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Idolatria de mitos do futebol brasileiro é construída pela mídia

Determinadas características consolidam os heróis no imaginário popular

Por Anabella Léccas e Paula Freitas

Zico, Romário e Ronaldo Fenômeno são notadamente reconhecidos como heróis do futebol mundial. Ao longo das suas carreiras, os atletas receberam grande atenção da mídia e, como consequência, conquistaram o apreço popular. Um conjunto de artigos produzidos pelo professor titular da Faculdade Comunicação Social da UERJ, Ronaldo Helal, procura investigar a forma como a imprensa futebolística atuou na construção das narrativas de idolatria que envolvem os três jogadores cariocas. 

Para isso, o pesquisador do CNPq utilizou como base a análise de jornais da Copa de 1994, na qual Romário se firmou como um grande herói e salvador do futebol brasileiro; de jornais da Copa de 1998, que marcou a provação de Ronaldo como mito após a derrota da seleção; e das biografias Zico: uma lição de vida e Zico conta a sua história, em que a trajetória de vida de Arthur Coimbra mostra a presença de certos requisitos para a construção da sua imagem como ídolo.

De acordo com Helal, os entraves futebolísticos, representados nas disputas em campo, proporcionam “um terreno fértil para a produção de mitos e ritos relevantes para a comunidade” (HELAL, p. 1, 2003). Em conjunto, características pré-definidas pelo público e acordadas com a mídia complementam a figura do herói, como é o caso da “genialidade”, do “improviso” e da “malandragem” (HELAL, 2003). O professor relata também que apesar da imprensa hegemônica valorizar o talento inato frente a dedicação, existem exceções, como a de Zico.

Em um aspecto mais amplo da idolatria, a infância dos ídolos tende a funcionar como uma ferramenta para a identificação do público. No caso de Zico, não é diferente. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro e caçula entre cinco irmãos, Arthur faz parte de uma série de atletas que tem um passado simples, sem muitas regalias. Essa questão aproxima o herói Zico do homem comum, porque demonstra um ponto de familiaridade entre a infância dos torcedores e a do consagrado mito.

Fonte da imagem: Globo Esporte.

Além disso, a determinação e o foco no treino são pontos que Zico considera essenciais para a consolidação de uma carreira de sucesso. Desse modo, o jogador destaca esses pontos como fatores imprescindíveis no fortalecimento da sua condição de herói, sendo este mais um passo para o desenvolvimento da sua afinidade com o público.

O intenso esforço de Zico e o constante acompanhamento médico o renderam o apelido de “craque de laboratório” (HELAL, p. 23, 1999). No entanto, “[…] à época a alcunha ‘craque de laboratório’ era utilizada, muitas vezes, de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, fugindo das características “artísticas”, “espontâneas” e “criativas” do nosso futebol” (HELAL, p. 23, 2003).

Fervorosamente criticado pela imprensa e por seus opositores, o jogador do Flamengo, que ainda ocupava o banco de reservas, também passou por algumas decepções antes de se tornar um craque do time rubro-negro. Além das contestações dos jornalistas, a ausência da convocação para as Olimpíadas de 1972 soma-se aos percalços enfrentados pelo ídolo, que relata essa derrota pessoal e profissional como fonte de motivação para um treino ainda mais vigoroso.

Ao se elevar como jogador titular do Flamengo e, em seguida, conquistar a camisa dez rubro-negra, Zico se firma como um herói inegável pela imprensa e pelos apaixonados por futebol. Helal reflete, ainda, que a idolatria em torno de Arthur Coimbra se difere dos outros ídolos do futebol brasileiro e da visão clássica da mídia que privilegia a malandragem frente ao esforço e à dedicação.

Um exemplo de ídolo exaltado pela mídia por personificar a malandragem e o talento inato é o jogador Romário. Durante a sua carreira, o atleta se envolveu em inúmeras polêmicas e discussões, sendo caracterizado por uma matéria do jornal “O Globo” como: “quase uma bomba que tem pernas”, “parece o dono do mundo” e “abusado” (O Globo, 13/09/1993). Ao mesmo passo, o jornal o definia como um “artilheiro” e “craque” que “faz gol como quem brinca” (O Globo, 13/09/1993).

Essa dualidade, por mais paradoxal que seja, acaba definindo Romário como o “marrento” favorito do Brasil. A construção da narrativa do jogador carioca é “muito mais próxima do modelo “Malasartes” e “Macunaíma”, exaustivamente analisado por Roberto Da Matta (1979) que, inclusive, traz para o discurso acadêmico a narrativa do “malandro” como uma vertente tipicamente brasileira, corroborando, assim, a postura adotada por parte da mídia” (HELAL, p. 22, 2003).

Fonte da imagem: GQ – Globo

A Copa de 1994, sediada nos Estados Unidos, reforçou ainda mais o paradoxo que envolve a carreira de Romário. O atleta era visto como uma figura “difícil”, mas, ao mesmo tempo, necessária para que a seleção brasileira vencesse o grande torneio de futebol da FIFA. Durante as eliminatórias da competição, Romário já era visto como uma ferramenta imprescindível e extremamente decisiva para que o Brasil pudesse, de fato, chegar até a Copa do Mundo. Na partida contra o Uruguai, o jogador “abusado” fez dois gols e levou o time a vitória, reafirmando os seus discursos prévios de que iria, certamente, fazer uma boa atuação e ganhar a partida. Em um dos artigos, ao analisar essa questão, o pesquisador Ronaldo Helal relaciona o jogador à jornada do herói de Joseph Campbell. 

A ciência que Romário tem de seu papel assemelha-se ao início da saga clássica do herói que atende ao chamado e parte em busca da missão redentora (Campbell, 1995 e Brandão, 1993). Porém, Romário age com uma boa dose de picardia ao tratar da missão como algo fácil e encarar os adversários com ar de deboche (…) (HELAL, p. 29, 2003).

Ao longo da Copa do Mundo, o atleta segue com essa “picardia” e “deboche”, mas, ao mesmo tempo, cumpre com as suas declarações e se mantém como um grande mito durante toda a competição, garantindo a conquista do tetracampeonato para o Brasil e compondo o quadro da galeria dos heróis.

Outro fator-chave para fortificar a construção da idolatria é a necessidade da sociedade em encontrar no herói qualidades para se inspirar e defeitos para se identificar. Ronaldo, alcunhado de  Fenômeno, incorpora esses dois polos. Às vésperas da Copa de 1998, o jovem de 21 anos e jogador do Grêmio já enfrentava duras críticas da mídia. O peso, problemas no joelho e crise no relacionamento eram os pontos principais apontados pela imprensa. Ao mesmo tempo, Ronaldo era também definido por suas qualidades: era humilde, maduro e tranquilo. O herói parecia estar pronto para todo e qualquer desafio que fosse imposto.

O seu desempenho na final do torneio acabou decepcionando o público. Na disputa contra a França pelo título, a seleção foi derrotada e a atuação do Fenômeno foi malvista pelos fãs de futebol. No entanto, a grande mídia, rapidamente, aproveitou o descontentamento para justificar as falhas do ídolo. Em uma edição do Jornal do Brasil, Ronaldo era visto como humano e, portanto, passível de erros.

A batalha contra questões neurovegetativas, o fator emocional e o período de reclusão criam um contraponto com a sua imagem de herói perfeito. O jogador não é imbatível e “(…) na “queda” do ídolo, presenciamos a sua “humanização”. Ao invés do super-homem Ronaldinho, “descobrimos” Ronaldo, o homem, o mortal. Os fãs se familiarizam com ele e muitos querem lhe dar colo” (HELAL, p. 5-6, 1999).

Fonte da imagem: Pipeline – Globo

Todos eram homens, mas, não necessariamente, todos seriam ídolos e, mesmo assim, os três conseguiram alcançar esse posto, evidenciando que, em determinados casos, a construção dos mitos apresenta especificidades que são perpetuadas através do uso da mídia. O projeto “Meios de Comunicação, Idolatria e Cultura Popular no Brasil”, desenvolvido nos artigos do professor Ronaldo Helal, propõe uma série de reflexões sobre a construção das narrativas de idolatria e contribui para o campo da comunicação, o que mostra que a formação da figura dos heróis acontece de modos distintos. 

O cuidado ao analisar essa questão deve ser imprescindível, pois, nem toda característica tornaria um indivíduo comum em um herói, não existe uma “forma” certeira para essa mitificação, apenas suposições recorrentes.  Por exemplo, se Zico fosse “malandro”, Romário fosse um jogador “humilde” e Ronaldo “imaturo”, será que teriam conquistado tanto sucesso? Para Helal, as características de cada um desses atletas adicionadas ao contexto midiático, social e futebolístico da época criaram um terreno fértil para a consolidação do heroísmo que compôs as suas carreiras. Ou seja, eles tinham a personalidade certa no momento certo.

Assim, Helal atua como um precursor no debate acerca da idolatria no futebol nacional e reforça o poder da mídia enquanto criadora de histórias mesmo que apenas parcialmente verdadeiras. Entende também o papel dos meios de comunicação, em consenso com a população, no estabelecimento dos pré-requisitos necessários para a gênese de um novo herói. Por fim, o pesquisador compreende a existência de múltiplas narrativas que permeiam o imaginário do público, seja através da ética anglo-saxônica na trajetória de Zico, seja por meio do ideal de “Macunaíma” na de Romário. 

A última é privilegiada pela imprensa brasileira, que tem um apreço peculiar pela malandragem e pelo talento inato, como indica o professor. Ronaldo Fenômeno pode ser interpretado como o melhor dos dois mundos, uma união entre a ludicidade, a sagacidade e a maturidade. Helal acende uma faísca para calcular o que, no futuro, será necessário para a formação de novos mitos no futebol. É possível concluir, portanto, que a presença de ídolos perpassa a sociedade e “(…) de uma forma ou de outra, todos os grupos humanos “fabricam” os seus heróis” (HELAL, p. 5, 1998). 

Artigos científicos

HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu 4.7, p. 19-36, 2003. 

HELAL, Ronaldo. Cultura e idolatria: ilusão, consumo e fantasia. Cultura e Imaginário. 1ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

HELAL, Ronaldo. Mídia, ídolos e heróis do futebol. Revista Comunicação, Movimento e Mídia na Educação Física, v. 2, n. 03, p. 32-52, 1999.

Artigos

Racismo contra Vini Jr.: quem são os ultras, as torcidas extremistas que protagonizam manifestações de ódio

Ataques racistas ao craque brasileiro não são fatos isolados causados por “rivalidade”, mas prática recorrente nos estádios espanhóis, há décadas contaminados por grupos neofascistas

O novo ataque racista contra Vinícius Jr. expôs mais uma vez a questão dos ultras, tipo de grupo organizado de torcedores mais comum na Europa, com raízes na Itália – politicamente identificado com correntes ideológicas ultranacionalistas, racistas e xenófobas. Mas como surgiram esses grupos? E por que é difícil combatê-los?

Embora o problema do racismo seja muito mais profundo e disseminado na sociedade espanhola do que apenas o futebol permite compreender – o que não nos permite resumir esses ataques racistas a esses segmentos organizados de torcedores –, é fundamental reforçar a existência desses elementos por dois motivos.

  • Primeiro, porque são grupos organizados, com pautas políticas claras (dentro e fora dos estádios) que não deixam de se reproduzir e de ocupar esses espaços. O protagonismo desses grupos nas arquibancadas se dá pela base da força física e muitas vezes contou no passado com a conivência ou vista grossa dos próprios clubes.
  • Segundo, porque são responsáveis há muito tempo pela naturalização de expressões discriminatórias e discursos de ódio dentro do ambiente do futebol. Sob a pretensa participação na desestabilização mental de adversários, esses grupos extremistas incitam torcedores comuns a também perderem o pudor e medo da justiça.

Já são nove casos de racismo contra o brasileiro Vinicius Jr. investigados por La Liga nessa temporada. Dos mais explícitos, graves e violentos, estavam os ataques nos estádios do Atlético de Madrid, do Real Betis, do Real Valladolid e, o mais recente do Valencia CF, ocorrido no domingo (21).

No estádio do Mestalla, Vini Jr. se dirigiu ao fundo de um dos gols e apontou para um torcedor do time local, que estava imitado um macaco para lhe agredir. Imagens publicadas de momentos antes e depois desse fato mostraram o uso repetitivo de ofensas racistas de todo o tipo partindo daquela mesma “grada”, dos ultras, muito comuns no futebol espanhol há um bom tempo. As quatro agremiações listadas estão em diferentes comunidades autônomas do país, o que já permite conceber a dimensão nacional do problema.

Embora a cultura de violência seja generalizada, registrando casos recorrentes de agressão, confronto e distúrbios, há alguns coletivos ultras mais identificados à esquerda e muitos outros que, no sentido contrário, reivindicam ser apenas “grupos de animação apolíticos”. Entretanto, o volume, presença e fatos protagonizados pelos ultras de extrema-direita são mais significativos e aparentam estar em processo de retomada.

‘Organizadas’ do ódio político

Antes de tudo, é preciso compreender e reconhecer que o futebol é apenas um dos variados espaços da vida cotidiana onde essas correntes políticas extremistas atuam para impor suas “ideias”, atiçar ignorantes, provocar sentimento de ódio em desalentados e capitalizar essa animosidade para fins eleitorais – enquanto colocam em risco a vida de inúmeros cidadãos.

No futebol, especialmente nos estádios, esse extremismo encontra um terreno fértil para a agitação política. Trata-se de um espaço privilegiado para se alcançar um público de homens jovens sedentos por emoção, rivalidade e violência e com a constante necessidade de afirmação da masculinidade. Uma porta aberta para a introjeção de uma ideologia baseada na intolerância.

Essa questão não é nem um pouco nova. Desde os anos 1970 a Europa testemunha a relação íntima entre grupos de torcedores violentos com movimentos e lideranças políticas ultra-nacionalistas, supremacistas e/ou abertamente fascistas. Apesar de observado em todo o continente, é em países como Itália e Espanha que esse fenômeno demonstra uma preocupante insistência (e consistência).

Há questões históricas que favorecem a reprodução dessas ideias, quando são países onde o próprio entendimento sobre o que é racismo é raso, onde o debate não atinge força midiática e onde o tema não ganha o devido suporte das principais organizações políticas. Contudo, o problema mais grave é a condescendência de quem poderia tomar atitudes mais enérgicas.

Atualmente se registram mais de uma dezena de “coletivos ultras” que declaram abertamente um alinhamento a ideologias de extrema-direita, ligados a clubes de todo o país. Formam um variado espectro: tradicionalistas, ultraconservadores, ultranacionalistas, franquistas/neofascistas, neonazistas, regionalistas, centralistas… Diferentes em alguns aspectos, mas todos centralmente conectados pelo ódio a imigrantes, pelo racismo explícito, pela islamofobia, pela xenofobia e pela paranóia “anti-modernidade”.

Ultras de extrema-direita na Espanha, em quadro exibido pelo Redação Sportv — Foto: Divulgação

No caso do Valencia, estamos falando do grupo “Yomus”, famoso por registros de manifestações neonazistas e por entoar cânticos franquistas (o regime fascista que dominou a Espanha entre 1936 e 1975). Características políticas parecidas vistas com “Frente Atlético”, “Supporters Gol Sur” (Betis) e no antigo “Ultras Violeta” (Valladolid), coletivos ultras dos outros casos mais graves de racismo contra o brasileiro, anteriormente mencionados.

A Yomus esteve enfraquecida nos últimos anos, como ocorreu a diversos grupos do tipo – após aumento da exposição, da criação de políticas públicas e quando alguns clubes resolveram tomar vergonha na cara e agir –, mas há alguns anos começaram a retomar o controle da “grada de animación” – o setor ao qual se dirigiu Vinicius Jr.

Por isso é importante observar que quando esses agrupamentos vão ao estádio e cantam músicas racistas, eles não agem (apenas) por rivalidade clubística. Mais do que agredir, eles buscam “exercer o direito” de ser racista e convencer os demais “espanhóis originais” – brancos, cristãos e conservadores – de que isso é normal, parte do modo de vida local e que essa é uma forma de “defender a Europa”.

Segundo Carles Viñas, historiador que é professor da Universidade de Barcelona e autor do livro “El Mundo Ultra: los radicales del fútbol español”, lançado em 2005, a relação atual desses grupos com partidos institucionalizados ainda é desconhecida ou de difícil comprovação, mas são incontáveis as ocasiões de manifestações públicas, protestos ou contraprotestos onde esses grupos de extremistas estiveram presentes, inclusive promovendo ataques violentos.

Nos anos 2000, dada a proporção e força que esses grupos ganharam nas “gradas de animación”, Barcelona e Real Madrid tomaram medidas mais agressivas de banimento contra as suas versões internas de extremistas de arquibancada (Boixos Nois e Ultras Sur, respectivamente).

É certo que esse processo também visava e se inseria na transformação dos estádios e a substituição do público dessa “grada”, para priorização de um público turista, mas também servem de exemplo de como os clubes podem atuar por conta própria, de modo a alterar a correlação de forças nas suas arquibancadas – considerando que são diversos e plurais os grupos que compartilham esses setores, dentre os quais podem conviver grupos alheios a essas correntes extremistas.

Aparentemente, os proprietários de alguns desses clubes temem atrair para si a responsabilidade e as consequências de identificar e combater esses agrupamentos extremistas. Razão pela qual é tão comum ver esses sujeitos desfilando suas bandeiras, símbolos, gestos e cânticos ofensivos, como locais ou visitantes, como mostram exemplos recentes da Ligallo (Zaragoza) em visita ao estádio do Osasuna; ou da Frente Atlético entoando canções franquistas no estádio do Rayo Vallecano.

A própria Yomus é famosa por fazer ataques xenófobos e racistas contra Peter Lim, o proprietário singapuriano do Valencia, quando comparecem aos recorrentes protestos da torcida exigindo a sua saída. Por conta disso, de modo a tentar se afastar desses elementos, os diversos outros grupos de torcedores realizam manifestações separadas, alterando as palavras de ordem, como, por exemplo, na troca do lema “Lim Go Home” por “Meriton Out”, nome da sua empresa.

Por outro lado, em que pesem as notas e medidas sempre anunciadas pela Real Federação Espanhola, por La Liga ou por distintos órgãos do poder público, há uma curiosa dificuldade em tratar o assunto com a seriedade que merece: não se trata de um punhado de moleques racistas irresponsáveis, mas de agrupamentos politicamente coesos, organizados, estimulados e por vezes financiados para atuar como milícias capazes de exercer a violência física, munidos de ideias muito claras sobre o que almejam por modelo de sociedade – e quais segmentos desejam ver excluídos dela.

Também é recorrente (e talvez conveniente) da parte desses órgãos a teimosa e contraproducente tentativa de estabelecer equivalências entre as ações desses grupos caracterizados pelo racismo e pela xenofobia, com o envolvimento de outros grupos em confrontos violentos sem objetiva motivação política.

Javier Tebas combate… a vítima

Uma parte dessa história não precisaria ser destacada, não fosse a lamentável postura de Javier Tebas, presidente de La Liga, em reagir aos acontecimentos no Mestalla atacando exatamente Vinicius Jr. De forma inconsequente, jogou gasolina na fogueira ao sugerir que o brasileiro exagera e que as medidas tomadas até aqui já bastam.

Artigo publicado originalmente no site do GE, em 22/05. O texto na íntegra pode ser acessado aqui.

Eventos

Laboratório da UERJ reúne Carnaval e futebol em evento

Imagina a união entre futebol e Carnaval? Pensou? O Audiolab (Laboratório de Áudio) da Faculdade de Comunicação da UERJ, sim. Anota aí na sua agenda: de 29 a 31 de maio, a universidade receberá nomes como: Milton Cunha, Renata Silveira, Guilherme Oliveira, Rafael Nagib, Fausto Amaro, Aydano André Motta, Amanda Ribeiro, Leonardo Bruno e Rafaela Bastos, no Seminário “Mídias, imaginário e sonoridades”, sob a coordenação do professor Filipe Mostaro.

O evento, dividido em três mesas de debates, acontece sempre às 19h, no auditório 93, bloco F, localizado no 9º andar da UERJ, campus Maracanã. O Seminário “Mídias, imaginário e sonoridades” marca o lançamento de dois projetos do Audiolab: Escola de Narradores e Ateliê do Podcast. A iniciativa integra o projeto de pesquisa Mídia, Imaginário e Sonoridade e tem o apoio do LEME – Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte. As inscrições podem ser feitas aqui.

PROGRAMAÇÃO

29 de maio

Tema: A cobertura do futebol

Convidados: Guilherme Oliveira (produtor do Globo Esporte, TV Globo); Renata Silveira (narradora da TV Globo); e Rafael Nagib (editor do Grupo Globo).

30 de maio

Tema: Desafios e experiências de cobrir os Jogos Olímpicos

Convidados: Carlos Gil (jornalista TV Globo) e Fausto Amaro (professor da  FCS e vice-coordenador do LEME).

31 de maio

Tema: Por dentro da Avenida: cobertura sobre o carnaval

Convidados: Rita Fernandes (jornalista e pesquisadora de Carnaval), Milton Cunha (carnavalesco e comentarista), Aydano André Motta (jornalista e pesquisador de Carnaval), Amanda Ribeiro (jornalista), Rafaela Bastos (professora, ex-passista e musa da Mangueira) e Leonardo Bruno (jornalista e escritor).

Para quem não puder comparecer presencialmente, o Audiolab irá fazer a transmissão ao vivo, basta clicar nos links abaixo:

MESA 1

MESA 2

MESA 3

Artigos

A audiodescrição chega aos jogos com transmissão ao vivo no Brasil

O serviço de audiodescrição tem sido realidade durante algumas competições esportivas no país, de um ano para cá. Durante a Copa do Mundo Masculina, em 2022, cerimônias de abertura e encerramento e jogos puderam ser ouvidos em audiodescrição, na TV Globo. Já a operadora de TV paga Claro disponibilizou um canal, onde foi possível ouvir a audiodescrição por meio de um QR code. Mais recentemente, o Campeonato Paulista de Futebol também teve alguns jogos com este recurso.

Na TV Globo, a transmissão foi possível por meio da tecla SAP e, em muitas vezes, o áudio da narração de Galvão Bueno e o áudio do audiodescritor ficaram sobrepostos. No caso da transmissão da Claro, foi disponibilizado o canal 533. Por meio do QR code foi possível ouvir a audiodescrição em um aparelho auxiliar (celular, tablet e computador). Já no Campeonato Paulista, os jogos São Paulo x Corinthians, Palmeiras x Santos, as quartas de final, semifinais e finais tiveram o recurso de audiodescrição por meio do Youtube. 

Ainda são poucos os estudos para avaliar a melhor maneira de se transmitir os jogos com acessibilidade. Nas entrevistas que tenho feito para minha tese de doutorado, há uma tendência de que as pessoas com deficiência visual prefiram o não uso da tecla SAP, devido à sobreposição de áudio. Por mais que nas duas outras opções aqui citadas, eles ouçam a audiodescrição em um meio e a narração tradicional em outro, minha população de pesquisa acredita que assim fica mais fácil ouvir a partida. Outro ponto destacado é que ouvir pela tecla SAP depende também de quem está junto no mesmo ambiente. Pessoas videntes nem sempre têm o entendimento da importância do recurso de audiodescrição e acham que este está atrapalhando. Com a audiodescrição transmitida por meio do celular, tablet ou computador, é possível usar um fone e continuar no mesmo ambiente, sem que os demais escutem a audiodescrição, facilitando assim, também, a sociabilidade.

É um erro pensarmos que o recurso de audiodescrição auxilia apenas pessoas com deficiência visual, pois ele é útil também para idosos, disléxicos, autistas, pessoas com déficit de atenção e pessoas com deficiência intelectual. A falta deste entendimento passa pela invisibilidade que as pessoas com deficiência têm na própria sociedade, apesar de políticas públicas recentes, principalmente após a Convenção da Organização das Nações Unidas (ONU), em 2008. Também é um equívoco pensar que somente a transmissão via rádio dá conta do mesmo nível de informação que uma pessoa vidente tem por meio da televisão.

Para evitarmos tal equívoco, creio que seja importante entendermos, de fato, o que é a audiodescrição. Para isto, recorremos à professora Flavia Mayer:

Em termos gerais, a audiodescrição constitui-se como uma atividade de interação entre videntes e não videntes com objetivo de contribuir para que pessoas com deficiência visual tenham um maior acesso às informações visuais oculares. Na atividade de audiodescrição, ocorre a descrição de detalhes visuais importantes como cenários, figurinos, indicação de tempo e espaço, movimentos, características físicas de pessoas/personagens e expressões faciais (MAYER, 2018, p. 16).

Sendo assim, trazendo para a realidade do futebol, vamos pensar num jogo da seleção na qual o jogador Neymar sofre uma falta. Informações como: ele parece com dor? Se sim, em que parte do corpo parece doer? Os demais jogadores parecem preocupados? Quais demais informações visuais aparecem na tela? – nem sempre são faladas pelos narradores de jogos transmitidos pela TV, não deixando a pessoa com deficiência visual no mesmo patamar de igualdade do vidente, em nível informacional. Ou seja, parte-se do pressuposto que o público está vendo a tela.

A ausência de informações visuais tão importantes faz do rádio um veículo de comunicação muito procurado pelas pessoas com deficiência visual. Segundo a Associação dos Deficientes Visuais do Estado de Goiás, a relação deste público com o rádio chega a ser afetiva, mas, mesmo assim, são raros os programas voltados para este público[1]: “Num mundo que privilegia a imagem, um veículo voltado para o sentido da audição é inclusivo por sua própria natureza. No entanto, ainda é rara a programação de rádio que trate diretamente dos interesses e direitos das pessoas cegas e com baixa visão”. Podemos então concluir que as pessoas com deficiência visual se beneficiam da linguagem descritiva do rádio, mas isto não quer dizer que este veículo tenha conteúdo direcionado a este público.

O potencial do rádio como meio inclusivo é pouco explorado, ainda mais quando pensamos em seu acesso à população. Segundo Costa (2015), a popularidade do rádio acontece devido à dois fatores: capacidade do ser humano de escutar e interpretar as mensagens sonoras, independentemente do nível de alfabetização e a criação do transistor que possibilitou que os aparelhos de rádio fossem menores, mais leves e portáteis.  Desta forma, pode ser levado para vários lugares, precisa somente de acesso a uma tomada ou a pilha e ainda é barato quando comparável a uma televisão ou um celular – sem levar em consideração ainda que é mais barato que um serviço de TV a cabo ou de internet.

Apesar de toda esta popularidade do rádio, em minha pesquisa de doutorado, 56 pessoas com deficiência visual, das cinco regiões do país, responderam a um formulário que teve como objetivo entender um pouco como o futebol afeta as pessoas com deficiência visual. Dentre várias descobertas, 57,1% respondeu preferir a televisão para assistir jogos, contradizendo a ideia de que a pessoa com deficiência visual só acompanha futebol pelo rádio. Dentre o público pesquisado, 57,1% precisa pedir informações sobre o que está acontecendo no momento da partida para amigos e familiares. Desta forma, podemos ver o quanto o direito à acessibilidade comunicacional está sendo infringido, direito este garantido por meio da Lei nº 10.098, de 19 de dezembro de 2000. Além disso, já que existe público com deficiência visual que prefere a TV, é urgente que novas iniciativas sejam criadas para garantir a inclusão destes indivíduos.

Enquanto isso, nós, pesquisadores, precisamos também pesquisar e contribuir para que as pessoas com deficiência não tenham barreiras arquitetônicas, mobiliárias, tecnológicas, linguísticas e de acessibilidade comunicacional. Para nós, comunicólogos, cabe entender como as informações chegam (se chegam) e são decodificadas pelas pessoas com deficiência visual, afinal, é necessário a garantia de que elas tenham o mesmo nível informacional que nós, videntes.


[1] Mais informações estão disponíveis em https://www.adveg.org.br/radio%20adveg. Acesso 15 maio 2023.

Bibliografia

ADVEG. Rádio Adveg – falando sobre nós. Disponível em https://www.adveg.org.br/radio%20adveg. Acesso 15 maio 2023.

MAYER, Flavia. A importância das coisas que não existem: construção e referenciação.

de conceitos de cor por pessoas com cegueira congênita. Belo Horizonte: PUC Minas, 2018.

PALMEIRA, Carlos. YouTube vai inaugurar audiodescrição em jogo do Paulistão 2023. Tecmundo. Disponível em https://www.tecmundo.com.br/internet/259761-youtube-tera-audiodescricao-jogos-paulistao-2023.htm. Acesso em 15 maio 2023.

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Na Irlanda ainda é tempo de Dondon

O samba do grande Nei Lopes imortalizou Antonio de Paula Filho, o Dondon, zagueiro do Andarahy Athletico Club, já extinto time de futebol da zona norte do Rio de Janeiro. Na canção, o jogador é o símbolo de um tempo em que a vida era mais simples de viver. “Não tinha tanto miserê nem tinha tanto ti ti ti. No tempo que Dondon jogava no Andaraí”.

Dondon, para mim, também acabou virando um símbolo daquele futebol das primeiras décadas do Século XX. Um tempo de sportsmen apaixonados, amadores, que jogavam pela honra de defender a camisa e a bandeira de seus clubes. Tudo bem que nem sempre era exatamente assim, pelo menos nos idos da década de 1930, quando o profissionalismo, mesmo ainda velado, em muitos casos, já se mostrava inevitável na prática do bom e velho esporte bretão em nossas canchas.

Dondon, craque de seu tempo. Fonte: Primos Pobres RJ FC

Mas o que um defensor, que atuava no modesto field da antiga Rua Prefeito Serzedello Correa, no bairro do Andaraí, tem a ver com a distante Irlanda? Na prática, nada, mas na cabeça deste autor, trata-se de uma relação inevitável. É que na viagem que fiz recentemente a Dublin, capital daquele país, tive o prazer de ser apresentado ao futebol gaélico, um esporte que, de acordo com um guia do estádio Croke Park, é uma mistura de futebol, rúgbi, handebol e basquete. Ficou confuso? Eu explico.

A modalidade teria sido originada por um jogo popular na região ainda no século XVI, o caid, mas só teria chegado ao formato atual nas primeiras décadas de 1800. Hoje são quinze jogadores de cada lado, num gramado um pouco maior do que um campo de futebol normal (130m x 90m). As traves são do mesmo tamanho que as do futebol comum, só que os postes laterais se estendem, lembrando uma trave de rúgbi ou futebol americano. Se a bola ultrapassar a linha final entre as traves, o time pontua. Passando por cima do travessão, é assinalado um ponto, mas se passar por baixo, onde há um goleiro, aí são três pontos.

O imponente Croke Park, em Dublin. Acervo pessoal/ Rafael Casé.

As partidas têm menor duração (dois tempos de 30 minutos) e, se terminar empatada, há prorrogações de 20 minutos até que saia um vencedor. A bola parece com a de vôlei, porém, é mais pesada do que a de futebol e pode ser conduzida de várias formas: carregada, através de pequenos chutes, quicada e passada com as mãos para companheiros. Os arremates a gol são através de chutes, mas a bola também pode ser socada em direção à meta. Sei que parece meio complicado de imaginar, mas, se você der uma olhada nesse vídeo (uma coletânea dos melhores momentos de 2022), vai poder entender melhor.

O time da cidade de Kerry derrota a equipe de Galway e conquista o campeonato de 2022. Fonte: www.kerrygaa.ie

A modalidade também tem um campeonato nacional disputado por mulheres. As regras são exatamente as mesmas. Em dois domingos de setembro acontecem as finais masculina e feminina (nos outros dois domingos é a vez das finais do hurling, esporte nacional da Irlanda, jogado com tacos e uma pequena bola e que mereceria um outro artigo apenas para ele). O palco é o Croke Stadium, com capacidade para quase 90 mil espectadores. E o mais bacana de tudo é que nessas finais não há ingressos pagos. A lotação é dividida, meio a meio, entre os moradores das cidades dos times finalistas.

As Meath Ladie´s, de um condado do norte do país conquistaram o título de 2022. Fonte: Irish Examiner

E é aqui que se dá o link entre a Irlanda e Dondon (finalmente…). Todos os atletas que disputam o futebol gaélico são amadores. Têm outras profissões e se dedicam ao esporte por paixão, pela honra de defenderem suas cidades. Um sentimento bem parecido com aquele dos primórdios do futebol em terras tupiniquins.

Um detalhe muito interessante da visita guiada pelo estádio é que além de conhecermos vestiários, tribunas, cabines de transmissão, arquibancadas, fomos levados a um salão onde acontecem, após cada uma das finais, uma recepção para o congraçamento dos atletas dos dois times. Ali eles se confraternizam, bebem juntos, como colegas que praticam o mesmo esporte. Diante de nosso espanto com esse tipo de circunstância, o guia nos explicou que todos eles jogam entre si desde as categorias de base e que, apesar da disputa árdua em campo (e algumas delas são, fisicamente, bem duras), o que reina, após o apito final, é a camaradagem.

Aqui já foi assim. Quando clubes visitavam outras cidades, as delegações eram recebidas nos portos ou estações de trem pelos jogadores adversários e sempre havia uma festa programada para reunir os atletas na véspera da partida. Algo inimaginável nos dias de hoje, quando vemos a animosidade tomar conta do futebol e não apenas entre os torcedores.   

Palco de glórias e de uma tragédia

O Croke Park é, definitivamente, um belo passeio para os amantes do esporte. Na entrada estão estampados os escudos das equipes que integram GAA (Gaelic Athletic Association). Ao todos são 2.200 times de futebol gaélico, nos 32 condados irlandeses.

A estátua de Michael Cusack, fundador da GAA. Fonte: divulgação

O estádio tem um belo museu, não só voltado para o futebol gaélico, mas também para o hurling. Um ambiente interativo com peças históricas e lembranças de campeonatos e jogadores que marcaram época. O espaço também mostra que, graças aos imigrantes irlandeses, os esportes gaélicos se espalharam pelo mundo e, hoje, são praticados em mais de 70 países ao redor do mundo (no Brasil não há registro da prática dessas modalidades). 

Uniformes dos selecionados irlandeses de Futebol Gaélico e Hurling. Acervo pessoal/Rafael Casé

Contudo, a parte mais emocionante é a que relata os acontecimentos do chamado Domingo Sangrento. Era dia de jogo entre o Dublin Team e o Tipperary Team, mas a capital irlandesa se encontrava em pé de guerra. O IRA (Exército Republicano Irlandês), que lutava pela independência do país, então parte do Império Britânico, havia emboscado e matado nove oficiais ingleses. A represália foi violenta e teve como cenário justamente o estádio, onde se encontravam cerca de dez mil pessoas. Pouco antes do jogo começar, um avião fez dois rasantes sobre a plateia. Era a senha para que atiradores começassem a disparar contra a multidão. O pânico, obviamente, se instalou no local. Foram cerca de dois minutos de muitos tiros e o que se viu depois foi desolador: 14 pessoas mortas, incluindo um jogador do Tipperary e cerca de 100 feridos. Um episódio marcante que os irlandeses decidiram nunca mais esquecer.

Para os apaixonados por esporte, o passeio a esse local tão emblemático de Dublin se torna obrigatório. Eu, um sentimental “juramentado em cartório e com firma reconhecida” me emocionei várias vezes: ao ver o vídeo sobre as finais disputadas ali, ao entrar no gramado ao som de uma gravação que reproduzia o som do estádio lotado e ao ver a cumplicidade de um pai com sua jovem filha vivendo aquela experiência única em um local de tanto significado para o povo irlandês. 

Fica bem claro para qualquer visitante que o futebol gaélico e o hurling são mais do que meros esportes. Basta ler os painéis que se encontram nos vestiários. Mensagens aos jogadores sobre importância de estar ali e que pregam valores como disciplina, comprometimento, despojamento da vaidade, foco, prazer, trabalho duro e, principalmente, jogar em paz.

Frases e palavras que definem o espírito dos esportes gaélicos. Acervo pessoal/Rafael Casé

Nada é mais tocante, porém, do que um cartaz na área de acesso dos torcedores. Um lembrete a todos que ali passam sobre o lema da GAA. Palavras que me tocaram fundo e me fizeram ter a nostalgia de um tempo que nem vivi. Uma utopia do esporte apenas pelo valor da competição. Um sonho que, em boa parte do mundo, não tem mais lugar e que, no entanto, resiste bravamente numa pequena ilha do Mar do Norte.

Acervo pessoal/Rafael Casé

“Todos nós pertencemos a este lugar. Não por causa de quem somos ou de onde viemos. Estar aqui significa pertencer. Pertencer significa saber que você faz parte de uma comunidade. Uma comunidade que tem um lugar para todos. Onde o potencial é nutrido, onde os indivíduos se tornam equipes que honram aqueles que vieram antes e se esforçaram para construir um legado. Alguns de nós jogam. Alguns costumavam jogar. Alguns de nós nunca jogaram. Todos nós pertencemos. Pertencer significa que temos voz, significa poder dizer o que você acha certo. Ser ouvido. Pertencer significa respeitar um ao outro, significa estar lá, um para o outro, em campo; fora do campo. Pertencer é arregaçar as mangas e fazer o que tem que ser feito. Todos nós pertencemos, seja no nosso primeiro dia ou no nosso centésimo ano. Todos nós pertencemos a isso aqui, porque este lugar pertence a todos nós. Nosso GAA. Onde todos nós pertencemos” (tradução livre do autor).

Como não se emocionar?

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Afinal, quem determina quem é campeão mundial?

Apesar dos ruídos provocados pelas “novas verdades instantâneas” das redes sociais, persiste forte convergência, na academia, sobre apontar o intervalo de 1958 a 1970 como a era de ouro do futebol brasileiro. Foi quando a seleção brasileira venceu três (1958, 1962 e 1970) de quatro Copas do Mundo disputadas. Para além do respeito conquistado pelos títulos, o futebol nacional, em tal período, ganhou a admiração, interna e externa, por produzir, em profusão, jogadores que uniam excelência técnica e elevada capacidade competitiva, como Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Rivelino, Gerson, Jairzinho e Tostão, para citar apenas alguns dos que foram campeões mundiais naquela fase.

A equipe do Botafogo campeã brasileira em 1968. Créditos: Globoesporte

No entanto, apesar do reconhecimento dos seus contemporâneos, incluindo imprensa e torcida, parte do jornalismo esportivo, a partir de determinado momento, passou a dedicar-se a um contínuo processo de apagamento da memória dos feitos memoráveis das gerações da era de ouro quando se trata dos títulos dos clubes em que atuaram esses jogadores. Tal processo dá-se em duas frentes: nas conquistas nacionais pré-1971 e nos títulos internacionais que não sejam o que a imprensa local convencionou chamar de Mundial de Clubes[1].

Até hoje, não são muito explícitas as razões pelas quais, em algum momento, o jornalismo esportivo deixou de considerar os vencedores dos campeonatos disputados entre 1959 e 1970 campeões brasileiros, embora, naquele período, tal forma de tratamento fosse “divulgada a milhões de pessoas através dos veículos mais importantes da imprensa nacional” (CUNHA, 2009, p. 8): “Até o popular ‘Canal 100’, documentário que levava a emoção e a beleza do futebol a cinemas de todo o país, transmitia a mesma mensagem” (Id., ibid.).

Uma das hipóteses levantadas por Cunha, autor do dossiê que serviu de base para a equiparação daqueles títulos ao de campeão brasileiro pós-1970, é que a Revista Placar, lançada em março de 1970 e principal publicação esportiva do país durante cerca de duas décadas, não teria interesse em valorizar um período do futebol brasileiro anterior a sua existência. Válida ou não a hipótese, a revista, durante longo período, não tratou como campeonatos brasileiros os títulos anteriores a 1971. Isso embora, curiosamente, a manchete do número 41 da mesma revista tenha sido: “O Flu é campeão do Brasil” (Placar, 25/12/1970). Na mesma edição, Placar publicou o tradicional pôster do time campeão de 1970 da Taça de Prata, uma das três nomeações adotadas no período entre 1959 e 1970. Ou seja, por razão nunca explicitada, a revista desconsiderava o tratamento que ela própria dera ao campeão da última edição que antecedeu a versão do Brasileiro a partir de 1971[2].

Os títulos internos da era de ouro do nosso futebol foram, enfim, em 2011, equiparados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) às versões do Campeonato Brasileiro disputados a partir de 1971. Por isso, esta comunicação pretende se concentrar nas conquistas internacionais que a própria imprensa e os demais contemporâneos aclamavam como “campeões do mundo”, mas continuam a sofrer forte processo de invisibilização, quando não desqualificação, pelo jornalismo esportivo brasileiro, que adota lentes contemporâneas para revisitar o passado glorioso.

Num período em que comunicações e telecomunicações eram bem mais precárias e a mercantilização do futebol bem menos acentuada, foram criados torneios variados, na Europa e na América Latina, para buscar definir quem era “o melhor time do mundo”. Com formatos variados, tais torneios tinham, ao menos, duas coisas em comum: reuniam alguns dos maiores clubes da época e nenhum era reconhecido, para fins de estabelecer um hegemon, pela Fifa, que apenas a partir de 2005 passou a realizar regularmente um torneio mundial de clubes. Dessa forma, a condição de campeão mundial, reivindicada por seus organizadores, era sancionada – à margem do aval institucional da cúpula do futebol – pela imprensa, brasileira e internacional, como é fácil constatar, mesmo em pesquisas aligeiradas na internet. 

São, ao menos, quatro os torneios, todos iniciados entre os anos 1950 e 1960, cujos organizadores reivindicavam tal condição: Torneio Internacional de Clubes Campeões (Copa Rio)[3]; Copa Presidente Marcos Pérez Gimenez[4]; Torneio Triangular de Caracas[5] e Copa Intercontinental[6]. Sem nos estendermos numa historiografia exaustiva, é possível perceber que o principal argumento usado pelos defensores do monopólio do Mundial Interclubes – a inexistência de critérios fixos de classificação – não foi respeitado em pelo menos três edições dessa competição, sem que Independiente (1973), Boca Juniors (1977) e Olimpia (1979) sejam considerados menos campeões do que os demais. 

Além disso, em 2000, houve dois campeões: Boca Juniors, campeão da Libertadores do ano anterior, e Corinthians, campeão brasileiro do ano anterior e um dos dois convidados da Fifa como representantes do país anfitrião, quebrando a tradição de um único convidado do local em que a competição é realizada. O outro foi o Vasco da Gama, finalista com o Corinthians e que poderia ter sido campeão sem ser nem campeão da Libertadores nem do Brasileiro em 1999.

Mais importante, porém, do que se fixar em comparações entre os diversos torneios simultâneos do período examinado cujas hierarquias são construídas posteriormente, é destacar como seus campeões eram retratados na imprensa brasileira. Citaremos apenas algumas manchetes de jornais daquele período. Em 23 de julho 1951, a Gazeta Esportiva mancheteou: “Palmeiras campeão do mundo”, a propósito do título da Copa Rio daquele ano. Em 1 de fevereiro de 1967, a propósito do título do Botafogo no Torneio de Caracas, o Correio da Manhã, um dos principais jornais brasileiros até o fim dos anos 1960, teve como manchete: “Fogo em Caracas – O Glorioso carioca é campeão do Mundo”.

As conquistas eram reconhecidas não apenas por veículos dos estados dos campeões. Em 5 de agosto de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, proclamava: “Fluminense, campeão do mundo – Empate com o Corinthians por 2 x 2, na decisiva do Torneio Internacional de Clubes – A campanha dos tricolores”

E, não apenas a imprensa brasileira. Quando o Botafogo voltou a vencer o Torneio de Caracas, em 1968, o jornal português Record, deu na primeira página: “Implacável!!! Vitória alvinegra em Caracas, Botafogo conquista a Mini Taça do Mundo em um jogo incrível contra o Benfica de Eusébio, Colina e Simões”. Ao lado, acompanhada da ilustração da taça como direto a “eco” na palavra campeão: “Botafogo campeão ooo do Mundo”. A matéria é acompanhada, ainda, pela foto dos dois times perfilados antes da partida. 

Definir quem deve ser tratado ou não como campeão mundial escapa aos objetivos desta comunicação. O que nos move é contribuir para um debate que leve a uma explicitação das razões que autorizam a imprensa não contemporânea dos acontecimentos a retificar e desqualificar o que os jornais do período registrado, incluindo veículos dos mesmos grupos, registraram. Quais as razões da reinterpretação dos fatos à luz de outros critérios e num contexto do futebol fortemente informado por valores comerciais?

Publicamos a seguir a relação dos times considerados por seus contemporâneos, incluindo – insistimos – a imprensa, campeões mundiais da era de ouro do futebol brasileiro, mas, posteriormente, descredenciados. Lembramos que a lista restringe-se à primeira fase dos torneios que, após interrupção mais ou menos prolongada, foram reativados, mas já num período de consolidação do Torneio Interclubes como única instância, ainda que sem o aval institucional da Fifa, como única instância definidora do campeão mundial de clubes.

Os campeões esquecidos

Copa Rio: Palmeiras (1951) e Fluminense (1952)

Pequena Taça do Mundo: Corinthians (1953) e São Paulo (1955)

Torneio de Caracas: Bangu (1958), Botafogo (1967, 1968 e 1970) e Cruzeiro (1970)

Bibliografia

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009. SOUTO, Sérgio Montero. Uma revisita à era de ouro do futebol – quando os títulos do passado têm de ser driblados pelo hegemon do ‘mercado’. Belo Horizonte: Fulia v.4, n.2, 2019.

Notas

[1]  Oficialmente, essas competições são chamadas pela Fifa de Mundial Interclubes.

[2] Para ler mais sobre os campeões brasileiros pré-1971, vide SOUTO (2019) e CUNHA (2009).

[3] Mais conhecida como Copa Rio foi organizada pela então Confederação Brasileira de Desportos (CDB) – antecessora da CBF – com apoio da Fifa. Teve apenas duas edições (1951 e 1952). Em 1953, foi rebatizada de Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, e sofreu alterações, quantitativa e qualitativa, no número de clubes estrangeiros convidados.

[4] Ou Troféu Marcos Pérez Jiménez ou Pequena Taça do Mundo era organizado pela Federação Venezuelana de Futebol e por empresários locais, sendo disputado entre equipes europeias e sul-americanas. Teve dois períodos. O de maior relevância entre 1952-1957. Após interrupção de seis anos, foi rebatizada de Troféu Cidade de Caracas, teve uma edição em 1963, para retornar em 1965, sendo , então, disputada de forma não contínua por até 1975. No período, a partir de 1963, a competição sofre um esvaziamento, tanto em prestígio, quanto em número de participantes. Este trabalho se atém à primeira fase.

[5] Disputado entre equipes europeias e sul-americanas e seleções nacionais, como a argentina e a soviética, era chamado, ainda, de Torneio de Caracas e Triangular de Caracas. Teve duas fases, sendo a de maior prestígio entre 1958 e 1970, que teve duas edições em 1970. A segunda fase (1976-1981) teve apenas quatro versões e menor prestígio esportivo. É à primeira que nos detivemos.

[6] Organizada pela União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sua primeira versão ocorreu em 1960, sendo realizada anualmente, com dois hiatos, até 1979, com diferentes formas de disputa, variando de uma a três partidas. Em 1975 e 1978, incompatibilidades entre o calendário das duas entidades levaram ao cancelamento da competição. Em três ocasiões (1973, 1977 e 1979), a final foi entre o campeão sul-americano e o vice-europeu, já que os campeões do continente naqueles anos se recusaram a participar. Com as seguidas recusas dos europeus ameaçando esvaziar o torneio, a partir de 1980 até 2004 foi transferida para o Japão, sendo rebatizada de Copa Toyota, nome da patrocinadora do torneio e disputada numa única partida. A partir de 2005, a Fifa, que já promovera uma edição em 2000, paralela à ocorrida no Japão, assume a organização da competição de forma contínua, incorporando os campões continentais africano, asiático e da Oceania.

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O Napoli campeão é a vitória do dionisíaco 

Por Jorge Santana 

Professor de História do IFPR Campo Largo 

Doutor em Ciências Sociais ( PPCIS/UERJ)

A Sociedade Esportiva Napoli sagrou-se campeã do campeonato italiano de futebol temporada 2022-2023, uma campanha para lá de encantadora, após três décadas de insólito jejum de títulos. Uma festa sem tamanho, sem fim e sem ordem tomou conta das ruas, repletas de citadinos celebrando efusivamente. Alguns dizem que o título é um presente dos céus de um semideus ou até Deus que dá nome ao estádio. 

Nápoles é a cidade astral mais importante da Península Itálica, contudo marcada pelo estigma e pelo imaginário negativo propagado pelas cidades nortistas como Milão, Turim, Florença, entre outras. Ao pensar em Nápoles, pensamos mais na Camorra (máfia) do que nas belas praias, mais na pobreza do que na vitalidade do povo napolitano, mais na suposta desordem do que na Universidade de Nápoles (sétima mais antiga da Europa). As marcas do preconceito propagado pelo Norte são pegajosas e apagam aquilo que a metrópole banhada pelo mar Tirreno tem de melhor. Nessa visão discriminatória, os sulistas são supostamente poucos afeitos ao trabalho, preguiçosos, festeiros, emotivos, desordeiros e ignorantes, enquanto os nortistas são trabalhadores, racionais, ordeiros e civilizados.  

O filósofo Friedrich Nietzsche desenvolveu uma concepção dual do mundo a partir da filosofia e da mitologia grega, em que o mundo se divide em razão/ordem/equilíbrio (apolíneo) e prazer/desordem/paixão (dionisíaco), o primeiro representado a partir do Deus grego Apolo e o segundo pelo Deus Dionísio. Na prática, pode-se aplicar essa divisão do filósofo na divisão racista da Itália em que os nortistas detêm as características do apolíneo e os sulistas as características do dionísico – claro, os segundos com características negativas. 

Entretanto, preconceitos regionais não são apenas uma dádiva negativa da Itália, mas também de outras nações. Como no Brasil a abjeta discriminação que os “sudestinos ” praticam contra os nordestinos ou nos Estados Unidos em que os ianques do Norte gozam e insultam os sulistas. Quase todo país tem uma região que é vítima de preconceito.

As desigualdades econômicas e sociais existem em todos territórios ou nações (ou comunidades imaginadas como nomeou o historiador Benedict Anderson), pois nenhum país é homogêneo. Entretanto, tais desigualdades não podem estar à serviço do preconceito e do racismo. Em 2023, na partida Milan X Napoli, pelas quartas de final da Champions League, os torcedores milaneses ergueram uma faixa com os dizeres ” Água e Sabão ” insinuando que napolitanos são porcos e não tomam banho. Outra faixa tinha a seguinte mensagem: “Mais títulos do que dedos” acusando os napolitanos de terem mais títulos nacionais (2 títulos) do que dedos nas mãos. Alguns cânticos dizem que seria ótimo o Vesúvio (vulcão nas redondezas de Nápoles) entrar em erupção para varrer os napolitanos da terra. Um dos cânticos contra a torcida do maior time do Sul da Itália diz:

Sintam o cheiro

Até os cachorros fogem 

Estão chegando os napolitanos 

Os coléricos 

Filhos do terremoto

Quase nunca se lavaram com sabão 

Merda de Napoli

O preconceito aberto contra os italianos do Sul faz com que compreendemos melhor um episódio marcante do futebol mundial. Na semifinal da Copa do Mundo 1990, enfrentaram-se Itália e Argentina, no estádio de Nápoles, parte dos napolitanos torceram pelas sul-americanas, devido a Maradona – pois a Azzurra, apesar de ser a seleção nacional, é aquela que os torcedores xingam os sulistas. Nesse sentido, torcer por Diego Armando, pela Argentina, era torcer pelo homem que liderou o triunfo do primeiro título de um clube ao Sul de Roma, o impávido Pibe que amassou milaneses, florentinos, genoveses, etc. 

Faixa da torcida do Bologna em 2014 com dizeres: “ Vai ser um prazer quando o Vesúvio fizer o seu dever”

No verão de 1984, quando Diego estreou pelo time napolitano, logo entendeu que não era apenas futebol. Porque em uma partida no Norte do país deparou-se com uma faixa direcionada a sua equipe com as seguintes palavras ” Bem-vindos à Itália “. Segundo o eterno ídolo argentino, ali ele soube que eram os racistas do Norte contra os pobres do Sul, era luta de classes e de identidade regional que tinha como uma das arenas de combate os gramados. 

O primeiro caneco nacional não poderia ter outro protagonista que não fosse Dieguito, que trazia em seu sangue o espírito de um garoto de vila portenha (menino de favela). Maradona era boquirroto, falador, sanguíneo, polêmico, exagerado, emotivo e extremamente dionisíaco. Como disse o velho escritor Eduardo Galeano “Diego é o mais humano dos Deuses” e tomo a liberdade para acrescentar o mais napolitano das divindades. Os sulistas encontraram nele um Brancaleone para comandar a esquadra napolitana que, pela primeira vez, abateu os elitistas do Norte e levou a taça para o Sul. Para Itália negada pelos Italianos. A festa realizada na cidade, nunca antes vista no país, ficou conhecida como “a louca tarantela”.

A história, como gosta de brincar e surpreender, traz novamente um protagonista do Sul global para liderar a esquadra italiana em mais um triunfo. O nigeriano Victor Osimhen de apenas 24 anos. Um jovem atacante versátil, com faro de gol apurado, que não foi apenas o melhor jogador do Calccio como o artilheiro. Para azar dos racistas do Norte sempre afeitos a defender a deportação dos africanos que chegam em condições trágicas nas praias italianas em busca de refúgio.  

Festa na cidade de Nápoles ( maio de 2023) Carlos Harmann AFP

Esse ano, os ricos times do Norte sucumbiram diante do Napoli, liderado por um nigeriano. Ou seja, o prazer venceu a razão, a pólis dionisíaca sublevou os apolíneos nortistas. Se o Sul está feliz, a festa está garantida, ” a louca tarantela ” é reeditada para celebrar uma vitória contra o racismo, o preconceito e a discriminação. Fogos irrompem na noite escura de Nápoles, que iluminada vira dia, Dionísio se deleita com garrafões de vinho a beira do Vesúvio, que repousa tranquilo, Maradona celebra no céu e Victor Oshimen é coroado em terra. O Napoli campeão é sempre dionisíaco.

“Havia uma bola ao pé da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisa azul do Nápoles. Havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a Maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. Campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. Em Milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados.” GALEANO, Eduardo.  Futebol ao sol e à sombra. LM& Pocket.

Fonte:

Podcast Copa Além da Copa

Nápoli: a cidade, o time, o Maradona, o novo-scudetto- Copa Além da Copa #61

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Há cem anos: a inauguração de Wembley recebeu 250 mil pessoas – e quase terminou em tragédia

Final da Copa da Inglaterra de 1923 teve público estimado em mais de 250 mil presentes, contou com a presença do Rei, deixou milhares de feridos e marcou a memória do futebol inglês

Até a criação do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, o símbolo maior da popularidade atingida pelo futebol cabia ao Wembley, estádio localizado na cidade de Londres, capital do Reino Unido. Utilizado pela primeira vez em 28 de abril de 1923, na final da Copa da Inglaterra (FA Cup) em que o Bolton venceu o West Ham por 2 a 0 para um público estimado em mais de 250 mil pessoas, essa que é uma das arenas mais famosas do mundo agora completa 100 anos de uma história repleta de curiosidades, antes, durante e depois de sua inauguração.

Hoje, transformado em moderna arena após longo período reforma entre 2000 e 2007 – quando passa a ser propriedade de The Football Association (a federação inglesa) –, o estádio de Wembley foi originalmente projetado como parte da British Empire Exhibition de 1924, um dos muitos eventos do tipo “exposição universal” realizados à época.

Wembley na época da inauguração — Foto: Divulgação

Essas grandes e custosas exibições serviam como momento especial para projetar a imagem desses países – no caso das potências, as suas ambições imperialistas (o Brasil, por exemplo, realizou a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922).

Era uma oportunidade de apresentar inovações tecnológicas, proporcionar oportunidades comerciais e, de certa forma, também impulsionar o interesse dos grupos econômicos locais ao redor do globo. O nome do Wembley, inicialmente, não à toa, era “The Empire Stadium” (O Estádio Imperial).

Portanto, erguia-se naquele momento um símbolo do poderio do império e da grandiosidade dos feitos do capitalismo britânico, elaborado exatamente para causar impacto visual e projetar uma imagem de solidez do Reino Unido e de suas colônias após a I Guerra Mundial.

Quase demolido

Desenvolvido por um grupo de empreiteiros e projetado para receber até 126 mil espectadores, o estádio de Wembley não tinha previsão de ter tanta longevidade. Assim como quase toda a estrutura da grandiosa “Exhibition” realizada em um imenso terreno de Wembley Park, no subúrbio de Londres, a ideia original era simplesmente demolir o estádio logo em seguida, uma vez que desde o começo a estrutura era considerada financeiramente inviável.

Isso só não aconteceu porque o investidor imobiliário James White teve a ousada ideia de adquirir o que sobrou do evento, especular sobre a estrutura e repensar sobre a demolição do estádio. White morre pouco depois (em suicídio, em razão de problemas financeiros) e quem acaba ficando com o Wembley é seu funcionário, o jovem Arthur Elvin, um rapaz de 25 anos que havia lutado na guerra e depois trabalhado como vendedor de cigarros em um quiosque da “Exhibition” (!). 

Foi Arthur Elvin quem se responsabilizou, ao longo de muitas décadas, por manter o gigantesco estádio de Wembley de pé, através de uma sociedade criada para adquirir a estrutura. O fato era que praças daquela magnitude não eram comuns. Era uma época em que os clubes esportivos de futebol e rugby já construíam as suas próprias praças desportivas que, ainda que com menor capacidade, já eram capazes de receber públicos de mais de 60 mil espectadores (como se imagina, em condições bem pouco confortáveis).

Diferente do que ocorreu no Brasil e nos principais centros do futebol da Europa nas décadas seguintes, a Inglaterra não costumava erguer grandes estádios públicos. Isso obrigava a Football Association (FA, a federação inglesa) a buscar acordos para utilizar praças esportivas, companhias privadas e clubes (que já eram em sua maioria sociedades limitadas) na ocasião da grande final da FA Cup – prioritariamente na capital Londres.

Wembley recebeu a final da última Eurocopa entre Inglaterra e Itália — Foto: Lee Smith/Reuters

A FA Cup, que em 2023 será disputada entre Manchester United e Manchester City, é a competição de futebol mais antiga do mundo ainda em disputa, realizada desde 1872. Só não havia completado 50 anos quando da inauguração do Wembley porque foi interrompida por quatro edições durante a I Guerra Mundial.

É de se imaginar, portanto, o tipo de sensação de “tradição anual” que cinco décadas de um evento quase ininterrupto provocava na população local. Não apenas torcedores dos clubes finalistas, mas o público em geral se excitava para assistir ao evento decisivo da competição. O fluxo de pessoas no sofisticado sistema ferroviário britânico aumentava consideravelmente rumo a Londres e a própria população da metrópole se mobilizava em massa para testemunhar a final da copa.

É certo que já havia registros de finais com mais de 100 mil presentes no estádio Crystal Palace, como em 1901 (110 mil); em 1905 (101 mil), em 1913 (121 mil). Entretanto, em razão de problemas financeiros dos proprietários desse estádio, a final da FA Cup passou a ser realizada em Stamford Bridge após a guerra. Um estádio menor que não comportava a demanda desse grande evento anual – que recebeu no máximo 72 mil espectadores.

É em virtude desse quadro pouco estruturado de estádios que a FA vai se interessar no projeto de construção do Wembley e definir, ainda em 1921, que esta seria a sede da final da FA Cup de 1923. É quando a história começa a acontecer.

Artigo publicado originalmente no site GE.Globo.com, em 28 abr. 2023 por Irlan Simões.

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O “eixo Rio-São Paulo” e a desigualdade do futebol brasileiro

Enquanto nordestino, venho utilizando este espaço no site Comunicação e Esporte para tratar de algumas especificidades sobre representação midiática dos clubes locais. Além de outras questões mais teóricas ligadas à Economia Política da Comunicação (EPC) aplicada ao futebol.

Para a coluna deste quadrimestre, minha pretensão era me voltar a um texto do segundo grupo, discutindo uma produção teórica da década de 1980 sobre futebol. Porém a nota oficial conjunta de quatro clubes de Rio de Janeiro e São Paulo sobre a regulação de apostas esportivas me chamou a atenção. Explicarei o porquê.

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Clubes de Rio de Janeiro e São Paulo se uniram na publicação de uma nota sobre apostas esportivas. Divulgação: Twitter/Palmeiras

Momento crucial para o futebol brasileiro

A extensão da mercantilização sobre o futebol é tema de constantes pesquisas nas últimas décadas minhas e de outros colegas, alguns inclusive ligados ao Leme (Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte). 

A procura para maior acumulação de capital a partir de um elemento com tamanha importância sociocultural domina o debate acadêmico com demonstração de preocupação. 

É desse caminho que apareceram as críticas à “arenização” dos estádios, gentrificação no entorno deles e a partir dos megaeventos esportivos no Brasil e à preocupação com a empresarização dos clubes, com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol sendo o ápice disto.

Do outro lado da moeda, a discussão sobre aproveitar melhor as receitas que o futebol supostamente pode dar sempre esteve presente. Mas, para isso, era preciso uma melhor organização do futebol brasileiro.

Há cerca de dois anos, dirigentes de clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro discutem uma melhor organização do futebol a partir de uma liga de clubes. Mas a divisão entre Forte Futebol e Libra mostra que é um caminho difícil, especialmente no que se refere a dividir melhor as receitas entre os clubes numa mesma competição – e para divisões inferiores.

Esta é uma das diferenças que não permitiram ainda unidade para uma proposta de liga no futebol brasileiro que possa começar em 2025, primeiro ano de um novo ciclo contratual de direitos de transmissão.

É justamente neste momento que Botafogo, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco resolveram se posicionar de forma isolada sobre receitas oriundas de apostas esportivas. A seguinte frase me chamou bastante atenção e, supostamente, justificaria esta atitude por fora, inclusive, da Libra, à qual todos estão ligados: “é inegável que o maior volume de transações feitas se dá em face dos grandes clubes do futebol brasileiro”.

Para mim, é um tema que poderia entrar facilmente no debate da liga, afinal, traria mais vozes para serem ouvidas e gerariam uma sinalização ao mercado de unidade para negociações futuras. Não foi esta a opção.

O “eixo”

Se quem me lê agora já ouviu alguém que torce para equipe do Nordeste, deve ter ouvido falar de tratamento desigual histórico, econômico e midiático. Na busca pela hegemonia do capital esportivo no futebol brasileiro, locais com maior industrialização e melhores relações políticas concentraram empresas, matrizes de veículos de comunicação nacionais, melhores relações políticas e, consequentemente, clubes que puderam nacionalizar ou contar com mais recursos.

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Imagem via satélite das luzes noturnas formando o “eixo” entre Rio de Janeiro e São Paulo. Divulgação: Anderson Santos

“G12” é um termo muito utilizado pela cobertura esportiva dita nacionalizada para tratar dos 8 clubes supracitados que assinaram a nota, agregados a Cruzeiro, Atlético-MG, Grêmio e Internacional. De vez em quando, um colunista ou outro tenta incluir Bahia ou Atlético-PR nesse grupo – curiosamente, não lembro de citação ao Fortaleza nisso.

Enquanto alguém que já atuou em mídia alternativa nordestina (o podcast Baião de Dois, da Central 3), não era incomum ver torcedores mineiros e gaúchos reclamarem também de tratamento midiático diferenciado. Pois então temos os próprios 8 clubes se considerando como “Grandes Clubes do Eixo RJ x SP”. 

“Eixo”, uma palavra que às vezes parece incomodar até parte mais progressista da mídia esportiva e da torcida dessas equipes por, talvez, sinalizar uma construção hegemônica que, definitivamente, não passa por “meritocracia”.

Mas há quem prefira reclamar de uma reação simbólica de parte da torcida (faixas “Vergonha do Nordeste” nos estádios) ou campanhas pontuais de clubes (como Fortaleza e Bahia, recentemente), que discutir como esses clubes acreditam que, realmente, só eles precisam ser ouvidos pelo poder público federal.

Lembrando ainda que na discussão sobre aprovação da Lei do Mandante e da Lei da SAF, houve representação de clubes direcionada para reuniões em Brasília após decisão coletiva. Isso para 2021. O que mudou de lá para cá?

E agora?

De lá para cá, o governo federal recebeu os clubes sem qualquer problema, assim como outros agentes. As casas de apostas, por exemplo, já criaram ou estão em três associações diferentes no Brasil, sinalizando que querem a regulação do mercado – que possibilitará também uma estabilidade neste, com provável concentração oligopólica.

Vale salientar que a muito necessária proposta de regulação das casas de apostas esportivas, seguindo a Lei nº 13.756/2018 que possibilitou que elas funcionassem para brasileiras/os, deveria ter saído em 2020. Entrou na agenda inicial do atual governo federal por só gerar receitas via impostos ao Estado na tributação do Imposto de Renda sobre ganhos de jogadores, mas nada de quem lucra com isso (as empresas).

Mas, por fim, não recordo de ter qualquer pressão naquele movimento de 2021, início de uma tentativa de unidade dos clubes, sobre este tema. Conseguiu-se aprovação de duas leis, uma delas a partir de Projeto de Lei do executivo, o que dá caráter de urgência à votação.

Artigos

Um homem possível

No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Créditos: O Dia.

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram. Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto para esse blog, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências


GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.