Ted Lasso e outras representações no futebol: desconstruindo gênero e explorando trajetórias de mudança na série

Introdução

Ted Lasso é uma série de três temporadas disponível no serviço de streaming da Apple que narra a história de um treinador de futebol americano que se aventura no mundo do futebol inglês. Interpretado por Jason Sudeikis, Ted é um homem simples e otimista do Kansas que, sem experiência prévia no esporte, é contratado para treinar o AFC Richmond, um clube pequeno mas centenário da Premier League.

A série apresenta Rebecca Welton (Hannah Waddingham), a nova dona do clube, que busca sabotar o time como vingança contra seu ex-marido ao contratar um treinador americano sem conhecimento de futebol. Ted decide aceitar o novo emprego e se muda para a Inglaterra junto com o Coach Beard (Brendan Hunt), seu melhor amigo e assistente técnico. Ao longo das três temporadas, vemos Ted criar elos especiais com Rebecca, dona do clube; com o roupeiro do clube, Nathan (Nick Mohammed); Higgins (Jeremy Swift), braço direito de Rebecca e Diretor de Operações do Futebol e com dois jogadores do elenco: Roy Kent (Brett Goldstein) e Jamie Tartt (Phil Dunster). Keeley Jones (Juno Temple), namorada de Jamie, completa o elenco de personagens principais.

Divulgação / Apple+ TV

Ambientado no universo do futebol profissional, Ted Lasso oferece uma análise rica das representações de gênero, desafiando estereótipos e apresentando novas performatividades femininas em um contexto predominantemente masculino. São vários os motivos da série ter caído no gosto de tantos espectadores e arrebatado os principais prêmios em cerimônias: Ted Lasso representa outras performatividades de gênero possíveis em um meio de predominante masculinidade tóxica e apagamento feminino. Filmes e séries dizem do discurso sócio-político da sociedade, sendo fundamental estudar o impacto que esses artefatos culturais possuem na formação e representação de sentidos. Segundo Stuart Hall, a “representação é uma parte essencial do processo pelo qual os significados são produzidos e compartilhados entre os membros de uma cultura” (HALL, 2016, p. 31).

nós concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu respeito, às maneiras como as classificamos e conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos (HALL, 2016, p. 21).

Utilizando da lente teórica de Stuart Hall (2016) sobre a importância da representação na produção de significados culturais, queremos examinar as representações subversivas de gênero na série Ted Lasso, focando nos cinco personagens principais. Através da análise das interações entre os personagens e com o mundo ao seu redor, buscamos identificar como eles subvertem as expectativas tradicionais de masculinidade e feminilidade e desafiam normas sociais e estereótipos de gênero.

Ted Lasso representa uma masculinidade positiva e antitóxica, enquanto Rebecca Welton assume uma posição de liderança forte e independente, desafiando estereótipos de gênero. Roy Kent desmistifica a imagem do atleta machista e violento, enquanto Jamie Tartt demonstra a fragilidade e a insegurança por trás da máscara de arrogante. Keeley Jones, por fim, representa uma feminilidade autêntica e empoderada que se recusa a se encaixar em moldes pré-definidos. A análise comparativa dos cinco personagens permite um estudo abrangente das diversas formas de masculinidade e feminilidade presentes na série, demonstrando seu potencial para desafiar normas sociais e promover representações mais inclusivas e diversas na mídia.

Ted, como protagonista da série, impulsiona e provoca mudanças e quebras de expectativas nos demais personagens através de seu otimismo, paciência e espírito contagiante. Sua personalidade conquista corações e constrói relações significativas. Ao analisar como os personagens subvertem expectativas e constroem suas identidades, este artigo busca contribuir para debates sobre uma compreensão mais ampla e complexa das representações de gênero no esporte. Através da análise de Ted Lasso, identificamos o potencial da televisão para desafiar normas sociais e promover modelos de masculinidade e feminilidade mais inclusivos e diversos. Este artigo é um breve recorte de um artigo maior em desenvolvimento, que se propõe a analisar as trajetórias de mudança e as representações de gênero, raça e classe em Ted Lasso.

Ted e as novas masculinidades possíveis

A masculinidade tóxica, um conjunto de normas e comportamentos que pressionam os homens a se comportarem de maneira rígida, dominante e repressora, gera impactos negativos tanto para os homens quanto para a sociedade. Enraizada em valores patriarcais, essa masculinidade se caracteriza por aspectos como autoritarismo, competitividade excessiva, repressão emocional, violência, homofobia e misoginia.

No futebol, esporte e ambiente predominantemente masculino, a masculinidade tóxica encontra terreno fértil para perpetuação e incentivo. A cultura de vestiário homofóbico e machista, a exaltação da força física, a liderança autoritária, a agressividade dentro e fora de campo e a objetificação das mulheres são alguns exemplos de como essa masculinidade se manifesta no futebol. Essa perpetuação reforça estereótipos e comportamentos nocivos, causando danos à saúde mental e física dos homens, perpetuando a desigualdade de gênero e limitando o desenvolvimento de uma sociedade mais justa e igualitária.

No centro da série, encontramos dois jogadores que representam diferentes faces da masculinidade tóxica: Roy Kent e Jamie Tartt. Roy, capitão do AFC Richmond, é o “jogador raiz”, rabugento, bravo, agressivo e grosseiro. Em seus últimos anos de carreira, ele luta para provar que ainda pode competir em alto nível, mas suas dificuldades em se relacionar com as pessoas e a repressão de suas emoções o caracterizam como um exemplo clássico de masculinidade tóxica. Já Jamie Tartt, o excêntrico camisa 9, é o artilheiro do time. Sensual, egocêntrico e narcisista, ele se importa apenas consigo mesmo, sua carreira e as mulheres. Hiper-competitivo e individualista, Tartt busca constantemente reconhecimento e validação, demonstrando mais um perfil de masculinidade tóxica.

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Ao longo da série, Ted Lasso, o novo treinador, se propõe a desafiar esses padrões de comportamento. Através de seu estilo positivo e humano, ele trabalha com Roy para que ele lide com seus problemas de raiva e com Jamie para que ele encontre maturidade e responsabilidade dentro e fora de campo. Essa jornada de transformação para ambos os jogadores se torna um símbolo da luta contra a masculinidade tóxica e da busca por uma masculinidade mais saudável e positiva. Ted, Roy e Jamie representam diferentes tipos de homens e diferentes formas de ser masculino. Ao desconstruir os estereótipos da masculinidade tóxica e apresentar alternativas mais positivas, Ted Lasso nos convida a refletir sobre o impacto desses padrões de comportamento na vida dos homens e na sociedade como um todo.

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Ted e as relações femininas redentoras

Por meio de uma abordagem inovadora e crítica em relação à feminilidade, a série se vê desafiando estereótipos e promovendo representações multifacetadas de mulheres em diferentes contextos. Através das personagens Rebecca Welton e Keeley Jones, desvenda-se as nuances da feminilidade contemporânea, questionando as expectativas sociais tradicionais e abrindo espaço para reflexões sobre empoderamento e igualdade de gênero.

O conceito de feminilidade é intrincado e multifacetado, carregando consigo uma história de normas e expectativas que limitam a autonomia e o poder das mulheres. A sociedade ocidental, em particular, moldou a feminilidade em torno de características como submissão aos homens, ênfase na aparência e dedicação à vida doméstica. Essa visão limitada ignora a diversidade de experiências e identidades femininas, reprimindo a expressão individual e reforçando desigualdades de gênero.

A teoria da performatividade de gênero, proposta por Judith Butler (2003), permite analisar como a feminilidade é performativamente construída através de ações, comportamentos e expectativas sociais. Essa perspectiva desnaturaliza a ideia de que o sexo é algo natural e binário, demonstrando como a feminilidade é performativamente encenada e moldada por fatores sociais e culturais.

Inicialmente, Rebecca é retratada como uma mulher fria, vingativa e emocionalmente distante, marcada pelas mágoas de seu divórcio. Essa caracterização, embora estereotipada, reflete a forma como a sociedade frequentemente rotula mulheres que demonstram força e ambição. A jornada de Rebecca ao longo da série, no entanto, subverte esse estereótipo. Ao se conectar com Ted e se abrir para novas experiências, ela revela sua inteligência, perspicácia e capacidade de liderança, assumindo o controle do AFC Richmond com maestria.

Em seus encontros com Ted, Rebecca passa de uma pessoa fria e fechada que quer destruir o Richmond, para alguém que se vê capaz de se relacionar, se abrir e estabelecer vínculos significativos com outras pessoas. Nos primeiros episódios a motivação principal de Rebecca é destruir o clube, mas termina sua história com a proposta de criar até mesmo uma modalidade feminina do AFC Richmond. No décimo episódio da última temporada, os roteiristas trazem Rebecca ainda mais para o lado “profissional” de gestora e as implicâncias que isso traz para ela enquanto mulher: ela não está na mesma posição que os demais colegas donos de clubes, porque ela é uma ‘mulher gostosa’.

Há um demérito e sexualização de sua pessoa por parte dos homens que a colocam nesse lugar de menos importante, do Outro, da minoria. Mas mesmo com todas essas agressões, ela consegue ser forte, convicta e profissional. Esse arco em si já é muito significativo se considerarmos que pouquíssimas mulheres são gestoras de clubes de futebol. Em um estudo feito pelo portal Gênero e Número sobre as gestões de clubes profissionais ligados à CBF (Confederação Brasileira de Futebol), temos 2,7%[1] de presença feminina em cargos de liderança.

A gente tem dois mundos aí: o mundo do futebol e o mundo dos negócios. É a estrutura do machismo funcionando nestas duas vertentes: em um esporte que foi naturalizado no masculino, com os ideais de virilidade, de força, e no mundo dos negócios, em que até hoje — e basta observar os dados do IBGE em relação a cargos de gestão, cargos de direção, de decisão de forma geral — as mulheres são uma diminuta parcela (JANUÁRIO, 2021).

Keeley, por sua vez, é introduzida como a típica “maria-chuteira”, namorada do jogador Jamie Tartt. Emotiva, alegre e “sexy”, ela parece presa em um estereótipo de passividade e dependência masculina. No entanto, ao longo da série, Keeley demonstra ambição e inteligência, buscando construir sua carreira como empresária. Ela concilia seus sonhos profissionais com seus relacionamentos pessoais, desafiando a dicotomia tradicional entre carreira e família. Keeley aprende em sua jornada que é capaz de ser muito mais daquilo que lhe é encubido.

Ted Lasso oferece modelos femininos inspiradores que rompem com as concepções tradicionais de feminilidade. Rebecca e Keeley não são “menos mulheres” por priorizarem suas carreiras, mas sim exemplos de empoderamento feminino e de que a realização profissional não precisa estar em detrimento da vida pessoal. A série demonstra que a feminilidade pode ser expressa de diversas maneiras, sem se limitar a estereótipos e rótulos pré-definidos. A crítica social presente em Ted Lasso contribui para a desconstrução de estereótipos de gênero e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Através da representação complexa e multifacetada de suas personagens femininas, a série abre espaço para reflexões sobre a importância da diversidade, do respeito e da autonomia das mulheres.

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Para aprofundar a análise, podemos explorar diferentes teorias sobre gênero e feminilidade. Além da performatividade de gênero, outras perspectivas como a interseccionalidade podem ser utilizadas para analisar as diferentes formas de opressão que as mulheres podem sofrer. Ao incorporar essas perspectivas teóricas à análise de Ted Lasso, podemos enriquecer a compreensão da série como um produto cultural que contribui para a desconstrução de estereótipos de gênero e para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária para todas as mulheres.

À guisa de conclusão

Em um universo predominantemente masculino como o futebol, os arcos redentores de Rebecca Welton e Keeley Jones em Ted Lasso assumem um papel crucial na desconstrução de estereótipos de gênero e na promoção de representações femininas multifacetadas. A mera existência e o sucesso da série demonstram mudanças na sociedade e refletem o “hoje” em termos de debates sobre representatividade e empoderamento feminino. A série vai além de apresentar personagens femininas fortes e independentes, mas também subverte expectativas e propõe novos sentidos para o que significa ser mulher, o que é feminilidade e quais papéis sociais as mulheres podem desempenhar. A amizade entre Rebecca e Keeley se torna um símbolo de força e empoderamento, contrariando as representações tradicionais de rivalidade e competitividade entre mulheres.

A análise de Ted Lasso demonstra o potencial da televisão como ferramenta de mudança social, ao apresentar modelos de feminilidade fora do padrão e celebrar a amizade feminina como fonte de força e empoderamento. A importância da representatividade se reflete na própria estrutura do AFC Richmond, liderado por uma mulher. A série nos leva a questionar a presença feminina no futebol, tanto em campo quanto nos bastidores, e nos confronta com a realidade de que apenas 2,7% dos clubes profissionais brasileiros possuem mulheres em cargos de liderança. O exemplo de Leila Pereira, presidenta do Palmeiras, que enfrenta críticas machistas e misóginas, ilustra os desafios que as mulheres ainda enfrentam ao ocupar cargos de poder no futebol.

Em contraste com a cultura autoritária e hierárquica predominante no futebol, Ted Lasso propõe um modelo de liderança humanizada que subverte a lógica tradicional da profissão. Através de um estilo de comando que prioriza o diálogo, a empatia e o desenvolvimento pessoal dos jogadores, Ted desafia o padrão hegemônico de liderança masculina, caracterizado pela rigidez, disciplina e cobrança excessiva.

Um exemplo ilustrativo dessa contraposição pode ser visto no futebol brasileiro. Em janeiro de 2021, o então treinador do São Paulo, Fernando Diniz, dirigiu ofensas e xingamentos ao jogador Tchê Tchê durante um jogo. A atitude de Diniz, que se repete em outros treinadores como Cuca e Abel Ferreira, é tida como “normal” no contexto do futebol, raramente sendo questionada ou combatida. O episódio envolvendo Diniz e Tchê Tchê teve graves consequências para o jogador, que posteriormente revelou ter sofrido de depressão durante sua passagem pelo São Paulo.

A falta de apoio e o ambiente hostil geraram desmotivação e sofrimento emocional, evidenciando os impactos negativos da liderança autoritária no esporte. Em contraposição a essa realidade, Ted Lasso apresenta um modelo de liderança que valoriza o bem-estar dos jogadores e os incentiva a serem “humanos melhores” dentro e fora de campo. Através de sua postura gentil, compreensiva e inspiradora, Ted demonstra que é possível alcançar o sucesso esportivo sem comprometer a saúde mental e o desenvolvimento pessoal dos atletas.

Ao subverter a lógica tradicional da liderança no futebol, Ted Lasso abre espaço para reflexões sobre a necessidade de construir uma cultura esportiva mais humanizada, onde o respeito, a empatia e o diálogo sejam pilares fundamentais para o sucesso individual e coletivo e nos convida a repensar os papéis de gênero na sociedade e a questionar as normas e estereótipos que limitam as mulheres e normalizam os homens.

Referências bibliográficas

BUTLER, Judith. Problemas de gênero. Feminismo e subversão da identidade. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 2003.

HALL, S. Cultura e representação. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Apicuri, 2016.


[1] Apenas 2,7% dos gestores de clubes de futebol são mulheres. Disponível em:  https://www.generonumero.media/reportagens/mulheres-no-futebol/. Acesso em 20 de fevereiro de 2024.

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