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Afinal, quem determina quem é campeão mundial?

Apesar dos ruídos provocados pelas “novas verdades instantâneas” das redes sociais, persiste forte convergência, na academia, sobre apontar o intervalo de 1958 a 1970 como a era de ouro do futebol brasileiro. Foi quando a seleção brasileira venceu três (1958, 1962 e 1970) de quatro Copas do Mundo disputadas. Para além do respeito conquistado pelos títulos, o futebol nacional, em tal período, ganhou a admiração, interna e externa, por produzir, em profusão, jogadores que uniam excelência técnica e elevada capacidade competitiva, como Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Rivelino, Gerson, Jairzinho e Tostão, para citar apenas alguns dos que foram campeões mundiais naquela fase.

A equipe do Botafogo campeã brasileira em 1968. Créditos: Globoesporte

No entanto, apesar do reconhecimento dos seus contemporâneos, incluindo imprensa e torcida, parte do jornalismo esportivo, a partir de determinado momento, passou a dedicar-se a um contínuo processo de apagamento da memória dos feitos memoráveis das gerações da era de ouro quando se trata dos títulos dos clubes em que atuaram esses jogadores. Tal processo dá-se em duas frentes: nas conquistas nacionais pré-1971 e nos títulos internacionais que não sejam o que a imprensa local convencionou chamar de Mundial de Clubes[1].

Até hoje, não são muito explícitas as razões pelas quais, em algum momento, o jornalismo esportivo deixou de considerar os vencedores dos campeonatos disputados entre 1959 e 1970 campeões brasileiros, embora, naquele período, tal forma de tratamento fosse “divulgada a milhões de pessoas através dos veículos mais importantes da imprensa nacional” (CUNHA, 2009, p. 8): “Até o popular ‘Canal 100’, documentário que levava a emoção e a beleza do futebol a cinemas de todo o país, transmitia a mesma mensagem” (Id., ibid.).

Uma das hipóteses levantadas por Cunha, autor do dossiê que serviu de base para a equiparação daqueles títulos ao de campeão brasileiro pós-1970, é que a Revista Placar, lançada em março de 1970 e principal publicação esportiva do país durante cerca de duas décadas, não teria interesse em valorizar um período do futebol brasileiro anterior a sua existência. Válida ou não a hipótese, a revista, durante longo período, não tratou como campeonatos brasileiros os títulos anteriores a 1971. Isso embora, curiosamente, a manchete do número 41 da mesma revista tenha sido: “O Flu é campeão do Brasil” (Placar, 25/12/1970). Na mesma edição, Placar publicou o tradicional pôster do time campeão de 1970 da Taça de Prata, uma das três nomeações adotadas no período entre 1959 e 1970. Ou seja, por razão nunca explicitada, a revista desconsiderava o tratamento que ela própria dera ao campeão da última edição que antecedeu a versão do Brasileiro a partir de 1971[2].

Os títulos internos da era de ouro do nosso futebol foram, enfim, em 2011, equiparados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) às versões do Campeonato Brasileiro disputados a partir de 1971. Por isso, esta comunicação pretende se concentrar nas conquistas internacionais que a própria imprensa e os demais contemporâneos aclamavam como “campeões do mundo”, mas continuam a sofrer forte processo de invisibilização, quando não desqualificação, pelo jornalismo esportivo brasileiro, que adota lentes contemporâneas para revisitar o passado glorioso.

Num período em que comunicações e telecomunicações eram bem mais precárias e a mercantilização do futebol bem menos acentuada, foram criados torneios variados, na Europa e na América Latina, para buscar definir quem era “o melhor time do mundo”. Com formatos variados, tais torneios tinham, ao menos, duas coisas em comum: reuniam alguns dos maiores clubes da época e nenhum era reconhecido, para fins de estabelecer um hegemon, pela Fifa, que apenas a partir de 2005 passou a realizar regularmente um torneio mundial de clubes. Dessa forma, a condição de campeão mundial, reivindicada por seus organizadores, era sancionada – à margem do aval institucional da cúpula do futebol – pela imprensa, brasileira e internacional, como é fácil constatar, mesmo em pesquisas aligeiradas na internet. 

São, ao menos, quatro os torneios, todos iniciados entre os anos 1950 e 1960, cujos organizadores reivindicavam tal condição: Torneio Internacional de Clubes Campeões (Copa Rio)[3]; Copa Presidente Marcos Pérez Gimenez[4]; Torneio Triangular de Caracas[5] e Copa Intercontinental[6]. Sem nos estendermos numa historiografia exaustiva, é possível perceber que o principal argumento usado pelos defensores do monopólio do Mundial Interclubes – a inexistência de critérios fixos de classificação – não foi respeitado em pelo menos três edições dessa competição, sem que Independiente (1973), Boca Juniors (1977) e Olimpia (1979) sejam considerados menos campeões do que os demais. 

Além disso, em 2000, houve dois campeões: Boca Juniors, campeão da Libertadores do ano anterior, e Corinthians, campeão brasileiro do ano anterior e um dos dois convidados da Fifa como representantes do país anfitrião, quebrando a tradição de um único convidado do local em que a competição é realizada. O outro foi o Vasco da Gama, finalista com o Corinthians e que poderia ter sido campeão sem ser nem campeão da Libertadores nem do Brasileiro em 1999.

Mais importante, porém, do que se fixar em comparações entre os diversos torneios simultâneos do período examinado cujas hierarquias são construídas posteriormente, é destacar como seus campeões eram retratados na imprensa brasileira. Citaremos apenas algumas manchetes de jornais daquele período. Em 23 de julho 1951, a Gazeta Esportiva mancheteou: “Palmeiras campeão do mundo”, a propósito do título da Copa Rio daquele ano. Em 1 de fevereiro de 1967, a propósito do título do Botafogo no Torneio de Caracas, o Correio da Manhã, um dos principais jornais brasileiros até o fim dos anos 1960, teve como manchete: “Fogo em Caracas – O Glorioso carioca é campeão do Mundo”.

As conquistas eram reconhecidas não apenas por veículos dos estados dos campeões. Em 5 de agosto de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, proclamava: “Fluminense, campeão do mundo – Empate com o Corinthians por 2 x 2, na decisiva do Torneio Internacional de Clubes – A campanha dos tricolores”

E, não apenas a imprensa brasileira. Quando o Botafogo voltou a vencer o Torneio de Caracas, em 1968, o jornal português Record, deu na primeira página: “Implacável!!! Vitória alvinegra em Caracas, Botafogo conquista a Mini Taça do Mundo em um jogo incrível contra o Benfica de Eusébio, Colina e Simões”. Ao lado, acompanhada da ilustração da taça como direto a “eco” na palavra campeão: “Botafogo campeão ooo do Mundo”. A matéria é acompanhada, ainda, pela foto dos dois times perfilados antes da partida. 

Definir quem deve ser tratado ou não como campeão mundial escapa aos objetivos desta comunicação. O que nos move é contribuir para um debate que leve a uma explicitação das razões que autorizam a imprensa não contemporânea dos acontecimentos a retificar e desqualificar o que os jornais do período registrado, incluindo veículos dos mesmos grupos, registraram. Quais as razões da reinterpretação dos fatos à luz de outros critérios e num contexto do futebol fortemente informado por valores comerciais?

Publicamos a seguir a relação dos times considerados por seus contemporâneos, incluindo – insistimos – a imprensa, campeões mundiais da era de ouro do futebol brasileiro, mas, posteriormente, descredenciados. Lembramos que a lista restringe-se à primeira fase dos torneios que, após interrupção mais ou menos prolongada, foram reativados, mas já num período de consolidação do Torneio Interclubes como única instância, ainda que sem o aval institucional da Fifa, como única instância definidora do campeão mundial de clubes.

Os campeões esquecidos

Copa Rio: Palmeiras (1951) e Fluminense (1952)

Pequena Taça do Mundo: Corinthians (1953) e São Paulo (1955)

Torneio de Caracas: Bangu (1958), Botafogo (1967, 1968 e 1970) e Cruzeiro (1970)

Bibliografia

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009. SOUTO, Sérgio Montero. Uma revisita à era de ouro do futebol – quando os títulos do passado têm de ser driblados pelo hegemon do ‘mercado’. Belo Horizonte: Fulia v.4, n.2, 2019.

Notas

[1]  Oficialmente, essas competições são chamadas pela Fifa de Mundial Interclubes.

[2] Para ler mais sobre os campeões brasileiros pré-1971, vide SOUTO (2019) e CUNHA (2009).

[3] Mais conhecida como Copa Rio foi organizada pela então Confederação Brasileira de Desportos (CDB) – antecessora da CBF – com apoio da Fifa. Teve apenas duas edições (1951 e 1952). Em 1953, foi rebatizada de Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, e sofreu alterações, quantitativa e qualitativa, no número de clubes estrangeiros convidados.

[4] Ou Troféu Marcos Pérez Jiménez ou Pequena Taça do Mundo era organizado pela Federação Venezuelana de Futebol e por empresários locais, sendo disputado entre equipes europeias e sul-americanas. Teve dois períodos. O de maior relevância entre 1952-1957. Após interrupção de seis anos, foi rebatizada de Troféu Cidade de Caracas, teve uma edição em 1963, para retornar em 1965, sendo , então, disputada de forma não contínua por até 1975. No período, a partir de 1963, a competição sofre um esvaziamento, tanto em prestígio, quanto em número de participantes. Este trabalho se atém à primeira fase.

[5] Disputado entre equipes europeias e sul-americanas e seleções nacionais, como a argentina e a soviética, era chamado, ainda, de Torneio de Caracas e Triangular de Caracas. Teve duas fases, sendo a de maior prestígio entre 1958 e 1970, que teve duas edições em 1970. A segunda fase (1976-1981) teve apenas quatro versões e menor prestígio esportivo. É à primeira que nos detivemos.

[6] Organizada pela União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sua primeira versão ocorreu em 1960, sendo realizada anualmente, com dois hiatos, até 1979, com diferentes formas de disputa, variando de uma a três partidas. Em 1975 e 1978, incompatibilidades entre o calendário das duas entidades levaram ao cancelamento da competição. Em três ocasiões (1973, 1977 e 1979), a final foi entre o campeão sul-americano e o vice-europeu, já que os campeões do continente naqueles anos se recusaram a participar. Com as seguidas recusas dos europeus ameaçando esvaziar o torneio, a partir de 1980 até 2004 foi transferida para o Japão, sendo rebatizada de Copa Toyota, nome da patrocinadora do torneio e disputada numa única partida. A partir de 2005, a Fifa, que já promovera uma edição em 2000, paralela à ocorrida no Japão, assume a organização da competição de forma contínua, incorporando os campões continentais africano, asiático e da Oceania.

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O “eixo Rio-São Paulo” e a desigualdade do futebol brasileiro

Enquanto nordestino, venho utilizando este espaço no site Comunicação e Esporte para tratar de algumas especificidades sobre representação midiática dos clubes locais. Além de outras questões mais teóricas ligadas à Economia Política da Comunicação (EPC) aplicada ao futebol.

Para a coluna deste quadrimestre, minha pretensão era me voltar a um texto do segundo grupo, discutindo uma produção teórica da década de 1980 sobre futebol. Porém a nota oficial conjunta de quatro clubes de Rio de Janeiro e São Paulo sobre a regulação de apostas esportivas me chamou a atenção. Explicarei o porquê.

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Clubes de Rio de Janeiro e São Paulo se uniram na publicação de uma nota sobre apostas esportivas. Divulgação: Twitter/Palmeiras

Momento crucial para o futebol brasileiro

A extensão da mercantilização sobre o futebol é tema de constantes pesquisas nas últimas décadas minhas e de outros colegas, alguns inclusive ligados ao Leme (Laboratório de Estudos de Mídia e Esporte). 

A procura para maior acumulação de capital a partir de um elemento com tamanha importância sociocultural domina o debate acadêmico com demonstração de preocupação. 

É desse caminho que apareceram as críticas à “arenização” dos estádios, gentrificação no entorno deles e a partir dos megaeventos esportivos no Brasil e à preocupação com a empresarização dos clubes, com a Lei da Sociedade Anônima do Futebol sendo o ápice disto.

Do outro lado da moeda, a discussão sobre aproveitar melhor as receitas que o futebol supostamente pode dar sempre esteve presente. Mas, para isso, era preciso uma melhor organização do futebol brasileiro.

Há cerca de dois anos, dirigentes de clubes das séries A e B do Campeonato Brasileiro discutem uma melhor organização do futebol a partir de uma liga de clubes. Mas a divisão entre Forte Futebol e Libra mostra que é um caminho difícil, especialmente no que se refere a dividir melhor as receitas entre os clubes numa mesma competição – e para divisões inferiores.

Esta é uma das diferenças que não permitiram ainda unidade para uma proposta de liga no futebol brasileiro que possa começar em 2025, primeiro ano de um novo ciclo contratual de direitos de transmissão.

É justamente neste momento que Botafogo, Corinthians, Flamengo, Fluminense, Palmeiras, Santos, São Paulo e Vasco resolveram se posicionar de forma isolada sobre receitas oriundas de apostas esportivas. A seguinte frase me chamou bastante atenção e, supostamente, justificaria esta atitude por fora, inclusive, da Libra, à qual todos estão ligados: “é inegável que o maior volume de transações feitas se dá em face dos grandes clubes do futebol brasileiro”.

Para mim, é um tema que poderia entrar facilmente no debate da liga, afinal, traria mais vozes para serem ouvidas e gerariam uma sinalização ao mercado de unidade para negociações futuras. Não foi esta a opção.

O “eixo”

Se quem me lê agora já ouviu alguém que torce para equipe do Nordeste, deve ter ouvido falar de tratamento desigual histórico, econômico e midiático. Na busca pela hegemonia do capital esportivo no futebol brasileiro, locais com maior industrialização e melhores relações políticas concentraram empresas, matrizes de veículos de comunicação nacionais, melhores relações políticas e, consequentemente, clubes que puderam nacionalizar ou contar com mais recursos.

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Imagem via satélite das luzes noturnas formando o “eixo” entre Rio de Janeiro e São Paulo. Divulgação: Anderson Santos

“G12” é um termo muito utilizado pela cobertura esportiva dita nacionalizada para tratar dos 8 clubes supracitados que assinaram a nota, agregados a Cruzeiro, Atlético-MG, Grêmio e Internacional. De vez em quando, um colunista ou outro tenta incluir Bahia ou Atlético-PR nesse grupo – curiosamente, não lembro de citação ao Fortaleza nisso.

Enquanto alguém que já atuou em mídia alternativa nordestina (o podcast Baião de Dois, da Central 3), não era incomum ver torcedores mineiros e gaúchos reclamarem também de tratamento midiático diferenciado. Pois então temos os próprios 8 clubes se considerando como “Grandes Clubes do Eixo RJ x SP”. 

“Eixo”, uma palavra que às vezes parece incomodar até parte mais progressista da mídia esportiva e da torcida dessas equipes por, talvez, sinalizar uma construção hegemônica que, definitivamente, não passa por “meritocracia”.

Mas há quem prefira reclamar de uma reação simbólica de parte da torcida (faixas “Vergonha do Nordeste” nos estádios) ou campanhas pontuais de clubes (como Fortaleza e Bahia, recentemente), que discutir como esses clubes acreditam que, realmente, só eles precisam ser ouvidos pelo poder público federal.

Lembrando ainda que na discussão sobre aprovação da Lei do Mandante e da Lei da SAF, houve representação de clubes direcionada para reuniões em Brasília após decisão coletiva. Isso para 2021. O que mudou de lá para cá?

E agora?

De lá para cá, o governo federal recebeu os clubes sem qualquer problema, assim como outros agentes. As casas de apostas, por exemplo, já criaram ou estão em três associações diferentes no Brasil, sinalizando que querem a regulação do mercado – que possibilitará também uma estabilidade neste, com provável concentração oligopólica.

Vale salientar que a muito necessária proposta de regulação das casas de apostas esportivas, seguindo a Lei nº 13.756/2018 que possibilitou que elas funcionassem para brasileiras/os, deveria ter saído em 2020. Entrou na agenda inicial do atual governo federal por só gerar receitas via impostos ao Estado na tributação do Imposto de Renda sobre ganhos de jogadores, mas nada de quem lucra com isso (as empresas).

Mas, por fim, não recordo de ter qualquer pressão naquele movimento de 2021, início de uma tentativa de unidade dos clubes, sobre este tema. Conseguiu-se aprovação de duas leis, uma delas a partir de Projeto de Lei do executivo, o que dá caráter de urgência à votação.

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Um homem possível

No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Créditos: O Dia.

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram. Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto para esse blog, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências


GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.

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Para que servem os times “pequenos”?

Por Glauco Souza

“Sensação do Campeonato Paulista, o Água Santa está garantido na Série D do Brasileirão e na Copa do Brasil de 2024. Com as vagas em mãos, o clube de Diadema optou por interromper as atividades do elenco profissional no segundo semestre desta temporada. Assim, serão no mínimo oito meses sem jogar entre abril, numa possível final do Paulistão, e janeiro do ano que vem”.[1]

O ano de 2023 começou para o futebol brasileiro masculino de alto rendimento com as equipes profissionais disputando seus campeonatos estaduais. No Rio de Janeiro e em São Paulo, a fase final das competições contou com a presença de alguns clubes considerados “zebras” e, no presente texto, damos um enfoque maior ao Água Santa e ao Volta Redonda, semifinalistas nos Campeonato Carioca e Campeonato Paulista.

O Esporte Clube Água Santa é uma equipe da cidade de Diadema, mesorregião metropolitana do estado de São Paulo, e foi fundado em 27 de outubro de 1981 “por imigrantes nortistas, nordestinos e mineiros, que viam no clube a única possibilidade de lazer”.[2] A versão histórica de criação da instituição presente em seu site oficial já mostra, por si só, relação com o surto migratório Nordeste-Sudeste fruto da rápida industrialização paulista a partir dos anos 1930,[3] bem como associa o nascimento da entidade a grupos de menor poder aquisitivo.

Fonte: Agência Brasil

O Volta Redonda Futebol Clube surgiu nos anos 1970 como parte do processo de reforço identitário da cidade homônima do Rio de Janeiro, famosa por ser o local de instalação da Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) durante a Era Vargas (1930 – 1945). Desde seu princípio, a agremiação contou com o apoio institucional de outras entidades do gênero, pois o “então presidente da Liga de Desportos de Volta Redonda, Getúlio Albuquerque Guimarães, iniciou então o projeto, juntamente com o presidente do Flamenguinho de Volta Redonda, Guanayr de Souza Horst, para criar um clube de futebol para representar a cidade no novo Campeonato Estadual do Rio de Janeiro”.[4] Ademais, o próprio poder público se envolveu para ajudar no desenvolvimento do projeto que necessitava de um campo de jogo adequado e, por isso, “Nessa época, o Estádio Raulino de Oliveira pertencia à Companhia Siderúrgica Nacional (CSN) e era administrado, em regime de comodato, pelo Guarani Futebol Clube, tradicional time amador da cidade. A prefeitura, a CSN e a Confederação Brasileira de Desportos (atual CBF), fizeram um acordo para a reforma do estádio, a fim de que abrigasse o novo time”.[5]

Fonte: Torcedores

Ambas as equipes possuem histórias ligadas ao desenvolvimento industrial no Brasil, o qual pode ser visto como parte do processo de urbanização de partes do país, algo essencial para a difusão do futebol. Todavia, estas equipes ficaram condicionadas dentro da lógica do futebol masculino de alto rendimento como clubes pequenos, cuja existência, na maior parte das vezes, é ignorada e, portanto, sem utilidade. Dessa forma, cabe-nos perguntar: para que servem os clubes “pequenos”?

Se partíssemos da perspectiva de que o futebol só tem a relevância atual por causa dos grandes times, dos super astros e dos jogos marcantes em estádios lotados, certamente nossa resposta à pergunta “para que servem os clubes ‘pequenos’?”, seria “para fornecer jogadores aos clubes maiores”. A perspectiva de que em torno de um centro futebolístico orbitam aspectos para engrandecê-lo é antiga e existente no Brasil desde os primeiros chutes,[6] não podendo, aliás, ser vista como algo natural, mas fruto dos processos de construção excludentes que caracterizaram a Primeira República (1889 – 1930).[7] Esta perspectiva está tão enraizada na sociedade brasileira que ainda se faz presente na atualidade pela pouca relevância atribuída aos clubes “pequenos” ou mesmo em vinculando-os como sujeitos ativos apenas quando podem ser associados às equipes consideradas “maiores”.

A visão hierarquizada dos times futebolísticos traz consigo o caráter excludente por meio do qual clubes com menos títulos “de expressão” acabam sendo esquecidos, ignorados e/ou apenas são lembrados somente quando conseguem obter sucessos dentro de campo semelhantes às das grandes equipes. Contudo, a realidade é bem mais complexa do que isso e, principalmente, é preciso considerar estas equipes dentro das suas possibilidades e percebê-las enquanto agremiações ativas e independentes dos chamados times grandes.

+  Historicamente, muitos dos times ditos pequenos foram responsáveis pelo desenvolvimento cotidiano do futebol em bairros que os clubes grandes não se faziam presentes com frequência. Foi por meio deles, aliás, que as relações de identidade futebolísticas foram construídas e consolidadas, motivo forte o bastante para não associarmos os times pequenos como hierarquicamente inferiores àqueles chamados grandes, mas igualmente importantes para a história do esporte bretão no Brasil.


[1] Disponível em https://ge.globo.com/sp/futebol/times/agua-santa/noticia/2023/03/18/serie-d-em-2024-e-estadio-por-que-agua-santa-sensacao-do-paulista-vai-ficar-oito-meses-sem-jogar.ghtml. Acesso em 03 abr.2023.

[2] Disponível em https://www.ecaguasanta.com/historia. Acesso em 19 mar. 2022.

[3] BAENINGER, Rosana. Fases e faces da migração em São Paulo / Rosana Baeninger. – Campinas: Núcleo de Estudos de População-Nepo/Unicamp, 2012.

[4]  Disponível em https://voltaco.com.br/nossa-historia/. Acesso em 19 mar. 2023.

[5] Disponível em https://voltaco.com.br/nossa-historia/. Acesso em 19 mar. 2023.

[6] O Imparcial, 22 mar.1919, p. 04.

[7] FERREIRA, Jorge; DELGADO, Lucilia de Almeida Neves (orgs.). O Brasil Republicano: O tempo do liberalismo excludente. Da Proclamação da República à Revolução de 1930. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2003.

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Neymar: herói ou vilão?

Por Abner Rey e Gustavo Fernandes

Encontrar um ponto de ancoragem seguro e estável em meio ao desequilíbrio gritante de uma narrativa de vida marcada por altos, baixos e reviravoltas inacabadas sem fim soa, de início, como uma maneira fácil de colocar tudo a perder, a fórmula perfeita para o caos. Só que trazer a trama publicamente desconhecida de um fenômeno midiático e astro do futebol é, na verdade, a receita para o sucesso, já que o desconhecimento instiga a degustar da pergunta que azucrina os que não conhecem Neymar Júnior como seus pais e seus “parças” o conhecem: o que se passa no olho desse furacão? 

Movido pela ambição de oferecer uma nova perspectiva sobre o jogador do PSG, o documentário Neymar – O Caos Perfeito tenta deixar evidente uma resposta fundamental sobre sua personalidade dupla. O original da Netflix, dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, ajuda a construir uma imagem particular do craque, em tempo, uma imagem ideal: Neymar é o herói da sua narrativa, pois é o herói nas escolhas subjetivas que o recorte do documentário faz. Para edificar essa figura digna de admiração, O Caos Perfeito utiliza elementos narrativos típicos da Jornada do Herói, sob os conceitos de Joseph Campbell  e Christopher Vogler, descrita no artigo de Anelise Rubelscki e Giulianno Lara Olivar (2014), intitulado “A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas”.

Fonte: Netflix

Como protagonista de uma história que compreende um dom raro e um fardo grandioso, aversão e admiração em escalas semelhantes, Neymar encontra-se a todo o momento driblando e bailando perigosamente em cima da fronteira que separa os heróis dos vilões, uma fronteira que em seu caso parece cada vez mais estreita. Em certos momentos, é possível perceber na sua irresponsabilidade imatura uma loucura quase psicótica de um Coringa mentalmente atormentado por seu passado sem nenhum mentor moral. Em outros, a virtude espontânea e a força por aguentar tanto remetem a um Batman que parece estar bem próximo de sair das trevas e retornar triunfante. É dessa maneira que Neymar se enxerga e que o documentário faz questão de enfatizar: ele se vê como o Batman para a sua família e amigos e como o Coringa para todos os que o conhecem de modo superficial. Ou seja, nesse recorte narrativo, a série segue a ideia de que a verdadeira face de Neymar é a do herói, face reconhecida por aqueles que o conhecem em sua intimidade. Fazendo isso, o documentário fecha as portas para pensar sobre cada um dos dois alter egos possíveis de coexistência no jogador, ao mesmo tempo que traça uma trilha homérica como justificativa para o espectador o enxergar como ídolo. A jornada do herói é flexível à cultura em que busca se inserir, e sob a ótica do documentário não é diferente. A produção utiliza músicas, cenários, vocábulos e interações que remetem à identidade cultural brasileira, de modo que haja reconhecimento e assimilação do jogador com a cultura em que este tem origem.

Ronaldo Helal (2003, p .21), no artigo “A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro”, afirma que “os ídolos têm que conviver constantemente com o drama de ser dois: o homem e o mito”. Através da mitificação de Neymar como um ídolo futebolístico, a qual o documentário enfoca, há a tentativa de amenizar e relativizar o peso que a imprensa dá às suas falhas e derrotas, recorrendo ao cotidiano oculto aos olhares do público – a vida pessoal, a família, os sentimentos e o lado humano – para atribuir aos erros e às imperfeições o enquadramento de provação, estágio em que o protagonista é testado à exaustão para ao final ser recompensado com o conhecimento vital à sua jornada (RUBELSCKI; OLIVAR, 2014). Em parte, assim como toda forma de contar histórias sob o modelo da jornada do herói, O Caos Perfeito promove uma harmonização da vida e da realidade, uma espécie de acordo negociado com o estar no mundo (HELAL, 2003, p.3). Com isso, ao não definir a derrota como um ponto final e sim como uma vírgula, entendemos os acontecimentos negativos apenas como parte do processo em que o herói está se provando. Essa fase – possivelmente a mais extensa da carreira de Neymar – pode até mesmo explicar a constante impressão que se há nas narrativas da mídia sobre o jogador – o prolongamento da ideia de que é o “menino Ney”, o jovem jogador que ainda não alcançara todo o seu potencial. É em torno dessa narrativa que há a utilização do mito no documentário: entendemos que o herói Neymar passa por constantes situações de provação nos momentos em que não alcança o êxito, retirando o peso que a mídia atribui às suas derrotas.

Fonte: IGN Brasil

Neymar atende aos requisitos pelos quais um herói é reconhecido, já que, conforme Helal (2003, p. 20), no Brasil, as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos “enfatizam a genialidade e o improviso como características marcantes e fundamentais para se alcançar o sucesso”, deixando de lado o esforço e o trabalho nesta construção. Por sua vez, Campbell descreve o herói como “aquele que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiências” (2009, citado por Rubelscki e Olivar, 2014). Porém, como em toda narrativa da Jornada do Herói, há a expectativa por desfechos positivos, talvez a parte mais carente do script da carreira de Neymar. Pelos mais variados motivos, o jogador é mais reconhecido por seu potencial do que propriamente por suas conquistas e postura como “herói – que se origina mais da sua capacidade de improvisação, o futebol bonito, o drible e a irreverência do que da disciplina, do trabalho, do metodismo e da dedicação –, por isso há a  dificuldade de reconhecer Neymar como um ídolo/atleta consolidado, e ele é tratado no documentário como um herói ainda em meio ao seu processo.

Já na mídia, muitas são as justificativas que buscam explicar os tropeços de Neymar em busca do êxito, como o fato de nunca ter ganho uma Copa do Mundo, por exemplo. Resgata-se a discussão sobre o dever moral do herói, um senso de que este necessita dar a própria vida por algo maior que ele mesmo, como descreve Campbell. O jogador reafirma no documentário que não abre mão de viver sua vida pessoal como bem entende, mas que tem plena consciência de que é frequentemente cobrado pela imprensa e pelos torcedores por isso. A postura de “pouco compromissado”, em muitas ocasiões, é atribuída como a responsável pelos fracassos de Neymar pela mídia e pelos torcedores. Sobre isso, Helal acrescenta que: “não basta o ato heroico em si, de forma isolada – no caso, as vitórias, as realizações e os gols no futebol. O herói tem que preencher outros requisitos – tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo – para se firmar no posto” (HELAL, 2003, p.23). 

Sob esta percepção, Neymar carece de alguns dos elementos citados, e seria, portanto, criticado na mídia com certa frequência por essa razão. O documentário, então, busca explorar situações em que estes elementos estejam presentes no cotidiano do jogador.
Ao descrever a “superioridade” de Zico sobre os outros mortais – os elementos que o tornam um herói –, Helal diz que esta reside mais “na forma com que enfrenta os desafios e os obstáculos que a vida impõe do que em seu talento extraordinário para o futebol” (2003, p. 23). Sob esta ótica, a “superioridade” de Neymar seguiria o caminho inverso, sendo valorizada pela sua capacidade desportiva, mas pouco por sua devoção e sacrifício. Tal senso moral engloba total dedicação, esforço e sacrifício em busca do objetivo final, elementos que não são observados no craque sob a percepção das pessoas ouvidas pelos entrevistadores do documentário – majoritariamente torcedores do Paris Saint Germain e jornalistas brasileiros –, e que entram em evidência nos discursos críticos ao jogador, principalmente nos momentos de dificuldade, em que a vitória não é alcançada.

O embate entre a perspectiva de Neymar como um herói ainda em seu período de provação versus um vilão que mais prejudicou do que propriamente agregou valor é, então, expresso no documentário em forma de dualidade – Batman e Coringa –, de modo que Neymar se entenda parte como herói e parte como vilão, sem determinar especificamente o que ele acredita ser. A sua identificação como ídolo, e também, portanto, como herói, aconteceria pela identificação do que valorizamos mais na jornada de um jogador de futebol, já que no Brasil, principalmente em Copas do Mundo, tendemos a valorizar o lado mais estético, alegre, criativo, e ‘artístico’ do futebol, como sendo características típicas da sociedade brasileira (HELAL, 2003, p.29), elementos presentes na jornada de Neymar. Já a sua imagem como vilão seria construída por suas derrotas, suas más decisões (a transferência para o Paris Saint Germain é apontada como uma), seu mau comportamento e pouca devoção ao trabalho, a uma suposta indisciplina e também por fatores extracampo – estes não abordados no documentário –, como as polêmicas relacionadas às acusações de abuso sexual e a declaração pública de apoio ao candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022, Jair Bolsonaro, que dividiu opiniões entre a então polarizada torcida brasileira um mês antes da realização da Copa do Mundo de 2022.

Referências

RUBELSCKI, Anelise. OLIVAR, Giulianno. A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas. Lumina, [S. l.], v. 7, n. 2, 2014. DOI: 10.34019/1981-4070.2013.v7.21066. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21066. Acesso em: 9 fev. 2023.

HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu, v. 4, n. 7, p. 19-36, jul./dez. 2003.

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Um Tabu com mais de 100 anos no Futebol brasileiro

“É isso mesmo. Enquanto o Campeonato do Nordeste e a Copa Sul-Minas vão digerir boa parte dos estaduais já em 2002, com o aval de clubes como Grêmio, Cruzeiro, Vitória e Sport, os campeonatos carioca e paulista devem segurar, pelo menos por mais um ano, a regionalização total do futebol brasileiro” (Revista PLACAR, 15.05.2001, p. 6).

A previsão falhou. Os campeonatos estaduais não foram digeridos. Renovaram-se e existem até hoje. As copas regionais, por outro lado, murcharam. O Rio-São Paulo e o Sul-Minas desapareceram. A Copa Centro-Oeste e a Copa Norte deram lugar à Copa Verde, um torneio de importância menor que conta até com a participação de algumas equipes semi-amadoras. Só a Copa do Nordeste manteve a mesma importância.

Então vamos falar de um campeonato estadual. Mais especificamente, do único campeonato estadual que ainda não teve um campeão do interior. É o campeonato carioca, um dos primeiros a serem realizados no Brasil. Começou em 1906.

Entre os seus campeões, estão quatro gigantes do futebol brasileiro (Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo), os tradicionais América e Bangu e dois clubes pequenos, o São Cristóvão e o Paissandu. Todos da cidade do Rio de Janeiro.

Os clubes do interior, que mais chegaram perto de quebrar o tabu, foram o Americano e o Volta Redonda. São os únicos de fora da capital que chegaram a ser vice-campeões estaduais. Um, em 2002, e o outro, em 2005.

O Americano no Campeonato de 2002

O campeonato carioca de 2002 se viu cercado, desde o início, dos piores sentimentos. Foi ofuscado pelo Torneio Rio-São Paulo, naquela época em que os campeonatos estaduais pareciam prestes a serem engolidos e digeridos pelos regionais. A emissora de TV detentora dos direitos de transmissão decidiu não exibir suas partidas (em especial, as partidas das semifinais e da final, que foram realizadas no mesmo mês da Copa do Mundo 2002 Japão-Coreia do Sul). O regulamento da competição sofreu críticas severas e o presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Eduardo Viana, voltou a ser tratado como o pai de todas as mazelas do futebol carioca (algo que já vinha acontecendo na imprensa há alguns anos, aliás). Aquele campeonato de 2002 parecia um campeonato amaldiçoado e fadado ao fracasso e à desgraça. Em alusão ao apelido Caixa d’Água, pelo qual era conhecido o presidente da Federação, o campeonato foi chamado de “Caixão 2002”.

Da cidade de Campos dos Goytacazes, veio a surpresa da competição. O Americano foi campeão da tradicional Taça Guanabara (primeira fase da competição) e da também tradicional Taça Rio (segunda fase da competição). Orgulho da torcida: foi o primeiro clube do interior a conquistar essas duas taças. É verdade que os clubes grandes, com presença garantida na terceira fase, não escalavam seus times titulares, o que ajuda a explicar por que os finalistas da Taça Rio foram Americano e Bangu. Mas os finalistas da Taça Guanabara foram Americano e Vasco da Gama. E entre os atletas vascaínos daquela decisão estavam os conhecidos Alex Oliveira, Léo Lima, Euler e Romário. O Americano venceu por 2 a 1, de virada.

Imagem 1: Americano, campeão da Taça Guanabara 2002.
(Fonte: internet)

Na terceira fase, o Americano estava no grupo A, ao lado de Bangu, Botafogo e Vasco da Gama. Ficou em primeiro lugar. Passou à fase seguinte (a semifinal) e superou o Friburguense. Assim, chegou à final ostentando um desempenho de enorme respeito. Vinte vitórias, quatro empates e nenhuma derrota, enquanto o seu adversário, o Fluminense, tinha doze vitórias e nove derrotas, além de cinco empates. Um desses empates foi contra o Bangu, na semifinal que virou escândalo. Os banguenses ficaram tão revoltados com a anulação do seu gol no fim da prorrogação que o clube impetrou uma ação judicial para anular a partida. O árbitro foi punido severamente. Não atuaria mais em competições da Federação de Futebol do Rio de Janeiro. Mas o público carioca pouco se importava com tudo isso. Estava preocupado mesmo era com a seleção brasileira, que jogou na Copa do Mundo um dia depois da semifinal entre Fluminense e Bangu. O Brasil venceu a Bélgica por 2 a 0 nas oitavas-de-final.

O processo judicial iniciado pelo Bangu só foi concluído em 2009. A semifinal não foi anulada.

O Fluminense, classificado para a final, adotou uma nova postura e transformou em prioridade máxima a conquista do título estadual. Era o ano em que o clube chegava ao seu centenário e a vitória daria realce à comemoração. Foi escalado o time titular para a decisão, disputada em duas partidas (ambas no Estádio do Maracanã, ambas sem exibição televisiva). E deu Fluminense. Vitória na primeira partida por 2 a 0 e na segunda por 3 a 1.

O campeão, em 28 partidas, juntou 47 pontos. O vice-campeão, com o mesmo número de partidas, juntou 64. O Americano nunca havia tido antes e não voltou a ter depois uma chance tão real de ser campeão do Estado. Vacilou na decisão, quando sofreu suas duas únicas derrotas no campeonato.

 Volta Redonda no Campeonato de 2005

No campeonato carioca de 2005, a surpresa foi o Volta Redonda. Chegou à final da Taça Guanabara (primeira fase do campeonato) e enfrentou o Americano. Aquela decisão, pela primeira vez com dois clubes de fora da capital, foi chamada de “Festa do Interior”. Confronto acirrado, só decidido na disputa por pênaltis, que o Volta Redonda venceu por 3 a 2.

Imagem 2: Volta Redonda, campeão da Taça Guanabara 2005.
(Fonte: GE – internet)

Na Taça Rio (segunda fase do campeonato), a capital se impôs. Um Fla-Flu decidiu o campeão em partida única. Vitória do Fluminense por 4 a 1.

Os campeões da Taça Guanabara e da Taça Rio partiram para a grande decisão estadual, em duas partidas no Estádio do Maracanã. E foi emocionante.

O Fluminense começou vencendo a primeira partida por 2 a 0 e parecia que o Volta Redonda seria tranquilamente reduzido à sua condição de clube pequeno. Veio, então, a reação surpreendente. O time do interior marcou quatro gols e o Fluminense só conseguiu diminuir para 4 a 3 aos 43 minutos do segundo tempo. O carismático Túlio, que havia feito história no Botafogo, agora fazia das suas no Volta Redonda e provocava os rivais com frases marotas após a vitória.

Na segunda partida, com mais de 63.000 torcedores no estádio, o Volta Redonda precisava apenas do empate para ser campeão e melhorou ainda mais a sua situação ao marcar 1 a 0 no início do primeiro tempo. Desde 2003 o time não perdia por dois gols de diferença. Sua torcida vibrava e sentia que o tabu estava caindo. Era um momento histórico.

Eis a decepção: o Fluminense empatou o jogo no fim do primeiro tempo e virou o jogo com um gol de Marcão. Aos 47 minutos do segundo tempo, quando todos já se preparavam mentalmente para uma dramática disputa por pênaltis, o goleiro Lugão falhou e permitiu a cabeçada de Antônio Carlos, que marcou o terceiro gol tricolor. Repetindo: o Volta Redonda não perdia por dois gols de diferença desde 2003. Deixou acontecer justamente na partida que o colocaria na história do futebol carioca e fluminense.

O técnico do Volta Redonda, Dário Lourenço, reclamou com dureza do árbitro. Também achou péssimo que o zagueiro Schneider e o goleiro Lugão tenham chegado a um acerto contratual com o Fluminense antes da partida. Um acerto que virou notícia. “Isso abalou os jogadores”, declarou Dário. Os jogadores do Fluminense, por sua vez, desabafavam e faziam graça com Túlio, que tanto os havia provocado.

Para quem acredita que uma espécie de barreira psicológica abate os jogadores de times pequenos em grandes decisões, o caso do Volta Redonda em 2005 é exemplar.

Os campeonatos cariocas de 2002 e 2005 foram os únicos em que clubes do interior se sagraram vice-campeões.

O campeonato carioca ainda é o único estadual do Brasil que nunca teve, como campeão, um clube de fora da capital. Alguns dizem que quando esse tabu cair, aí sim, o campeonato carioca poderá ser extinto. Outros dizem que quando isso acontecer, aí teremos certeza: o campeonato jamais será extinto.

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É fracasso voltar jovem da Europa?  Nosso caminho é o sul

Por Jorge Santana.

Na temporada nacional do futebol brasileiro a bola ainda não rolou, mas já temos debates profundos e que movem paixões a partir do movimentado mercado da bola. O retorno do meia Gérson ao Flamengo e a chegada do uruguaio Luis Suaréz ao Grêmio, com milhares de torcedores na Arena Grêmio apontam que a temporada vindoura será  de emoção. Pelos menos é o que mostra até agora algumas contratações do mundo da bola. Veremos se os campeonatos nacionais serão disputados, quebrando a hegemonia protagonizada por Palmeiras e Flamengo nos últimos dois anos.

Em especial, o retorno de Gerson Santos da Silva, com então 25 anos para o Flamengo, após 1 ano e meio no Olympique de Marselha produziu uma série de análises e discussões  as quais  pretendo tratar aqui. Em geral, as opiniões dos comentaristas de futebol versaram que significava um “fracasso” a prematura volta do jovem volante para as canchas tupiniquins. O portal Placar estampou como manchete: “Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube”[1], evidenciando um suposto insucesso. Segundo este, a volta para cá era significado de que não deu certo na Europa ou não vingou no centro do futebol mundial. 

Aqui estou reduzindo um pouco as análises, pois alguns comentaristas defenderam também que o meia revelado pelo Fluminense Football Clube configura um excelente reforço para o rubro-negro carioca. Contudo, no que tange à sua carreira pessoal, o segundo retorno da Europa, em apenas 8 anos de carreira, seria um atestado de  fiasco. Futebol este que foi fundamental para o Flamengo conquistar a taça  Liberadores de 2019, os campeonatos brasileiros de 2019 e 2020 e os campeonatos cariocas  de 2020 e 2021, porém insuficiente no centro do futebol do mundo

Esses dois anos de  um futebol versátil, moderno e sólido levaram o meia a vestir a camisa da seleção brasileira e fizeram com que o técnico  Jorge Sampaoli pedisse a sua contratação para o time do Sul da França. Apesar de alguns apontarem como fracasso, o Coringa, como é chamado pela torcida do Flamengo, fez a sua melhor temporada na França, com 13 tentos marcados e 10 assistências. Após a saída do técnico argentino, o jogador acabou indo para o banco, após uma discussão com o novo professor. O que contribuiu para o seu retorno para o Ninho do Urubu. 

O que fomenta esse artigo é um complexo de vira-latas de nós, brasileiros.   Pois consideramos que o retorno de um jogador jovem da Europa é um atestado de fracasso, no velho continente. E fracassar lá  significa,  partir da premissa de que há uma linha evolutiva inconteste no futebol, em que todos os  bons jogadores têm as ligas europeias como destino final. E  para receber o  selo europeu só devem voltar para seus países natais a partir de  33 ou 34 anos, para encerrar de preferência no clube que os revelou na terra de Vera Cruz. Essa linha evolutiva estabelece que o jogador nasce na América do Sul, cresce e se desenvolve na Europa e volta aqui apenas para morrer. No caso morrer, como metáfora de aposentar como profissional do futebol.

Nessa linha evolutiva, o futebolista brasileiro só aprende ao chegar na Europa, a famosa “educação tática”, pois aqui praticamos um futebol da desordem, da informalidade e do jeitinho brasileiro indomável que urge ser catequizado. Parece-me um erro tal como o cometido por  historiadores e antropólogos no século passado. Quando estes concebiam que o português colonizava o índio, sem adquirir nenhum traço da cultura dos povos originários que viviam aqui. O conceito de aculturação estabelece que apenas o indígena adquiriu a cultura do conquistador Uma revisão  avançou para o conceito de transculturação, no encontro do europeu com os dois foram impactados. 

No poema do modernista  Oswald de Andrade, “ Erro de português” de 1925, o autor  argumenta que na chegada dos portugueses chovia, portanto, o europeu colocou a roupa no índio. Se fosse um dia de sol, o índio teria despido o português. Aqui completaria o poema de Andrade, adicionando que no dia seguinte fez um sol dos trópicos e o índio ensinou os lusitanos a tomar banho todo dia e a ficar nu. Portanto,  os jogadores brasileiros aprendem jogando na Europa, assim como o velho continente aprende com os brazucas. Não é uma via de mão única, ela é sempre relacional e influencia as duas culturas envolvidas em uma interação, não poderia ser diferente com o futebol.  Ronaldinho Gaúcho ensinou a eles como bater falta por baixo da barreira e eles ensinaram Vinicius Junior que atacante também tem de recompor a defesa.

Essa linha evolutiva estabelece a Europa como Norte, a evolução só pode ser atestada lá, pois aquele que não vai a Meca não pode ser consagrado, e quem volta cedo de Meca também, tal como o Coringa.  Na década de 1940, o artista uruguaio Joaquín Torres Garcia (1874-1949) produziu uma arte que hoje constitui símbolo de Nuestra América ou Abya Yala (nome da nação Kuna para nosso continente). A arte intitulada “ América Invertida”, de 1943,  é uma crítica de Garcia Torres à dependência artística dos latinos americanos da produção artística europeia. Na época, os artistas  do Sul tinham que ir para lá aprender, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e muitos outros fizeram essa  passagem pelo Norte. De maneira maestral, Garcia Torres desenhou um mapa da América do Sul de cabeça para baixo, dessa forma provocando e colocando o Sul no lugar do Norte. Apontando por meio da arte e do lúdico que nosso caminho é o Sul.

“América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.

A genialidade da arte  do uruguaio fez  com que a mesma torna-se um símbolo das lutas sul-americanas. Aproveitando essa arte me questiono por que precisamos do atestado europeu para ratificar o nosso talento no velho esporte bretão?  Quantas vezes, jornalistas não advogaram que Edmundo foi o melhor do mundo moralmente, em 1997. E só não foi eleito como tal pela FIFA por jogar no Brasil. Naquela temporada, o Animal marcou no brasileiro 29 vezes, em 42 partidas, sendo 42% dos gols do Vasco, que foi campeão do Brasileirão. 

 E Romário, que como melhor jogador do mundo, campeão do mundo, campeão espanhol retornou ao Brasil, em 1995. Ele retornou fracassado  ou sua escolha foi permeada por outros desejos que não só estar no centro do futebol.  Por último, exemplo, o lateral Hermano.  Juan Pablo Sorín. Quando uma jovem promessa do River Plate foi jogar na Velha Senhora (Juventus), após dois anos voltou para o time que o revelou com apenas 26 anos (apenas um ano mais velho que Gerson).  Pouco tempo depois, veio para o Cruzeiro e simplesmente jogou muita bola no time celeste mineiro, que conquistou a tríplice coroa em 2003. O retorno de Sorín foi  um insucesso?

 Não serei aqui idealista em defender que o futebol brasileiro ou sul-americano é melhor do que o europeu. Lá estão as melhores ligas, os melhores jogadores e os melhores salários. Essa é a realidade. Contudo, não se pode atestar que para ser um grande jogador é preciso estar na Europa e, muito menos, quem retorna na casa dos 20 anos é um fracassado. Há mais coisas entre essa simplória definição evolutiva do futebol do que a Europa como  uma única régua para atestar qualidade ou sucesso. O fato de Gérson retornar, sendo a contratação mais cara do nosso futebol, demonstra que não foi um insucesso. 

 Aqui busco dizer que está longe, mas que todos nós sonhamos e desejamos o caminho do Sul. Chamo de caminho do Sul o que vos falo é uma liga brasileira forte, moderna, organizada e sólida. Quando chegarmos nesse caminho do Sul, nossos clubes gozarão de viabilidade econômica para manter nossos jovens craques em terras tupiniquins. E será que quando chegarmos nesse Eldorado do futebol brasileiro e quiçá sul-americano continuaremos a dizer que se o jogador não for consagrado na Europa é um fracasso?  Essa resposta só o tempo irá dizer.  Pensar em um futebol brasileiro forte e competitivo financeiramente e desportivamente é ter um futebol que passaremos a ser o centro e que talvez essa discussão seja coisa do passado. Tomemos o caminho do Sul assim como  nos apontou há 80 anos, o saudoso Garcia Torres. 

Jorge Santana é professor de História, doutorando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), autor do romance “Desculpa, meu ídolo Barbosa” e torcedor do Fluminense.

Referências

Redação. Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube. Placar, Brasil 5 jan. de 2023.

Imagem é uma reprodução da obra “América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.

Disponível em: < https://www.socialistamorena.com.br/nosso-norte-e-o-sul/>.  Acesso em 18 jan. de 2023.


[1] Disponível em: < https://placar.abril.com.br/placar/apos-fracasso-na-franca-gerson-retorna-ao-fla-como-2o-mais-caro-do-clube/> Acesso em 18 jan. de 2023.

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Bem-Vinda, Democracia

Em tempos nos quais os ventos da democracia voltam a soprar forte sobre as terras tupiniquins (mesmo ainda com tantos insanos insistindo em lutar contra o vento), nada mais apropriado do que falarmos sobre a Copa São Paulo de Juniores, carinhosamente tratada por Copinha, o mais democrático de todos os campeonatos de futebol disputados no Brasil.

O torneio vem sendo realizado desde 1969 e chega, em 2023, à sua edição de número 53. Só não foi disputado em 1987, por conta da não liberação de verbas do então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, e em 2021, devido à pandemia da Covid. Este ano, 128 clubes participam da competição: representantes de 25 estados e do Distrito Federal. Infelizmente a equipe do Amapá, o Santana Esporte Clube, não conseguiu arrecadar dinheiro suficiente para enviar seus jogadores para a disputa e acabou sendo substituído por um time do interior do estado de São Paulo.

A competição já contou, em algumas de suas edições com clubes estrangeiros e não apenas “vizinhos” latino-americanos como Argentina, Uruguai, Paraguai, México ou Haiti. Teve gente que veio de bem mais longe, como clubes da Arábia Saudita, Alemanha, China e Japão (com quatro times diferentes).

Santo André (SP), campeão da Copinha de 2003.
Fonte: Blog do Bellotti – Esporte Clube Santo André

Tabelinha complicada

Democracia e futebol, em nosso país, nunca se deram muito bem em campo. Cartolas e jogadores na maioria das vezes se encontram em lados opostos, numa tacanha e tradicional relação entre patrões e empregados: uns mandam e outros obedecem, ou, pelo menos, fingem que obedecem. E quando acontece, esporadicamente algum tipo de “bola dividida”, geralmente os dirigentes levam a melhor.

No Brasil, as poucas manifestações conjuntas de jogadores só acontecem quando o “bolso pesa”, ou seja, em situações de não pagamento de salários ou direitos de imagem. Não há, em mais de um século do esporte no país, registros de qualquer manifestação coletiva relevante em defesa da classe profissional.

Uma pesquisa divulgada, em 2021, com dados da CBF, Statista e Ernst & Young mostrou que mais da metade dos jogadores profissionais (cerca de 55%) ganham apenas um salário mínimo por mês, mas isso não mobiliza atletas que poderiam usar sua visibilidade e sua voz para questionar tal discrepância.

No fim da carreira, quando atuava pelo Corinthians, o “fenômeno” Ronaldo Nazário chegou a dar algumas entrevistas reivindicando direitos trabalhistas e aposentadoria especial para jogadores de futebol. Não deu em nada, claro, mas fica a pergunta: hoje, como proprietário de clubes no Brasil e na Espanha, será que ele ainda pensa da mesma forma.

Se na questão trabalhista a união dos jogadores já é escassa, imagine quando o tema de possíveis mobilizações transcende as quatro linhas. O exemplo mais representativo do qual tenho notícias, até hoje, foi a chamada Democracia Corinthiana, movimento surgido no início dos anos 1980, nos estertores da Ditadura Militar.

 Tendo à frente jogadores como Sócrates, Casagrande e Wladimir, o elenco do alvinegro paulista não apenas reivindicava direitos para a classe, como se manifestava politicamente pela volta da democracia no país. Andorinhas que não conseguiram fazer verão.

A democracia em campo com os jogadores do Corinthians.
Fonte: Jornal de Uberaba.

Protestos contra o racismo, a homofobia e até mesmo contra a realização de partidas ainda durante um período mais crítico da Pandemia não devem ser vistos, no meu entender, como uma manifestação conjunta da classe, até porque, quase todos tiveram a anuência dos clubes. Eram demandas autorizadas pelos patrões.

Bola democrática

Mas coloquemos a bola no centro do gramado para analisarmos o poder democrático da Copinha. Mais de 3 mil atletas dos quatro cantos do país têm, durante a competição, a chance de realizar alguns de seus sonhos, dos mais modestos aos mais ambiciosos.

Para muitos desses meninos só a oportunidade de viajarem para outro estado já é uma grande realização, mas, é claro que a maioria tem aspirações maiores: serem vistos, terem seu talento reconhecido, chamarem a atenção de outros clubes ou, ao menos, de algum “olheiro”. Se a partida for contra um “time grande”, ainda melhor, porque a chance de ser transmitida para todo país deixa a “vitrine” bem mais ampla. Uma bela jogada ou, por desígnios do destino, um gol, podem ser a senha para alcançar (desculpem o termo “modinha”) um outro patamar.

Em um país com tanta desigualdade social como o nosso, jogar bola e bem, sempre é visto como possibilidade, ainda que remota, de ascensão social. Exemplos não faltam. Muitos dos multimilionários jogadores brasileiros espalhados pelas maiores ligas de todo o mundo têm histórias semelhantes à de Vinícius Júnior, atacante do Real Madrid e da Seleção, que começou jogando em uma escolinha em São Gonçalo, município humilde do Grande Rio e que alcançou o estrelato, sendo, hoje o jogador brasileiro mais valorizado do planeta.

A ambição, justificada, dessas famílias impõe uma pressão danada sobre esses jovens. Chega a ser recorrente a resposta que quase todos meninos dão quando questionados sobre suas ambições profissionais. Invariavelmente a primeira resposta é comprar uma casa para a família ou proporcionar uma vida mais tranquila para os pais. Dependendo do contrato, essas preocupações chegam a ser tão singelas como a resposta daquele sujeito que, certa vez, em uma reportagem sobre um prêmio acumulado da Megasena, disse que consertaria a bicicleta caso acertasse as seis dezenas.

Imaginem, por exemplo, os valores (não divulgados) do acerto entre Palmeiras e Real Madrid pela venda do passe do menino Endrick, de apenas 16 anos. O garoto, que começou a jogar pelo alviverde aos 10 anos de idade, fez 165 gols em 169 jogos disputados pelas categorias de base. Na Copinha de 2022 foram 5 gols em cinco jogos; o mesmo aproveitamento de 100% se repetiu na Seleção sub-17. Resultado: com apenas 7 partidas disputadas pelo time principal, já está negociado, embora só vá para a Espanha em 2024, quando completar 18 anos.

Endrick o novo espelho de cada menino bom de bola. Fonte: Globo Esporte.

Nem todos serão Endricks. Melhor dizendo, nem todos conseguirão oportunidades e, muito provavelmente, daqui a alguns anos o mundo da bola será algum uma lembrança distante, presente apenas em fotografias. Aqueles que conseguirem seguir na profissão terão um longo caminho pela frente seja na terra natal, em outros estados ou até mesmo em país sobre o qual jamais ouviram falar, com uma língua estranha e muito longe da família.

Para esses jovens que entram em campo nos jogos da Copinha, o futuro é uma incógnita e todo o labirinto que existe entre eles e uma carreira nem passa pela cabeça de quem deixou de ser criança há pouco e vê, sobre seus ombros, o peso de ser a tábua de salvação para uma família inteira. O sonho pode ser Munique ou Manchester, a realidade, contudo, pode não passar de Arapiraca ou Marabá.

Que os tais ventos democráticos façam com que o país volte a um rumo onde a educação pública de qualidade seja uma realidade, ainda que a médio ou longo prazo. Só assim rapazes como esses que disputam a Copinha não tenham no futebol sua única possibilidade de vingar na vida de forma digna.

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Pelé, o Rei

O que tinha Pelé para ser chamado de Rei do Futebol? Perfeição. Essa é a palavra que melhor o define. Pelé era completo em todos os fundamentos. Seu jeito apolíneo de jogar futebol impressionou o mundo em 1958, quando ele tinha 17 anos. E o corou definitivamente como o melhor de todos os tempos, após o milésimo gol em 1969, e na conquista do tricampeonato, em 1970, com 29 anos de idade.

Fonte: Lance!

Durante muito tempo sua “realeza’ era inquestionável, uma unanimidade. Mesmo na Argentina. Muitos não sabem, mas Pelé foi colunista do Jornal Clarín nas Copas de 1978, 1982, 1986 e 1990. Sendo que nessa última, ele foi anunciado, em uma foto cumprimentando Maradona, como o maior da história na apaixonante atividade de se jogar futebol.

Nas Copas de 1982 e 1986, os jornais brasileiros e argentinos debatiam sobre Zico e Maradona, para saber quem era o melhor. Pelé estava fora dessa discussão. A partir dos anos 2000, por conta de uma votação na internet promovida pela FIFA, criou-se o debate entre Pelé e Maradona sobre o maior da história.

Uma heresia comparar jogadores de épocas distintas. Mas isso faz parte do esporte. Ainda assim, jornais do mundo inteiro, como franceses e alemães, por exemplo, noticiaram a morte do Rei como o melhor da história.

Quais os atributos perfeitos de Pelé para ser o Rei? Todos. Ou melhor, todos aqueles que imaginamos ser possíveis na atividade futebolística. Cabeceio, passes, dribles, gols, arrancadas, tiro livre etc. Em tudo, parecia que a figura de Apolo, o Deus da perfeição, estava presente.

Idolatrado mundialmente, Pelé criou um repertório de jogadas e gols que levaram a conquistas memoráveis. E surpreendentemente até de gols antológicos que, infelizmente, não aconteceram, mas que, ainda assim e talvez por isso mesmo, se tornaram célebres, inesquecíveis, como o contra o Uruguai, na Copa de 1970.

Pelé, um homem preto, atleta extraordinário, tema de artigos acadêmicos, dissertações de mestrado e teses de doutorado. Simplesmente o Rei do futebol. E isso em um país e em uma época em que casos de racismo eram frequentes e que, ainda hoje, se tornam evidentes.

Pelé passou um tempo de sua vida tendo que se explicar e se justificar de acusações de que ele poderia ter feito mais para o movimento negro, por exemplo. Alguns o criticaram por isso. Inclusive, se tornou famosa a frase de que Pelé calado seria um poeta. Mas Pelé em campo era pura poesia.

O fato é que sua simples presença em lugares onde pretos não costumam frequentar e que são barrados na entrada, era de uma importância ímpar e orgulho de muitos. E mesmo sendo alvo de críticas dentro de seu país, sua comparação com qualquer outro atleta de futebol era considerada uma blasfêmia para a maioria dos brasileiros. Pelé, atleta, era sagrado. E, portanto, intocável, incomparável.

Eu tive o privilégio de ver Pelé jogar quando eu era criança. Foi o único atleta a marcar gol contra o meu amado Flamengo e a torcida aplaudir (eu inclusive). Pelé estava além e acima das rivalidades. Ídolo mundial, herói do Santos, se tornou ídolo e herói de todos os brasileiros. Eternamente.

Obrigado, Pelé.

Artigo publicado no jornal “O Globo”: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/por-que-pele-era-o-rei-do-futebol.ghtml

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Roberto Dinamite e a explosão de emoções

Por Antonio Soares

Neste domingo, fui surpreendido com a morte de mais um personagem importante para minha formação no campo do esporte e da cultura. Já tínhamos recentemente perdido o Tremendão, a linda e afinadíssima Gal e outras pessoas ilustres, cujo desaparecimento torna o mundo menor. Pelé morreu e causou comoção mundial. Como diz meu amigo João, Pelé fez mais coisas dentro e fora de campo do que ele mesmo pudesse imaginar, apesar de suas caneladas na vida privada comum a qualquer mortal. Roberto nos deixou há pouco, depois de um jogo difícil travado contra um câncer de intestino. Ele morre aos 68 anos, deixando uma legião de fãs de minha geração, admirados com aquele futebol que temos na memória dos domingos de clássico no Maracanã ou em São Januário. 

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Fonte: Elencos

Carlos Roberto de Oliveira, conhecido como Roberto Dinamite, nasceu em 13 de abril de 1954, no município de Duque de Caxias, Baixada Fluminense, Rio de Janeiro. Foi exímio goleador e é o maior ídolo, em todos os tempos, da torcida vascaína. 

Como vascaíno de meia-tigela atualmente, não posso esquecer as alegrias que Roberto me deu durante minha infância, adolescência e início da vida adulta. Sou neto de portugueses de Trás-os-Montes, então não poderia deixar de ser Vasco, no Rio de Janeiro, e Porto, em Portugal. Cansei de assisti-lo marcar gols de falta ou nos minutos finais, assistindo aos jogos do Vasco a olho nu, sem replays ou VAR. Não me esqueço das partidas finais do Campeonato Brasileiro de 1974, lá estava eu nos dois jogos finais no Maracanã. O Vasco tinha a vantagem do empate na semifinal contra o Internacional, para enfrentar o Cruzeiro na decisão; Roberto marcou o primeiro gol e Zanata o segundo, mas o jogo termina 2 a 2. Na final contra o Cruzeiro, o Vasco ganhou de forma épica por 2 a 1, com gols de Ademir e Jorginho pelo Vasco, com Nelinho descontando com um golaço. Roberto foi o artilheiro do campeonato, com 16 gols. Ao final, houve a troca de camisa com Dirceu Lopes, movimento feito de acordo com o manual do fair play da época, tal como deve ser uma passagem de faixa presidencial. O jogo foi apitado pelo icônico Armando Marques.

Eu, um garoto, frequentava o Vasco e lá praticava judô. Observava, a cada tarde, Roberto treinando solitariamente a cobrança de faltas, com uma barreira de madeira, até escurecer. Por isso, embora existam gênios em qualquer área, os que conheço foram forjados com treino e esforço. Roberto, Zico e outros eram ídolos de seus clubes e sabiam cumprir bem o papel que suas comunidades imaginadas, suas “nações”, lhes conferiam.  Eles não recusavam autógrafos, fotografias e afagos aos seus torcedores.

Um dos mais belos gols de Roberto e da história do futebol mundial se deu num Botafogo e Vasco, em 1976. Roberto constrói a jogada, recebe a bola no alto num passe em inversão de Zanata, mata no peito, dá um chapéu em Osmar e de voleio arremata contra Wendell. Esse gol é inesquecível.

O golaço de Roberto Dinamite diante do Botafogo, em partida válida pelo Campeonato Carioca de 1976.

A última vez que tive contato com Roberto foi num conturbado voo entre Belo Horizonte e Rio. O Vasco tinha acabado de jogar contra o Atlético Mineiro e, para infelicidade do Dinamite, havia sido derrotado. Estava sentado quando vi Roberto, no alto dos seus 1,86 m, entrar no avião. Para minha surpresa, ele se sentou ao meu lado. O Vasco atravessava uma difícil campanha e ele era o presidente do clube. Além das amenidades que conversamos sobre minha memória vascaína, falamos sobre a política carioca, sobre a qual tínhamos algumas divergências que não podiam sobressair diante do meu ídolo de infância. Como o voo havia sido alterado, nosso pouso seria no Galeão, não mais no Santos Dumont, como previsto. Roberto reclamou que tinha seu carro no aeroporto da Zona Sul. Como minha mulher foi me buscar no Galeão, ofereci uma carona que ele prontamente aceitou. Assim, pude ainda desfrutar um pouco mais da companhia daquele que fez minha infância mais feliz.