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Idolatria de mitos do futebol brasileiro é construída pela mídia

Determinadas características consolidam os heróis no imaginário popular

Por Anabella Léccas e Paula Freitas

Zico, Romário e Ronaldo Fenômeno são notadamente reconhecidos como heróis do futebol mundial. Ao longo das suas carreiras, os atletas receberam grande atenção da mídia e, como consequência, conquistaram o apreço popular. Um conjunto de artigos produzidos pelo professor titular da Faculdade Comunicação Social da UERJ, Ronaldo Helal, procura investigar a forma como a imprensa futebolística atuou na construção das narrativas de idolatria que envolvem os três jogadores cariocas. 

Para isso, o pesquisador do CNPq utilizou como base a análise de jornais da Copa de 1994, na qual Romário se firmou como um grande herói e salvador do futebol brasileiro; de jornais da Copa de 1998, que marcou a provação de Ronaldo como mito após a derrota da seleção; e das biografias Zico: uma lição de vida e Zico conta a sua história, em que a trajetória de vida de Arthur Coimbra mostra a presença de certos requisitos para a construção da sua imagem como ídolo.

De acordo com Helal, os entraves futebolísticos, representados nas disputas em campo, proporcionam “um terreno fértil para a produção de mitos e ritos relevantes para a comunidade” (HELAL, p. 1, 2003). Em conjunto, características pré-definidas pelo público e acordadas com a mídia complementam a figura do herói, como é o caso da “genialidade”, do “improviso” e da “malandragem” (HELAL, 2003). O professor relata também que apesar da imprensa hegemônica valorizar o talento inato frente a dedicação, existem exceções, como a de Zico.

Em um aspecto mais amplo da idolatria, a infância dos ídolos tende a funcionar como uma ferramenta para a identificação do público. No caso de Zico, não é diferente. Nascido no subúrbio do Rio de Janeiro e caçula entre cinco irmãos, Arthur faz parte de uma série de atletas que tem um passado simples, sem muitas regalias. Essa questão aproxima o herói Zico do homem comum, porque demonstra um ponto de familiaridade entre a infância dos torcedores e a do consagrado mito.

Fonte da imagem: Globo Esporte.

Além disso, a determinação e o foco no treino são pontos que Zico considera essenciais para a consolidação de uma carreira de sucesso. Desse modo, o jogador destaca esses pontos como fatores imprescindíveis no fortalecimento da sua condição de herói, sendo este mais um passo para o desenvolvimento da sua afinidade com o público.

O intenso esforço de Zico e o constante acompanhamento médico o renderam o apelido de “craque de laboratório” (HELAL, p. 23, 1999). No entanto, “[…] à época a alcunha ‘craque de laboratório’ era utilizada, muitas vezes, de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, fugindo das características “artísticas”, “espontâneas” e “criativas” do nosso futebol” (HELAL, p. 23, 2003).

Fervorosamente criticado pela imprensa e por seus opositores, o jogador do Flamengo, que ainda ocupava o banco de reservas, também passou por algumas decepções antes de se tornar um craque do time rubro-negro. Além das contestações dos jornalistas, a ausência da convocação para as Olimpíadas de 1972 soma-se aos percalços enfrentados pelo ídolo, que relata essa derrota pessoal e profissional como fonte de motivação para um treino ainda mais vigoroso.

Ao se elevar como jogador titular do Flamengo e, em seguida, conquistar a camisa dez rubro-negra, Zico se firma como um herói inegável pela imprensa e pelos apaixonados por futebol. Helal reflete, ainda, que a idolatria em torno de Arthur Coimbra se difere dos outros ídolos do futebol brasileiro e da visão clássica da mídia que privilegia a malandragem frente ao esforço e à dedicação.

Um exemplo de ídolo exaltado pela mídia por personificar a malandragem e o talento inato é o jogador Romário. Durante a sua carreira, o atleta se envolveu em inúmeras polêmicas e discussões, sendo caracterizado por uma matéria do jornal “O Globo” como: “quase uma bomba que tem pernas”, “parece o dono do mundo” e “abusado” (O Globo, 13/09/1993). Ao mesmo passo, o jornal o definia como um “artilheiro” e “craque” que “faz gol como quem brinca” (O Globo, 13/09/1993).

Essa dualidade, por mais paradoxal que seja, acaba definindo Romário como o “marrento” favorito do Brasil. A construção da narrativa do jogador carioca é “muito mais próxima do modelo “Malasartes” e “Macunaíma”, exaustivamente analisado por Roberto Da Matta (1979) que, inclusive, traz para o discurso acadêmico a narrativa do “malandro” como uma vertente tipicamente brasileira, corroborando, assim, a postura adotada por parte da mídia” (HELAL, p. 22, 2003).

Fonte da imagem: GQ – Globo

A Copa de 1994, sediada nos Estados Unidos, reforçou ainda mais o paradoxo que envolve a carreira de Romário. O atleta era visto como uma figura “difícil”, mas, ao mesmo tempo, necessária para que a seleção brasileira vencesse o grande torneio de futebol da FIFA. Durante as eliminatórias da competição, Romário já era visto como uma ferramenta imprescindível e extremamente decisiva para que o Brasil pudesse, de fato, chegar até a Copa do Mundo. Na partida contra o Uruguai, o jogador “abusado” fez dois gols e levou o time a vitória, reafirmando os seus discursos prévios de que iria, certamente, fazer uma boa atuação e ganhar a partida. Em um dos artigos, ao analisar essa questão, o pesquisador Ronaldo Helal relaciona o jogador à jornada do herói de Joseph Campbell. 

A ciência que Romário tem de seu papel assemelha-se ao início da saga clássica do herói que atende ao chamado e parte em busca da missão redentora (Campbell, 1995 e Brandão, 1993). Porém, Romário age com uma boa dose de picardia ao tratar da missão como algo fácil e encarar os adversários com ar de deboche (…) (HELAL, p. 29, 2003).

Ao longo da Copa do Mundo, o atleta segue com essa “picardia” e “deboche”, mas, ao mesmo tempo, cumpre com as suas declarações e se mantém como um grande mito durante toda a competição, garantindo a conquista do tetracampeonato para o Brasil e compondo o quadro da galeria dos heróis.

Outro fator-chave para fortificar a construção da idolatria é a necessidade da sociedade em encontrar no herói qualidades para se inspirar e defeitos para se identificar. Ronaldo, alcunhado de  Fenômeno, incorpora esses dois polos. Às vésperas da Copa de 1998, o jovem de 21 anos e jogador do Grêmio já enfrentava duras críticas da mídia. O peso, problemas no joelho e crise no relacionamento eram os pontos principais apontados pela imprensa. Ao mesmo tempo, Ronaldo era também definido por suas qualidades: era humilde, maduro e tranquilo. O herói parecia estar pronto para todo e qualquer desafio que fosse imposto.

O seu desempenho na final do torneio acabou decepcionando o público. Na disputa contra a França pelo título, a seleção foi derrotada e a atuação do Fenômeno foi malvista pelos fãs de futebol. No entanto, a grande mídia, rapidamente, aproveitou o descontentamento para justificar as falhas do ídolo. Em uma edição do Jornal do Brasil, Ronaldo era visto como humano e, portanto, passível de erros.

A batalha contra questões neurovegetativas, o fator emocional e o período de reclusão criam um contraponto com a sua imagem de herói perfeito. O jogador não é imbatível e “(…) na “queda” do ídolo, presenciamos a sua “humanização”. Ao invés do super-homem Ronaldinho, “descobrimos” Ronaldo, o homem, o mortal. Os fãs se familiarizam com ele e muitos querem lhe dar colo” (HELAL, p. 5-6, 1999).

Fonte da imagem: Pipeline – Globo

Todos eram homens, mas, não necessariamente, todos seriam ídolos e, mesmo assim, os três conseguiram alcançar esse posto, evidenciando que, em determinados casos, a construção dos mitos apresenta especificidades que são perpetuadas através do uso da mídia. O projeto “Meios de Comunicação, Idolatria e Cultura Popular no Brasil”, desenvolvido nos artigos do professor Ronaldo Helal, propõe uma série de reflexões sobre a construção das narrativas de idolatria e contribui para o campo da comunicação, o que mostra que a formação da figura dos heróis acontece de modos distintos. 

O cuidado ao analisar essa questão deve ser imprescindível, pois, nem toda característica tornaria um indivíduo comum em um herói, não existe uma “forma” certeira para essa mitificação, apenas suposições recorrentes.  Por exemplo, se Zico fosse “malandro”, Romário fosse um jogador “humilde” e Ronaldo “imaturo”, será que teriam conquistado tanto sucesso? Para Helal, as características de cada um desses atletas adicionadas ao contexto midiático, social e futebolístico da época criaram um terreno fértil para a consolidação do heroísmo que compôs as suas carreiras. Ou seja, eles tinham a personalidade certa no momento certo.

Assim, Helal atua como um precursor no debate acerca da idolatria no futebol nacional e reforça o poder da mídia enquanto criadora de histórias mesmo que apenas parcialmente verdadeiras. Entende também o papel dos meios de comunicação, em consenso com a população, no estabelecimento dos pré-requisitos necessários para a gênese de um novo herói. Por fim, o pesquisador compreende a existência de múltiplas narrativas que permeiam o imaginário do público, seja através da ética anglo-saxônica na trajetória de Zico, seja por meio do ideal de “Macunaíma” na de Romário. 

A última é privilegiada pela imprensa brasileira, que tem um apreço peculiar pela malandragem e pelo talento inato, como indica o professor. Ronaldo Fenômeno pode ser interpretado como o melhor dos dois mundos, uma união entre a ludicidade, a sagacidade e a maturidade. Helal acende uma faísca para calcular o que, no futuro, será necessário para a formação de novos mitos no futebol. É possível concluir, portanto, que a presença de ídolos perpassa a sociedade e “(…) de uma forma ou de outra, todos os grupos humanos “fabricam” os seus heróis” (HELAL, p. 5, 1998). 

Artigos científicos

HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu 4.7, p. 19-36, 2003. 

HELAL, Ronaldo. Cultura e idolatria: ilusão, consumo e fantasia. Cultura e Imaginário. 1ed. Rio de Janeiro: Mauad, 1998.

HELAL, Ronaldo. Mídia, ídolos e heróis do futebol. Revista Comunicação, Movimento e Mídia na Educação Física, v. 2, n. 03, p. 32-52, 1999.

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O Napoli campeão é a vitória do dionisíaco 

Por Jorge Santana 

Professor de História do IFPR Campo Largo 

Doutor em Ciências Sociais ( PPCIS/UERJ)

A Sociedade Esportiva Napoli sagrou-se campeã do campeonato italiano de futebol temporada 2022-2023, uma campanha para lá de encantadora, após três décadas de insólito jejum de títulos. Uma festa sem tamanho, sem fim e sem ordem tomou conta das ruas, repletas de citadinos celebrando efusivamente. Alguns dizem que o título é um presente dos céus de um semideus ou até Deus que dá nome ao estádio. 

Nápoles é a cidade astral mais importante da Península Itálica, contudo marcada pelo estigma e pelo imaginário negativo propagado pelas cidades nortistas como Milão, Turim, Florença, entre outras. Ao pensar em Nápoles, pensamos mais na Camorra (máfia) do que nas belas praias, mais na pobreza do que na vitalidade do povo napolitano, mais na suposta desordem do que na Universidade de Nápoles (sétima mais antiga da Europa). As marcas do preconceito propagado pelo Norte são pegajosas e apagam aquilo que a metrópole banhada pelo mar Tirreno tem de melhor. Nessa visão discriminatória, os sulistas são supostamente poucos afeitos ao trabalho, preguiçosos, festeiros, emotivos, desordeiros e ignorantes, enquanto os nortistas são trabalhadores, racionais, ordeiros e civilizados.  

O filósofo Friedrich Nietzsche desenvolveu uma concepção dual do mundo a partir da filosofia e da mitologia grega, em que o mundo se divide em razão/ordem/equilíbrio (apolíneo) e prazer/desordem/paixão (dionisíaco), o primeiro representado a partir do Deus grego Apolo e o segundo pelo Deus Dionísio. Na prática, pode-se aplicar essa divisão do filósofo na divisão racista da Itália em que os nortistas detêm as características do apolíneo e os sulistas as características do dionísico – claro, os segundos com características negativas. 

Entretanto, preconceitos regionais não são apenas uma dádiva negativa da Itália, mas também de outras nações. Como no Brasil a abjeta discriminação que os “sudestinos ” praticam contra os nordestinos ou nos Estados Unidos em que os ianques do Norte gozam e insultam os sulistas. Quase todo país tem uma região que é vítima de preconceito.

As desigualdades econômicas e sociais existem em todos territórios ou nações (ou comunidades imaginadas como nomeou o historiador Benedict Anderson), pois nenhum país é homogêneo. Entretanto, tais desigualdades não podem estar à serviço do preconceito e do racismo. Em 2023, na partida Milan X Napoli, pelas quartas de final da Champions League, os torcedores milaneses ergueram uma faixa com os dizeres ” Água e Sabão ” insinuando que napolitanos são porcos e não tomam banho. Outra faixa tinha a seguinte mensagem: “Mais títulos do que dedos” acusando os napolitanos de terem mais títulos nacionais (2 títulos) do que dedos nas mãos. Alguns cânticos dizem que seria ótimo o Vesúvio (vulcão nas redondezas de Nápoles) entrar em erupção para varrer os napolitanos da terra. Um dos cânticos contra a torcida do maior time do Sul da Itália diz:

Sintam o cheiro

Até os cachorros fogem 

Estão chegando os napolitanos 

Os coléricos 

Filhos do terremoto

Quase nunca se lavaram com sabão 

Merda de Napoli

O preconceito aberto contra os italianos do Sul faz com que compreendemos melhor um episódio marcante do futebol mundial. Na semifinal da Copa do Mundo 1990, enfrentaram-se Itália e Argentina, no estádio de Nápoles, parte dos napolitanos torceram pelas sul-americanas, devido a Maradona – pois a Azzurra, apesar de ser a seleção nacional, é aquela que os torcedores xingam os sulistas. Nesse sentido, torcer por Diego Armando, pela Argentina, era torcer pelo homem que liderou o triunfo do primeiro título de um clube ao Sul de Roma, o impávido Pibe que amassou milaneses, florentinos, genoveses, etc. 

Faixa da torcida do Bologna em 2014 com dizeres: “ Vai ser um prazer quando o Vesúvio fizer o seu dever”

No verão de 1984, quando Diego estreou pelo time napolitano, logo entendeu que não era apenas futebol. Porque em uma partida no Norte do país deparou-se com uma faixa direcionada a sua equipe com as seguintes palavras ” Bem-vindos à Itália “. Segundo o eterno ídolo argentino, ali ele soube que eram os racistas do Norte contra os pobres do Sul, era luta de classes e de identidade regional que tinha como uma das arenas de combate os gramados. 

O primeiro caneco nacional não poderia ter outro protagonista que não fosse Dieguito, que trazia em seu sangue o espírito de um garoto de vila portenha (menino de favela). Maradona era boquirroto, falador, sanguíneo, polêmico, exagerado, emotivo e extremamente dionisíaco. Como disse o velho escritor Eduardo Galeano “Diego é o mais humano dos Deuses” e tomo a liberdade para acrescentar o mais napolitano das divindades. Os sulistas encontraram nele um Brancaleone para comandar a esquadra napolitana que, pela primeira vez, abateu os elitistas do Norte e levou a taça para o Sul. Para Itália negada pelos Italianos. A festa realizada na cidade, nunca antes vista no país, ficou conhecida como “a louca tarantela”.

A história, como gosta de brincar e surpreender, traz novamente um protagonista do Sul global para liderar a esquadra italiana em mais um triunfo. O nigeriano Victor Osimhen de apenas 24 anos. Um jovem atacante versátil, com faro de gol apurado, que não foi apenas o melhor jogador do Calccio como o artilheiro. Para azar dos racistas do Norte sempre afeitos a defender a deportação dos africanos que chegam em condições trágicas nas praias italianas em busca de refúgio.  

Festa na cidade de Nápoles ( maio de 2023) Carlos Harmann AFP

Esse ano, os ricos times do Norte sucumbiram diante do Napoli, liderado por um nigeriano. Ou seja, o prazer venceu a razão, a pólis dionisíaca sublevou os apolíneos nortistas. Se o Sul está feliz, a festa está garantida, ” a louca tarantela ” é reeditada para celebrar uma vitória contra o racismo, o preconceito e a discriminação. Fogos irrompem na noite escura de Nápoles, que iluminada vira dia, Dionísio se deleita com garrafões de vinho a beira do Vesúvio, que repousa tranquilo, Maradona celebra no céu e Victor Oshimen é coroado em terra. O Napoli campeão é sempre dionisíaco.

“Havia uma bola ao pé da estátua de Dante e o tritão da fonte vestia a camisa azul do Nápoles. Havia mais de meio século que o time da cidade não ganhava um campeonato, cidade condenada às fúrias do Vesúvio e à derrota eterna nos campos de futebol, e graças a Maradona, o sul obscuro tinha conseguido, finalmente, humilhar o norte branco que o desprezava. Campeonato atrás de campeonato, nos estádios italianos e europeus, o Nápoles vencia, e cada gol era uma profanação da ordem estabelecida e uma revanche contra a história. Em Milão odiavam o culpado desta afronta dos pobres que deixaram seu lugar, chamavam-no presunto cacheados.” GALEANO, Eduardo.  Futebol ao sol e à sombra. LM& Pocket.

Fonte:

Podcast Copa Além da Copa

Nápoli: a cidade, o time, o Maradona, o novo-scudetto- Copa Além da Copa #61

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Quem é o primeiro ídolo do seu clube?

Seminário debate tema, dia 7 de fevereiro na UERJ

O Seminário “Quem é o primeiro ídolo do seu clube?”, acontece no dia 7 de fevereiro, às 18h, no auditório do PPGCom da UERJ, no 10º andar, às 18h, com transmissão ao vivo do canal do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Canal lemeuerj)[1]  no Youtube. A iniciativa é do Grupo de Pesquisa Esportes, Ídolos e Identidades (GEII), coordenado pelo professor do Departamento de Jornalismo da FCS da UERJ e doutor em Comunicação pela UFF, Sérgio Montero Souto, também pesquisador do LEME, e integrado pelos alunos e ex-alunos da graduação da FCS Enzo Tomaz Anselmo, Gustavo Silva Fernandes, Maíra Vallejo dos Santos e Maria Vitória Santos Pereira.

O recorte escolhido foi o incipiente material sobre o futebol carioca dos anos que antecedem ao primeiro campeonato do estado, em 1906, até 1932, último ano oficial do amadorismo. O professor Sérgio Souto explica: “Garrincha, Zico, Roberto Dinamite e Castilho ou Fred ou Assis.[1] Com a solitária exceção do Fluminense, que, ao longo da sua centenária história, não produziu um ídolo consensualmente considerado o maior de todos,  torcedores dos demais grandes clubes do Rio de Janeiro não têm dúvidas em apontar quem ocupa o topo do Olimpo das histórias, respectivamente, de Botafogo, Flamengo e Vasco. Tal reconhecimento não se limita aos torcedores de cada um dos três clubes; é acolhido pela imprensa e pela academia, sendo, inclusive, reconhecido pelos rivais. No entanto, se – com a ressalva à singular situação do Fluminense – inexistem dúvidas sobre o mais importante ídolo histórico dos clubes cariocas, um estranho silêncio faz-se presente se a pergunta tiver como alvo o primeiro ídolo de cada um. A inexistência de uma resposta positiva nos leva a uma lacuna intrigante: poderia um esporte capaz de despertar paixões tão catárticas e parte integrante da constituição da identidade nacional ter um início sem um rosto tão prenhe de simbolismo?”.

Para tentar responder a essa e diversas outras questões acontecerá o seminário. Abaixo, temos a programação:

PROGRAMAÇÃO

18h – Abertura do seminário pelo coordenador do GEII, professor Sérgio Souto

18h25min – Enzo Tomaz Anselmo: O extraordinário Mimi Sodré (Botafogo)

18h35min – Gustavo Silva Fernandes: Kunz, o primeiro grande goleiro brasileiro  (Flamengo)

18h45min – Maíra Vallejo dos Santos: O inigualável footballer Etchegaray (Fluminense)

18h55min – Maria Vitória Santos: Russinho, o jogador mais popular do Brasil (Vasco)

19h10min: Professor Filipe Mostaro: Idolatria no passado e no presente

19h30min: Debate e perguntas da plateia.

20h30min: Encerramento do seminário pelo professor Sérgio Souto


[1] Entre fevereiro e maio de 2020, o portal GE consultou cem jornalistas que “cobrem, cobriram ou conhecem a história do Fluminense”. Castilho  foi o mais lembrado, seguido de Fred e Assis < https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/eleicao-com-100-jornalistas-aponta-fred-como-o-2o-maior-idolo-do-fluminense-so-atras-de-castilho.ghtml>. A própria necessidade da votação para determinar um ídolo já indica tratar-se de questão longe de estar pacificada.


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O maximalismo e os óculos da soberba

O estilo maximalista adotado por grande parte dos 26 “foras de série” que representaram nosso país na Copa do Mundo 2022, promovida pela FIFA, foi usado para “contar a narrativa do hexa”. Título prometido ao “Mito” que, junto a sua vitória nas urnas, dariam, sim, um novo valor simbólico à camisa canarinho (e a Bandeira Nacional). 

Este estilo, construído de fora para dentro, com cabelos criados por “personal hair style”, headphones exclusivos banhados a ouro ou inseridos em óculos de design avançado (por acaso estilo dos anos 1980) junto às coreografias dignas dos musicais da Broadway, fizeram parte deste “mais é mais” promovido por esta casta de privilegiados que esqueceram de fazer o principal (os Gols), com o intuito de maximizar as experiências do consumidor (torcedor em outras épocas), mascarar a realidade do futebol brasileiro atualmente em cartaz  e o clima político vivido no momento.

Todos esses elementos, em conjunto com a soberba dos mitos socialmente construídos, não permitem avaliar com precisão a força à disposição, como também os leva a desconsiderar de forma arrogante a força dos oponentes, sempre sob a tutela da mídia e sua fome de audiência. Nunca perdemos porque os outros demonstraram superioridade e sim porque por algum motivo nós permitimos.

Está na hora de esquecer esses mitos de origem, campeonatos morais e glórias históricas que não entram em campo e revisitar conceitos, ou então mudar o método pedagógico formativo, se é que existe algum método nesse campo. 

Já se vão cinco Copas do Mundo onde os protagonistas em campo, dirigentes, “cartolas” e a imprensa esportiva especializada (em entretenimento) prometem aprender com a derrota e voltar mais fortes na próxima (?). No atual contexto, fica evidente que não se aprende com a derrota, se aprende corrigindo os erros. E a primeira atitude a ser tomada para ter êxito é identificá-los e reconhecê-los. Simplesmente admitir a derrota torna-se ineficaz, ela é óbvia, normalmente testemunhada ao vivo por alguns bilhões de espectadores ao redor do planeta.

Fonte: Esportes R7

O reconhecimento desses erros revela invariavelmente os CPFs da autoria, deixando a descoberto indivíduos ineptos ou incompetentes e exigem principalmente um “minha culpa” público. Nobre atitude que nunca tiveram, têm ou terão, enquanto uma casta desprovida de ética. Que ao invés de buscar o sportswashing, procurem superar as dificuldades, transpor os obstáculos com vistas à construção de um espaço de ordem onde curriculum, tradição, história e peso de uma camisa tenham seu devido lugar: no imaginário da torcida e da imprensa (e não no campo de jogo). 

Num esporte coletivo, a identificação de um “vilão” para o fracasso não exime os “pecados”, pelo contrário, relativiza a análise da derrota, jogando uma máscara na realidade. A falta de críticas construtivas nas vitórias (onde não haveria nada a melhorar) colaboram para permanência da atual conjuntura.  

Partindo de algumas hipóteses vou tentar contestar algumas “verdades” travestidas de tradição que regem este imaginário popular:

  • Somos o país do futebol… Será?

Em primeiro lugar, se fôssemos, estaríamos para o futebol, como os Estados Unidos estão para o basquete – mesmo que eles não se autodenominem o “país do basquete” ou como os africanos estão para as maratonas.

Segundo, deveríamos ter políticas públicas oriundas da CBF, que no lugar de organizar campeonatos regionais e/ou nacionais, limitasse sua atuação às Seleções Nacionais e seus compromissos esportivos. Brindasse apoio material, técnico e de infraestrutura aos Estados e Municípios para normatizar, desenvolver e fiscalizar o futebol infantil, que hoje está na mão de “experts” travestidos de pseudoeducadores nas “Escolinhas de Futebol” com a “marca” de craques do passado que nem conhecem o espaço físico onde estas ficam localizadas.  

Terceiro, sendo o “país do futebol” dono dos jogadores mais habilidosos e técnicos do universo e única seleção pentacampeã Mundial, deveríamos ter mais protagonismo global. Pelo contrário, utilizamos o futebol como mais uma commodity: exportamos “pé de obra” (DAMO) e importamos o espetáculo pronto, repatriamos craques aposentados e retransmitimos ao vivo as Ligas mais poderosas do mundo, pagando royalties para assistir alguns outrora meninos nossos da periferia. 

Não é por acaso ou por abuso infantil que os meninos brasileiros são recrutados cada vez mais cedo. E então levados para centros de excelência para serem formados ética, moral e esportivamente.  

A exportação da maioria de nossos jogadores tem como destino as ligas menores. São poucos aqueles que atuam nas ligas Inglesa, Alemã, Espanhola, Italiana ou Francesa e o mais sintomático: nossos Técnicos não frequentam (nem frequentaram) as ligas da elite mundial.

O acaso não é responsável de que a Licença de Treinador da CBF na Europa, valha o mesmo que minha carteira de motorista… a UEFA não reconhece e não autoriza seu portador a exercer função remunerada no continente. 

A título de curiosidade, podemos olhar para as 10 últimas Copas do Mundo e contar quantos técnicos brasileiros estão ou estiveram a frente de seleções europeias, ou para ir geograficamente mais perto, olhar nas últimas cinco edições da Copa América e fazer o mesmo levantamento[1].

Também caberia fazer essa pesquisa em nível de Clubes nas cinco maiores Ligas do velho continente, sem atribuir isso à barreira idiomática… Portugal não deixa.  

Os argentinos, por exemplo, também teriam essa barreira, e mesmo assim têm simultaneamente quatro ou cinco técnicos nas maiores ligas europeias, sendo também maioria nas Seleções sul-americanas.

O reconhecimento desse fato fica evidenciado quando após a saída do “Mister” Tite, (aquele mesmo, que abandonou os guerreiros caídos no final da batalha após a derrota) a CBF busca um não-nativo para comandar o próximo “ciclo” mundial à frente da Seleção Nacional. Deve ser reflexo de que nos últimos 5 anos no Brasil, os técnicos que brilharam por estas terras eram estrangeiros, entre eles Jorge Jesus e Abel Ferreira.

  • Somos os únicos pentacampeões … E daí? 

O título de pentacampeão, por si só, não confere nenhuma vantagem ou meritocracia ao portador. O histórico não alinha em campo nem converte gols.

Se fizermos uma leve reflexão, perceberíamos que nos últimos 52 anos (meio século) não existe hegemonia de seleção alguma no planeta. Tanto Brasil quanto Argentina e Alemanha, ganharam três edições da Copa do Mundo cada uma.

  • Somos a única seleção a participar de todas as Copas… Mérito próprio? 

Verdade, somos a única a participar de todas as Copas e não temos que nos orgulhar disso. A geopolítica (e não a classificação na bola, via eliminatórias) nunca atuou contra a Seleção Brasileira, nunca barrou a sua participação por motivos burocráticos ou políticos, como fez com algumas nações. Portanto somos os únicos que participamos de todas as edições do evento sim, sem contestação, de novo… qual o mérito, por quais motivos?

Na Copa do Mundo da França, em 1938, a FIFA deixou de fora a Espanha porque em 1937 o país atravessava um conflito armado por conta da guerra civil e não permitiu que disputasse as eliminatórias.

No Brasil, em 1950, a ONU (Organização das Nações Unidas) solicitou à FIFA que excluísse Alemanha e Japão por conta de sanções impostas pela entidade em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial.  

Na Copa de 1954 na Suíça, as representações de Bolívia, Costa Rica, Cuba, Índia, Islândia e Vietnã não cumpriram o prazo de inscrição e perderam as Eliminatórias. 

Em 1958, na Suécia, onde o Brasil se sagrou Campeão pela primeira vez, a FIFA limitou o número de participantes deixando de fora os africanos, que à época tinham acabado de formar sua Confederação e disputavam as eliminatórias junto aos asiáticos, e enviaram por último a documentação (Rígida a FIFA, né?). A África do Sul ficou de fora devido ao regime do Apartheid, e Turquia, Indonésia e Sudão se retiraram das disputas por se recusarem a enfrentar a seleção de Israel.

Em 1966, na Inglaterra, a África do Sul permaneceu de fora pelo Apartheid e os demais países africanos não compareceram por achar injusta a forma de disputa[2]. As Filipinas que não efetuaram o pagamento das taxas de inscrição, além de Congo e Guatemala, que perderam o prazo de inscrição, também foram excluídas.

Em 1970, no México, quatro seleções tiveram os pedidos rejeitados pela FIFA, mas as razões são desconhecidas. Albânia, Cuba, Guiné e Zaire foram as barradas da vez.

Nas edições de 74 e 78 não houve interferência alguma da FIFA. Somente em 1982, na Espanha, a República-Centro-Africana ficou de fora por não efetuar o pagamento das taxas. 

Na Copa do México, em 1986, vencida pela Argentina, mais uma vez um conflito armado decide a participação ou não de uma nação. Irã e Iraque foram os protagonistas do confronto, e somente o primeiro ficou de fora. O Iraque foi autorizado a participar das eliminatórias e se classificou para a disputa.  

Ao tentar fraudar a FIFA, inscrevendo jogadores acima da idade permitida (vulgo gatos) para o Mundial Sub-20 de 1989, o México foi punido, sendo proibido de disputar a Copa do Mundo de 1990, na Itália. As representações de Belize, Ilhas Maurício e Moçambique não disputaram as Eliminatórias por dívidas com a entidade máxima do futebol.

Um fato ocorrido no Maracanã em 1989, na última rodada das Eliminatórias para 1990, protagonizada por um sinalizador e o goleiro chileno Rojas, suspendeu o Chile da Copa dos Estados Unidos de 1994 por simulação e fraude. Rojas foi banido do futebol e vários jogadores foram suspensos. A ONU pediu também a suspensão da Iugoslávia e da Líbia, devido ao conflito dos Balcãs e a atentados terroristas, respectivamente.

Nas Copas de 2014 e 2018, a tentativa de interferência de Governos nas respectivas federações, tirou da Copa o Brunei e a Indonésia, respectivamente.

Por último, na Copa de 2022, no Qatar, a FIFA desfiliou a Rússia pela invasão (em curso) da Ucrânia, deixando-a de fora da disputa da repescagem e por consequência, da Copa do Mundo. Como podemos perceber, o mérito de o Brasil ter participado de todas as edições do maior evento do planeta é exógeno.

Dito isto, acho que está na hora de deixar de pensar o futebol brasileiro como um museu (que vive do passado) ou como um ser acadêmico (que vive de curriculum). Deixar de pensar que as derrotas são fruto de conspirações e, principalmente, que gostamos de futebol, gostamos mesmo é de ganhar. Se gostássemos de futebol, não vibraríamos com a eliminação de uma seleção ou estaríamos torcendo para outra ser eliminada, só pelo fato de serem concorrentes, nem escolheríamos (quando possível) qual time preferíamos enfrentar na seguinte fase. 

Outro sentimento que (convenientemente) não temos muito claro, por exemplo, é referente aos nossos vizinhos de continente: “Com Argentina e com Uruguai temos rivalidade”, por isso torcemos contra. 

Não, contra eles temos alteridade Como gostaríamos de ter ganho a Copa de 1950, já seríamos hexa… Também não ter perdido a Copa América 2021 no Maracanã para esses racistas (nós não, eles…) … “Ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor”… Como seria bom ter, além do penta, cinco Prêmios Nobel e dois Oscar no cinema.Quiçá os óculos maximalistas da soberba não nos permitam perceber nada do acima exposto. Se despir dela, a soberba, seria no meu humilde entender, o primeiro passo para mudar o estado da arte. O simples fato de ter participado de todas as Copas, ou de ser a única pentacampeã são argumentos paupérrimos como único pilar de orgulho de qualquer Nação e sem relevância fora do eixo histórico.


[1] Os treinadores argentinos estão representados em todos os lugares. Na Copa do Mundo 2018 eles eram maioria, e comandaram cinco das 32 seleções. Na fase de grupos da Copa Libertadores 2020, conduziram 14 dos 32 participantes. Um estudo recente publicado pelo Centro Internacional de Estudos do Futebol, na Suíça, revelou que, de todo o mundo, o país que mais tem técnicos em atividade em outras ligas é justamente a Argentina. São 68 representantes em 22 países diferentes. O Brasil tem só 16.

[2] Em 1964, todos os países africanos boicotaram a FIFA devido à forma como as Eliminatórias de lá eram disputadas. Os africanos não tinham vaga garantida. O vencedor do continente deveria disputar ainda com os vencedores da Ásia e da Oceania o direito de disputar o Mundial. O protesto não funcionou para aquela Copa e as Eliminatórias continuaram a ser disputadas daquela maneira, sofrendo alterações apenas no Mundial seguinte, em 1970. Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/09/17/quais-paises-ja-foram-barrados-da-copa-do-mundo.htm?

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Melhor jogador do mundo: escolha natural, construção ou marketing?

Criado em 1991, pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), o prêmio Fifa Best Player of the Year[1] , excepcionalmente, na edição 2021/2022 será entregue apenas ano que vem. O adiamento foi para que a eleição pudesse levar em consideração, também, a performance dos jogadores na Copa do Catar. Com isso, a entidade evita – ou ao menos pode fugir – de escolhas constrangedoras como, em 2002, quando “o melhor da Copa” não foi “o melhor do ano”. A entidade elegeu o goleiro alemão Oliver Kahn o melhor jogador daquele Mundial, apesar de ter falhado na final, no lance que resultou no primeiro gol do Brasil, ao rebater um chute de Rivaldo nos pés de Ronaldo.

Fonte: Diario do Litoral

O próprio alemão reconheceu a falha, com um argumento algo curioso e desabonador para os que o escolheram: “Esse foi o único erro que eu cometi em sete jogos, e, infelizmente, eu fui brutalmente punido por Ronaldo.” Mais constrangedor do que premiar o goleiro que falhara “apenas” no jogo decisivo, vencido pelo Brasil por 2 x 0, na conquista do seu quinto título mundial, foi, pouco tempo depois, eleger Ronaldo, que, na eleição da Copa ficara em segundo lugar, como o Fifa Best Player of the Year, tendo, agora, Khan como segundo colocado.

A inversão nas colocações, longe de representar uma retificação da escolha da Fifa, expôs fragilidades nos critérios da premiação. É que Ronaldo, que rompera o tendão patelar do joelho direito, em abril de 2000, apenas seis minutos após entrar em campo para defender a Internazionale, de Milão, contra o Lazio, pelo primeiro jogo da final do Campeonato Italiano, praticamente, não entrou em campo até a Copa que seria realizada cerca de dois anos depois. Então, se, de acordo com a Fifa, não foi o melhor do Mundial de Japão e Coreia do Sul, do qual foi artilheiro com oito gols, em que outra competição, daquele ano, teria justificado, para a mesma entidade, o direito de ser eleito o melhor de 2002?

Essa, no entanto, está longe de ser a única contradição dos critérios da premiação e a renomeação da eleição pelo jornalismo esportivo brasileiro para “O melhor do Mundo” torna, ainda, de mais difícil compreensão o objetivo real da eleição. Afinal, a adoção daquela tradução, pela imprensa daqui, tem significado bem mais profundo. Isso implicaria contrariar o que a experiência empírica nos ensina: que os melhores – ou os piores – são mais identificados ou identificáveis do que precisam ser eleitos. Se é preciso haver uma eleição se está diante da necessidade de se estabelecer uma hierarquia que não seria reconhecida e/ou natural para todos ou, ao menos, para a grande maioria.

Nos tempos dos bancos escolares, por exemplo, é desnecessário eleger “a garota ou o garoto mais bonito(a) da sala”, “o mais nerd” ou o “mais mala”. Sempre que tal crivo faz-se necessário é justamente quando “o eleito” não está naturalmente estabelecido e/ou não é, claramente, reconhecível pela grande maioria. Assim, embora o prêmio, na gramática da Fifa, refira-se ao “melhor jogador do ano”, ao menos, no Brasil, ele é tratado como destinado “ao melhor jogador do mundo”, sem sequer uma delimitação de temporada para avalizar o escolhido. Com isso, podemos ter “o melhor do mundo em 1995”, o liberiano George Weah, que, naquele ano, atuara por Milan e Paris Saint-German, simplesmente, deixar de ser “o melhor do mundo” nos anos seguintes. Uma superioridade restrita a uma única temporada?

Ou, ainda, em 1997, quando o atacante Edmundo, após uma temporada de alta excelência pelo Vasco, sequer ser indicado ao prêmio da Fifa, colocar em evidência que, mesmo num momento em que os clubes brasileiros rivalizavam com os europeus, a eleição, na verdade, limita-se ao melhor jogador daquela temporada europeia, seja qual for a nacionalidade do escolhido.

Aqui, talvez, seja interessante observar que, muito longe de replicar em nível mundial uma polêmica de mesa de bar entre conhecidos, a escolha da Fifa tem implicações bem mais poderosas, como aumentos generosos de salários, previstos em cláusulas prévias, e alta exponencial dos cachês em ações de marketing e propaganda, não raro com direito à participação dos clubes dos premiados em parcela desse salto na carreira – e na conta bancária – dos jogadores. Isso sem falar na concessão de um palanque global ou amplificação desse palanque para os eleitos. Em poucas palavras: a escolha, pelo visto, parece ponderar outros fatores bem além da performance em campo.


[1] Entre 2010 e 2016, a premiação foi feita em conjunto com a revista francesa France Footbal, que, desde 1956, concedia o prêmio O Balão de Ouro, apenas para o melhor jogador europeu. Em 1994, a publicação ampliou a escolha para jogadores de qualquer nacionalidade que jogassem em clubes da Europa e, a partir de 2006, incluiu atletas de todos continentes. Após o rompimento do acordo com a Fifa, a revista voltou a oferecer, a partir de 2017, o seu próprio prêmio.

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O retorno do atacante Benzema à Seleção Francesa de Futebol e suas implicações

Por Carolina Cardoso, Júlia Sampaio e Luana Pina

A Seleção Francesa Masculina de Futebol é muito conhecida por suas atuações dentro de campo, porém sua popularidade alcança questões extracampo. A Seleção, para além de suas vitórias e histórico, é muito conhecida também pelas contradições no tratamento a seus jogadores e o que eles representam, muitas vezes conflitando com os posicionamentos da população e dos governantes do país. Posteriormente à não classificação nas edições de 1990 e 1994, a equipe transformou-se em um reflexo da questão migratória vivida há séculos pela por essa nação europeia, modificando também seu desempenho, disputado desde então três finais do campeonato e triunfado por duas vezes, em 1998 e 2018.

No entanto, o que tais vitórias representam para a sociedade e para a política do país é uma longa discussão, para a qual o presente artigo busca contribuir por meio da problematização do caso do atacante Karim Benzema, atual vencedor da Bola de Ouro (como melhor jogador da temporada) e emblemático das questões contemporâneas de imigração e identidade nacional francesa.

Fonte: Placar

Sem uma definição consensual jurídica no âmbito internacional, migração, segundo a Organização Internacional para as Migrações das Nações Unidas, pode ser entendida pela designação de qualquer pessoa que deixa seu lugar de residência habitual a fim de se estabelecer temporária ou definitivamente em outra localidade, atravessando fronteiras internacionais ou não e por razões diversas.

A França possui cerca de 68 milhões de habitantes, sendo por volta de 8,5 milhões migrantes internacionais (Migration Data Portal, 2020). Ao analisar as ondas migratórias ocorridas no país, é possível elencar a pobreza e as disparidades econômicas entre os Estados europeus, a descolonização e a globalização, a partir dos anos 80, como as principais causas para a migração.

O fluxo de imigrantes possui origem em diversos países, principalmente europeus e africanos, construindo, assim, a população multinacional existente atualmente na França. Contudo, o que se observa não é uma exaltação dessa multiculturalidade, visto que não há grande identificação entre os franceses com os valores e costumes que passaram a compor significativamente a população, como, por exemplo, elementos muçulmanos. Outro aspecto observado refere-se ao tratamento de indivíduos nascidos em território francês como estrangeiros pelo fato de serem descendentes de imigrantes, complexificando ainda mais esta questão.

No tocante à relação entre a migração e o esporte, existe o esportista imigrante que representa a imagem de sucesso, como o ex-jogador de futebol e técnico Zinedine Zidane, e o imigrante que representa esportistas nas associações da classe trabalhadora da França, que compreende grupos de refugiados e imigrantes de ex-colônias francesas. A migração argelina é um exemplo que confere um melhor entendimento para o recorte aqui pretendido, já iniciada enquanto o país ainda era colônia francesa quando os trabalhadores nacionais eram empregados na metrópole.

Com o passar das décadas, se tornou um dos principais fluxos migratórios em direção à França, mantendo preservados seus hábitos e costumes identitários. Entretanto, apesar de serem vistos como fonte de mão de obra, ao ajudarem o país no restabelecimento pós-Segunda Guerra Mundial, os imigrantes passaram a ser enxergados, de forma negativa, como uma comunidade numerosa de estrangeiros. A partir da década de 1970, a lei francesa para imigração torna-se mais restrita e as relações com o Estado argelino oscilam, aproximando ou distanciando-os, de acordo com variantes como o terrorismo e crises econômicas. Em resumo, os argelinos e outros grupos estrangeiros que vivem na França hoje ocupam lugar à margem na sociedade francesa.

Assim, a imigração argelina representa uma parte da história francesa e uma parcela importante da sociedade, não somente em termos econômicos, mas políticos e culturais. Entretanto, a questão migratória ainda resulta em condições discriminatórias para muitas dessas populações, mesmo que elas representem um componente essencial para o desenvolvimento do Estado francês.

Importante citar que o esporte, em sua vertente profissional, é afetado pelo movimento migratório, uma vez que diversos clubes, principalmente aqueles sediados na Europa, atuam de modo análogo à divisão mundial do trabalho na medida em que jogadores são descobertos em países africanos e latinoamericanos como “jovens talentos” e são levados a esses times europeus. Cabe salientar, em torno dessa problemática, a relevância que os estrangeiros possuem para o esporte francês, principalmente para a Seleção Masculina de Futebol, mas que, ainda assim, estão sujeitos a uma discriminação política e social.

De acordo com o sociólogo Zygmunt Bauman, a identidade se caracteriza pelo seu processo fluído de construção, portanto não é fixa nem imutável, sendo passível de transformações ao longo do tempo. Dessa forma, tanto identidade quanto pertencimento são conceitos revogáveis uma vez que estão ligados aos indivíduos e suas trajetórias. Importante frisar também que, ao longo da história, esses conceitos também foram motivo de disputa ao serem percebidos como “ameaçados” por um inimigo construído. A partir do surgimento do Estado-Nação e do conceito de soberania, surge a ideia de identidade nacional, em que a identidade individual passa a ser influenciada e sobreposta por uma ideia de identidade coletiva coesa, que se define como uma resposta à instabilidade do pertencimento. A ideia de uma identidade nacional não é algo natural ao indivíduo, mas sim desenvolvido pelo aparato moderno do Estado como uma tarefa que estimula seus membros a agir pela manutenção dessa identidade coletiva. Dessa forma, a identidade nacional é um fenômeno de contínua renovação, por meio do qual o indivíduo escolhe ativa e diariamente ser parte de um grupo nacional. 

Stuart Hall (2006) entende que a cultura nacional é um modo de construir uma narrativa que influencia e organiza as ações e a concepção sobre o próprio indivíduo, atuando sobre a sociedade como um foco de identificação e um sistema de representações culturais. Dessa forma, o sentimento de pertencimento e identificação pela nação ocorre a partir da transmissão desse discurso para novas gerações e como essas novas gerações atribuem sentido a ele. Entretanto, a ideia de unificação da identidade cultural através da cultura nacional está sujeita a questionamentos, sobretudo pelo fato de que a maioria das nações têm culturas diferentes oriundas dos fluxos migratórios e da troca cultural entre povos.

A despeito de unificada politicamente, uma sociedade pode ser composta por diferentes grupos étnicos, e, portanto, a cultura dita como nacional não consegue atingir a todos. Além disso, o fenômeno da globalização tem como consequência a geração de um conflito entre a permanência das identidades nacionais e a absorção de novos hábitos, valores e elementos culturais devido à diminuição das fronteiras físicas e temporais que aumentam exponencialmente o nível de influência entre diferentes culturas. Portanto, é possível observar um declínio das identidades nacionais em novas identidades híbridas.

O futebol facilmente pode ser observado como um fenômeno afetado pela globalização, descrito como o esporte mais popular do mundo e que mobiliza diversos sentimentos, inclusive o de pertencimento. No âmbito internacional, o sentimento de pertencer pode ser observado, principalmente, pelas seleções nacionais como o mais alto grau de representação patriótica dentro do esporte. A disputa por campeonatos internacionais como a Copa do Mundo ilustra o poder de coesão do futebol quando une diferentes pessoas a torcer, unicamente, pelo seu país no torneio. Como grande fenômeno social que é, o esporte está sujeito aos impactos das transformações que sociedades ao redor do globo enfrentam, como dito anteriormente, tais como os movimentos migratórios ocorridos no decorrer da história da humanidade.

O papel outrora interpretado pela França de potência imperialista a torna uma comunidade de destino preferencial para milhões de migrantes, seja por vínculos históricos ou linguísticos. Os impactos das imigrações vivenciadas pela França em sua seleção nacional se confundem com o próprio começo da jornada desse país na Copa do Mundo, tendo em vista a crescente presença de jogadores de ascendência, em sua maioria, árabe e africana. “Black, blanc, beur” (Negros, Brancos e Árabes) é a definição dada à geração de campeões do mundo de 1998 e é um dos reflexos da forte miscigenação presente na sociedade francesa, sendo possível entender a Seleção como um retrato da nação.

Esse fato resulta em uma discussão dentro do país a respeito do impacto migratório na ideia de identidade nacional. A França é um dos países do mundo com maior porcentagem de população imigrante e descendente, o que faz com que a identidade francesa, ao longo dos anos, passe a contemplar diferentes origens, cores, etnias e religiões para além das originárias céltica e romana.

Fonte: Trivela

A fim de entender as mudanças no futebol francês vale mais uma vez destacar a ligação entre as ex-colônias francesas e sua antiga metrópole, uma vez que essa troca resultou em modificações sobre o que tradicionalmente se associa ao “ser francês” . O ponto central dessa discussão gira em torno do conceito de identidade nacional e da nacionalidade, pois o futebol, bem como o esporte em geral, pode ser considerado um elemento chave para compreender o sentimento de pertencimento nacional dos imigrantes e seus descendentes na França e no mundo.

Embora o esporte desempenhe uma função de coesão social e pertencimento, vale destacar que também é um reflexo das contradições existentes em uma sociedade. No caso do futebol francês, a Seleção é frequentemente alvo de ataques de cunho racista e xenofóbico, falas essas que podem ser representadas, por exemplo, pelo discurso do político da extrema-direita francesa, Jean-Marie Le Pen, que afirmou que a seleção campeã de 1998 era “artificial” e que não refletia a “verdadeira” identidade nacional francesa. Entende-se, assim, que a fala do político não consta como uma opinião aleatória e descolada da realidade francesa, mas, sim, como uma dificuldade presente em tal sociedade de assimilar, como parte da identidade nacional, as variadas culturas, etnias, histórias e religiões presentes na França como parte de uma identidade nacional.

O autor Stuart Hall (2006) compreende que a identidade nacional é, muitas vezes, baseada na concepção de um povo originário, conferindo uma ideia de imutabilidade e homogeneidade ao desenvolvimento nacional, contudo essa ideia é, para o autor, um mito fundacional.

A chegada constante de imigrantes ao país traz consigo novos elementos culturais, étnicos e históricos a serem adicionados à realidade francesa, inclusive no seu futebol, expresso na sua Seleção que conta com uma face multicultural devido ao seu grupo miscigenado. Em 2018, muitos jogadores possuíam origens em antigas colônias francesas; no entanto, nota-se uma certa resistência de parte da população em aceitar uma identidade multicultural francesa, não apenas no futebol como também em outros âmbitos. Um grande exemplo disso é o relacionamento com o islamismo que, apesar de ser a segunda religião mais praticada em solo francês, não possui o status de um elemento cultural “tipicamente francês”.

Fonte: Extra

Desse modo, nota-se que, devido aos embates existentes nas questões culturais e étnicas e ao seu respectivo relacionamento complexo com a sociedade, a própria seleção francesa se constitui em um objeto político. Quando detentora de campanhas vitoriosas, é instrumentalizada como o exemplo de sucesso de um país culturalmente diverso e integrado, mas, quando seus resultados em campo são negativos, é apontada como uma falha na representação de sua comunidade nacional, atribuindo seus erros à presença da diversidade.

 Como dito anteriormente, a opinião pública a respeito da seleção pode ser entendida como um ciclo de “vaivéns”, que transitam entre a identificação nacional com os bleus e o incômodo com o seu caráter multiétnico e multicultural. Um dos exemplos desses atritos é evidenciado, sobretudo, na exclusão de Karim Benzema da equipe nacional. Descendente de argelinos e comumente envolvido em polêmicas, o jogador sugere, em uma entrevista concedida ao jornal espanhol Marca, que sua exclusão ocorreu devido a existência de um lobby racista, embora a alegação oficial da Federação Francesa de Futebol seja o seu suposto envolvimento em um esquema de chantagem e extorsão.  

Karim Mostafa Benzema é nascido e criado em Terraillon, na comuna de Bron, subúrbio de Lyon. Fez sua estreia como profissional em 2005 no time de sua cidade natal, onde permaneceu por cinco anos. Desde o início teve ótimas performances na Liga dos Campeões da Europa e nos jogos da primeira divisão do futebol francês, tornando-se rapidamente artilheiro e um dos jogadores mais bem pagos do país. Em 2009, Benzema foi vendido ao Real Madrid e virou coadjuvante no clube espanhol, apesar da boa relação com os companheiros.

A partir de sua ida para o time espanhol, o jogador passou a se envolver em polêmicas extracampo. Uma delas envolve a questão de que Benzema não canta a Marselhesa, hino nacional francês, em protesto à xenofobia presente em alguns de seus versos, postura essa que incomoda profundamente o país.

Além de não cantar o hino, o jogador causou fúria na extrema direita francesa ao realizar um gesto ambíguo durante um clássico entre Real Madrid e Barcelona. Antes do jogo, que estava sendo realizado dias depois do atentado terrorista em Paris no ano de 2015, o hino francês tocou no estádio e o atacante foi visto cuspindo no chão após a execução. Esse gesto foi interpretado por alguns como uma forma de desprezo pelo país.

Outra polêmica envolve a sua exclusão da seleção francesa mencionada anteriormente. Benzema justificou sua ausência na Eurocopa de 2016 como decorrência das “pressões” que o técnico Didier Deschamps teria sofrido de uma “parte racista da França”. O comentário foi muito malvisto, uma vez que o afastamento ocorreu devido ao seu envolvimento no caso de seu ex-companheiro Mathieu Valbuena. Na ocasião, Benzema foi acusado de extorsão e chantagem para não divulgar um vídeo com conteúdo erótico do meia, e a investigação fez com que ele ficasse suspenso até o encerramento do caso. O atacante regressaria à seleção no ano de 2020, mas, mesmo com pedidos de seu retorno vindo de figuras importantes como Zidane e Larqué, sua relação com a sociedade francesa é complexa.

Karim Benzema é produto de muitas histórias. Nunca foi um queridinho do país, uma vez que jamais se submeteu ao “comportamento francês”: é muçulmano praticante, não bebe álcool, observa obedientemente o Ramadã. Além disso, é introvertido, não costuma dar entrevistas e sempre viveu muito afastado do grande público francês. O jogador crescido na periferia de Lyon é o retrato de como a França ainda não sabe como lidar com sua população composta por imigrantes e seus descendentes que redesenham a identidade cultural do país.

Referências:

BAUMAN, Zygmunt. Identidade: entrevista a Benedetto Vecchi. Editora Schwarcz-Companhia das Letras, 2005.

DE ANDRADE, Rodrigo C. Non seulement les bleus: a seleção francesa de futebol, o conceito de identidade nacional e seus impactos na política sobre imigração de Emmanuel Macron. Portal de Trabalhos Acadêmicos, v. 5, n.2, 2018.

GASPARINI, William. Sport and Migration in France. Disponível em: <https://www.researchgate.net/profile/Petra-Giess-Stueber/publication/263374546_Sport_-_Integration_-_Europe_Widening_Horizons_of_Intercultural_Education/links/561238b308aec422d11736e1/Sport-Integration-Europe-Widening-Horizons-of-Intercultural-Education.pdf#page=86> Acesso em: 6 out 2022

GIULIANOTTI, Richard. O Esporte do século XX: futebol, classe e nação. In: Sociologia do Futebol. Nova Alexandria, 2002. Cap 2.

HALL, Stuart. As culturas nacionais como comunidades imaginadas. A Identidade Cultural na pós-modernidade, v.3, 2006.

OLIVA, Anderson Ribeiro. Identidades em campo: discursos sobre a atuação de jogadores interculturais de origem africana e antilhana na seleção francesa de futebol. Revista de História (São Paulo), p. 395-425, 2015.

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Paternidades ensinadas através do futebol

Neste mês de novembro retornei aos eventos acadêmicos presenciais. Passei três dias em Belo Horizonte, no IV Simpósio Internacional Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer e do III Futebol nas gerais. Foi a primeira vez desde outubro de 2019 que participei de um evento presencialmente. Uma curiosidade desimportante, naquele outubro, de 2019, mais precisamente no dia 24, fiz uma fala presencial no Leme, ali na UERJ, ao lado do Maracanã, onde estive um dia antes quando o meu Grêmio tomou um sonoro 5 a 0 do Flamengo.

Procurem as fotos do encontro nos canais do Leme e vejam como eu estava vestido. Voltando ao assunto verdadeiro do texto, entre o evento da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), na UFF, em Niterói, e o evento organizado pelo Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), na UFMG, por culpa da Covid-19 (ampliada pela estupidez negacionista que nos cerca) “estive” em congressos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Florianópolis e até em Montevidéu, todos eles sentando na mesma cadeira em meu escritório. Neste intervalo, porém, o que efetivamente revolucionou minha vida foi a chegada do meu filho Martin, na metade de 2021.

Fonte: Acervo pessoal.

Desde sua chegada, os três dias em BH foram os primeiros que fiquei inteiros longe dele. Pode parecer excessivamente romântico ou piegas, mas a alegria de reencontrar grandes amigas e amigos contrastou com um sentimento de falta que não conhecia até então.

Para a sequência deste texto, em alguma medida, quero falar sobre isso. Sobre diferentes paternidades que circulam no dispositivo pedagógico do futebol e que constituem conteúdos do currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Narrarei mais três episódios envolvendo homens e suas masculinidades e paternidades. Durante o Simpósio, em Belo Horizonte, um participante/torcedor, integrante de torcida organizada, afirmou que suas filhas torciam para o rival e odiavam o seu clube. Ele relatou, ao ser questionado pela filha, sem titubeio, que amava mais o time do que a própria filha.

Não satisfeito ainda ampliou seu relato informando que foi conhecer a filha somente em seu quarto dia de vida já que ela nasceu em dia de jogo e ele ainda ficou preso por três dias por ter se envolvido em uma briga de sua torcida. Além da naturalidade com que o relato foi feito chamou minha atenção como ele foi acompanhado de risos, não de deboche, mas de aprovação, por parte significativa da plateia.

            Saindo do simpósio e acompanhando as notícias da Copa do Catar, esse fatídico evento que me obrigou a terminar o ano futebolístico que realmente importa – o do Grêmio – no início de novembro, duas delas me chamaram a atenção. Quatro dias antes da estreia, o menino Benício, de quatro anos, gritou pelo pai, Lucas Paquetá. Distantes desde a concentração da seleção brasileira, na Itália, o menino chorou pelo pai que subiu as arquibancadas para acudir o menino.

Ao mesmo tempo que a chamada do Instagram no GE falava do “momento fofura”, o comentarista esportivo João Paulo Cappellanes, da Rádio Bandeirantes, criticou o episódio no Twitter: “Cara, não quero ser chato, mas será que os jogadores não conseguem ficar 30 dias totalmente focados e longe da família?! 30 dias não vai [sic] tirar pedaço de ninguém, né?! Porra?”… Pedaço talvez não tire, mas se eu tive dificuldades em três dias, me parece que em trinta me atrapalharia bastante.

Mas acho que a pergunta mais pertinente deveria ser: precisa? É necessário ficar trinta dias longe da família? Um jogador de futebol não pode ser pai? A paternidade dificulta o desempenho esportivo do jogador? É isso que pode nos tirar o hexa? O eterno ídolo, estátua e dublê de treinador do Grêmio, Renato Portaluppi já havia justificado a antecipação de uma concentração dizendo que os jogadores tinham filhos pequenos que acordam durante a noite e atrapalham o sono dos atletas. A fala não sofreu questionamentos durante a coletiva de imprensa ou em repercussões no meio da imprensa esportiva.

Me parece bastante curioso como é fácil entender que a demanda de um filho, e que compete a qualquer adulto funcional, atrapalha um jogador. Sim, filho demanda, sim, filho atrapalha[1], sim, filho é responsabilidade dos adultos responsáveis por seus cuidados. Em 2018, seis dos onze titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia cresceram distantes do pai biológico[2]. Será que não é isso que atrapalha? Em agosto deste ano já tínhamos mais de cem mil crianças nascidas em 2022 no Brasil registradas sem o nome do pai[3]. Será que não é isso que atrapalha?

            O último episódio escolhido para este texto envolve o principal destaque do jogo de estreia da Copa do Catar, entre a seleção local e o Equador. Em 2016, Enner Valencia, atacante que marcou os dois gols da equipe sul-americana, fingiu lesão para sair do estádio e não ser preso pela falta de pagamento de pensão para sua filha. A polícia não conseguiu prender o jogador por ele ter saído de ambulância direto para o hospital. Neste intervalo, seus advogados conseguiram reverter a ordem de prisão e o jogador permaneceu em liberdade. Existe uma troca de acusações dele com a mãe da criança, mas me pareceu bastante curioso o tom anedótico apresentado nas reportagens sobre o episódio. Não consegui perceber um esforço jornalístico para buscar verificar se se tratava de caso isolado ou se a relação de atletas com filhos de relacionamentos anteriores e o pagamento de pensão pode ser entendido como um problema com alguma regularidade.

            Nos três episódios narrados consigo perceber uma naturalização da desresponsabilização paterna pelo cuidado de suas filhas ou de seus filhos. O riso de meus colegas de simpósio, o questionamento sobre a necessidade de acudir o filho associado ao conceito de que filho atrapalha, mais a “malandragem” para fugir da cobrança do pagamento de pensão são atravessados pelas disputas de gênero que tenho encontrado ao longo dos anos nas pedagogias do futebol e do torcer. Olhando em movimento podemos ver tímidos passos em busca de uma diminuição da desigualdade entre os gêneros nesse espaço, mas quando olhamos o cenário congelado, como uma fotografia, ele ainda é muito marcado por comportamentos que reforçam as diferenças e ampliam as desigualdades de gênero.

Infelizmente, os conteúdos que compõem essa pedagogia seguem sendo muito difundidos em nossa cultura. O futebol não produz uma cultura exclusiva. Quando se naturaliza a ausência paterna no futebol, também se naturaliza essa ausência em outros espaços. É preciso que nós, homens, saibamos que não somos cúmplices somente quando rimos de um desses episódios, mas que esses episódios nos beneficiam a todos. Eu posso ser considerado um bom pai apenas por ter sentido saudades do meu filho.

Lucas Paquetá, além de criticado, foi exaltado por ter abraçado seu filho. Se não enfrentarmos essas desigualdades ampliaremos nossos privilégios de gênero. Não me parece a melhor escolha se pensarmos em uma sociedade democrática e que valoriza os direitos humanos. Talvez criticar a falta de direitos humanos no Catar seja mais fácil do que reconhecer como as mulheres sempre, sempre (incluindo a mãe do meu filho) são mais responsabilizadas pelos cuidados da prole. A mim não parece possível aceitar essa naturalização. Sigamos questionando as construções de nossas subjetividades que nos trouxeram até aqui!


[1] Sugiro a análise da colunista do UOL, Luiza Sahd. Disponível em: https://tab.uol.com.br/colunas/luiza-sahd/2022/11/22/afinal-a-quem-o-filho-do-jogador-paqueta-atrapalhou-nessa-copa-do-mundo.htm

[2] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/21/deportes/1529536206_588160.html

[3] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-08/mais-de-100-mil-criancas-nao-receberam-o-nome-do-pai-este-ano

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Papai-Noel não deixou o meu presente de Natal.

Pense em uma criança de oito anos, quase nove que, sem querer, acabou descobrindo que o Papai Noel não existe. Os seus parentes contaram uma história extremamente convincente sobre um homem do Polo Norte, que, milagrosamente, com a ajuda de seus elfos mirabolantes e suas majestosas renas, conseguia distribuir presentes para todas as crianças do mundo em apenas uma noite. Era muito bem contado, a criança não teve culpa, mas, mesmo assim, ela se sente culpada, enganada, sua confiança foi traída, Papai Noel era uma fantasia e não uma figura mágica e admirável, aqueles que a criança mais admirava mentiram pra ela. Como ela poderia confiar em alguém de novo? 

Nessa história, Lance Armstrong assumiria o papel dos “pais”, que elaboraram a história falsa, já a sua figura de ídolo do ciclismo assumiria o papel do “Papai Noel”, pois, infelizmente, Lance não era um ídolo de verdade.  Já os “elfos” e as “renas” representavam os anabolizantes e remédios consumidos pelo atleta, que o ajudaram a realizar grandes feitos fraudulentos de carreira e, a “criança”, bom, essa representaria todos os grandes fãs do ciclista, que foram enganados e ludibriados por Lance ao serem convencidos de que ele era um herói, quando, na verdade, esse herói não existia. 

Fonte da imagem: UOL

Essa questão se liga diretamente à idolatria, pois, a partir do momento em que determinados indivíduos passam a ser vistos como atletas brilhantes, incorruptíveis e inigualáveis, eles acabam atingindo uma posição de intocabilidade onde passam a ser tratados como seres perfeitos, que não cometem deslizes técnicos nas competições e que, também, nunca apresentam uma má índole. Contudo, não é bem assim, pois os ídolos ainda são humanos e estes não estão nem um pouco perto desse hiper-idealizada  perfeição. 

Lance Armstrong, o nosso “Papai-Noel”, era uma figura quase religiosa para os fãs do ciclismo. O  atleta ganhou o Tour de France sete vezes seguidas de 1999 até 2005, depois de se recuperar de um câncer muito agressivo, consagrando-se como o atleta mais vitorioso da competição francesa. Anos depois, em 2012, para a infelicidade e decepção dos fãs, foi comprovado que o atleta fazia uso de substâncias ilícitas desde 1995 e, com isso, Lance foi expulso do ciclismo por doping e teve que devolver todos os seus troféus do Tour de France. Contudo, mesmo com a confirmação do uso de substâncias ilícitas, o atleta só admitiu o doping em 2013, durante uma entrevista.

Agora, tente mensurar o espanto dos fãs de Lance Armstrong ao descobrirem que o seu ídolo, um homem que lutou contra uma doença devastadora e que recuperou o seu lugar no ciclismo, era,  na verdade, um indivíduo que ignorava as principais regras do esporte  para ter um melhor rendimento e sucesso? Surge um arrependimento, um sentimento amargo que desmotiva o fã a admirar o esporte, mas que não deveria ser assim. Não é um problema ter ídolos, eles motivam os espectadores, são fontes de inspiração, o problema é quando se confia neles sem precedentes, sem levar em conta que são humanos e que podem vir a cometer erros extremamente decepcionantes como qualquer outro indivíduo. 

Em uma cena do filme de comédia “Com a bola toda”, de 2004, dirigido por Rawson Marshall Thurber, Peter, personagem principal interpretado por Vince Vaughn, decide não jogar a final de um torneio de Dodgeball e abandona o seu time inesperadamente. A escolha acaba deixando Peter muito pensativo e, com o intuito de se distrair e se desestressar, ele decide ir a um bar, porém, para a surpresa do personagem e do espectador, uma visita desinteressante à um bar acaba se tornando em um  encontro inesperado e inspirador, pois, bem ao lado de Peter, surge Lance Armstrong, o “herói” do ciclismo. 

Na cena, Lance afirma ser um grande fã do time de Peter, deixando o personagem muito surpreso e lisonjeado pelo carinho. Contudo, ao descobrir sobre a desistência, Lance se mostra muito decepcionado e faz de sua história de superação e reinserção no esporte um artifício para convencer Peter a não abandonar o torneio, afirmando que a desistência dura para sempre. O argumento acaba deixando o homem muito mexido e, após se despedir do ciclista, Peter sai do bar, vai em direção a partida, volta para o seu time e conquista a final do torneio de Dodgeball. E, tudo isso, devido à ajuda do grande ídolo do esporte Lance Armstrong.

 Ao pesquisar, encontrei essa cena em um canal do Youtube e identifiquei alguns comentários que chamaram a minha atenção. Um deles foi publicado em 2011, – antes da farsa do ciclista ser descoberta – por um usuário chamado “LuisTrivelatto”. Em primeiro lugar, o usuário começa reproduzindo uma frase de Lance: “Dor é temporária. Desistência é para sempre” e, em seguida, ele faz uma afirmação sobre o ciclista: “Que herói, um exemplo de pessoa. Vai Lance!!”.

Fonte da imagem: YouTube

 Já em um outro comentário do vídeo, publicado pelo usuário “Liga DQ”, em 2018 – já após toda a fraude ter sido descoberta – , contém a seguinte afirmação: “Conselho legal da maior fraude da história do esporte americano”.

Fonte da imagem: YouTube

 Esses comentários sintetizam muito bem a frase “envelheceu mal”, pois, devido à descoberta da trapaça, pôde-se notar uma alta quebra de expectativa em torno de Lance Armstrong. A sua imagem foi desconstruída e, a mensagem que ele passava sobre superação e perseverança, passou a ser interpretada como a representação da fraude, da farsa e da desonestidade. 

Dentre os comentários da publicação, uma postagem foi responsável por chamar a minha atenção, fazendo com que a “criança” da história de “Papai-Noel” pudesse ser  enxergada com outros olhos. O comentário em questão foi postado por “DangerNoodle”, em 2012 – ano em que Lance foi acusado de doping – e reproduz a seguinte frase: “Nunca foi provado, ele nunca falhou em um teste. São apenas outros competidores e seus apoiadores lançando acusações contra ele porque são péssimos perdedores. Pelo menos, essa deve ser a razão, já que, como eu disse, ele nunca falhou em nenhum teste de drogas.”

Fonte da imagem: YouTube

Esse comentário fez com que eu calculasse um novo cenário: a da “criança teimosa”. E, se por um acaso, a criança ouvisse que o Papai Noel não existe, mas, mesmo assim, escolhesse se prender à mentira e fechasse os olhos para a verdade? Existem provas, existem explicações que mostram a veracidade dos fatos, mas é como se isso tudo não importasse, para a criança, o herói existe e ponto final. Infelizmente, no mundo dos ídolos, isso é muito recorrente. Muitos pseudo-ídolos não mereciam mais o título que um dia lhes parecia cabível, mas, mesmo assim, para alguns indivíduos, o heroísmo não se dissolve, para eles, o gosto da mentira parece ser mais tentador do que a verdade. Às vezes acaba sendo muito difícil dizer adeus.

Lance não era merecedor dos títulos, mas, para o fã do comentário que o defendeu, as provas de nada bastavam. E a farsa? Bom, para ele, Lance não era um farsante e seus inimigos invejosos e calculistas, apenas criaram toda uma história. Mas então, como resolver esse problema, como abrir os olhos daqueles que não querem olhar para o rosto que está atrás da máscara? Como quebrar idolatrias fajutas? Sobre isso, não há muito o que se fazer além de, SEMPRE, reforçar a verdade. Independente do número de prêmios, independente da fama e da glória injustamente conquistados,  devemos sempre expor os farsantes, tanto do esporte, quanto de outras esferas sociais, temos de educar as crianças teimosas e fazê-las entender o que é real e o que é fantasia.

Pode-se afirmar então que, a partir do momento em que os erros são vistos como uma  possibilidade, será levado em conta o fato de que, sim, é possível ter ídolos, não é necessário estabelecer iconoclastias severas, contudo, é preciso  entender que a idolatria tem um limite e que os grandes heróis de hoje, podem ser os grandes vilões de amanhã. Além disso, é preciso prestar atenção no fato de que podemos ser as próximas crianças a descobrir que o Papai-Noel não existe, ou, infelizmente, podemos ser as crianças teimosas que não querem acreditar. E, justamente por isso, devemos estar sempre prontos, pois não sabemos quando a magia pode acabar.

REFERÊNCIAS:

AGNESLECOACHING. “Quitting” in Dodgeball – Lance Armstrong. YouTube, 25 de fev. de 2010. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=jGtfpzT4Lqw&t=1s. Acesso em: 27 out. 2022.

COM A BOLA TODA; Direção: Rawson Marshall Thurber. Produção: Red Hour Films. Estados Unidos: 20th Century Fox, 2004. 1 DVD (92 min.).

ROAN, Dan. Banido do ciclismo por doping, Lance Armstrong diz: ‘Faria tudo de novo. Disponível em:       https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/01/150126_lance_armstrong_entrevista_rm.  Acesso em: 28 out. 2022.

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As redes de rádio: um pouco de história e reflexão sobre as transmissões esportivas de futebol

O ponto de partida da relação entre redes de rádio e transmissões esportivas é muito mais antigo do que parece. Segue um pouco o caminho da ligação entre o rádio e o futebol. Tudo isso nos remete ao início, nos anos 1920 e também à década de 1930. Se a gente pensar um pouquinho, admitindo espaço para reconstruções, dá para considerar que são histórias quase centenárias. 

Durante os anos 1920, alguns registros indicam o começo das primeiras transmissões esportivas, fossem elas de forma parcial ou não oficial. Isso se deu pelo fato de que transmitir um jogo de futebol naquela época era uma missão quase impossível e três dificuldades eram centrais: tecnologia inexistente, falta de estrutura nos estádios ou de pessoal, resistência política escassa. Essa última expressa pela resistência de clubes (a exemplo de Botafogo, Fluminense e da própria Confederação Brasileira de Futebol) que, naquela época, chegaram a proibir que as primeiras emissoras transmitissem partidas. O argumento era que o rádio gerava concorrência ao espetáculo e, com isso, o público deixaria de ir até os estádios para ouvir os jogos em casa. 

Nos anos 1930, o cenário muda um pouco e marca temporalmente a primeira transmissão internacional de futebol via rede de rádio. Um dos feitos do começo dessa década também é a já conhecida narração oficial e ininterrupta de uma partida de futebol, protagonizada por Nicolau Tuma em 19 de julho de 1931, o jogo válido foi entre as seleções de São Paulo e Paraná. A transmissão em rede de rádio seria protagonizada quase sete anos depois. No dia 05 de junho de 1938, a Rede Verde-Amarela transmite a partida da seleção do Brasil contra a Polônia diretamente da França, válida pela Copa do Mundo daquele ano. A recepção foi feita pela Rádio Club do Brasil (RJ), com formação da maior cadeia de estações de rádio da época. 

Fonte: Futebol Na Veia

O feito da Rede Byington pode ser atribuído, em parte, ao nome de Alberto Byington Júnior, que já havia atuado como secretário na Rádio Educadora Paulista, a qual, por sua vez, deu início (ainda nos anos 1920) ao sistema de permutas parciais de programação e de transmissões simultâneas entre emissoras. Alberto Jr. também foi atleta da delegação brasileira nas Olimpíadas de Paris (1924). Um ano antes, já competia pelo Clube Paulistano de Atletismo nos 110 metros com barreira. A transmissão de 1938 representou um momento de ápice da Rede Verde-Amarela, com emissoras espalhadas por diversos estados do país. Depois da transmissão feita diretamente da França, a rede se desfez por conta de questões técnicas e também políticas, uma vez que havia muito ruído nas transmissões e porque houve a negação da concessão de canais em ondas curtas por parte da Comissão Técnica de Rádio (criada por Vargas em 1932). 

O que se tem depois é um período no qual o futebol brasileiro e o próprio rádio se consolidam, ainda um momento em que as próprias coberturas esportivas são sistematizadas. Logo, vale considerar que as transmissões esportivas via rede de rádio praticamente passam por um momento de estagnação até o fim dos anos 1950. No ano de 1958, a Rádio Bandeirantes de São Paulo estrutura a Cadeia Verde-Amarela Norte Sul do Brasil. O objetivo era transmitir em rede as partidas da Copa do Mundo na Suécia. O feito envolveu mais de 400 emissoras em todo o país em um tempo no qual o rádio era o principal meio nas coberturas com transmissão via linhas telefônicas. 

Nos anos 1970, o destaque é para a parceria firmada entre a Rádio Guaíba de Porto Alegre e a Rádio Continental do Rio de Janeiro, para a Copa do Mundo, na chamada Grande Rede Brasileira dos Esportes. A rede incluiu, conforme o Blog “Uma História do Rádio no Rio Grande do Sul”, também emissoras de outros estados como Goiás, Mato Grosso, Paraná, Santa Catarina e São Paulo, e uma estação do Uruguai. Na final, cada tempo da partida acabou sendo irradiado pela equipe de uma emissora.

As redes de rádio como conglomerados de mídias vão surgir mais ou menos nos anos 1980, numa perspectiva dominante de transmissão pela capacidade de alcance da programação radiofônica para uma grande audiência em diferentes mercados distribuídos pelo interior do país. Aqui o fator tecnológico são as transmissões via satélite e o econômico, baseado no suporte financeiro dos conglomerados que, por sua vez, concentram a maior parcela do bolo publicitário. Para as emissoras menores, a associação ou afiliação a uma grande rede significa redução de custos e conteúdo disponível para abastecer suas programações. As redes de rádio, conforme regulamentado pela Anatel (Decreto 52.975 de 31 de outubro de 1963) são definidas, no Artigo 5º, em algumas modalidades: a estação geradora, rede local, nacional e regional.

Com base especialmente na estrutura técnica, de pessoal e financeira é que as redes de rádio transmitem eventos esportivos como parte de suas programações (já que algumas também trabalham com informação ou entretenimento). No Brasil, por exemplo, a Rede Globo detém os direitos sobre as transmissões da Copa do Mundo de 2022. Nesse caminho, vendeu os direitos para as seguintes rádios: Itatiaia (MG), Grupo Bandeirantes (Bandeirantes e BandNews FM), Transamérica (SP), Gaúcha (RS), Joven Pan (SP), Energia 97 (SP) e Jornal (PE). Esse número de 8 emissoras (considerando a própria Rede Globo de Rádio) é muito pequeno se comparado, por exemplo, ao número de emissoras que transmitiu a Copa de 2014 realizada no Brasil. Naquele ano, 23 emissoras adquiriram os direitos de transmissão. Em 2010, na África do Sul, foram 22 emissoras credenciadas. A redução, praticamente a metade do número de rádios se comparado com 2018, tem entre os fatores os altos custos cobrados pela Fifa e também a outra modalidade de negociação, que aposta em canais de streaming (cujos acordos seguem abertos até o momento).

Pensar e compreender o papel das redes de rádio nas transmissões de futebol significa considerar todos os aspectos históricos e de transformações ao longo do tempo. Assim como nos primórdios, essa relação ainda permanece muito próxima e hoje é atravessada por novos canais de transmissão que se tornam concorrentes. Se antes a promoção do esporte – como espetáculo midiático – também passava pelo rádio, hoje a era do streaming condiciona e leva grande parte da audiência, especialmente a mais jovem.

 

Fonte: Torcida K

O encolhimento visível no número de redes com transmissão também traz reflexos a partir das reduções no próprio jornalismo esportivo, seja de pessoal, estrutura e investimentos. Para aquelas que se mantêm e têm base financeira para custear direitos, viagens e toda a cobertura em si, as transmissões são uma forma de realização de grandes coberturas e de impulsionamento de verbas publicitárias. Seguem ainda cumprindo seu papel primordial de documentar eventos esportivos. Já as emissoras que ficam de fora dos grandes eventos midiáticos têm como possibilidade a venda e a formação de parcerias para cobertura de jogos em campeonatos regionais também em períodos determinados. Têm um papel como geradoras de conteúdos para mercados interioranos. Se as grandes redes trazem uma programação mais genérica considerando o território nacional, as redes regionais têm a possibilidade de explorar além do futebol, aspectos da identidade local que também passam pelo esporte. 

Referências

AVRELLA, Bárbara. ALEXANDRE, Tássia Becker. A trajetória histórica das redes de rádio no Brasil. Encontro Regional Sul de História da Mídia, 5. Anais: Florianópolis: Alcar Sul, 2014.

GUIMARÃES, Carlos. O início da narração esportiva no rádio brasileiro. In: RADDATZ, Vera. KISCHINHEVSKY, Marcelo. LOPEZ, Cristina. ZUCULOTO, Valci (Org.). Rádio no Brasil: 100 anos de História em (Re)Construção.. Ijuí: Unijuí, 2020.

RUTILLI, Marizandra. A rede verde-amarela, o pioneirismo esquecido da Família Byington. In: RADDATZ, Vera. KISCHINHEVSKY, Marcelo. LOPEZ, Cristina. ZUCULOTO, Valci (Org.). Rádio no Brasil. 100 anos de História em (Re)Construção. Ijuí: Unijuí, 2020.

SOARES, Edileuza. A bola no ar. O rádio esportivo em São Paulo. São Paulo. Summus, 1994.

Artigos

O provincianismo da dita mídia “nacional”

“Ex-Botafogo-PB, Durval é campeão da Libertadores da América de 2011 pelo Santos”.

A manchete, caro leitor, ainda que não tenha sido de fato publicada e que aqui sirva de mera ilustração, é rigorosamente correta.

O zagueiro Durval, um dos maiores campeões do futebol brasileiro entre os anos de 2003 e 2016, que passou por clubes como Botafogo-PB, Brasiliense, Athletico Paranaense, Sport e Santos, tendo sido campeão em todos eles e tendo acumulado 11 títulos estaduais, duas Copas do Brasil e uma Libertadores ao longo da carreira, é paraibano de Cruz do Espírito Santo e teve como primeiro título o Campeonato Paraibano de 2003.

Fonte: Globo

Ainda assim, você há de convir que a manchete, embora rigorosamente correta, não haveria de fazer o menor sentido se escrita em 2011, oito anos e tantos títulos depois de Durval ter iniciado a carreira e ter conquistado a sua primeira taça.

Aliás, aqui vai uma pequena correção.

A manchete haveria de fazer sentido se escrita, sei lá, pela assessoria de imprensa do próprio Botafogo-PB ou por algum veículo local da Paraíba, que quisesse destacar os feitos de um conterrâneo que, um dia tendo jogado em sua própria terra, estava a conquistar a América, a conquistar horizontes jamais imaginados por ele antes disso.

Mas então, se a referência ao Belo e à Paraíba parecem inimagináveis no caso acima citado, por que então a imprensa dita nacional (e não paulista, saliente-se) normaliza manchetes que idealizam um centro em detrimento de uma suposta periferia?

Quem, afinal, define o valor-notícia? Quem decide que um clube do Sudeste é mais importante do que um clube do Nordeste, por exemplo?

Todo esse preâmbulo, pois, é para analisar uma reportagem que foi publicada recentemente pelo portal da ESPN, em 9 de abril de 2022, sobre a estreia do Campeonato Brasileiro deste ano.

Fonte: Portal RMC

A manchete é assim:

“Ex-Corinthians dá show, e Palmeiras abre o Brasileirão com derrota para o Ceará em casa”.

Sim, eu estou mesmo propondo uma espécie de análise do discurso, um debate sobre um portal de notícias que se arvora nacional mas que, em casos como esse, demonstra um provincianismo difícil de entender.

Se o campeonato é o Brasileiro, se o portal é nacional, se a cobertura é total, por que, então, a referência, o centro, o que aparentemente importa, é tudo o que cerca o estado de São Paulo?

Para começo de debate, por que é o Palmeiras quem perde e não o Ceará quem vence?

Por que é o “ex-Corinthians” Mendonza (informação, aliás, que embora esteja na manchete, só aparece no oitavo parágrafo do texto) o craque do jogo, se faz quatro anos que o atacante colombiano não atua mais pelo clube paulista e se já há algum tempo ele é destaque do time cearense?

Tem mais.

Por que, afinal, em certo momento do texto, surge um intertítulo alertando que “poderia ser pior”?

Pior para quem, oras?

Para o Ceará, que venceu fora de casa, ao menos que eu saiba, melhor impossível.

Mas então…

Por que a ênfase total no Palmeiras? Por que diminuir o mérito cearense? Por que o destaque a um Corinthians que nem mesmo participava do jogo em si? Por que lamentar um suposto cenário mais catastrófico de um clube sem nem se importar com o feito do vencedor? Por que a cobertura da mídia é apequenada ao ponto de imaginar que o futebol que importa é apenas o do Sul e do Sudeste brasileiro?

Enfim, pesquisadoras como Hévilla Wanderley e outros nomes da Rede Nordestina de Mídia e Esporte (ReNEme) discutem amplamente a “questão nordestina” no futebol brasileiro. Os leitores que quiserem poderão se aprofundar no tema, visto que aqui é impossível fazer isso.

Mas é imperativo lembrar que portais como a ESPN, que relegam o Ceará à margem, a uma posição coadjuvante e de menor importância aos clubes do chamado “eixo”, é o mesmo que se infla sempre que possível para chamar sonsamente de “xenofobia” (sim, Mauro Cezar Pereira, eu estou falando de você, mesmo que você não faça mais parte do grupo) as tentativas de resistência dos clubes nordestinos contra essa hegemonia predatória que, muitas vezes financiadas pela própria mídia, tenta classificar de “nacional” apenas aquilo o que lhes cerca.

Mas, se a resistência não partir dos clubes do Nordeste, e de todos os demais de fora do “eixo”, quem haverá de resistir a esse tipo de abordagem que institucionaliza o preconceito? Que classifica como estrangeiro (um “estranho”, um “não proprietário do solo”, nas palavras de Georg Simmel), todos os clubes que estão para além da província que a “mídia nacional” se sente parte?

No fim de tudo, era esse o questionamento que eu queria deixar.

Referências

FERNANDES, Hévilla Wanderlley. Não é Apenas um Jogo: a questão meridional no futebol. 2020. Dissertação. Mestrado em Ciência Política – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, UFPB.

SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. Trad. Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 12, pp. 265-271, dez. 2005.