Imagina a união entre futebol e Carnaval? Pensou? O Audiolab (Laboratório de Áudio) da Faculdade de Comunicação da UERJ, sim. Anota aí na sua agenda: de 29 a 31 de maio, a universidade receberá nomes como: Milton Cunha, Renata Silveira, Guilherme Oliveira, Rafael Nagib, Fausto Amaro, Aydano André Motta, Amanda Ribeiro, Leonardo Bruno e Rafaela Bastos, no Seminário “Mídias, imaginário e sonoridades”, sob a coordenação do professor Filipe Mostaro.
O evento, dividido em três mesas de debates, acontece sempre às 19h, no auditório 93, bloco F, localizado no 9º andar da UERJ, campus Maracanã. O Seminário “Mídias, imaginário e sonoridades” marca o lançamento de dois projetos do Audiolab: Escola de Narradores e Ateliê do Podcast. A iniciativa integra o projeto de pesquisa Mídia, Imaginário e Sonoridade e tem o apoio do LEME – Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte. As inscrições podem ser feitas aqui.
PROGRAMAÇÃO
29 de maio
Tema: A cobertura do futebol
Convidados: Guilherme Oliveira (produtor do Globo Esporte, TV Globo); Renata Silveira (narradora da TV Globo); e Rafael Nagib (editor do Grupo Globo).
30 de maio
Tema: Desafios e experiências de cobrir os Jogos Olímpicos
Convidados: Carlos Gil (jornalista TV Globo) e Fausto Amaro (professor da FCS e vice-coordenador do LEME).
31 de maio
Tema: Por dentro da Avenida: cobertura sobre o carnaval
Convidados: Rita Fernandes (jornalista e pesquisadora de Carnaval), Milton Cunha (carnavalesco e comentarista), Aydano André Motta (jornalista e pesquisador de Carnaval), Amanda Ribeiro (jornalista), Rafaela Bastos (professora, ex-passista e musa da Mangueira) e Leonardo Bruno (jornalista e escritor).
Para quem não puder comparecer presencialmente, o Audiolab irá fazer a transmissão ao vivo, basta clicar nos links abaixo:
Seminário discute os 100 anos dos “camisas negras” e o racismo no futebol
O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME), em parceria com o Laboratório de Comunicação Integrada (LCI), realiza o Seminário “Virada Histórica: o centenário dos ‘camisas negras’ e o racismo no futebol”, no dia 15 de junho, às 18h, no auditório do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UERJ (PPGCom/UERJ).
A conquista do Campeonato Carioca de 1923 pelo Clube de Regatas Vasco da Gama (CRVG), que escalou de forma pioneira negros e operários em seu time, trouxe um enorme impacto na sociedade conservadora e preconceituosa da época, culminando em reações políticas e um embate entre as ligas de futebol amador e profissional no ano seguinte.
O objetivo do evento é discutir a memória desse episódio histórico e a atualidade do debate sobre preconceito e inclusão no esporte. De acordo com o coordenador do LEME, Ronaldo Helal, a discussão é pertinente em 2023, pois, “mesmo após 100 anos, esse ainda é um tema extremamente relevante no esporte e na sociedade atual”.
O evento contará com a participação do professor titular da Faculdade de Educação da UFRJ e pesquisador PQ-CNPq e CNE/Faperj, Antônio Jorge Soares, e do historiador e coordenador do Centro de Memória do CRVG, Walmer Peres. A mediação será feita por Hugo Moraes, doutor em História Comparada pela UFRJ.
O Seminário ocorre de maneira presencial e as inscrições (gratuitas) devem ser realizadas através do Sympla. Teremos uma transmissão ao vivo do evento no canal do LEME no YouTube.
A Sociedade Esportiva Napoli sagrou-se campeã do campeonato italiano de futebol temporada 2022-2023, uma campanha para lá de encantadora, após três décadas de insólito jejum de títulos. Uma festa sem tamanho, sem fim e sem ordem tomou conta das ruas, repletas de citadinos celebrando efusivamente. Alguns dizem que o título é um presente dos céus de um semideus ou até Deus que dá nome ao estádio.
Nápoles é a cidade astral mais importante da Península Itálica, contudo marcada pelo estigma e pelo imaginário negativo propagado pelas cidades nortistas como Milão, Turim, Florença, entre outras. Ao pensar em Nápoles, pensamos mais na Camorra (máfia) do que nas belas praias, mais na pobreza do que na vitalidade do povo napolitano, mais na suposta desordem do que na Universidade de Nápoles (sétima mais antiga da Europa). As marcas do preconceito propagado pelo Norte são pegajosas e apagam aquilo que a metrópole banhada pelo mar Tirreno tem de melhor. Nessa visão discriminatória, os sulistas são supostamente poucos afeitos ao trabalho, preguiçosos, festeiros, emotivos, desordeiros e ignorantes, enquanto os nortistas são trabalhadores, racionais, ordeiros e civilizados.
O filósofo Friedrich Nietzsche desenvolveu uma concepção dual do mundo a partir da filosofia e da mitologia grega, em que o mundo se divide em razão/ordem/equilíbrio (apolíneo) e prazer/desordem/paixão (dionisíaco), o primeiro representado a partir do Deus grego Apolo e o segundo pelo Deus Dionísio. Na prática, pode-se aplicar essa divisão do filósofo na divisão racista da Itália em que os nortistas detêm as características do apolíneo e os sulistas as características do dionísico – claro, os segundos com características negativas.
Entretanto, preconceitos regionais não são apenas uma dádiva negativa da Itália, mas também de outras nações. Como no Brasil a abjeta discriminação que os “sudestinos ” praticam contra os nordestinos ou nos Estados Unidos em que os ianques do Norte gozam e insultam os sulistas. Quase todo país tem uma região que é vítima de preconceito.
As desigualdades econômicas e sociais existem em todos territórios ou nações (ou comunidades imaginadas como nomeou o historiador Benedict Anderson), pois nenhum país é homogêneo. Entretanto, tais desigualdades não podem estar à serviço do preconceito e do racismo. Em 2023, na partida Milan X Napoli, pelas quartas de final da Champions League, os torcedores milaneses ergueram uma faixa com os dizeres ” Água e Sabão ” insinuando que napolitanos são porcos e não tomam banho. Outra faixa tinha a seguinte mensagem: “Mais títulos do que dedos” acusando os napolitanos de terem mais títulos nacionais (2 títulos) do que dedos nas mãos. Alguns cânticos dizem que seria ótimo o Vesúvio (vulcão nas redondezas de Nápoles) entrar em erupção para varrer os napolitanos da terra. Um dos cânticos contra a torcida do maior time do Sul da Itália diz:
Sintam o cheiro
Até os cachorros fogem
Estão chegando os napolitanos
Os coléricos
Filhos do terremoto
Quase nunca se lavaram com sabão
Merda de Napoli
O preconceito aberto contra os italianos do Sul faz com que compreendemos melhor um episódio marcante do futebol mundial. Na semifinal da Copa do Mundo 1990, enfrentaram-se Itália e Argentina, no estádio de Nápoles, parte dos napolitanos torceram pelas sul-americanas, devido a Maradona – pois a Azzurra, apesar de ser a seleção nacional, é aquela que os torcedores xingam os sulistas. Nesse sentido, torcer por Diego Armando, pela Argentina, era torcer pelo homem que liderou o triunfo do primeiro título de um clube ao Sul de Roma, o impávido Pibe que amassou milaneses, florentinos, genoveses, etc.
Faixa da torcida do Bologna em 2014 com dizeres: “ Vai ser um prazer quando o Vesúvio fizer o seu dever”
No verão de 1984, quando Diego estreou pelo time napolitano, logo entendeu que não era apenas futebol. Porque em uma partida no Norte do país deparou-se com uma faixa direcionada a sua equipe com as seguintes palavras ” Bem-vindos à Itália “. Segundo o eterno ídolo argentino, ali ele soube que eram os racistas do Norte contra os pobres do Sul, era luta de classes e de identidade regional que tinha como uma das arenas de combate os gramados.
O primeiro caneco nacional não poderia ter outro protagonista que não fosse Dieguito, que trazia em seu sangue o espírito de um garoto de vila portenha (menino de favela). Maradona era boquirroto, falador, sanguíneo, polêmico, exagerado, emotivo e extremamente dionisíaco. Como disse o velho escritor Eduardo Galeano “Diego é o mais humano dos Deuses” e tomo a liberdade para acrescentar o mais napolitano das divindades. Os sulistas encontraram nele um Brancaleone para comandar a esquadra napolitana que, pela primeira vez, abateu os elitistas do Norte e levou a taça para o Sul. Para Itália negada pelos Italianos. A festa realizada na cidade, nunca antes vista no país, ficou conhecida como “a louca tarantela”.
A história, como gosta de brincar e surpreender, traz novamente um protagonista do Sul global para liderar a esquadra italiana em mais um triunfo. O nigeriano Victor Osimhen de apenas 24 anos. Um jovem atacante versátil, com faro de gol apurado, que não foi apenas o melhor jogador do Calccio como o artilheiro. Para azar dos racistas do Norte sempre afeitos a defender a deportação dos africanos que chegam em condições trágicas nas praias italianas em busca de refúgio.
Festa na cidade de Nápoles ( maio de 2023) Carlos Harmann AFP
Esse ano, os ricos times do Norte sucumbiram diante do Napoli, liderado por um nigeriano. Ou seja, o prazer venceu a razão, a pólis dionisíaca sublevou os apolíneos nortistas. Se o Sul está feliz, a festa está garantida, ” a louca tarantela ” é reeditada para celebrar uma vitória contra o racismo, o preconceito e a discriminação. Fogos irrompem na noite escura de Nápoles, que iluminada vira dia, Dionísio se deleita com garrafões de vinho a beira do Vesúvio, que repousa tranquilo, Maradona celebra no céu e Victor Oshimen é coroado em terra. O Napoli campeão é sempre dionisíaco.
“Havia uma bola ao pé da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisa azul do Nápoles. Havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a Maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. Campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. Em Milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados.” GALEANO, Eduardo. Futebol ao sol e à sombra. LM& Pocket.
Fonte:
Podcast Copa Além da Copa
Nápoli: a cidade, o time, o Maradona, o novo-scudetto- Copa Além da Copa #61
O Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte – LEME realiza, de 22 a 24 de agosto, o Seminário LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia. O evento contará com a presença de profissionais de mercado, como o jornalista Caco Barcellos (Globo), Marcelo Barreto (Sportv) e Fabi Alvim (Sportv). Dentre os pesquisadores que já confirmaram presença, temos nomes como: Ronaldo Helal (UERJ), Lívia Magalhães (UFF), Adriano Freixo – (UFF), Renato Coutinho – (UFF), Rosana da Câmara (UFF), Nicolás Cabrera (UERJ/CONICET). O seminário conta ainda com a participação de Luiz Cláudio do Carmo, o Claudinho, presidente da Anatorg (Associação Nacional das Torcidas Organizadas). As palestras acontecerão no horário da noite e as discussões em GTs temáticos no decorrer dos dias. Para isto, o Laboratório receberá resumos expandidos de 5 de maio a 30 de junho.
O Seminário Internacional LEME nos gramados da democracia: reflexões sobre esporte e mídia busca promover discussões de cunho acadêmico e transdisciplinar, versando sobre a relação entre democracia e esporte. São bem-vindos trabalhos que perpassem pelo contexto histórico como: uso da Seleção Brasileira na propaganda política em regimes autoritários, apropriação da camisa da seleção por grupos de direita e extrema direita recentemente e ainda tentativas de resgate e preservação da democracia no país. Vale lembrar que são diversos os exemplos de práticas de liberdade promovidos por atletas, jornalistas, movimentos de torcidas e tantos outros atores sociais vinculados ao esporte, configurando-se, assim, como espaço de manifestação popular de reivindicação de direitos das mulheres, da população negra, LGBTQIA+ e tantas outras lutas cotidianas.
GRUPOS DE TRABALHO
GT1- Esporte, cidade e identidades
O esporte desempenha um papel fundamental tanto na construção quanto na afirmação de uma pluralidade de identidades que atuam dentro e fora de fronteiras territoriais. Essa relação com a territorialidade confirma a necessidade de compreensão do esporte como prática que se entrecruza com o espaço urbano, estabelecendo com ele uma trama de relações e significados que põe em movimento o jogo das identidades em um contexto de tensionamentos entre o local e o global.
Debatedor(a): Édison Gastaldo (CEP/Forte Duque de Caxias)
GT2- Mídia, esporte e representação
A mídia, gradualmente, se consolidou como um importante veículo mediador entre os esportes e o público, participando não apenas da circulação, mas também da produção de um vasto imaginário construído em diálogo com uma série de representações presentes dentro e fora do território esportivo. As representações produzidas são um material cuja análise pode nos possibilitar o acesso às tensões e contradições dos valores e discursos que estão em jogo.
Debatedor(a): Ana Carolina Vimieiro (UFMG)
GT3 – Estádios, arenas e os modos de torcer
A diversidade dos modos de torcer fomenta variadas possibilidade de construção identitária de torcedores e torcedoras nas arquibancadas. Essa pluralidade torna o ato de torcer um fenômeno complexo, muitas vezes contraditório, e que faz dele um lócus de análise das reações, adaptações e resistência às mudanças ocorridas no cenário futebolístico, sobretudo em diálogo com as transformações geradas pelo intenso processo de mercantilização e midiatização dos eventos esportivos.
Debatedor(a): Antonio Jorge Soares (UFRJ)
SOBRE OS TRABALHOS
Devem ter no mínimo 7.000 e no máximo 12.000 caracteres, necessitam estar no template do evento. Devem ser enviados para o email: gramadosdademocracia@gmail.com . Serão aceitos para análise resumos em Português ou Espanhol e que versem sobre um dos GTs. Não será possível o envio de um mesmo resumo ou de resumos diferentes para mais de um GT. Serão aceitos textos de estudantes de graduação, pós-graduação e de pesquisadores. Um mesmo trabalho poderá ser escrito por até duas pessoas. Não será necessário o envio posterior de trabalhos completos. Há a possibilidade de publicação de anais.
AS APRESENTAÇÕES
Vão ocorrer de modo presencial, na UERJ- Campus Maracanã, no décimo andar. É necessário que pelo menos um dos autores esteja presente.
TAXA DE INSCRIÇÕES
O pagamento será realizado, somente após a divulgação da lista de aprovados e deverá ser feita diretamente para uma instituição a ser divulgada. O pagamento deve ser de no mínimo R$10 para estudantes de graduação e R$20 reais para graduados, pós-graduandos e pesquisadores. Sugerimos que, se possível, valores a mais sejam depositados. O comprovante de depósito deve ser enviado para o email gramadosdademocracia@gmail.com. Não será cobrada taxa de inscrição para ouvintes.
O leitor e a leitora que acompanham meus textos já sabem que, por aqui, procuro sempre trazer algum assunto que relacione futebol, política e o panorama atual da nossa sociedade. Neste texto, trato especificamente do futebol de mulheres e da Copa do Mundo de futebol de mulheres que, em 2023, será realizada na Austrália e na Nova Zelândia. Desde 1991, a FIFA organiza uma Copa do Mundo de Futebol Feminino a cada quatro anos, mas nem sempre foi assim. Nesse sentido, vamos conversar um pouco sobre as proibições ao futebol de mulheres e de que maneira esse histórico se reflete nos campeonatos organizados para a categoria até os dias de hoje.
O futebol de mulheres foi proibido no Brasil pelo decreto nº 3.199 de 14 de abril de 1941. Este decreto não foi o primeiro cerceamento explícito ao futebol de mulheres no mundo, uma vez que vinte anos antes, a Federação Inglesa de Futebol (FA) já havia proposto um documento que estabelecia o banimento do futebol de mulheres e proibia sua prática nos campos e clubes dos times associados à federação. Contudo, mesmo com as proibições vigentes, as mulheres inglesas e brasileiras seguiram praticando o esporte, ainda que de maneira mais escondida.
Jornal no Museu do Futebol em SP. Reprodução.
Entretanto, sobretudo após a Segunda Guerra Mundial, o futebol de mulheres ganhou cada vez mais evidência ao redor do mundo, fazendo com que clubes e times se formassem para a prática do esporte. Na década de 1960, o banimento inglês foi revogado, e algumas federações, como a Federação Italiana de Futebol Feminino, foram criadas.
Essa federação, com o apoio e o patrocínio de alguns empresários que passaram a ver no futebol de mulheres uma fonte de público e renda, iniciou um projeto para criar uma “Copa do Mundo” de futebol de mulheres.[i] As duas edições, realizadas na Itália e no México em 1970 e 1971, respectivamente, chamaram a atenção da sociedade, da mídia e, claro, da FIFA. Esses torneios, que se intitulavam “Campeonatos mundiais femininos,” não eram reconhecidos, nem organizados pela FIFA, entidade máxima gestora do Futebol Association. Por isso, são chamadas de “Copas Clandestinas”.[ii]
A edição de 1970 foi sediada na Itália. Segundo reportagem do Jornal do Brasil, a cidade de Turim foi escolhida para sediar a final do campeonato por ser considerada o berço do futebol masculino italiano no final do século XIX. As outras partidas aconteceriam nas cidades de Nápoles, Palermo, Roma, Bolonha, Gênova e Milão.[iii] Ainda não foi possível confirmar se todas essas cidades efetivamente sediaram os jogos da Copa de 1970 – por falta de cobertura da imprensa –, mas há registros de que, na partida final disputada em Turim, a Itália foi derrotada pela Dinamarca pelo placar de 2×0.[iv]
A Copa de 1971, realizada no México, obteve uma maior cobertura das imprensas brasileira e mexicana – e foi o mundial feminino que mais chamou a atenção da FIFA. Jornais do México traziam reportagens de destaque sobre o evento no país. Em notícia intitulada “Copa del Mundo para Mujeres”[v], o jornal destacou o fim do banimento inglês, a realização de jogos entre selecionados da Grã-Bretanha e ainda a criação de uma Liga Inglesa de Futebol Feminino. A notícia ainda mencionava a criação da Copa do Mundo Feminina naquele ano. O interessante aqui é a ênfase dada à luta das mulheres – nesse caso, sobretudo as inglesas – para o reconhecimento e a validação da prática do futebol de mulheres, que vinha sendo praticado sob ares proibitivos havia décadas.
Copa Mundo Feminina ocorrida no México em 1971. Reprodução.
Em outra reportagem nomeada “La ‘fuerza’ de las italianas contra la técnica argentina”[vi], o periódico narrou a disputa pelo terceiro lugar, sediada na Cidade do México. É interessante observar que a nota efetivamente destacava qualidades técnicas de ambas as equipes e reproduzia o questionamento do técnico argentino quanto à arbitragem do mundial. Diferente do que acontecia em outras reportagens, esta não destacava os atributos físicos das jogadoras. A nota mencionava ainda a necessidade da apresentação de ingressos para a entrada no estádio e declarava que a partida seria disputada e interessante.
Na imprensa brasileira, a cobertura do mundial assumia ares um pouco distintos. Em notícia do Jornal dos Sports, lê-se que a segunda Copa agora seria organizada pela Federação Internacional de Futebol Feminino. De acordo com a mesma reportagem, “foi um torneio bem organizado, que os homens consideraram uma reação superentusiástica das mulheres à atuação dos astros como Pelé, Riva e Bobby Moore, que disputaram a última Copa do Mundo de futebol masculino no México”.[vii] É interessante perceber que, mesmo elogiando o campeonato organizado em 1970 e reconhecendo seu sucesso, o jornal, de certa maneira, menosprezava o interesse das mulheres em praticar futebol, associando a criação dos eventos a uma “reação entusiástica” à Copa masculina, realizada no México no ano anterior.
Em outra reportagem do Jornal dos Sports sobre o II Campeonato Mundial Feminino, o texto afirma que os mexicanos estavam se preparando com muito afinco para o campeonato e que lamentavam que o Brasil – considerado, segundo a notícia, o país com o melhor futebol de mundo – não participaria do evento. A reportagem terminava afirmando que os mexicanos “esperam que o Mundial de Futebol Feminino seja um sucesso sob o ponto de vista técnico, porque o êxito em termos de turismo já está praticamente garantido, já que muita gente quererá ver de perto se as garotas curvilíneas batem bem na bola como os marmanjos.”[viii]
A partir da reportagem citada acima, é possível reiterar o que já foi apontado em outros textos: os estereótipos baseados na feminilidade e a beleza que se espera das mulheres permanecem presentes nos discursos da imprensa e da sociedade, mesmo em locais onde a prática desse esporte é permitida – e mesmo durante um torneio. É interessante ressaltar que a reportagem não questiona se a expectativa de ter um grande público poderia ou não se basear na capacidade tática e técnica do jogo praticado. Pelo contrário: para o redator, a presença de público estaria garantida porque as meninas curvilíneas estariam em campo e iriam despertar a curiosidade do público para ver se sabiam ou não bater bem na bola.
Tais reportagens apresentam dois aspectos importantes. O primeiro diz respeito ao contraponto do tom adotado pela imprensa dos dois países – México e Brasil – acerca do campeonato. Enquanto a primeira destacava fatos sobre o evento, a segunda sempre ressaltava aspectos do corpo feminino – o que estava em acordo com o senso comum referente à prática do esporte no país à época: o futebol deveria ser praticado apenas por homens.
Copa Mundo Feminina ocorrida no México em 1971. Reprodução.
Além disso, é digno de nota que poucos jornais se preocuparam em referenciar os campeonatos femininos. No México, além do El Informador, o jornal Sol de México também apresentou algumas reportagens sobre as copas; enquanto no Brasil, em pesquisas feitas por mim, somente nas edições do Jornal dos Sports foi encontrada alguma referência sobre os eventos.
Um segundo ponto diz respeito ao destaque que o evento ganhou. É evidente que a Copa do Mundo FIFA de Futebol Masculino era um campeonato muito mais famoso e que recebia muito mais atenção da imprensa e do público mundial. Porém, é necessário ressaltar a atenção que um campeonato “clandestino” – ou seja, sem o aval da entidade gestora do futebol mundial – recebeu na imprensa internacional, inclusive de países nos quais a modalidade era proibida por lei, como no caso brasileiro.
As mudanças no caminho: Rumo às edições televisionadas
A FIFA assumiu as rédeas da organização e da gerência do futebol de mulheres no final dos anos 1980, quando a modalidade já havia sido liberada e regulamentada no Brasil. Em 1991, a China sediou a 1ª Copa do Mundo FIFA de Futebol Feminino, demarcando que, a partir dali, o controle do futebol de mulheres estaria nas mãos da entidade – e mais, desconsiderando os mundiais que tinham acontecido anteriormente, relegando-os à “clandestinidade”.
Como já foi apontado por mim em outros textos, a proibição da modalidade e toda tentativa de apagamento deixaram legados à prática desse esporte ainda hoje. Foi somente em 2019 que o Grupo Globo transmitiu, pela primeira vez, a Copa do Mundo de Futebol Feminino no Brasil. Nos anos subsequentes, o grupo passou a transmitir partidas de outros campeonatos, como campeonatos estaduais (mesmo que a grande maioria dos jogos tenha sido transmitida em canais por assinatura pertencentes ao grupo, e não na TV aberta).
2023, como foi dito, é ano de Copa do Mundo de Futebol Feminino. O evento, que será sediado na Austrália e na Nova Zelândia, acontecerá entre os meses de julho e agosto e será o primeiro a contar com 32 seleções e a adotar formato semelhante ao que vigorou até 2022 para o futebol masculino. Contudo, se compararmos ao futebol de homens – que mesmo com o mundial tendo sido realizado em novembro de 2022, já contava com reportagens e coberturas especiais desde o início do ano –, a mídia ainda está um pouco silenciosa em relação à cobertura do evento.
Neste ano, o Grupo Globo também irá transmitir um novo campeonato de futebol de mulheres: a Supercopa de Futebol Feminino. O torneio teve sua primeira edição em 2022 e, para este ano, já há confrontos e tabela liberada pela CBF. O campeonato se iniciou no dia 4 de fevereiro e inaugurou o calendário de transmissões de futebol feminino na Globo.
Final do Campeonato Brasileiro Feminino A-1 – Corinthians x Palmeiras. Créditos: Staff Images Woman/CBF. Reprodução.
Todavia, esse campeonato despertou comentários e indignação de mulheres envolvidas na modalidade por conta da premiação. A Supercopa Masculina deste ano teve a premiação de R$ 10 milhões para o campeão e de R$ 5 milhões para o vice-campeão – os maiores valores já pagos na competição. Para as mulheres, contudo, às vésperas do início da competição, a CBF ainda não tinha divulgado o valor dos prêmios. Como na edição de 2022 não houve prêmio, ocorreram muitos comentários e chacotas nas redes sociais.
Segundo reportagem de página esportiva, a técnica do Atlético Mineiro teria ironizado em suas redes sociais que a premiação da Supercopa Feminina seria “andar de ônibus”. Outra atleta também divulgou em suas redes que a premiação do ano passado havia sido “50 medalhas e 1 troféu”. O debate nas redes sociais tem se apresentado entre, de um lado, pessoas que defendem uma maior valorização do futebol feminino – inclusive, reivindicando premiações semelhantes às do masculino – e, de outro, aqueles que não veem sentido nas reclamações.
No fim das contas, foi divulgado um pagamento para o torneio no valor de 500 mil reais para o time vencedor e de 300 mil para o segundo colocado. Após as cobranças nas redes, a própria CBF divulgou a notícia sobre o valor da recompensa em sua página, chamando a premiação para o torneio de histórica.
Sem entrar no mérito do debate, acredito que, a partir do que foi exposto neste texto, podemos chegar a duas conclusões: a primeira e mais direta é que o futebol de mulheres ainda tem um caminho importante a percorrer no sentido da igualdade de condições e, também, de premiações. A segunda diz respeito à história do futebol de mulheres. A tentativa – inclusive fomentada pela FIFA – de apagamento de competições e práticas do futebol de mulheres, faz com que a modalidade perca ainda mais sua bagagem e credibilidade aos olhos de parcelas da sociedade. Alguns grupos apareceram em comentários de redes sociais – diante da demora da CBF em divulgar o valor da premiação – justificando o seu não pagamento. O principal argumento utilizado por eles era o de que o futebol de mulheres é recente e que ainda precisava se aprimorar e adquirir mais tempo de jogo para que a igualdade aconteça.
Isso, como sabemos, não é verdade: as mulheres praticam futebol no Brasil desde, pelo menos, o início do século XX e, apesar das dificuldades e proibições no país e no mundo, seguiram se dedicando ao esporte. A duras penas, elas conseguiram reconhecimento e a proposição de campeonatos que, a cada ano, se multiplicam e atraem cada vez mais público e renda. Qual seria, então, a justificativa para a demora na divulgação do valor, ou ainda, para o pagamento de um valor tão inferior – chamado de “histórico” – para a competição feminina? Essa, sim, é uma pergunta que deveria fomentar inúmeros debates e que, ao fim e ao cabo, reflete a discriminação de gênero presente de maneira geral nos esportes e, de maneira específica, no futebol.
A busca pela visibilidade e igualdade no futebol de mulheres é algo que precisa ser constante. Mesmo quando existe uma conquista, a dificuldade em obter igualdade de condições se apresenta. É somente com o conhecimento da história e da historicidade dessa modalidade, de suas proibições e permanências, que poderemos ampliar a luta por respeito e igualdade no futebol.
Notas
[i] “Turim vai ter em julho a primeira Copa do Mundo de futebol para as mulheres”. Jornal do Brasil. Rio de Janeiro, 12 de março de 1970, p. 22. [ii] “Mais uma”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 16 de julho de 1970, p. 2. [iii] O termo “Copa do Mundo” é usado aqui entre aspas pois o nome do campeonato está diretamente relacionado àqueles organizados pela FIFA. No caso das copas mencionadas, não é a entidade responsável pela organização.
[iv] Uso aqui o termo “Copas Clandestinas” como mencionado por Jean Williams, em seu livro que menciona os mundiais. Nos documentos da própria FIFA, o evento é referido como “Os assim chamados Campeonatos Mundiais femininos” (Tradução livre). Cf. WILLIAMS, Jean. Globalising Women’s football. Europe, Migration and profissionalization. Berna: Peter Lang AG, Internationaler Verlag der Wissenschaften, 2013.
[v]El Informador. Guadalajara, 3 de junho de 1971, p. 5.
[vi]El Informador. Guadalajara, 2 de setembro de 1971, p. 1. [vii] “Um futebol diferente”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 14 de julho de 1971, p. 2.
[viii] “Elas também dão no couro”. Jornal dos Sports. Rio de Janeiro, 19 de junho de 1971, p. 2.
“Sensação do Campeonato Paulista, o Água Santa está garantido na Série D do Brasileirão e na Copa do Brasil de 2024. Com as vagas em mãos, o clube de Diadema optou por interromper as atividades do elenco profissional no segundo semestre desta temporada. Assim, serão no mínimo oito meses sem jogar entre abril, numa possível final do Paulistão, e janeiro do ano que vem”.[1]
O ano de 2023 começou para o futebol brasileiro masculino de alto rendimento com as equipes profissionais disputando seus campeonatos estaduais. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a fase final das competições contou com a presença de alguns clubes considerados “zebras” e, no presente texto, damos um enfoque maior ao Água Santa e ao Volta Redonda, semifinalistas nos Campeonato Carioca e Campeonato Paulista.
O Esporte Clube Água Santa é uma equipe da cidade de Diadema, mesorregião metropolitana do estado de São Paulo, e foi fundado em 27 de outubro de 1981 “por imigrantes nortistas, nordestinos e mineiros, que viam no clube a única possibilidade de lazer”.[2] A versão histórica de criação da instituição presente em seu site oficial já mostra, por si só, relação com o surto migratório Nordeste-Sudeste fruto da rápida industrialização paulista a partir dos anos 1930,[3] bem como associa o nascimento da entidade a grupos de menor poder aquisitivo.
Fonte: Agência Brasil
O Volta Redonda Futebol Clube surgiu nos anos 1970 como parte do processo de reforço identitário da cidade homônima do Rio de Janeiro, famosa por ser o local de instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) durante a Era Vargas (1930 – 1945). Desde seu princípio, a agremiação contou com o apoio institucional de outras entidades do gênero, pois o “então presidente da Liga de Desportos de Volta Redonda, Getúlio Albuquerque Guimarães, iniciou então o projeto, juntamente com o presidente do Flamenguinho de Volta Redonda, Guanayr de Souza Horst, para criar um clube de futebol para representar a cidade no novo Campeonato Estadual do Rio de Janeiro”.[4] Ademais, o próprio poder público se envolveu para ajudar no desenvolvimento do projeto que necessitava de um campo de jogo adequado e, por isso, “Nessa época, o Estádio Raulino de Oliveira pertencia à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e era administrado, em regime de comodato, pelo Guarani Futebol Clube, tradicional time amador da cidade. A prefeitura, a CSN e a Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), fizeram um acordo para a reforma do estádio, a fim de que abrigasse o novo time”.[5]
Fonte: Torcedores
Ambas as equipes possuem histórias ligadas ao desenvolvimento industrial no Brasil, o qual pode ser visto como parte do processo de urbanização de partes do país, algo essencial para a difusão do futebol. Todavia, estas equipes ficaram condicionadas dentro da lógica do futebol masculino de alto rendimento como clubes pequenos, cuja existência, na maior parte das vezes, é ignorada e, portanto, sem utilidade. Dessa forma, cabe-nos perguntar: para que servem os clubes “pequenos”?
Se partíssemos da perspectiva de que o futebol só tem a relevância atual por causa dos grandes times, dos super astros e dos jogos marcantes em estádios lotados, certamente nossa resposta à pergunta “para que servem os clubes ‘pequenos’?”, seria “para fornecer jogadores aos clubes maiores”. A perspectiva de que em torno de um centro futebolístico orbitam aspectos para engrandecê-lo é antiga e existente no Brasil desde os primeiros chutes,[6] não podendo, aliás, ser vista como algo natural, mas fruto dos processos de construção excludentes que caracterizaram a Primeira República (1889 – 1930).[7] Esta perspectiva está tão enraizada na sociedade brasileira que ainda se faz presente na atualidade pela pouca relevância atribuída aos clubes “pequenos” ou mesmo em vinculando-os como sujeitos ativos apenas quando podem ser associados às equipes consideradas “maiores”.
A visão hierarquizada dos times futebolísticos traz consigo o caráter excludente por meio do qual clubes com menos títulos “de expressão” acabam sendo esquecidos, ignorados e/ou apenas são lembrados somente quando conseguem obter sucessos dentro de campo semelhantes às das grandes equipes. Contudo, a realidade é bem mais complexa do que isso e, principalmente, é preciso considerar estas equipes dentro das suas possibilidades e percebê-las enquanto agremiações ativas e independentes dos chamados times grandes.
+ Historicamente, muitos dos times ditos pequenos foram responsáveis pelo desenvolvimento cotidiano do futebol em bairros que os clubes grandes não se faziam presentes com frequência. Foi por meio deles, aliás, que as relações de identidade futebolísticas foram construídas e consolidadas, motivo forte o bastante para não associarmos os times pequenos como hierarquicamente inferiores àqueles chamados grandes, mas igualmente importantes para a história do esporte bretão no Brasil.
[7] FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.
Em entrevista concedida ao professor assistente no Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Linguagens na Universidade Tuiuti do Paraná (UTP) Marcio Telles, Gumbrecht falou sobre sua paixão pelos esportes, o papel da presença na experiência do torcedor, as diferenças entre assistir ao esporte fisicamente no estádio e de maneira mediada, dentre outros temas. A entrevista completa foi publicada na revista Interin e foi gentilmente autorizada a publicação no blog no LEME.
Encontrar um ponto de ancoragem seguro e estável em meio ao desequilíbrio gritante de uma narrativa de vida marcada por altos, baixos e reviravoltas inacabadas sem fim soa, de início, como uma maneira fácil de colocar tudo a perder, a fórmula perfeita para o caos. Só que trazer a trama publicamente desconhecida de um fenômeno midiático e astro do futebol é, na verdade, a receita para o sucesso, já que o desconhecimento instiga a degustar da pergunta que azucrina os que não conhecem Neymar Júnior como seus pais e seus “parças” o conhecem: o que se passa no olho desse furacão?
Movido pela ambição de oferecer uma nova perspectiva sobre o jogador do PSG, o documentário Neymar – O Caos Perfeito tenta deixar evidente uma resposta fundamental sobre sua personalidade dupla. O original da Netflix, dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, ajuda a construir uma imagem particular do craque, em tempo, uma imagem ideal: Neymar é o herói da sua narrativa, pois é o herói nas escolhas subjetivas que o recorte do documentário faz. Para edificar essa figura digna de admiração, O Caos Perfeito utiliza elementos narrativos típicos da Jornada do Herói, sob os conceitos de Joseph Campbell e Christopher Vogler, descrita no artigo de Anelise Rubelscki e Giulianno Lara Olivar (2014), intitulado “A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas”.
Como protagonista de uma história que compreende um dom raro e um fardo grandioso, aversão e admiração em escalas semelhantes, Neymar encontra-se a todo o momento driblando e bailando perigosamente em cima da fronteira que separa os heróis dos vilões, uma fronteira que em seu caso parece cada vez mais estreita. Em certos momentos, é possível perceber na sua irresponsabilidade imatura uma loucura quase psicótica de um Coringa mentalmente atormentado por seu passado sem nenhum mentor moral. Em outros, a virtude espontânea e a força por aguentar tanto remetem a um Batman que parece estar bem próximo de sair das trevas e retornar triunfante. É dessa maneira que Neymar se enxerga e que o documentário faz questão de enfatizar: ele se vê como o Batman para a sua família e amigos e como o Coringa para todos os que o conhecem de modo superficial. Ou seja, nesse recorte narrativo, a série segue a ideia de que a verdadeira face de Neymar é a do herói, face reconhecida por aqueles que o conhecem em sua intimidade. Fazendo isso, o documentário fecha as portas para pensar sobre cada um dos dois alter egos possíveis de coexistência no jogador, ao mesmo tempo que traça uma trilha homérica como justificativa para o espectador o enxergar como ídolo. A jornada do herói é flexível à cultura em que busca se inserir, e sob a ótica do documentário não é diferente. A produção utiliza músicas, cenários, vocábulos e interações que remetem à identidade cultural brasileira, de modo que haja reconhecimento e assimilação do jogador com a cultura em que este tem origem.
Ronaldo Helal (2003, p .21), no artigo “A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro”, afirma que “os ídolos têm que conviver constantemente com o drama de ser dois: o homem e o mito”. Através da mitificação de Neymar como um ídolo futebolístico, a qual o documentário enfoca, há a tentativa de amenizar e relativizar o peso que a imprensa dá às suas falhas e derrotas, recorrendo ao cotidiano oculto aos olhares do público – a vida pessoal, a família, os sentimentos e o lado humano – para atribuir aos erros e às imperfeições o enquadramento de provação, estágio em que o protagonista é testado à exaustão para ao final ser recompensado com o conhecimento vital à sua jornada (RUBELSCKI; OLIVAR, 2014). Em parte, assim como toda forma de contar histórias sob o modelo da jornada do herói, O Caos Perfeito promove uma harmonização da vida e da realidade, uma espécie de acordo negociado com o estar no mundo (HELAL, 2003, p.3). Com isso, ao não definir a derrota como um ponto final e sim como uma vírgula, entendemos os acontecimentos negativos apenas como parte do processo em que o herói está se provando. Essa fase – possivelmente a mais extensa da carreira de Neymar – pode até mesmo explicar a constante impressão que se há nas narrativas da mídia sobre o jogador – o prolongamento da ideia de que é o “menino Ney”, o jovem jogador que ainda não alcançara todo o seu potencial. É em torno dessa narrativa que há a utilização do mito no documentário: entendemos que o herói Neymar passa por constantes situações de provação nos momentos em que não alcança o êxito, retirando o peso que a mídia atribui às suas derrotas.
Neymar atende aos requisitos pelos quais um herói é reconhecido, já que, conforme Helal (2003, p. 20), no Brasil, as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos “enfatizam a genialidade e o improviso como características marcantes e fundamentais para se alcançar o sucesso”, deixando de lado o esforço e o trabalho nesta construção. Por sua vez, Campbell descreve o herói como “aquele que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiências” (2009, citado por Rubelscki e Olivar, 2014). Porém, como em toda narrativa da Jornada do Herói, há a expectativa por desfechos positivos, talvez a parte mais carente do script da carreira de Neymar. Pelos mais variados motivos, o jogador é mais reconhecido por seu potencial do que propriamente por suas conquistas e postura como “herói – que se origina mais da sua capacidade de improvisação, o futebol bonito, o drible e a irreverência do que da disciplina, do trabalho, do metodismo e da dedicação –, por isso há a dificuldade de reconhecer Neymar como um ídolo/atleta consolidado, e ele é tratado no documentário como um herói ainda em meio ao seu processo.
Já na mídia, muitas são as justificativas que buscam explicar os tropeços de Neymar em busca do êxito, como o fato de nunca ter ganho uma Copa do Mundo, por exemplo. Resgata-se a discussão sobre o dever moral do herói, um senso de que este necessita dar a própria vida por algo maior que ele mesmo, como descreve Campbell. O jogador reafirma no documentário que não abre mão de viver sua vida pessoal como bem entende, mas que tem plena consciência de que é frequentemente cobrado pela imprensa e pelos torcedores por isso. A postura de “pouco compromissado”, em muitas ocasiões, é atribuída como a responsável pelos fracassos de Neymar pela mídia e pelos torcedores. Sobre isso, Helal acrescenta que: “não basta o ato heroico em si, de forma isolada – no caso, as vitórias, as realizações e os gols no futebol. O herói tem que preencher outros requisitos – tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo – para se firmar no posto” (HELAL, 2003, p.23).
Sob esta percepção, Neymar carece de alguns dos elementos citados, e seria, portanto, criticado na mídia com certa frequência por essa razão. O documentário, então, busca explorar situações em que estes elementos estejam presentes no cotidiano do jogador. Ao descrever a “superioridade” de Zico sobre os outros mortais – os elementos que o tornam um herói –, Helal diz que esta reside mais “na forma com que enfrenta os desafios e os obstáculos que a vida impõe do que em seu talento extraordinário para o futebol” (2003, p. 23). Sob esta ótica, a “superioridade” de Neymar seguiria o caminho inverso, sendo valorizada pela sua capacidade desportiva, mas pouco por sua devoção e sacrifício. Tal senso moral engloba total dedicação, esforço e sacrifício em busca do objetivo final, elementos que não são observados no craque sob a percepção das pessoas ouvidas pelos entrevistadores do documentário – majoritariamente torcedores do Paris Saint Germain e jornalistas brasileiros –, e que entram em evidência nos discursos críticos ao jogador, principalmente nos momentos de dificuldade, em que a vitória não é alcançada.
O embate entre a perspectiva de Neymar como um herói ainda em seu período de provação versus um vilão que mais prejudicou do que propriamente agregou valor é, então, expresso no documentário em forma de dualidade – Batman e Coringa –, de modo que Neymar se entenda parte como herói e parte como vilão, sem determinar especificamente o que ele acredita ser. A sua identificação como ídolo, e também, portanto, como herói, aconteceria pela identificação do que valorizamos mais na jornada de um jogador de futebol, já que no Brasil, principalmente em Copas do Mundo, tendemos a valorizar o lado mais estético, alegre, criativo, e ‘artístico’ do futebol, como sendo características típicas da sociedade brasileira (HELAL, 2003, p.29), elementos presentes na jornada de Neymar. Já a sua imagem como vilão seria construída por suas derrotas, suas más decisões (a transferência para o Paris Saint Germain é apontada como uma), seu mau comportamento e pouca devoção ao trabalho, a uma suposta indisciplina e também por fatores extracampo – estes não abordados no documentário –, como as polêmicas relacionadas às acusações de abuso sexual e a declaração pública de apoio ao candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022, Jair Bolsonaro, que dividiu opiniões entre a então polarizada torcida brasileira um mês antes da realização da Copa do Mundo de 2022.
Referências
RUBELSCKI, Anelise. OLIVAR, Giulianno. A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas. Lumina, [S. l.], v. 7, n. 2, 2014. DOI: 10.34019/1981-4070.2013.v7.21066. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21066. Acesso em: 9 fev. 2023.
HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu, v. 4, n. 7, p. 19-36, jul./dez. 2003.
O Seminário “Quem é o primeiro ídolo do seu clube?”, acontece no dia 7 de fevereiro, às 18h, no auditório do PPGCom da UERJ, no 10º andar, às 18h, com transmissão ao vivo do canal do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Canal lemeuerj)[1] no Youtube. A iniciativa é do Grupo de Pesquisa Esportes, Ídolos e Identidades (GEII), coordenado pelo professor do Departamento de Jornalismo da FCS da UERJ e doutor em Comunicação pela UFF, Sérgio Montero Souto, também pesquisador do LEME, e integrado pelos alunos e ex-alunos da graduação da FCS Enzo Tomaz Anselmo, Gustavo Silva Fernandes, Maíra Vallejo dos Santos e Maria Vitória Santos Pereira.
O recorte escolhido foi o incipiente material sobre o futebol carioca dos anos que antecedem ao primeiro campeonato do estado, em 1906, até 1932, último ano oficial do amadorismo. O professor Sérgio Souto explica: “Garrincha, Zico, Roberto Dinamite e Castilho ou Fred ou Assis.[1] Com a solitária exceção do Fluminense, que, ao longo da sua centenária história, não produziu um ídolo consensualmente considerado o maior de todos, torcedores dos demais grandes clubes do Rio de Janeiro não têm dúvidas em apontar quem ocupa o topo do Olimpo das histórias, respectivamente, de Botafogo, Flamengo e Vasco. Tal reconhecimento não se limita aos torcedores de cada um dos três clubes; é acolhido pela imprensa e pela academia, sendo, inclusive, reconhecido pelos rivais. No entanto, se – com a ressalva à singular situação do Fluminense – inexistem dúvidas sobre o mais importante ídolo histórico dos clubes cariocas, um estranho silêncio faz-se presente se a pergunta tiver como alvo o primeiro ídolo de cada um. A inexistência de uma resposta positiva nos leva a uma lacuna intrigante: poderia um esporte capaz de despertar paixões tão catárticas e parte integrante da constituição da identidade nacional ter um início sem um rosto tão prenhe de simbolismo?”.
Para tentar responder a essa e diversas outras questões acontecerá o seminário. Abaixo, temos a programação:
PROGRAMAÇÃO
18h – Abertura do seminário pelo coordenador do GEII, professor Sérgio Souto
18h25min – Enzo Tomaz Anselmo: O extraordinário Mimi Sodré (Botafogo)
18h35min – Gustavo Silva Fernandes: Kunz, o primeiro grande goleiro brasileiro (Flamengo)
18h45min – Maíra Vallejo dos Santos: O inigualável footballer Etchegaray (Fluminense)
18h55min – Maria Vitória Santos: Russinho, o jogador mais popular do Brasil (Vasco)
19h10min: Professor Filipe Mostaro: Idolatria no passado e no presente
19h30min: Debate e perguntas da plateia.
20h30min: Encerramento do seminário pelo professor Sérgio Souto
O tema do nosso quinquagésimo nono episódio é a “Misoginia e racismo no surfe brasileiro”. Com apresentação de Júlio Cesar Barcellos e André Tavares, gravamos com Érica Prado, apresentadora, repórter, produtora de conteúdo, modelo e ex-sufista profissional.
O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.
Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o quinquagésimo nono episódio do Passes & Impasses.
No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Zumbi”, de Jorge Ben.
Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.
Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):
Coordenação Geral: Ronaldo Helal Direção: Filipe Mostaro e Fausto Amaro Roteiro e produção: André Tavares Edição de áudio: Abner Rey Apresentação: Júlio Cesar Barcellos e André Tavares Convidada: Érica Prado