A retórica da guerra na mídia inglesa, quando as seleções da Inglaterra e da Alemanha se enfrentam

No artigo “Deutschland – England: Das Duell der Lieblingsfeinde” (“Alemanha vs. Inglaterra: O duelo dos inimigos favoritos”), publicado na edição impressa do Die Presse em 24 de junho de 2010, véspera da partida em que as seleções se enfrentariam pelas oitavas de final da Copa da África do Sul, Axel Reiserer chamou à atenção para o fato de que, “sempre que a Inglaterra se encontra com a Alemanha, a mídia inglesa desenterra a retórica da guerra.”[1] (REISERER, 2010)

De acordo com Axel Reiserer, “[a] retórica da guerra é principalmente uma tentativa coletiva de encorajamento – muitas vezes com um tom de auto ironia.”[2] (REISERER, 2020) O jornalista chega a citar uma piada de mau gosto, que circularia naqueles dias, por conta dos confrontos na Copa, envolvendo seleções de países que, no passado, se defrontaram em campos de batalha: “Esta Copa do Mundo é como a Segunda Guerra Mundial: os franceses são os primeiros a se render, os americanos estão atrasados ​​e cabe a nós, ingleses, mais uma vez, deter os malditos alemães.”[3] (REISERER 2010)

 Isso refletia o próprio desenrolar da competição: a seleção francesa foi eliminada ainda na fase de grupos, ao empatar com a celeste olímpica uruguaia pelo placar de 0x0, e ser derrotada pelas seleções do México por 2×0 e da África do Sul por 2×1; a seleção dos Estados Unidos se classificou em primeiro lugar de seu grupo, com muita dificuldade, após empatar contra a seleção inglesa por 1×1 e contra a seleção eslovena por 2×2, e vencer a seleção da Argélia por 1×0.

Com isso, a seleção da Inglaterra classificou-se em segundo lugar no Grupo C, atrás da seleção norte-americana apenas no número de gols a favor. No chaveamento para as oitavas de final, coube à seleção inglesa enfrentar a seleção alemã, que havia se classificado em primeiro lugar no grupo D, após vencer a seleção australiana por 4×0, ser derrotada pela seleção da Sérvia por 1×0, e vencer a seleção de Gana por 1×0. No confronto, realizado em 25 de junho de 2010 em Bloemfontein, a seleção alemã saiu vencedora, com o placar de 4×1.

Outro aspecto curioso notado por Axel Reiserer na cobertura da mídia inglesa por ocasião das disputas entre as seleções de ambos os países são os trocadilhos que costumam ser feitos nos títulos das matérias de jornais sensacionalistas, sempre integrando alguma palavra alemã: o The Sun publicou o título “Herr we go again” (algo como “Senhor vamos outra vez”), fazendo um trocadilho com a canção “Here we go again”; já o The Times teria publicado o título “Achtung! Donner und Blitzen!” (“Atenção! Trovões e relâmpagos!”) (REISERER, 2010).

De acordo com o jornalista, “[t]ão certo como o Big Ben soa pontualmente à meia-noite, todos os jogos de futebol contra a Alemanha são vistos na Inglaterra da perspectiva da guerra e, inevitavelmente, fala-se de ‘the Blitz’ [o relâmpago]”,[4] em uma referência a Blitzkrieg, termo alemão que designa a tática militar que envolve unidades blindadas em ataques rápidos e de surpresa, supostamente aperfeiçoada pelo general Heinz Wilhelm Guderian (1888-1954) no final dos anos 1930, que publicou algumas obras a respeito no pós-guerra, entre elas, Erinnerungen eines Soldaten (1951; Memórias de um soldado) e Panzer – Marsch! (1956; Tanque, marche!).

Mas o próprio jornalista, de maneira irônica, toma a retórica da guerra para si ao expressar sua opinião sobre a partida que iria ocorrer em breve, pelas oitavas de final da Copa da África do Sul: “De qualquer forma, em Bloemfontein (nome de um lugar que tem tudo para entrar para a história como Dunquerque ou el-Alamein), hoje, os ingleses tentarão dar o primeiro tiro.”[5] (REISERER, 2010) Duas famosas batalhas da Segunda Guerra Mundial que colocaram frente a frente as forças armadas da Inglaterra e da Alemanha – a batalha de Dunquerque, cidade portuária localizada no Norte da França, que durou de 25 de maio a 04 de junho de 1940; e a batalha de El-Alamein, cidade egípcia, travada entre 23 de outubro e 11 de novembro de 1942.

Em termos futebolísticos, o primeiro grande confronto entre as seleções da Inglaterra e da Alemanha ocorreu na final da Copa do Mundo de 1966, em pleno Estádio de Wembley, em Londres, no dia 30 de julho daquele ano, em que a seleção inglesa se sagrou campeã após vencer a seleção alemã pelo placar de 4×2 na prorrogação (2×2 nos 90 minutos), com um gol polêmico assinalado pelo atacante Charles “Geoff” Hurst, o terceiro tento, cuja bola bateu no travessão e, aparentemente, em cima da linha, que entrou para a história como o “gol fantasma”, confirmado pelo árbitro suíço Gottfried Dienst e pelo assistente russo Tofiq Bahramov.

Além disso, ao longo da história, as seleções se enfrentaram em 35 oportunidades, de 1930 a 2022, por diversas competições e amistosos, sendo quatro vezes na fase final de Mundiais: na final da Copa de 1966, nas quartas de final da Copa de 1970, na semifinal da Copa de 1990, e nas oitavas de final da Copa de 2010. As estatísticas apontam para um equilíbrio nos confrontos: 14 vitórias para a seleção inglesa, 13 vitórias para a seleção alemã, e 08 empates (RAIO X, 2024).

Todavia, em relação à retórica da guerra recorrente na mídia inglesa, nada se iguala à polêmica gerada pelo jornal Daily Mirror, por ocasião da semifinal da Eurocopa de 1996, que repercutiu também na mídia alemã. A primeira página da edição de 24 de junho estampou a manchete “Achtung! – Surrender” (“Atenção! – Renda-se”) em letras garrafais, sendo que entre as palavras figurava uma fotomontagem em que o lateral esquerdo Stuart Pearce e o meia atacante Paul Gascoigne aparecem usando capacetes ingleses da Primeira Guerra Mundial. Abaixo da palavra “Surrender” constava a seguinte frase: “For you Fritz, ze Euro 96 Championship is over!” (“Para você, Fritz, a Eurocopa 96 acabou!”).

Fonte da imagem: X (usuário Prof. Frank McDonough – @FMX1957)

Além da manchete, da fotomontagem e do subtítulo ofensivo, a capa do Daily Mirror também exibia no cabeçalho superior direito a bandeira da Inglaterra com as inscrições “66” e “96”, lembrando que faziam 30 anos da final da Copa de 1966, e esperava-se que, mais uma vez, no legendário Estádio de Wembley, a seleção inglesa derrotaria os “Krauts” (“chucrutes”).

Foi algo que repercutiu também na imprensa internacional, como evidencia, entre outras, a matéria publicada pelo The Washington Post em 25 de junho de 1990 e assinada pelo editor Fred Barbash, intitulada “England et Fever Pitch over Germany Match – Tabloids Fuel Euro ’96 Soccer Showdown” (“Febre de bola no jogo Inglaterra x Alemanha: tabloides atiçam o confronto da Euro 96”): “A imprensa sensacionalista envergonhou o primeiro-ministro John Major e muitos dos seus compatriotas ao declarar uma ‘blitz’ contra ‘os chucrutes’.”[6] (BARBASH, 2010)

Todavia, não obstante toda a euforia e o otimismo que o sensacionalista Daily Mirror quis transmitir com tal capa polêmica na edição de 24 de junho, fato é que, dois dias depois, a seleção anfitriã saiu derrotada daquela semifinal na cobrança de pênaltis, após empatar nos 90 minutos e na prorrogação pelo placar de 1×1. Os cobradores de ambas as seleções converteram os cinco primeiros pênaltis. Porém, o goleiro alemão Andreas Köpke defendeu o sexto pênalti cobrado por Gareth Southgate (atual treinador da seleção inglesa), e Andreas Möller assinalou o sexto pênalti, vencendo o goleiro David Seaman. Desse modo, a seleção alemã se classificou para a final do torneio contra a seleção da República Tcheca e se sagrou campeã com um “golden goal” marcado pelo centroavante Oliver Bierhoff.

Desde então, ocorreram outros confrontos entre as seleções. Em breve, será realizada a Eurocopa 2024 na Alemanha. Vale à pena conferir se, caso Inglaterra e Alemanha se defrontem dentro das quatro linhas, a retórica da guerra se repetirá na mídia inglesa.

Referências

BARBASH, Fred. England et Fever Pitch over Germany Match – Tabloids Fuel Euro ’96 Soccer Showdown. The Washington Post. 25 jun. 2010. Disponível em: https://www.washingtonpost.com/archive/sports/1996/06/26/england-at-fever-pitch-over-germany-match/d9b744d9-32ea-4e91-b353-a9dfdfaff7cb/. Acesso em: 25 mar. 2024.

REISERER, Axel. Deutschland – England: Das Duell der Lieblingsfeinde. Die Presse. 24 jun. 2010 (online: 25 jun. 2010). Disponível em: https://www.diepresse.com/577005/deutschland-england-das-duell-der-lieblingsfeinde. Acesso em: 25mar.2024.

RAIO X – Inglaterra – Alemanha – Estatísticas. OGol, 2024. Disponível em: https://www.ogol.com.br/xray.php?equipa_id=826&equipa_vs_equipa_id=812. Acesso em: 25 mar. 2024.


[1] Todas as traduções são de nossa autoria. No original:

Immer wenn England auf Deutschland trifft, packen englische Medien die Kriegsrhetorik aus.

[2] No original:

Die Kriegsrhetorik ist in erster Linie ein kollektiver Versuch, sich selbst Mut zu machen – oft mit selbstironischem Unterton.

[3] No original:

„Diese WM ist wie der Zweite Weltkrieg: Die Franzosen kapitulieren als Erste, die Amerikaner kommen spät, und an uns Engländern liegt es wieder einmal, die verdammten Deutschen zu stoppen.“

[4] No original:

Zuverlässig wie Big Ben Mitternacht schlägt, wird jedesFußballspiel gegen Deutschland in England aus der Warte des Krieges betrachtet, undunausweichlich ist von „the Blitz“ die Rede.

[5] No original:

In Bloemfontein (ein Ortsname, der das Zeug hat, in die Geschichte einzugehen wie Dunkirk oder el-Alamein) werden sich jedenfalls heute die Engländer bemühen, den ersten Schuss abzugeben.

[6] No original:

The tabloid press has embarrassed Prime Minister John Major and many of his countrymen by declaring a “blitz” on “the krauts.”

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading

Pular para o conteúdo