era muito bem contado, a criança não teve culpa, mas, mesmo assim, ela se sente culpada, enganada, sua confiança foi traída, Papai Noel era uma fantasia e não uma figura mágica e admirável, aqueles que a criança mais admirava mentiram pra ela. Como ela poderia confiar em alguém de novo?
Nessa história, Lance Armstrong assumiria o papel dos “pais”, que elaboraram a história falsa, já a sua figura de ídolo do ciclismo assumiria o papel do “Papai Noel”, pois, infelizmente, Lance não era um ídolo de verdade. Já os “elfos” e as “renas” representavam os anabolizantes e remédios consumidos pelo atleta, que o ajudaram a realizar grandes feitos fraudulentos de carreira e, a “criança”, bom, essa representaria todos os grandes fãs do ciclista, que foram enganados e ludibriados por Lance ao serem convencidos de que ele era um herói, quando, na verdade, esse herói não existia.
Fonte da imagem: UOL
Essa questão se liga diretamente à idolatria, pois, a partir do momento em que determinados indivíduos passam a ser vistos como atletas brilhantes, incorruptíveis e inigualáveis, eles acabam atingindo uma posição de intocabilidade onde passam a ser tratados como seres perfeitos, que não cometem deslizes técnicos nas competições e que, também, nunca apresentam uma má índole. Contudo, não é bem assim, pois os ídolos ainda são humanos e estes não estão nem um pouco perto desse hiper-idealizada perfeição.
Lance Armstrong, o nosso “Papai-Noel”, era uma figura quase religiosa para os fãs do ciclismo. O atleta ganhou o Tour de France sete vezes seguidas de 1999 até 2005, depois de se recuperar de um câncer muito agressivo, consagrando-se como o atleta mais vitorioso da competição francesa. Anos depois, em 2012, para a infelicidade e decepção dos fãs, foi comprovado que o atleta fazia uso de substâncias ilícitas desde 1995 e, com isso, Lance foi expulso do ciclismo por doping e teve que devolver todos os seus troféus do Tour de France. Contudo, mesmo com a confirmação do uso de substâncias ilícitas, o atleta só admitiu o doping em 2013, durante uma entrevista.
Agora, tente mensurar o espanto dos fãs de Lance Armstrong ao descobrirem que o seu ídolo, um homem que lutou contra uma doença devastadora e que recuperou o seu lugar no ciclismo, era, na verdade, um indivíduo que ignorava as principais regras do esporte para ter um melhor rendimento e sucesso? Surge um arrependimento, um sentimento amargo que desmotiva o fã a admirar o esporte, mas que não deveria ser assim. Não é um problema ter ídolos, eles motivam os espectadores, são fontes de inspiração, o problema é quando se confia neles sem precedentes, sem levar em conta que são humanos e que podem vir a cometer erros extremamente decepcionantes como qualquer outro indivíduo.
Em uma cena do filme de comédia “Com a bola toda”, de 2004, dirigido por Rawson Marshall Thurber, Peter, personagem principal interpretado por Vince Vaughn, decide não jogar a final de um torneio de Dodgeball e abandona o seu time inesperadamente. A escolha acaba deixando Peter muito pensativo e, com o intuito de se distrair e se desestressar, ele decide ir a um bar, porém, para a surpresa do personagem e do espectador, uma visita desinteressante à um bar acaba se tornando em um encontro inesperado e inspirador, pois, bem ao lado de Peter, surge Lance Armstrong, o “herói” do ciclismo.
Na cena, Lance afirma ser um grande fã do time de Peter, deixando o personagem muito surpreso e lisonjeado pelo carinho. Contudo, ao descobrir sobre a desistência, Lance se mostra muito decepcionado e faz de sua história de superação e reinserção no esporte um artifício para convencer Peter a não abandonar o torneio, afirmando que a desistência dura para sempre. O argumento acaba deixando o homem muito mexido e, após se despedir do ciclista, Peter sai do bar, vai em direção a partida, volta para o seu time e conquista a final do torneio de Dodgeball. E, tudo isso, devido à ajuda do grande ídolo do esporte Lance Armstrong.
Ao pesquisar, encontrei essa cena em um canal do Youtube e identifiquei alguns comentários que chamaram a minha atenção. Um deles foi publicado em 2011, – antes da farsa do ciclista ser descoberta – por um usuário chamado “LuisTrivelatto”. Em primeiro lugar, o usuário começa reproduzindo uma frase de Lance: “Dor é temporária. Desistência é para sempre” e, em seguida, ele faz uma afirmação sobre o ciclista: “Que herói, um exemplo de pessoa. Vai Lance!!”.
Fonte da imagem: YouTube
Já em um outro comentário do vídeo, publicado pelo usuário “Liga DQ”, em 2018 – já após toda a fraude ter sido descoberta – , contém a seguinte afirmação: “Conselho legal da maior fraude da história do esporte americano”.
Fonte da imagem: YouTube
Esses comentários sintetizam muito bem a frase “envelheceu mal”, pois, devido à descoberta da trapaça, pôde-se notar uma alta quebra de expectativa em torno de Lance Armstrong. A sua imagem foi desconstruída e, a mensagem que ele passava sobre superação e perseverança, passou a ser interpretada como a representação da fraude, da farsa e da desonestidade.
Dentre os comentários da publicação, uma postagem foi responsável por chamar a minha atenção, fazendo com que a “criança” da história de “Papai-Noel” pudesse ser enxergada com outros olhos. O comentário em questão foi postado por “DangerNoodle”, em 2012 – ano em que Lance foi acusado de doping – e reproduz a seguinte frase: “Nunca foi provado, ele nunca falhou em um teste. São apenas outros competidores e seus apoiadores lançando acusações contra ele porque são péssimos perdedores. Pelo menos, essa deve ser a razão, já que, como eu disse, ele nunca falhou em nenhum teste de drogas.”
Fonte da imagem: YouTube
Esse comentário fez com que eu calculasse um novo cenário: a da “criança teimosa”. E, se por um acaso, a criança ouvisse que o Papai Noel não existe, mas, mesmo assim, escolhesse se prender à mentira e fechasse os olhos para a verdade? Existem provas, existem explicações que mostram a veracidade dos fatos, mas é como se isso tudo não importasse, para a criança, o herói existe e ponto final. Infelizmente, no mundo dos ídolos, isso é muito recorrente. Muitos pseudo-ídolos não mereciam mais o título que um dia lhes parecia cabível, mas, mesmo assim, para alguns indivíduos, o heroísmo não se dissolve, para eles, o gosto da mentira parece ser mais tentador do que a verdade. Às vezes acaba sendo muito difícil dizer adeus.
Lance não era merecedor dos títulos, mas, para o fã do comentário que o defendeu, as provas de nada bastavam. E a farsa? Bom, para ele, Lance não era um farsante e seus inimigos invejosos e calculistas, apenas criaram toda uma história. Mas então, como resolver esse problema, como abrir os olhos daqueles que não querem olhar para o rosto que está atrás da máscara? Como quebrar idolatrias fajutas? Sobre isso, não há muito o que se fazer além de, SEMPRE, reforçar a verdade. Independente do número de prêmios, independente da fama e da glória injustamente conquistados, devemos sempre expor os farsantes, tanto do esporte, quanto de outras esferas sociais, temos de educar as crianças teimosas e fazê-las entender o que é real e o que é fantasia.
Pode-se afirmar então que, a partir do momento em que os erros são vistos como uma possibilidade, será levado em conta o fato de que, sim, é possível ter ídolos, não é necessário estabelecer iconoclastias severas, contudo, é preciso entender que a idolatria tem um limite e que os grandes heróis de hoje, podem ser os grandes vilões de amanhã. Além disso, é preciso prestar atenção no fato de que podemos ser as próximas crianças a descobrir que o Papai-Noel não existe, ou, infelizmente, podemos ser as crianças teimosas que não querem acreditar. E, justamente por isso, devemos estar sempre prontos, pois não sabemos quando a magia pode acabar.
Não são muitos os autores e pesquisadores que têm sua trajetória acadêmica transformada em objeto de análise e homenagem. Pelo menos na tradição acadêmica brasileira, não é comum esse tipo de registro e quando ocorre, sua motivação, além da excelência da pesquisa, se dá por ocasião de aposentadoria ou mesmo falecimento.
Ocorre que Ronaldo Helal está vivíssimo, intelectualmente atuante e atento à pátria que tem calçado chuteiras cada vez menores.[1] Ronaldo segue em sala de aula formando novas gerações pensantes. E segue devotando ao Flamengo, o amor de um torcedor empedernido.
Uma das principais forças de uma obra ou de um conjunto de obras reside na sua originalidade e na sua capacidade de inspirar outros trabalhos construídos a partir do diálogo de ideias, da admiração e da gratidão intelectual.
Não é grande a lista de autores que consegue desempenhar esse papel em determinado campo do conhecimento.
Ronaldo Helal é um deles.
Fonte: Pinterest.
Sua produtividade acadêmica está longe de acabar e sua trajetória, até o momento, é bastante rica significativa. No campo dos estudos sobre esporte e sua relação com os meios de comunicação de massa, algumas de suas obras assumem um papel, eu diria vanguardista.
Suas análises, tendo como centro o papel dos meios de comunicação de massa, deram um novo fôlego aos estudos das relações entre identidade nacional e futebol, em especial, sobre seleção brasileira e as Copas do Mundo. Não somente. O trabalho de Ronaldo também possibilitou que o campo da Comunicação pudesse se renovar ao encontrar nos esportes novas possibilidades de pesquisas centradas em um dos mais importantes fenômenos culturais do Brasil.
São, portanto, sólidos os motivos que levaram o historiador Bernardo Buarque de Hollanda a compor o artigo “Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal” publicado na revista Alceu[2].
Nesse artigo, a vida acadêmica de Ronaldo é compreendida a partir da perspectiva da “viagem como vocação”[3] o que sinaliza para o fato de que sua produção faz do deslocamento geográfico, para além das fronteiras nacionais, um meio de olhar o “país de fora para dentro” como já o fizera importantes intérpretes do Brasil.
É certo que não necessariamente uma viagem para fora do país resulta em uma renovação de perspectiva a respeito daquilo que nos rodeia. É possível ter esse tipo de perspectiva sem sequer sair de nosso próprio quarto ao estilo de Xavier de Maistre, romancista que inspirou fortemente Machado de Assis, autor que literariamente interpretou de modo profundo o Brasil sem nunca dele ter saído.
O olhar de fora para dentro implica não somente o deslocamento físico, mas é fundamental a sua conjugação com um movimento intelectual de tornar estranho aquilo que nos é familiar e de transformar em familiar aquilo que nos era estranho. Esse movimento marca o itinerário da produção de Ronaldo Helal e sua própria visão pessoal de mundo, inquieta, problematizadora, mas fundamentalmente generosa em reconhecer que o conhecimento é feito de processos marcados pela dinâmica da contradição e da necessária renovação do pensamento crítico.
A formação acadêmica de Ronaldo foi construída na frequência a instituições de pesquisa internacionais nas quais teve contato com um importante contexto de produção de estudos acerca do fenômeno esportivo. Somado a esse material, é de se destacar o diálogo permanente com instigantes interlocutores alguns dos quais construiu uma longa história de amizade.
A produção de Ronaldo é derivada de sua vocação para fazer da viagem uma fonte de formação intelectual e humana. Vocação que pode ser colocada em prática graças ao apoio institucional da UERJ, universidade na qual leciona há 35 anos, e às agências públicas de fomento FAPERJ, CAPES e CNPq.
Termino aqui convidando você a ler o artigo Esporte, comunicação e sociologia: uma leitura da trajetória acadêmica e da produção intelectual de Ronaldo Helal publicado na revista Alceu.
[1] Faço referência a uma a uma frase dita por Hugo Lovisolo em entrevista para o jornal O Globo em 2001.