Na noite do Dia do Trabalho, o Flamengo venceu o Altos-PI por 2×1, para a alegria de quase 30 mil espectadores no Albertão em Teresina. A última vez que o Flamengo jogou no estado foi há 10 anos, em crise com a iminente saída de Ronaldinho Gaúcho. Mas o inusitado ficou muito além de um jogo de Copa do Brasil em pleno domingo. A partida foi exibida com exclusividade no Amazon Prime Video, serviço de streaming da Amazon, e contou com Casemiro e Tiago Leifert na transmissão.
A ação envolvendo os influenciadores é uma mudança no planejamento da Amazon, que, em dezembro do ano passado, anunciou um acordo com a Globo para sublicenciar os direitos de transmissão da Copa do Brasil. Inicialmente, porém, a empresa receberia não apenas o sinal da emissora de TV, mas também a narração, os comentários e as reportagens dos jogos. Isso aconteceu nas duas primeiras rodadas da competição. Agora, porém, com o torneio entrando em suas fases mais decisivas e com a entrada de times mais populares, como Flamengo e Corinthians, a Amazon decidiu investir em uma equipe própria de transmissão.
Tiago Leifert, apresentador com notável trabalho na Rede Globo, através dos campeões de audiência como o Big Brother Brasil e The Voice Brasil, foi responsável por grandes mudanças nos formatos do jornalismo da Globo, principalmente no esporte. Os visuais menos sérios e o humor do Globoesporte chamou a atenção do público mais jovem, agregando na audiência do programa.
Apenas no Instagram Tiago Leifert tem mais de 8,2 milhões, enquanto Casimiro conta com mais de 2,5 milhões de seguidores. Mas convenhamos, nessa rede social o Cazé está jogando fora de casa. O streamer de 28 anos despontou na Twitch, como um dos nomes mais carismáticos do momentos. Casimiro reagiu a pré-estreia do primeiro episódio da série sobre a vida de Neymar na Netflix, e mesmo acostumado com números expressivos, o streamer se assustou com os quase 540 mil espectadores sintonizados na live.
Tem duas transmissões na Amazon desse jogo do Flamengo. Eu acho ótimo. Quem gosta de estilo mais tradicional tem a boa equipe da Globo. Quem curte lives e reacts tem a boa transmissão do Leifert, Casimiro e Alê Xavier. Eu mesmo só sigo vendo esse jogo horrível por causa deles (+)
Para a partida, a Amazon ofereceu outra opção de transmissão, com Clayton Carvalho e comentários de Pedro Moreno, que seguiram todas as regras e técnicas do bom jornalismo tradicional. A gigante do streaming falhou em não comunicar essa possibilidade de divisão de interesses do público. Enquanto existiam os espectadores que privilegiam a informação contínua durante a transmissão e foco total na exibição, surge uma nova geração multi-tela e, cada vez mais, multitarefa, que parou de assistir tv e não tem paciência para ouvir um áudio na sua velocidade padrão de reprodução. Esse público, curtiu.
Do outro lado, muitos dos comentários negativos vêm carregados de uma intolerância rubro-negra à figura de Cazé e Leifert, marcados pela ligação com times rivais. Prova de que os pré-conceitos foram preponderantes no tom das críticas, foi o elogiado trabalho da repórter Pâmella Maranhão da TV Cidade Verde, afiliada do SBT, que foi cedida para a transmissão. A piauiense esbanjou referências locais, explicou a história do futebol piauiense de forma didática, em doses homeopáticas durante toda a transmissão e também usou do humor para conquistar a audiência. Passou detalhes sobre a atuação do técnico Diá e arrancou ótimas gargalhadas.
Outro ponto de discussão é sobre a formação e oportunidade de mercado de trabalho de profissionais do futebol em praças não tão competitivas, como no caso do poderoso Campeonato Piauiense. Muito mais do já batido “estava no lugar certo, na hora certa”, Pâmella qualificou-se, soube aguardar a oportunidade e possivelmente teve a maior vitrine da sua carreira. Passou pelo teste bem avaliada e mostrou que está preparada para vôos mais altos.
Se teve alguém que mandou bem na transmissão foi a reporter Pâmella Maranhão, representou o Nordeste! pic.twitter.com/7T2lACUr1f
Outros não entenderam o conceito. O perfil @falso92 conhecido por conteúdo voltado para debate táticos de partidas, fez duras críticas à transmissão e em seguida se retratou.
“Sobre a polêmica da transmissão estilo gamer, eu já mudei de opinião e todas as vezes que o fizer, admitirei aqui que fui infeliz no comentário anterior. A empresa disponibilizou dois tipos de transmissão, logo, não excluiu ninguém. Pelo contrário, acabou abrangendo um público maior. Isso acaba trazendo um público novo pro futebol, ou fidelizando quem estava em vias de ser perdido. Podem evoluir em algumas coisas, como falar menos e deixar o som ambiente mais alto, mas é uma tendência pra atender uma geração nova, que tem que consumir o jogo também! A opinião que dei anteriormente foi antes de saber que era possível assistir da forma mais tradicional. O fiz e achei muito boa de outra maneira, inclusive. Viva a diversidade, sempre”, disse @falso92.
Essa transmissão da Amazon do Flamengo x Altos recicla os papos sobre pão com linguiça da Band nas décadas de 80/90, jogo ruim, os caras começam a bater papo como se tivessem em boteco. Aí põem três câmeras e dão tom “chovem”. Já ouvi papo de botecos melhores, tirei o som
Recebo relatos de gente reclamando de dificuldades para ver Altos x Flamengo sem a dupla Leifert/Casimiro, porque a transmissão mais séria está escondida pela Amazon. Difícil assim.
Ao contrário de muitos, achei legal a transmissão com uma pegada gamer. O streaming permite optar entre diferentes narrações. Eu, um velho ranzinza, preferi a narração convencional, mas minhas filhas gostaram de ver o Casimiro. Há diferentes públicos e é bom dialogar com todos.
O termo “leifertização” representa essa mudança nos padrões do jornalismo esportivo, trazendo um ar mais cômico e menos sério para o estilo (que é utilizado até hoje). Ao mesmo tempo em que muitos espectadores e profissionais apoiaram esse movimento, muitos também o criticaram, como o jornalista esportivo Juca Kfouri, que em entrevista ao programa Voz Ativa, no ano de 2018, criticou esse fenômeno, falando do excesso de gracinhas presentes nas produções jornalísticas atualmente.
Fonte: Purepeople
Marcio Telles, Doutor em Comunicação e Informação pela UFRGS, aborda a sobreposição do entretenimento em relação ao jornalismo esportivo.
“No que também parece ser consensual à crítica teórica da “leifertização” do telejornalismo esportivo, o novo “Padrão Globo de Jornalismo Esportivo” não passa de um epifenômeno do capitalismo avançado, do espetáculo, da indústria cultural e sua voraz fome por dinheiro/audiência, que leva à “prostituição” da informação travestida de entretenimento”
Os Jogos Paralímpicos de Tóquio 2020 foram realizados de 24 de agosto a 5 de setembro de 2021. Em meio à melhor campanha brasileira, com mais ouros (22) e que igualou o total de medalhas (72) e a melhor classificação (7º), pretendo aqui trazer algumas observações da minha experiência enquanto espectador desta Paralimpíada de Verão.
Falha minha, apesar de lembrar de atletas paralímpicos de diferentes momentos, desde Adria Santos (atletismo) e Clodoaldo Silva (natação) a Daniel Dias (natação) e Petrúcio Ferreira (atletismo), além do histórico da multicampeã seleção do Futebol de 5, nunca tinha acompanhado os Jogos Paralímpicos com o mínimo de atenção que dou às Olimpíadas de Verão.
Neste ano mesmo, minha ideia era seguir acompanhando como em edições anteriores, ou seja, lendo e vendo notícias e reportagens audiovisuais. Até por estar na reta final da escrita da tese, após a imersão numa edição olímpica com competições do final da noite ao início da manhã, optei por sair das mídias sociais para focar no trabalho docente na universidade, em momento final de semestre letivo, e na pesquisa.
Mas bastou uma noite no terceiro ou quarto dia das Paralimpíadas para mudar de ideia. Ia assistir a um filme, mas acabei colocando no SporTV2 e estava passando as competições de atletismo, com comentários da Verônica Hipólito. Dali em diante, virei espectador quase tão assíduo quanto fui nos Jogos Olímpicos. Não avancei tanto nas madrugadas, com exceção dos jogos finais do Futebol de 5, mas também as opções de canais sobre isso não eram tão amplas.
Assim, com esse contexto, a escolha por “anotações” no título é para tratar aqui de coisas que me chamaram a atenção enquanto pesquisador, mas que, dado o fato de não ter sido meu objeto de estudo anterior, não seria honesto da minha parte usar referências e deixar reflexões formadas adequadamente.
Há um comentário em comum ao se avaliar a supremacia do futebol para o interesse popular e da cobertura esportiva no Brasil: o esporte do país é o futebol, o segundo é o que tiver brasileira ou brasileiro ganhando. Ainda que por pesquisas de torcida já dê para pensar até na primeira frase, o caso da Paralimpíada é interessante porque há muitas vitórias brasileiras, logo, era para haver muita vontade em transmitir.
Entretanto, entre o final do encerramento dos Jogos Olímpicos e a abertura dos Paralímpicos, havia uma dúvida sobre quem iria transmitir. Na semana de iniciar, confirmou-se que a TV Brasil (da Empresa Brasil de Comunicação, público-estatal) e o SporTV, normalmente no segundo canal, iriam exibir a competição. Além deles, o site internacional do evento também fazia a exibição com acesso gratuito.
A novidade da edição no Brasil, ao menos do que eu lembro das anteriores, foi um boletim noturno diário e a transmissão dos jogos eliminatórios do Futebol de 5 sendo transmitidos pela Rede Globo. Aposta, por sinal, tranquila: era futebol e que ganhou todas as edições paralímpicas sem perder um jogo sequer!
Fonte: Perfil da CPB no Twitter
Detalhes sobre a transmissão
Aproveitei a (cara) assinatura do pacote TV fechada + internet para assistir pelo SporTV 2. A opção do Grupo Globo foi por ter narradores mais novos, casos de Luiz Felipe Prota, Natália Lara e Sergio Arenillas. Nos comentários, atletas ou ex-atletas paralímpicos, com destaque (e afeto) para a dupla Verônica Hipólito (atletismo) e Clodoaldo Silva (natação).
Em todas as situações houve uma preocupação em seguir um jornalismo anticapacitista[1], que não seguissem, por um lado, o senso comum das histórias de superação, ainda que a “jornada de herói/heroína” façam parte da cobertura esportiva; e, por outro, de entender que o público contava com Pessoas com Deficiência (PcD), o que gerava momentos de audiodescrição e a preocupação em explicar bem quais os motivos de categorias para provas semelhantes, com correções quando necessário.
Confesso ainda que só tentei ver a TV Brasil no dia 4 de setembro, durante a final do Futebol de 5. Pareceu-me que a imagem tinha qualidade inferior do SporTV2, como se o sinal fosse reproduzido do site dos Jogos. Voltei ao canal horas depois, quando havia a exibição de outros eventos das Paralimpíadas, e a impressão foi a mesma.
Mas a transmissão do SporTV2 também teve suas limitações. Em alguns momentos, especialmente no atletismo, as provas de “campo” eram apresentadas como se fossem ao vivo, inclusive ficava o “ao vivo” na tela. Como eu estava acompanhando em paralelo no minuto a minuto do Ge.globo, sabia que determinado arremesso já havia sido realizado e, até, que a competição tinha terminado com certo resultado.
Nesse caso, o problema ainda é da geradora do sinal. O Comitê Paralímpico Internacional (CPI) não tem a mesma capacidade do seu referente olímpico para produzir e enviar ao vivo as imagens de todas as competições ao mesmo tempo. Mesmo no caso do atletismo, o sinal era apenas para uma prova por vez. Tendo competição na pista, prioridade, saia-se do campo.
Esse problema ficou ainda mais claro em competições em que só foram liberados posteriormente os vídeos, caso da canoagem, e trechos da bocha. Em alguns esportes, como o taekwondo, só havia foto ou vídeo do Comitê Paralímpico Brasileiro (CPB) postados nos perfis das mídias sociais, que eram utilizados na transmissão do SporTV2 – e nas reportagens da Rede Globo.
Fonte: Site dos Jogos Paralímpicos
Na expectativa da 73ª medalha brasileira, entrei no site do CPI antes de dormir no dia 4 de setembro para saber o resultado da semifinal do badminton, com Vitor Tavares. Mas não havia transmissão, tive que acompanhar pelo minuto a minuto do Ge.globo, que também não tinha muita possibilidade de atualização, e então tive que esperar acabar o jogo para saber do resultado
Por curiosidade, fui ver o perfil do CPB no Twitter[2]. No dia 4, a programação de atuação de atletas brasileiras e brasileiros contava com a “transmissão”, mas sinalizando apenas Rede Globo e SporTV 2 ou espaços vagos. Voltando alguns dias no perfil, havia programação com indicações e dias que não havia.
Aguardemos que o aumento do interesse a cada edição dos Jogos Paralímpicos amplie as formas de transmissão daqui a três anos em Paris.
O tema do nosso trigésimo quinto episódio é “O futebol na obra de Nelson Rodrigues”. Com apresentação de Mattheus Reis e Leticia Quadros, gravamos remotamente com Zeca Marques, professor associado da Universidade Estadual Paulista (Unesp/Bauru).
O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.
Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o trigésimo quinto episódio do Passes & Impasses.
Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.
Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):
Fla-Flu… E As Multidões Despertaram! – organizado por Oscar Maron Filho e Renato Ferreira [livro]
O boca de ouro [peça teatral de Nelson]
A vida como ela é – Nelson Rodrigues [livro]
O futebol em Nelson Rodrigues – José Carlos Marques [livro]
Equipe
Coordenação Geral: Ronaldo Helal Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro Roteiro e produção: Leticia Quadros, Fausto Amaro e Carol Fontenelle Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab) Apresentação: Mattheus Reis e Leticia Quadros Convidado: Zeca Marques
Um apresentador de televisão em suas redes sociais constantemente reclama de que querem transformar o futebol em matéria de faculdade e se vangloria de fazer um “programa raiz”. Nosso glorioso Universo do Futebol (DAMATTA, 1982), não necessariamente o pioneiro, o Charles Miller dos estudos nas áreas de ciências humanas e futebol completará quarenta anos em 2022. Caro apresentador, não é porque você não estuda que as coisas não existem.
Essa lógica “raiz” e a desvinculação do futebol com os estudos ou o que se poderia entender como circuito mais amplo da cultura quase sempre se associa a um raciocínio conservador como resposta quando práticas naturalizadas são colocadas em questão. Dentro desta matriz de pensamento o comportamento adequado de jogadores, comunicadores, torcedores e clubes deveria repetir o que ocorria em nossa juventude, mesmo que tal comportamento seja muito mais uma construção de memória coletiva do que episódios comprovados historicamente.
Apesar da importância normativa que possui dentro do futebol de espetáculo, o discurso “raiz” convive com uma série de outras discursividades. Essas discursividades não convivem em harmonia ou em igualdade de condições, mas estão constantemente participando de lutas por significados. Essas lutas não são novas. A novidade, talvez, esteja no protagonismo que discursividades até então relegadas a espaços muito pontuais passaram a ocupar na cultura futebolística.
Em artigo publicado com a jornalista, e especialista em jornalismo esportivo, Caroline Patatt (PATATT; BANDEIRA, 2020), discutimos o engajamento dos clubes de futebol no Brasil a pautas sociais que variavam da paternidade responsável, racismo, homofobia até a demarcação de terras indígenas. Apenas durante o mês de maio corrente, em sua página no Facebook, o Grêmio compartilhou postagens sobre o dia mundial da criança desaparecida, dia mundial do combate à LGBTfobia, além de homenagens ao dia do gari e ao dia das mães.
Existem alguns grupos de torcedores e torcedoras progressistas (esse adjetivo foi escolhido por sua abrangência dada a diversidade de grupos que têm tentado desnaturalizar as práticas da cultura futebolística) que criticam os clubes de futebol por limitarem-se a posicionamentos nas redes sociais, muito mais na lógica publicitária ou das próprias redes do que efetivamente engajados com demandas sociais. A crítica me parece absolutamente justa e correta. Entretanto ainda é muito recente essa “permissividade” para abordar temas sociais que durante muito tempo foram marcados como não tendo relação com o futebol.
Em 2015 e 2016, durante a produção do material empírico de minha tese de doutorado (BANDEIRA, 2019), a partir de certo retorno da Coligay as memórias dos torcedores do Grêmio e a historiografia oficial do clube[1], questionei os torcedores sobre a possibilidade da experiência da torcida homossexual entre o final da década de 1970 e princípios da década de 1980 poderia autorizar uma descrição do clube como mais plural em relação as sexualidades não normativas. As respostas dos torcedores também pareciam estar nessa lógica entre diferentes legitimidades nas práticas dos estádios de futebol:
“Poderia acontecer, mas eu acho que não teria aceitação pelo fato de que seria motivo de chacota dos outros”.
“O clube faz muito bem em resgatar isso aí para fazer uma nova imagem perante às outras torcidas, perante à imprensa, perante à opinião pública”.
“Eu acho que não vai fazer porque vai sofrer muita crítica velada, lá dentro mesmo, os próprios conselheiros”.
“Não é uma coisa que um time de futebol, que um clube, deva se preocupar como uma questão cultural, do mundo”.
“Não é aqui o lugar. Aqui é lugar para se ver futebol, curtir futebol”.
Não há dúvidas de que os cards nas redes sociais são muito pouco dentro do engajamento que os clubes com seu alcance midiático poderiam fazer. Tenho receio, também, se meu entendimento de que esse deslocamento dos últimos anos seja algo significativo não esteja autorizado pelo meu local de privilégio como um sujeito cis-gênero, branco e heterossexual quase sempre muito bem contemplado nas normatividades dessa cultura futebolística.
Talvez os clubes possam começar a copiar o, também tímido, passo dado por nosso jornalismo esportivo hegemônico ou normativo. A presença das jornalistas nas redações já permitiu uma curta alteração das percepções sobre fenômenos até então naturalizados nas discursividades do esporte e do próprio jornalismo futebolístico. Em janeiro, aqui mesmo neste espaço, comentei que um canal pago de esportes tinha celebrado uma frase machista dita pelo, felizmente, ex-treinador do Grêmio Renato Portaluppi. Trinta anos mais jovem, Neymar repetiu a mesma frase comparando posse de bola e mulheres. Ele disse a mesma frase. Em trinta anos esse raciocínio machista não conseguiu nem ao menos construir uma frase nova…
Renata Silveira, Ana Thais Matos, Natália Lara, Renata Mendonça e Fernanda Colombo formam o time de narradoras e comentarista do esporte da Globo, no Brasileirão 2021. Fonte: https://oglobo.globo.com/
A diferença nesta ocasião é que foi possível localizar uma matéria falando sobre o machismo de Neymar em sites esportivos. Ao ler os comentários sobre a reportagem nas redes sociais (eu sei que não deveria fazer isso, mas tem vezes que é inevitável) um homem indignado bradou que essa discussão só acontecia porque tinha muita mulher jornalista atualmente e que elas estariam levando pautas identitárias para o jornalismo esportivo. Em um primeiro momento, meu desejo foi apenas de xingar o torcedor revoltado, mas ele estava correto. Sim, quando se aponta para a necessidade de representatividade é disso que se trata. Deslocar o pensamento normativo é mais fácil quando pluralizamos as experiências. Essa pode ser outra metodologia para o enfrentamento das violências naturalizadas na cultura futebolística e, também, no circuito mais amplo da cultura. Precisamos de mais mulheres, mais pessoas negras, mais LGBTQIA+ com protagonismo discursivo. Precisamos multiplicar a representatividade, multiplicar as experiências, multiplicar as narrativas!
Temos que exigir mais de nossos clubes! E que cada um exija do seu, de rivalidade tratamos em outro momento. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que estamos em permanente luta por significados. Os cards de data são muito pouco, mas essa não é uma vitória garantida. Vamos por mais e estejamos atentos para não permitirmos regredir nos poucos passos dados até agora. Se hoje um clube não tem medo da chacota dos outros e publica mensagens favoráveis às sexualidades não normativas o discurso “raiz” também ganha espaço, eventualmente até entre alguns de nós saudosos não necessariamente das práticas, mas de nossas memórias juvenis.
Referências
BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. 1. ed. Curtiiba: Appris, 2019.
BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. A Coligay e as memórias dos torcedores do Grêmio. REVES – Revista Relações Sociais, v. 3, p. 35-49, 2020.
DAMATTA, Roberto. ______. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982.
PATATT, Caroline; BANDEIRA, Gustavo Andrada. Paixão e representatividade: a percepção dos torcedores brasileiros quanto às campanhas sociais dos clubes nacionais de futebol. Culturas Midiáticas, v. 13, p. 261-279, 2020.
O tema do nosso trigésimo primeiro episódio é “Mário Filho, jornalismo e romance”. Com apresentação de Mattheus Reis e Fausto Amaro, gravamos remotamente com João Paulo Teixeira, jornalista, graduado pela Universidade Federal de Juiz de Fora, e Ronaldo George Helal, professor da Faculdade de Comunicação Social da UERJ e coordenador geral do LEME.
O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.
Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o trigésimo primeiro episódio do Passes & Impasses.
No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Maracanã”. A canção foi composta e interpretada por Francis Hime.
Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.
ARTIGOS, LIVROS E OUTRAS PRODUÇÕES:
O Negro no Futebol Brasileiro – Mário Filho [livro]
A invenção do país do futebol – Antonio Jorge Soares, Hugo Lovisolo e Ronaldo Helal [livro]
Pelé [documentário da Netflix]
Equipe Coordenação Geral: Ronaldo Helal Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro Roteiro e produção: Leticia Quadros, Carol Fontenelle e Fausto Amaro Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab) Apresentação: Mattheus Reis e Fausto Amaro Convidados: João Paulo Teixeira e Ronaldo Helal
Não é nenhuma novidade que a quantidade de informações a que estamos expostos atualmente não encontra precedentes na história humana. A tendência, aliás, é que isso se intensifique nos próximos anos. No mundo dos esportes, isso talvez seja mais facilmente perceptível do que em outras esferas sociais. São variados os sites de notícia, apps, programas de TV, jogos ao vivo, fantasy games, podcasts, canais no Youtube, perfis no Insta dedicados ao tema. Enfim, trata-se de uma infinidade de conteúdos à disposição de quem possui tempo para acessá-los e os dispositivos e assinaturas necessários para poder consumir todos ou alguns desses produtos. Sim, porque nada é totalmente de graça no século XXI. Boa parte dos conteúdos ao vivo de esporte está pulverizada por cerca de meia dúzia de empresas de comunicação. Um bom exercício de imaginação é supor o que Umberto Eco teria a nos dizer sobre isso – se, na década de 1980, ele já se queixava da “falação esportiva”, qual termo cunharia hoje para descrever o que vivemos?
Nos anos 1980, crescia a quantidade de programas de debate esportivo na televisão, comentando os jogos recém-encerrados, a rodada de um campeonato ou o mercado da bola. Atualmente, esse tipo de programa não está mais apenas nos canais televisivos; a concorrência agora é muito mais ampla. Aliás, o esporte concorre com inúmeras outras possibilidades de entretenimento audiovisual. Isso talvez explique por que o jornalismo esportivo pende cada vez mais para o humor, em detrimento da informação, para conseguir prender a atenção do espectador (não que humor e informação não possam caminhar juntos eventualmente…). Outro nicho em ascensão são os “influenciadores dos clubes”. Torcedores comuns, com ou sem diploma de jornalistas, que emitem suas opiniões sobre seus times do coração. Muitas vezes nesses vídeos, o influenciador “comenta” os comentários das mesas-redondas televisivas (boa parte das vezes discordando de um ou outro jornalista, que estaria supostamente contra o seu clube e favor dos rivais). Qual seria o próximo passo? Todo torcedor, em seus perfis pessoais na rede social em alta no momento, tecendo comentários sobre a opinião dos influenciadores, os quais por sua vez analisam os jornalistas dos grandes canais de TV? Se pensarmos bem, essa situação já ocorre nas caixas de comentários do Youtube, Instagram, Twitter…
showmetech.com.br
Como processar tantos dados? Dada a complexidade crescente da indústria do esporte, é demandado do torcedor conhecer o jogo para muito além das quatro linhas. Debates econômicos, antes restritos aos bastidores, vêm cada vez mais para a frente do palco. Clube-empresa, patrocínios, naming rights… são assuntos que hoje ocupam espaço nas conversas entre aficionados por esporte. “Meu clube fatura mais com patrocínios que o seu”, “Meu clube tem mais sócios”, “O estádio do meu clube lucra mais com naming rights” – não consigo imaginar esse tipo de afirmação sendo feita, por exemplo, na década de 1950. Se atualmente esses tópicos estão na ordem dos temas circulantes, isso se justifica, em parte, pelo que falei no início deste texto – quantidade cada vez maior de informação, sobre qualquer assunto e também sobre futebol. Outro exemplo são os fantasy games de esporte (como o Cartola FC), que, sob o incentivo de transformar qualquer torcedor em técnico, busca instigar que os usuários procurem informações não apenas sobre seu clube favorito, mas sobre todos os outros que disputam o campeonato. Pelo lado do torcedor/usuário, essa informação lhe permitirá escalar melhor seu time na plataforma, ao custo de mais tempo gasto no consumo de informação esportiva. Pelo lado da empresa, isso proporciona maior retenção de usuários em suas plataformas (logo, mais engajamento, alcance e todas aquelas métricas de marketing conhecidas) e, finalmente, a capacidade de barganhar com anunciantes por cotas maiores de publicidade.
Para que esse texto não fique excessivamente extenso e perca o seu curso, acho que podemos encerrar nos perguntando: como selecionar o conteúdo que, de fato, queremos assistir e não o conteúdo que nos é forçado goela abaixo pelos algoritmos das redes sociais ou pela programação televisiva? Acredito que, cada vez mais, tenhamos de agir tal qual gatekeepers da nossa própria grade de programação, não apenas fracionando o tempo dos nossos descansos entre os vários divertimentos que cultivamos, mas também hierarquizando o que julgamos relevante daquilo que não nos acrescenta muita coisa (seja em termos de informação ou mesmo de diversão). E, se você considera divertido mesas-redondas com mais humor do que informação, vá em frente e coloque esse programa no topo da sua hierarquia. Por outro lado, se você só assiste esses programas meio que por inércia, repense suas escolhas. Existem podcasts esportivos com informação de muito mais qualidade, sem abrir mão de uma linguagem acessível (vide o nosso Passes e Impasses, por exemplo). Para além da questão da qualidade do conteúdo, existe o tempo a ser gasto. Se você tem tempo de sobra e consumir esporte te dá mais prazer do que arrependimentos, acredito que não há problema em ser utilitarista aqui. No entanto, se a sua semana é corrida, e tempo é item escasso na sua vida, pense em dosar o consumo diário de esportes (temos aplicativos de controle de rotina e de gerenciamento de atividades que podem te ajudar com isso).
Em resumo, em nossa sociedade hiperinformacional, a gestão do tempo talvez seja o maior desafio, tanto para as empresas em geral, que querem mais e mais nacos da sua atenção diária, quanto para você, que deve direcionar o seu foco para aquilo que realmente é do seu interesse e não para o que lhe é imposto.
Nunca participei de uma roda de samba. Nunca tive o ouvido musical que gostaria. Nunca trabalhei em rádio. Mas o som, a música, sempre exerceram um poder de sedução sobre mim. Ouvir uma determinada canção pode me fazer chorar ou, como num toque de mágica, arrancar um sorriso do meu rosto e me remeter a um tempo que hoje só existe na memória.
Nesse momento de tantas incertezas e questionamentos sobre o que realmente importa, ganhei um rádio de presente. Não aquele pequeno aparelho transistorizado de comunicação ponto a ponto, mas um vovô-garoto, um rádio reconfigurado que, no auge do seu centenário, se apresenta expandido, capaz de transmitir em diferentes plataformas ondas de emoção jamais imaginadas. Estudar rádio com um time de especialistas como Marcelo Kischinhevsky, Debora Cristina Lopez e Lena Benzecry fez com que, enfim, o som entrasse pra ficar na minha vida.
Fonte: br.pinterest.com
Mas, como sou da área de comunicação e, durante um tempo trilhei um caminho na área esportiva, o estudo do rádio imediatamente me remeteu às noites passadas atrás do gol em que dividia espaço com os colegas de rádio. Eles acompanhavam as partidas sempre ávidos por um furo de reportagem e por levar ao ouvinte aquela notícia de última hora sobre o time do coração que todo apaixonado por futebol está louco pra saber.
Não posso dizer que foram noites fáceis pra mim. Como mãe de filhas na época pequenas e mulher numa seara ainda cultivada por um machismo estrutural, não podia dar bola fora, o que certamente me fazia gramar mais do que muitos dos meus colegas radialistas.
No entanto, agora, com olhar de fora e talvez mais isento, consigo observar que o jornalismo esportivo assim como todo o fazer radiofônico passou por uma metamorfose nos últimos anos. Mudaram os modos de fazer, de circular e, também, de produzir conteúdos.
Talvez essas mudanças não sejam totalmente perceptíveis para a maior parte da audiência. Principalmente para aqueles que ouvem rádio de forma desatenta, apenas como uma trilha de som do cotidiano. No entanto, alguns ouvintes, entre eles, amantes de futebol, têm uma relação meio ritualística com o rádio. Chegam até mesmo a acompanhar a narração das partidas pelo rádio independentemente de estarem no estádio ou diante da televisão com um delay que torna impossível a sincronia perfeita entre o som do rádio e a imagem da tv. A sonoplastia, muito adotada pelo rádio, principalmente no geladão, quando os narradores transmitem a partida de seus estúdios, reforça o hábito e dá ao torcedor a sensação de não estar perdendo nenhum detalhe.
Arriscaria dizer que é mais do que isso. Trata-se de laços de afeto tecidos durante anos através de relatos e diálogos que misturam o real e a imaginação. E é exatamente aí, nesse terreno dos bens intangíveis, que futebol e rádio se encontram num casamento perfeito. Mas, como qualquer outro casamento, também está sujeito a crises. E o pivô das últimas crises tem sido a distância.
Fonte: Clip Gallery Word
O jornalista Whashington Rodrigues, há 18 anos líder de audiência na Rádio Tupi com o Show do Apolinho, lembra da coletiva comandada pela FLA TV após a conquista do último campeonato carioca pelo Flamengo. Assim como ele, milhões de torcedores de todo Brasil, queriam saber se Jorge Jesus permaneceria, ou não, no comando do Flamengo. O jogador convocado para coletiva foi o meia Arrascaeta e, a pergunta que não queria calar, não foi ouvida.
A exemplo do que já acontecia na Europa, os clubes brasileiros adotaram a onda da privacidade. Os treinamentos sem a presença da imprensa tem sido cada vez mais frequentes, assim como a suspensão do direito dos jornalistas de escolherem o jogador a ser entrevistado nas coletivas. A mudança não é nova mas continua gerando muita polêmica.
Fonte: Foto enviada pelo comunicador.
“Repórter hoje é a internet. Você vai a Vargem Grande e fala de fora, não pode ver nada. Então, o repórter acaba ficando na emissora mesmo. Até 1980 repórter entrava no vestiário, ficava perto das suas fontes. Hoje não pode nem entrar em campo porque a televisão exige um produto limpo. Com isso, a cobertura está se deteriorando”, lamenta o radialista.
Mas apesar do saudosismo de alguns radialistas, definitivamente não dá pra dizer que a era de ouro do rádio ficou lá atrás. Muito pelo contrário. A era de ouro do rádio, segundo Apolinho, é agora. Com uma penetração que em muitos mercados varia entre 75 e 90% da população acima de 12 anos, o rádio se vê diante do desafio de integrar-se rapidamente às novas tecnologias e a cultura da convergência. Isso, é claro, inclui o trabalho dos radialistas de todos os setores. Os radialistas esportivos precisam agora encontrar novas pautas para driblar as proibições dos clubes e dos detentores dos direitos de transmissão. E, mais do que isso, entender que é possível fazer jornalismo de qualidade com fontes confiáveis sem necessariamente estar in loco.
Como bem coloca Débora Cristina Lopez, é preciso repensar o rádio como um todo, compreender sua inserção nesse novo ambiente, assim como as relações estabelecidas com o ouvinte, as fontes e as ferramentas de construção da informação.
Considerado um dos meios de comunicação mais inclusivos por ser democrático e também portátil, o rádio deve continuar acompanhando a vida dos ouvintes tanto nas cidades como nas zonas rurais, mesmo nas mais distantes. Essa tendência pode ser potencializada com a adoção do rádio digital no Brasil. A internet, que já foi vista como uma ameaça pelas emissoras de rádio, entra em campo como uma aliada no fazer jornalístico. Ela possibilita, por exemplo, que o comunicador use as ferramentas digitais para interagir com o público e, ao mesmo tempo, fazer pesquisa de informações atualizadas. Em alguns casos, pode recorrer ao próprio banco de dados da emissora. A Rádio BandNews FM, por exemplo, possui um banco de dados comum, que congrega o conteúdo produzido por todo o grupo Bandeirantes.
Com a disseminação das conexões em banda larga, a rádio online passou a ser uma extensão das emissoras com a vantagem do baixo custo de funcionamento. Ouvintes do Brasil e de outras partes do mundo passaram a buscar na web rádio conteúdos variados, sonoros, ou não. O que aponta para a necessidade cada vez maior das emissoras fazerem uma escuta ativa do seu ouvinte. Afinal, a própria concorrência exige esse olhar diferenciado para a audiência.
As pesquisas de audiência se tornaram ferramentas importantes para identificar o perfil dos ouvintes e buscar saídas para lidar melhor com os atuais problemas ligados à concorrência e ao envelhecimento da audiência. Se as emissoras de rádio e seus comunicadores souberem extrair o valor dessas pesquisas, que podem fornecer, entre outras informações relevantes, o perfil do ouvinte, o tempo que passa ouvindo determinada programação, além do lugar em que se encontra, certamente o futuro do rádio continuará promissor por mais um século e, qualquer conjectura sobre uma possível extinção motivada pelo determinismo tecnológico, terá que ser definitivamente descartada.
Referências Bibliográficas
LOPEZ, D. C. Radiojornalismo Hipermidiático: tendências e perspectivas do jornalismo de rádio all news brasileiro em um contexto de convergência tecnológica. Covilhã: Labcom Books, 2010.
KISCHINHEVSKY, M., DE MARCHI, Leonardo. Expanded radio. Rearrangements in Brazilian audio media markets. Radio, Sound & Society Journal, v. 1, n. 1, 75-89.
Neste mês de agosto, fez dois anos que defendi minha dissertação de mestrado na Universidade Federal de Santa Catarina. A minha intenção com o trabalho era identificar de que maneiras as preferências clubísticas dos jornalistas esportivos gaúchos interferiam na cobertura da rivalidade GreNal em Porto Alegre. Embora essa questão das subjetividades na editoria esportiva já esteja bem (de)batida, fiz o exercício de reler o tópico “Jornalista esportivo pode falar pra que time torce?” da minha dissertação para tentar compreender porque alguns jornalistas que entrevistei no jornal Zero Hora foram tão hostis comigo às vésperas de eu defender o trabalho. Chegaram a me dizer, entre e-mails e ligações em tom de ameaça, que a minha irresponsabilidade na pesquisa colocaria fim à minha carreira de jornalista – que mal tinha começado, por sinal.
Hoje, dois anos após o ocorrido, já consigo falar com mais maturidade sobre o que aconteceu: em algum momento nas minhas quatrocentas páginas de dissertação, eu deixei bem claro para que time cada um dos jornalistas entrevistados torcia. Se fazer isso na imprensa esportiva do Rio de Janeiro ou de São Paulo já soaria uma afronta, imaginem no Rio Grande do Sul, onde a grenalização beira a irracionalidade. Eu, na boa fé de quem está fazendo um favor às fontes, enviei a pesquisa aos meus informantes antes de protocolar o pedido de defesa na universidade. Foi quando seis – dos sete jornalistas que eu havia entrevistado em dois dias intensos de pesquisa na redação da Zero Hora – me responderam de uma forma que julguei desproporcional à situação e muito desagradável com quem estava prestes a obter sua conquista profissional mais importante até então – e que tinha trabalhado duro pra isso.
Pode ser que esses jornalistas tenham se sentido ludibriados porque cheguei na Redação querendo falar sobre a rivalidade GreNal e saí de lá sabendo o time de todo mundo, um segredo de estado no Rio Grande do Sul. E para mim uma bobagem tão grande quanto um jornalista que faz crítica de música na Rolling Stone, mas não pode ter seu top 10 de discos na estante. O professor Celso Unzelte explica melhor esse raciocínio: “como ser objetivo e imparcial (mas sem perder a paixão, jamais!) nessa que é, talvez, a mais subjetiva e passional de todas as áreas do jornalismo?” (UNZELTE, 2009, p.12). Pois é, era essa uma das perguntas que eu tentava responder na minha dissertação. Tanto é que lendo as matérias da Zero Hora logo percebi uma série de indícios clubísticos nas entrelinhas, os quais suponho que gremistas e colorados também percebessem. Tudo bem que eu estava analisando matérias e reportagens de um período ímpar na história secular de Grêmio e Inter: um deles sendo campeão na quarta e o outro sendo rebaixado no domingo. Então, naquele momento apocalíptico, até mesmo quem estava apenas de passagem por Porto Alegre vestia azul ou vermelho.
É lógico que tomar partido sendo repórter esportivo é mais complicado, vai ver por isso o único dos sete jornalistas que não questionou minha conduta – e inclusive quis ter o seu nome (e o seu time) divulgados na pesquisa – era alguém que há um tempo havia deixado o caderno de esportes. Afinal, mais do que os fundamentos do jornalismo em si, o assunto envolve questões óbvias de segurança, nem tão óbvias assim para mim naquele momento, mas que foram motivo suficiente para eu rever minha escrita e defender o trabalho sem tocar na ferida. Ainda que durante as entrevistas não tenha ficado claro um pedido de off, depois de todo esse impasse na Redação concordei com as fontes em omitir suas identidades, substituindo-as por “A” “B”, “C”, “D”, “E”, e “F” para protegê-las dos depoimentos* que transcrevo a seguir, os quais compõem a versão final do trabalho e resultaram de muito vai-e-vem nas entrevistas até que eu chegasse direto ao ponto:
Trecho da entrevista com o jornalista C:
Thalita Neves (T.N.): Aqui na Zero Hora vocês têm essa coisa de o setorista do Grêmio ser alguém que torce pro Grêmio e do Inter alguém que torce pro Inter?
Jornalista C (J.C.): Não, não necessariamente. Eu, por exemplo, sou paulista. Eu não sou nem gaúcho.
T.N.: Bom que você escapa de qualquer tipo de julgamento…
J.C.: Não, não escapo. As redes sociais não nos perdoam. Por qualquer coisa, sério, por indício, eles apontam: “lá você falou isso, aqui você falou aquilo…”.
Trecho da entrevista com o jornalista B:
Jornalista B (J.B.): A maioria não identifica o clube pra qual torce porque sabe que isso é uma questão problemática aqui.
Thalita Neves (T.N.): Vocês recebem críticas por e-mail ou isso é mais comum nas redes sociais?
J.B.: Tá cada vez menos comum por e-mail e mais comum em redes sociais. Inclusive, com táticas, entre aspas, de descontextualizar coisas que tu escreve. […] E aí eles vão lá e esquadrinham o teu perfil do Twitter pra buscar tweets antigos pra denunciar uma suposta parcialidade.
T.N.: E pra que time você torce?
J.B.: Eu sou colorado.
T.N.: Aqui o setorista do Inter é um colorado e do Grêmio um gremista ou isso independe?
J.B.: Independe. Isso independe.
Trecho da entrevista com o jornalista F:
Thalita Neves (T.N.): Eu vejo que aqui os jornalistas não gostam de falar pra que time torcem.
Jornalista F (J.F.): Eu acho isso uma besteira, na real, tá? […] Todo mundo que nasceu no Rio Grande do Sul ou 90% das pessoas que nasceram no Rio Grande do Sul ou torcem pro Inter ou torcem pro Grêmio. Alguns torcem pro Brasil [de Pelotas], de verdade, outros torcem pra alguns times do interior… São Paulo de Rio Grande, enfim. A maior parte torce, de fato. Eu não conheço ninguém que torce pro juiz. Ninguém nasceu torcendo pro juiz. A não ser o filho do juiz que é um, dois, dez, vinte.
T.N.: E eu não conheço ninguém que entrou no jornalismo esportivo e não tem um time, né?
J.F.: Porque provavelmente o cara gosta, se não o cara ia se torturar, estando aqui todo dia falando disso. […] Eu evito falar. Mas não acho que mancharia a minha credibilidade.
T.N.: E você é colorado?
J.F.: Eu não tenho problema nenhum, eu sou sócio. Porque durante trinta anos eu não cobri o Inter. E obviamente eu gosto de ir no estádio. […] Mas eu te confesso que eu acho uma besteira assim, sabe. Se eu não tivesse essa questão da segurança eu não teria problema nenhum em dizer. Eu não acho que o meu trabalho seja comprometido por eu torcer pro Inter. Primeiro porque eu não vou mudar, não conheço ninguém que mudou de time, mesmo em bom ou mau momento.
T.N.: E aqui vocês têm essa coisa de quem torce pro Inter cobre Inter e quem torce pro Grêmio cobre Grêmio ou independe?
J.F.: Não sei, te confesso que eu não sei.
Trecho da entrevista com o jornalista A:
Jornalista A (J.A): As pessoas que aparecerem com foto minha no estádio, não tem problema, eu vou assumir. Se a pessoa me disser: “ah tu torce pra esse time”, eu vou assumir, eu não escondo.
Thalita Neves (T.N.): Então, se você for perguntado, você não vai negar?
J.A.: Se a pessoa vier com uma foto: “olha aqui, tô te vendo aqui”, tudo bem. Eu não vou sair falando que eu torço pra A ou B. Não vou. […] Mas é engraçado, pois como eu faço Inter há bastante tempo, as pessoas já acham que eu sou colorado.
T.N.: E você é colorado?
J.A.: Sim.
T.N.: Eu ia perguntar se tinha essa coisa de os setoristas cobrirem o time deles…
J.A.: Eles te disseram?
T.N.: Não. Eu supus.
J.A.: Mas não, não tem. É coincidência.
Trecho da entrevista com o jornalista E:
Jornalista E (J.E.): A seriedade é básica em qualquer setor da vida. Mas aqui, a seriedade, e aí tu junta no jornalismo a isenção, de não pender pra nenhum dos lados, né? Porque se tu fica marcado como gremista ou como colorado…
Thalita Neves (T.N.): Vai estar sujeito a mais julgamentos e até ameaças.
J.E.: É. E depois eu acho que o básico para o jornalista esportivo é estar bem informado, e saber contar a história […]. Eu tenho que fazer as pessoas entenderem aquilo que eu tô querendo dizer, e com a melhor qualidade e com o melhor padrão de texto possível. Eu acho que é mais ou menos por aí.
T.N.: E informalmente você pode me dizer se você é Grêmio ou Inter?
J.E.: Não, não posso.
T.N.: Que pena, todo mundo me disse.
J.E.: Todo mundo tem um time. Eu era colorado.
Trecho da entrevista com o jornalista D:
Thalita Neves (T.N.): Pelo o que eu vi dos setoristas aqui, o pessoal prefere ficar na defensiva pra não estar sujeito a julgamentos o tempo inteiro.
Jornalista D (J.D.): É… Entra nesse tipo de coisa que não contribui em nada pro nosso trabalho também.
T.N.: Mas informalmente você pode falar se eu te perguntar pra que time você torce?
J.D.: Posso. Eu torço pro Inter, mas eu sou muito mais crítico do que oba-oba.
T.N.: E aqui o setorista do Inter é alguém que torce pro Inter e do Grêmio alguém que torce pro Grêmio?
J.D.: Não, não. Coincidência só.
Confesso que essa coincidência me deixou intrigada, inclusive porque o único jornalista do meu corpus de análise que se negou a me conceder entrevista era exatamente o que fugia ao acaso. Este se mostrou incomodado com a minha presença na Redação desde o início. Os demais foram todos muito solícitos – pelo menos até virem o trabalho pronto. Entre as minhas fontes da editoria esportiva, apenas uma era mulher. E acho importante ressaltar que em muitos aspectos foi esta a entrevista mais enriquecedora. Cheguei a pensar que a veemência com que um dos jornalistas questionou minha conduta, dizendo que estraguei minha carreira, podia soar um tanto abusivo, afinal, talvez ele se ressentisse por ter revelado para alguém que julgasse estar num patamar inferior aquilo que não poderia jamais ser revelado. Cheguei a pensar também se alguns deles agiriam com a mesma rispidez no posterior pedido de omissão caso fosse um jornalista homem quem tivesse descoberto o que eles queriam esconder a todo custo.
jornalismoderno.wordpress.com
Fato é que, dos seis entrevistados, partiu da jornalista mulher o argumento que me pesou a consciência por não ter protegido as identidades. Depois de ver o trabalho pronto e sem medir palavras, ela exigiu que eu omitisse seu nome da minha pesquisa porque tinha muito medo de ser violentada por simplesmente torcer para um time de futebol. Sobretudo por que somos mulheres, acatei o pedido de imediato. Repito que, durante as entrevistas, ninguém me pediu claramente para manter a informação em off – vai ver que isso já estivesse subentendido por se tratar de Grêmio e Inter ou porque em alguns casos eu, muito ingênua, perguntei em tom informal. Naquele momento, não percebi o quanto a divulgação daqueles nomes poderia ser problemática, até porque eu não estava escrevendo nenhum best-seller. As dissertações tendem a ficar restritas ao universo acadêmico. E eu realmente acho que ninguém vai atrás de pesquisa científica para descobrir time de jornalista.
Toda aquela confusão me deixou muito receosa para a defesa, que ocorreria dali duas ou três semanas. Meu orientador me confortou dizendo que era justamente essa a grande sacada da minha pesquisa. Embora saber o time dos meus informantes fosse crucial para o objetivo do meu trabalho, esse mal-entendido me fez perceber que o que estava em jogo ali eram bem mais do que as discussões sobre (im)parcialidade jornalística e sua relação com o caderno de esportes, mas sim o peso de uma rivalidade que, além de colocar pessoas em risco, se constrói sob aspectos socioculturais bastante característicos, como a suposta marginalidade do futebol gaúcho em relação ao restante do país – refletida pela marginalidade geográfica do Rio Grande do Sul – e as particularidades da história de Grêmio e Inter: dois grandes clubes, com grandes títulos, estádios próprios e os programas de sócio-torcedor mais bem-sucedidos do país, mas que, a meu ver, ainda buscam motivos para fazer páreo aos times do “eixo” e não se sentirem longe demais das capitais. Isso de os jornalistas esportivos gaúchos ostentarem que guardam a sete chaves a resposta para “qual seu time do coração” me parece apenas uma dessas facetas que às vezes me sugere um bairrismo inconsciente.
Enfim, de qualquer forma, deixei explícito na minha dissertação que o fato de os jornalistas da Zero Hora terem seus respectivos times para torcer não intervém nas matérias a ponto de comprometê-las quanto aos fundamentos jornalísticos, pelo menos não no material que analisei. Inclusive, os conteúdos analisados preservam boa parte daquilo que autores como Kovach & Rosentiel (2004) consideram os princípios básicos do jornalismo, como a obrigação com a verdade, o compromisso com a apuração e o empenho para apresentar de forma interessante o que é mais significativo na notícia – além do respeito ao off-the-record, é claro! Se eu posso tirar mais alguma lição disso tudo, acho que convém usar esse episódio para ilustrar alguma aula que eu venha a dar sobre informação em off no jornalismo, assim como faziam meus professores na Universidade Federal de Ouro Preto, exemplificando as teorias e o código de ética da profissão com suas ânsias e tropeços de início de carreira. Sobre a defesa, a banca aprovou o trabalho sem alterações e me recomendou publicá-lo. Quem sabe um dia!
Referências
KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo. Trad. Wladir Dupont. São Paulo: Geração Editorial, 2004.
NEVES, Thalita. Jornalismo esportivo: Jornalismo esportivo e a cobertura da rivalidade GreNal em 2016: o título do Grêmio e o rebaixamento do Inter. 431 f. Dissertação (Mestrado em Jornalismo), Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, 2018.
UNZELTE, Celso. Jornalismo esportivo: relatos de uma paixão. São Paulo: Saraiva, 2009.
*Os depoimentos aqui transcritos são parte das entrevistas em profundidade realizadas pela autora na Redação da Zero Hora, em Porto Alegre, nos dias 26 e 27 de abril de 2018.
O tema do nosso décimo sexto episódio é “Jornalismo esportivo e covid-19”. Com apresentação de Filipe Mostaro e Letícia Quadros, gravamos remotamente com o Sérgio Souto, jornalista e professor da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, e o Guilherme Oliveira, jornalista e produtor da TV Globo.
O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, traremos sempre especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa. Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o décimo sexto episódio do Passes e Impasses.
No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “O dia em que a Terra parou” a canção de Raul Seixas, apesar de ter sido lançada há quase 30 anos, representa exatamente o que estamos vivendo hoje.
Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.
Como uma jovem jornalista em formação, apaixonada por esporte, esse novo modo de viver que nos foi imposto me fez refletir. Refletir acerca do papel do jornalista, do papel do esporte e do nosso papel enquanto pessoas. Para uma pessoa que gosta de esporte e está cursando jornalismo, essas três variáveis são quase indissociáveis. Enquanto… Continuar lendo O jornalismo esportivo em tempos de Coronavírus