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O novo realismo de Ted Lasso

O fenômeno dos haters nas redes sociais me fazem lembrar do futebol, afinal desde muito as arquibancadas e, até mesmo, as narrativas da imprensa são uma espécie de escola de formação de gente que destila opiniões raivosas, sem o mínimo pudor. É certo que esse sentimento é parte das nossas vidas e, também, é parte do futebol, afinal, em um espetáculo no qual as afetividades são constantemente acionadas, não podíamos imaginar que apenas o discurso do amor pudesse servir de alimento para o universo futebolístico. Há muito espaço para o seu reverso. A socióloga Janet Lever não deixou de reconhecer que o futebol é um poderoso produtor de símbolos compartilhados e, por isso, os “pontos focais de hostilidade também unem as pessoas” (1983, p. 157).

Olhando à primeira vista, o futebol poderia corroborar as constantes visões negativas acerca da humanidade sendo referencial as ideias que o filósofo Thomas Hobbes defendeu em seu Leviatã, e que partiam da hipótese de que o ser humano é naturalmente inclinado para o mal. Devido a essa característica, para Hobbes faz-se necessária a intervenção de leis rígidas para que o ser humano consiga sair de seu estado natural e adentre no estado civil.

De acordo com Rutger Bregman (2021), essa hipótese poderia ser denominada de “teoria do verniz”[1] o que implica dizer que as leis socialmente compartilhadas e estipuladas por alguma instância de poder – como por exemplo o Estado – serviriam como um mecanismo de controle da nossa tendência à maldade, à traição e diversas atitudes condenáveis. Mas esses mecanismos de contenção formariam uma camada de verniz fina que com certa facilidade pode ser descascada, trazendo à cena nossa “verdadeira natureza”.

O ambiente futebolístico é um daqueles em que essa camada de verniz se mostra por vezes frágil. Assim, como outros ambientes de trabalho, o mundo do futebol espetáculo está longe de ser um lugar acolhedor. A competitividade é grande e os interesses financeiros pautam grande parte das ações. A vaidade é imensa e as emoções são exaltadas, o que, frequentemente, deriva em variadas manifestações de violência. Em quais outros ambientes de trabalho, os profissionais são alvo de agressões verbais constantes no momento mesmo em que desempenham suas funções? E tudo isso ocorre de modo explícito e, muitas vezes, legitimado, por seus próprios colegas. E legitimado por nós torcedores.

No futebol, podemos ouvir afirmativas do tipo “a arbitragem roubou o jogo”, “tal jogador é limitado e não tem condições de vestir tal camisa”, “esse técnico é um burro” ou “esse técnico precisa ser demitido”. Frases desse tipo são ditas pela torcida, mas também por jornalistas que expressam sua opinião em veículos de comunicação massivos.  E isso tudo é feito tendo como motivação, muitas vezes, emoções de momento que perdem a força com o tempo, mas podem deixar de herança estragos em carreiras ou mesmo na vida psíquica de alguém.

Esse ambiente hostil poderia ser diferente?

A série Ted Lasso[2] nos faz refletir sobre essa possibilidade.

Fonte: Beyond Games. biz

Nos últimos cinco anos, são diversas as produções seriadas – documentais ou ficcionais – que têm o esporte como tema. Nessa listagem grande e variada, Ted Lasso se destaca pelo humor simples e porque de modo despretensioso nos mostra que a convivência humana pode ser boa, mesmo em meio a um mundo tão competitivo no qual somos estimulados a desconfiar do outro, a menosprezá-lo e, frequentemente, tratá-lo como potencial inimigo.

Ted Lasso nos faz pensar sobre a possibilidade de um “novo realismo”, proposta trazida por Rutger Bregman em seu instigante livro Humanidade. Uma história otimista do homem.

Quem já não foi taxado de romântico ou mesmo iludido pelo simples fato de ter demonstrado algum tipo de fé na humanidade? Quantas vezes já não ouvimos – ou mesmo falamos – que na vida é preciso ter sempre cuidado, afinal somos cercados por pessoas que estão prontas para nos apunhalarem pelas costas.  Geralmente essas afirmações são proferidas com profundo orgulho de quem se considera não uma pessoa pessimista, mas sim realista.

É absolutamente interessante o sentido que a palavra realismo adquiriu em nosso cotidiano. Ser realista significa basicamente compreender a natureza humana como essencialmente ruim. Bregman se pergunta: Por que não pensar o contrário? Por que ser realista implica olhar o mundo e as pessoas a partir de um viés negativo? O que chamamos de realismo, portanto, é uma interpretação possível, enviesada, e que está longe de corresponder a alguma verdade a respeito da nossa existência.

É verdade que não faltam exemplos do poder destrutivo que carregamos em nós mesmos. Guerras, violências cotidianas, a fome, a escravidão enfim, o “o horror, o horror” como gritou o personagem Kurts de Coração das trevas de Conrad, é uma das marca a breve história da espécie humana na terra.

Mas poderíamos listar evidências da nossa capacidade de ajudar quem precisa, de promovermos lutas pelo bem-estar coletivo, na possibilidade de sentirmos alegria no simples ato de olhar o dia nascendo e na nossa capacidade de inventarmos modos de estamos juntos.

O futebol, aliás, é uma dessas invenções

Rutger Bregman propõe que deveríamos construir um “novo realismo”, a partir de uma visão mais otimista sobre a humanidade. Exemplos não faltariam – e o autor elenca alguns – bastaria uma mudança de perspectiva em relação a narrativa construída acerca da nossa história.

O seriado Ted Lasso nos faz imaginar a viabilidade desse novo realismo.

Ted Lasso: um olhar otimista, mas não ingênuo

O personagem que dá nome a série nasceu, em 2013, de um comercial feito para promover a transmissão do campeonato inglês pela emissora americana NBC. Na campanha, o ator Jason Sudeikis interpreta um técnico de futebol americano que vai treinar o Richmond FC., um time da Premier League. O objetivo era brincar com características do futebol que provocam estranhamento no público americano como, por exemplo, o fato de o jogo terminar sem necessariamente ter um vencedor.

Em 2020, Ted Lasso – também interpretado por Jason Sudeikis – se transformou em protagonista de seriado homônimo. O mote da história é o mesmo da propaganda, o que representa um desafio e tanto, afinal não é nada fácil justificar a contratação de um técnico de futebol americano por um clube que disputa a Premier League, uma das mais importantes competições daquele futebol inventado pelos ingleses. 

A solução narrativa encontrada soa como um tanto exagerada e um tanto melodramática ao recorrer a um tópos muito comum da ficção: a vingança. Mas nada é tão simples assim quando se trata da série Ted Lasso

Ted Lasso chega a Premiere League para treinar o modesto Richmond. Sua contratação foi parte dos planos da personagem Rebecca Welton que se tornou proprietária do clube como resultado da divisão de bens após um processo de divórcio. Por ter sido abandonada pelo marido que a troca por uma mulher mais jovem e publicamente sentir-se humilhada, Rebecca resolve vingar-se do ex-marido – e ex-dono do Richmond -, destruindo aquilo que ele mais amava. Para isso chama Ted Lasso, um treinador de futebol americano que havia ficado famoso após protagonizar a comemoração de uma vitória de seu time, com uma engraçada dança que viralizou na internet.

Você poderia pensar que dificilmente esse tipo de contratação seria possível, afinal de contas o futebol é um negócio e tratá-lo a partir de motivações pessoais, somente traria prejuízos financeiros. Mas prejuízo para quem? Rebecca Welton é milionária e sua fortuna não seria comprometida caso o Richmond, por exemplo, deixasse de existir. O mesmo poderíamos pensar em relação aos irmãos Avram e Joel Glazer que se tornaram proprietários do Manchester United ao herdarem o clube do pai, Malcom Glazer, falecido em 2014. A família Glazer deixaria de ser bilionária caso o Manchester United fechasse as portas?

O enredo de Ted Lasso, portanto, está longe de parecer impossível e até mesmo soa como uma provocação ao contexto esportivo contemporâneo. Afinal, a partir do momento em que um clube de futebol se torna propriedade de uma pessoa, são grandes os riscos dele ficar à mercê dos mandos e desmandos de seu dono ou sua dona. Os movimentos de resistência torcedora ao redor do mundo dão mostras do quanto torcedores sabem desse risco.

Sendo assim, com plenos poderes, Rebecca poderia fazer o que bem entendesse do Richmond, o que inclui insistir em seu plano de vingança. Mas Ted Lasso não um é seriado que reitera lugares comuns e nem os estereótipos da mulher abandonada e ressentida. Rebeca com o tempo se revela uma personagem complexa que vai ocupando seu espaço de protagonismo na série e no clube Richmond.

As mulheres mandam, mas quem joga são os homens e alguns chamam mais atenção fora do que dentro de campo como é o caso de Jamie Tartt. Habilidoso, vaidoso, arrogante, mulherengo e indisciplinado, o personagem é uma alusão – pouco disfarçada – a Cristiano Ronaldo e tantos outros jogadores-celebridade, figuras tão comuns no cenário atual do futebol. Como contraponto a Jamie, há o capitão Roy Kent. Dedicado aos treinamentos e aos jogos, Roy carrega um semblante austero e um temperamento forte, sendo temido e ao mesmo tempo respeitado pelos colegas. Mas esse protótipo de macheza frequenta um fã clube de novelas às escondidas, o que o ajuda a lidar com a necessidade de dar fim à carreira de jogador devido a problemas físicos.

E Ted Lasso?

Dono de uma simpatia que às vezes o torna inconveniente, o técnico é um homem atrapalhado, que não entende absolutamente nada de futebol inglês e que, antes de tudo, opta por tentar viver em harmonia com as pessoas, mesmo tendo motivos para agir de modo oposto. Quando Ted chega à Inglaterra é recebido com severas críticas da imprensa e xingamentos da torcida. Os jogadores o tratam com desprezo ou deboche, fazendo dele um motivo constante de piada. Mas para espanto de todos, mesmo sendo maltratado Ted Lasso não revida com a mesma moeda. E tão pouco oferece a outra face. O treinador tem plena consciência do tipo de tratamento que recebe, mas com o tempo sua relação com os profissionais do clube, com os atletas vai se modificando e transformando-se em amizade, como é o caso de Rebeca.

Pode parecer que estamos caminhando para mais uma história melodramática de redenção em que a mensagem principal a ser passada aos espectadores é a de que a vida é bela e que os conflitos, preconceitos e várias mazelas da vida são vencidos em prol do amor e da amizade. Mas não é bem assim que a série conduz sua narrativa. Embora o clube torne seu ambiente menos hostil, em grande medida, por causa da interferência da figura de Ted Lasso, o Richmond luta a duras penas para se manter na primeira divisão inglesa. As derrotas continuam a gerar preocupação e irritação na torcida, assim como continuam constantes os desafios de integrar, em um mesmo grupo, jogadores com histórias de vida e interesses tão díspares. Jogadores muitos dos quais vindos de fora da Inglaterra e alvos constantes de preconceito.


A série não oferece uma varinha de condão mágica capaz de mudar a realidade e nos fazer sentir algum tipo de catarse redentora ao final de cada episódio. Camaradagem não é um atributo que possamos entender como algo que seja natural ao personagem Ted Lasso. O comportamento de Ted é derivado de uma luta constante consigo mesmo, uma luta metaforizada no trabalho de preparar biscoitos para oferecer de cortesia aos colegas todas as manhãs.

Em Ted Lasso é evidente que o mundo está longe de ser perfeito, mas também está longe de ser uma ruína. Como já foi dito, o seriado Ted Lasso nos faz ver a viabilidade daquele “novo realismo” proposto por Rutger Bregman. E nesse sentido, não importa tanto descobrir se os seres humanos são essencialmente bons ou ruins.

Ted Lasso não nos dá essa resposta. A série apenas demonstra que é absolutamente possível construirmos formas de vidas comprometidas com a empatia. Esse compromisso não nos livrará da raiva ou das dores trazidas pela perda de um ente querido ou pela derrota de nossos clubes de coração. Esse compromisso não nos livrará do enfrentamento diário com nossos medos e traumas. Mas pode nos oferecer a oportunidade de entender que agir com empatia, solidariedade e optar pela alegria da coletividade também são ações absolutamente reais, verificáveis ao nosso redor e não somente ilusões.

Fonte da imagem: O Globo.

Talvez nesse aspecto resida parte dos motivos do sucesso de Ted Lasso junto ao público. Lançado na época da pandemia mundial de Covid, a série se transformou em um sucesso de público e de crítica especializada, chegando a ganhar o  Emmy, em 2021 e 2022, de melhor série de comédia.

Em sites especializados e em resenhas críticas publicadas em jornais é comum lermos que uma das justificativas para o êxito de Ted Lasso é que a série nos trouxe leveza e humor em um momento tão delicado como foi o período pandêmico. O “novo realismo” de Ted Lasso fez sucesso.

Em sua terceira temporada, já lançada na metade do mês de março de 2023, a perspectiva positiva sobre a humanidade será colocada à prova, afinal a tomar pelo fim da 2ª temporada, estará em campo e fora dele, a inveja, a cobiça e a ingratidão.

Ted Lasso é uma série que nos faz refletir sobre profundas questões da nossa vida e o faz tendo o futebol como cenário e metáfora das nossas derrotas e vitórias diárias, sabendo sempre que amanhã o jogo continua.

Referências

BREGMAN, Rutger. Humanidade. Uma história otimista do homem. São Paulo: Planeta, 2021

LEVER, Janet. A loucura do futebol. Trad. A. B. Pinheiro de Lemos. Rio de Janeiro: Record, 1983.


[1] Bregman afirma que a “teoria do verniz” foi assim denominada pelo biólogo holandês Frans de Waal (p.21)

[2] Ted Lasso é uma série estadunidense original da Apple TV, criada em 2020 por Bill Lawrence e Jason Sudeikis.

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Um grande evento de Boxe amador na Cidade Partida

No último dia 11 de março foi realizado no emblemático e luxuoso Hotel Sheraton na Avenida Niemeyer mais um evento de boxe amador realizado pela ABP (Associação Brasileira de Pugilismo), que contou com a presença de atletas de diferentes Academias da cidade do Rio de Janeiro em um ambiente amistoso e familiar, entretanto, extremamente competitivo e cativante.

O boxe, apesar de ser um dos esportes modernos mais tradicionais e antigos da História, não se tornou ao longo do século XX em uma modalidade extremamente popular no Brasil, como alguns esportes coletivos: futebol, voleibol, basquetebol, etc. Além disso, não possui a mesma visibilidade, investimento público ou privado, espaço midiático que possui em outros países do continente americano como Estados Unidos, México, Cuba, Argentina, Colômbia, etc.

Meu interesse pessoal na modalidade foi retomado a partir da participação em um evento acadêmico sobre o esporte na cidade colombiana de Cartagena, em 2014. Na ocasião, fui convidado pelo companheiro colombiano David Quitían, que foi orientado pela saudosa Simone Guedes, a dar uma palestra intitulada “El boxeo en el país del fútbol. Quando eu era jovem,  adorava acompanhar as lutas de grandes lendas como Mike Tyson, Julio César Chavez, George Foreman, Evander Holyfield e aqui no Brasil acompanhava no Show do Esporte, da rede Bandeirante, as lutas do polêmico e, talvez injustiçado, Adílson Rodrigues “Maguila”.

Por um longo tempo, por diversas questões, acabei deixando de acompanhar o nobre esporte. O retorno de um interesse antigo e a necessidade de praticar uma nova atividade física além da natação, e de sociabilidade, me levaram, a partir de 2017, justamente à tradicional  Academia Radar onde se localizava a Federação Carioca de Boxe, que deu origem à ABP, e onde encontrei um ótimo ambiente para uma prática esportiva e de lazer mesmo já estando com mais de quarenta anos.

O presidente da ABP Alessandro Leite foi boxeador amador, é professor de boxe na rede estadual Faetec e, além de instrutor e técnico, procura promover eventos em diferentes espaços públicos e privados da cidade do Rio de janeiro como já ocorreu, por exemplo, na praia de Copacabana três vezes, em outros hotéis luxuosos e recentemente no Hotel Sheraton em São Conrado, além de tradicionais Academias na cidade. Atualmente outros eventos estão acontecendo a nível nacional em função de parcerias estabelecidas pela ABP com outras associações ou academias, sendo atualmente 32 vinculadas.

Alessandro Leite – Presidente da ABP (Associação Brasileira de Pugilismo).
Fonte: Fotógrafa Marina Torres. 

A promoção de eventos de boxe amador pela ABP ajuda a popularizar um esporte que vem crescendo no país nos últimos anos, tanto no número de medalhistas olímpicos, quanto nos atletas brasileiros que se profissionalizaram, adotando, entretanto, um caráter social de inserção e de oportunidades para muitos jovens em uma atividade esportiva clássica.

Foram dez lutas envolvendo a esperança de uma carreira esportiva para 20 atletas que disputaram a Copa Eduardo Cardoso, ex-boxeador. Importante destacar que todos os eventos organizados pela ABP são batizados homenageando ex-atletas que tiveram destaque sobretudo no boxe amador.

A maior parte das lutas foram emocionantes e equilibradas, mas podemos destacar diversos momentos como a vitória no seu primeiro desafio do atleta Benjamim Bernardo, do Chocolate Team, na categoria até 69 kg, o incrível combate entre Mauro Marques também (Chocolate Team) x Pedro Nobre (Spartan), que terminou empatado em pontos e teve que ser decidido extraordinariamente pelos juízes levantando as mãos individualmente, luta que foi unanimemente considerada a melhor da noite, além de  um incrível nocaute do atleta Samuel Cavalcante (Spartan) em Alfredo Alves (No Fake Boxe), na penúltima luta entre pesos pesados.

Entretanto, o momento mais marcante para mim foi a vitória do meu ex-aluno do município Lucas Diniz, da Academia Nova União, na categoria até 75 kg contra Ramyro Rodrigues (GB Team).

Carlos Balduíno (Árbitro e Ex-boxeador), competidores: Lucas Diniz, Mauro Marques e Pedro Nobre com sua simpática filha recebendo o prêmio de melhor luta. Fonte: Fotógrafa Marina Torres. 

Lucas tinha sido meu aluno no ensino fundamental na Escola Roma, em Copacabana, antes da Pandemia. Recordo que era um garoto bem bagunceiro, extremamente indisciplinado, desinteressado com os estudos, mas, pelo menos comigo, era pacífico e sabia ouvir. Estava começando a praticar boxe e eu estava em uma fase bem assíduo e empolgado com os treinos na Associação, então passamos a ter um elemento de identificação que possibilitou que ele, metaforicamente, abrisse a guarda e melhorasse seu comportamento na minha aula.

Quando o encontrei no salão de eventos do Sheraton e ele me disse que ia lutar, seria seu sexto combate, que o boxe tinha ajudado ele a se disciplinar e ter mais foco na vida, que tinha completado o ensino médio e pretendia fazer faculdade de Educação Física, e que se desculpava pelo comportamento na escola. Além disso tudo me falou com orgulho que atualmente sobrevive do esporte inclusive dando aulas para um projeto comunitário da Favela dos Tabajaras, fato que me deixou extremamente feliz com mais uma lição de vida dada pelo esporte.

Lucas venceu a sua luta, permanece sonhando com uma carreira profissional, mas com o pé nos chãos da difícil batalha de sobreviver. Teve a sorte do seu tio, o ex-lutador Giovanni Diniz, e sua família terem lhe apoiado, e a humildade e competência de lutar pelos seus objetivos.

 E nessa noite que ainda foi sorteado com uma estada em uma Pousada em Cabo Frio, saiu com o mesmo sorriso inocente de uma criança que recebeu um presente inesperado, assim como eu que me emocionei com sua vitória por pontos sobre o adversário, e sua conquista maior que foi proporcionada pelo esporte, um caminho a seguir.

Assim sendo a importância daqueles que organizam e estimulam o desenvolvimento e eventos dos esportes amadores como a ABP, lutando por patrocínios, premiações, locais de visibilidade para a modalidade, contra o preconceito que muitas vezes existe com esse tradicional esporte, é grandiosa e merece ser exaltada para que diversas histórias, como a de Lucas e todos os competidores envolvidos se repita diversas vezes.

Cerca de cem pessoas: familiares, praticantes, amigos e, inclusive hóspedes do hotel, como um senhor inglês que acompanhou todas as lutas com quem eu conversei rapidamente, presenciaram uma incrível noite de boxe amador defronte às famosas praias cariocas, aos pés dos Dois irmãos e do Morro do Vidigal, celebrando em um espaço restrito a raros privilegiados um evento extremamente excitante, tanto pelos combates, quanto pelas histórias de vida desse universo particular do boxe amador carioca.  

Espectadores de todas as idades no saguão da piscina do Sheraton acompanhando o evento. Fonte: Fotógrafa Marina Torres. 

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Há cinquenta anos, uma frustrada visita olímpica

Lorde Killanin no décimo segundo congresso da ODEPA (no centro com a cabeça baixa). Estádio (Santiago de Chile), 5 de junho de 1973.

“Conheço pouco do esporte latino-americano e vim mais para ouvir e aprender”, assegurou o irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin por seu título de nobreza, em uma coletiva de imprensa durante o décimo segundo congresso da Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA), organizado de 29 a 31 de maio de 1973 em Santiago do Chile. Killanin havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, e aproveitou o convite para realizar uma extensa turnê pela América Latina, que incluía uma breve estadia na Argentina. Essa experiência, frustrada, constituiu a primeira visita de um presidente do COI em exercício ao país.

A turnê de Killanin, bem como sua ascensão à presidência do COI, tinham gerado grande expectativa no esporte regional. Ao contrário do seu antecessor, o americano Avery Brundage, a quem considerava um autocrata, Killanin era visto como um reformista. De fato, formalizou a estrutura tripartida do movimento olímpico, em que o COI, os comitês olímpicos nacionais e as federações desportivas internacionais trabalham em cooperação. Nesse sentido, antes de sua chegada ao Brasil em 21 de maio, o jornal Folha de S. Paulo o descreveu como tendo “ideias revolucionárias”. Além disso, naqueles dias, Killanin era apresentado como inteligente e irônico, e segundo a revista chilena Stadium, era “bonachão, simples, espontâneo [sic] e de bom humor”. A revista cubana Bohemia publicaria tempos depois que com Killanin “o COI experimentou uma saudável injeção de novos ares”.

Killanin permaneceu no Brasil, reunindo-se com autoridades esportivas e políticas no Rio de Janeiro e em Brasília, até 25 de maio. Nesse dia chegou a Montevidéu e visitou vários funcionários, incluindo o vice-presidente do país, já que o presidente Juan María Bordaberry se encontrava em Buenos Aires para a posse de Héctor J. Cámpora, que havia sido eleito em 11 de março com 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. O venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, e Fernando Madero, presidente do Comitê Olímpico Argentino (COA), haviam viajado a Montevidéu para acompanhar Killanin. No dia seguinte teve uma agenda intensa, com atividades que começaram às 9:30 e só terminaram depois das 22:30.

O plano original era que Killanin visitasse Buenos Aires em 27 de maio e dormisse lá para viajar até Santiago no dia seguinte. No entanto, Madero, em contato com Buenos Aires, não achou conveniente que o presidente do COI se hospedasse em solo portenho, ainda que brevemente, a dois dias da posse de Cámpora. Os motivos não foram esclarecidos, mas em um relatório escrito em agosto, Killanin explicou: “Minha visita coincidia com a investidura do novo Presidente Peronista. Obviamente, não era muito recomendável de minha parte ir à Argentina, onde minha presença só daria problemas adicionais à polícia”. Segundo seu relato, em Montevidéu foi designada uma guarda com uma dúzia de polícias à paisana. O que teria conjecturado Madero diante da massiva mobilização do peronismo, proibido desde 1955, no dia da assunção presidencial e da posterior libertação dos presos políticos das prisões argentinas, que deram início ao período conhecido como “Primavera Camporista”?

Enfim, Killanin partiu para Santiago no dia 28 de maio pela manhã. Faria uma breve parada em Buenos Aires, onde chegaria às 10:30 para pegar um voo para a capital chilena proveniente do Rio de Janeiro, que sairia às 12:55. No aeroporto de Ezeiza, o esperavam Madero, Mario Negri, membro argentino do COI, com sua esposa e filho, e Otto Schmitt, secretário geral do COA, com sua esposa. No entanto, o que deveria ter sido uma curta espera acabou sendo uma “breve” estada de oito horas. O avião do Rio de Janeiro se atrasou. Killanin admitiu ter recebido um tratamento preferencial: tomaram-lhe o passaporte para evitar filas no controle migratório, mas a gentileza produziria outro atraso. De acordo com Killanin, talvez justificando a mudança no programa original, nesse dia houve “bastantes tiroteios” em Buenos Aires, e pensou que aqueles que o acompanhavam não iriam querer chegar tarde a seus lares. Disse-lhes para não esperarem pela sua partida e recebeu de volta o passaporte. Mais tarde, quando passou pelo controle migratório, lhe informaram que não podia sair do país, porque não havia entrado formalmente. Isso atrasou o voo pelo menos mais uma hora, até que um oficial de maior patente se apresentou para confirmar sua entrada ao país pela manhã e sua saída à tarde. Decolou por volta das 18:30.

Killanin pôs os pés em Santiago tarde da noite e foi imediatamente recepcionado pelo prefeito da cidade. Pela manhã, assistiu à inauguração do congresso da ODEPA. Em seu relatório, ressaltou que Salvador Allende, o presidente chileno, impossibilitado de comparecer ao evento, lhe havia enviado uma placa comemorativa. Allende tinha estado em Buenos Aires para a posse de Cámpora e assistiu a um jogo de futebol entre Racing e Boca Juniors, no dia 27 de maio, junto do novo chefe de Estado argentino e com Osvaldo Dorticós, o presidente cubano. Ou seja, no dia em que Killanin deveria ter visitado Buenos Aires, aqueles três presidentes estavam em um estádio de futebol lotado por uma multidão, que os saudava. Enquanto isso, Beracasa preparava seu discurso no Congresso da ODEPA. Proferiria estas palavras, que certamente teriam sido do agrado de Cámpora, Allende e Dorticós: “A América é livre como quiseram seus pais, e é por isso que dentro do marco esportivo da Organização Pan-Americana não devem existir pressões nascidas de pequenos interesses ou de inconfessáveis atitudes antidesportivas”.

Ao fim do congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Na capital mexicana declarou: “Conheço os jovens; quando fui, quis revolucionar o mundo” e se promulgou “a favor de modificar os Jogos (Olímpicos)”. Na Argentina, seu espírito renovador só chegou ao aeroporto. Monique Berlioux, diretora-geral do COI, pediu a Negri que lhe enviasse recortes de jornais sobre a estada de Killanin no país, mas, com a mudança de data, a imprensa não havia sequer aparecido. Lamentando a situação, Negri resumiu o ocorrido: “Lorde Killanin não visitou Buenos Aires, por outro lado conheceu muito bem o aeroporto de Ezeiza (sic!)”. Enquanto Killanin permanecia nesse aeroporto, a sociedade mobilizada continuava festejando o fim da ditadura que havia governado a Argentina desde 1966. De qualquer forma, a “Primavera Camporista” ou que a América fosse livre ou subjugada, não teria feito diferença para Killanin. Em 1974, o movimento olímpico acolheu “ditaduras de esquerda e de direita, monarquias e repúblicas”. Para Killanin, ele estava acima dessas diferenças e unia todos os povos. Sua renovação não incluía esse aspecto do ideário olímpico”.

Texto originalmente publicado em relatores.com no dia 6 de março de 2023.

Tradução por: Júlio Barcellos, Carol Fontenelle e Leda Costa.

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Zico 70 anos: uma história de vitória através do trabalho

O dia 3 de março é celebrado pela torcida do Flamengo como o Natal Rubro-Negro, pois é aniversário daquele que é o maior de todos os tempos da História do clube: Zico. É como se existisse um Flamengo antes dele e outro após. Referência fundamental do nosso futebol a partir de meados da década de 1970 até o final da década de 1980, a idolatria a Zico é constantemente celebrada pela torcida do Flamengo em imagens do atleta em bandeiras, camisas e nos coros de “Zico é nosso rei”, mesmo após mais de 33 anos de sua última partida oficial no Brasil.

Uma curiosidade em sua biografia nos chama a atenção. É uma história que fala da vitória através do trabalho e de uma sucessão de obstáculos que ele teve que superar. O esforço como elemento fundamental para se alcançar êxito costuma ser relegado a um plano secundário nos discursos dos cronistas brasileiros dos universos das artes e do futebol. No caso específico do futebol, chega a ser até uma crítica contundente chamar um jogador de “esforçado”. Esta é uma maneira de se dizer que ele não tem talento, porém se esforça. A forma oposta seria o talento puro, inato, que não precisaria de treino ou esforço para ser aprimorado, como se não fosse possível ser talentoso e esforçado ao mesmo tempo. A biografia de Zico fala de uma realidade calcada primordialmente no predomínio do esforço e da determinação como atributos fundamentais para se alcançar êxito e, assim, refuta uma suposta ideologia de sucesso cultuada no imaginário brasileiro.

Fonte da imagem: Museu do Futebol.

É sabido que a ascensão de Zico foi sempre com muitos obstáculos no caminho, a começar pelo seu corpo franzino que quase o impediu de, aos 13 anos, fazer um teste no Flamengo. Por isso, logo após se firmar na escolinha, ele se submeteu a um árduo tratamento para reforçar a musculatura

Esse procedimento a que se submeteu ainda bem jovem fez com que Zico ficasse conhecido no início da carreira como “craque de laboratório”. Era como se de um planejamento “científico”, com a ajuda de médicos, nutricionistas e modernas técnicas e aparelhos de educação física, surgisse uma grande estrela do futebol. Era o racional, o trabalho, unindo-se ao talento. No entanto, apesar das biografias enfatizarem positivamente a dedicação de Zico a este trabalho, à época a alcunha “craque de laboratório” era utilizada de forma pejorativa, significando um craque não genuíno, que fugiria das características “artísticas” do nosso futebol. Essa foi uma das primeiras provações que Zico teve que superar e evidencia que sua idolatria surge ancorada também em características de sua personalidade.

Junito de Souza Brandão em seu livro clássico Mitologia Grega fala de “honorabilidade pessoal”, “excelência” e “superioridade em relação aos outros mortais” como virtudes inerentes à condição do herói. A “superioridade” de Zico sempre ficou evidente na forma com que enfrentou os desafios e os obstáculos da vida tanto quanto em seu talento extraordinário para o futebol. Nesse sentido, a narrativa em torno de Zico enquadra-se no rol dos arquétipos universais dos heróis. Ela nos mostra que não basta o ato heroico em si, de forma isolada — no caso, as conquistas e os gols no futebol. O herói precisa preencher outros requisitos — tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo — para se firmar no posto. E Zico sempre os preencheu com bastante eficácia.

Fonte da imagem: Mundo Rubro Negro

É comum escutar que o Brasil não tem memória e esquece seus ídolos. Mas a idolatria a Zico e os festejos pelo seu aniversário nos mostram que a memória de Zico segue firme no universo da torcida do Flamengo. Não saberia dizer se isso seria uma exceção à suposta falta de memória do país, mas ouso afirmar que é Zico quem sempre foi exceção na união emblemática e necessária de talento e profissionalismo.

(Artigo originalmente publicado em 03 de março de 2023, no jornal O Globo.

Para acessá-lo: https://oglobo.globo.com/esportes/noticia/2023/03/zico-70-anos-uma-historia-de-vitoria-atraves-do-trabalho.ghtml)

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Neymar: herói ou vilão?

Por Abner Rey e Gustavo Fernandes

Encontrar um ponto de ancoragem seguro e estável em meio ao desequilíbrio gritante de uma narrativa de vida marcada por altos, baixos e reviravoltas inacabadas sem fim soa, de início, como uma maneira fácil de colocar tudo a perder, a fórmula perfeita para o caos. Só que trazer a trama publicamente desconhecida de um fenômeno midiático e astro do futebol é, na verdade, a receita para o sucesso, já que o desconhecimento instiga a degustar da pergunta que azucrina os que não conhecem Neymar Júnior como seus pais e seus “parças” o conhecem: o que se passa no olho desse furacão? 

Movido pela ambição de oferecer uma nova perspectiva sobre o jogador do PSG, o documentário Neymar – O Caos Perfeito tenta deixar evidente uma resposta fundamental sobre sua personalidade dupla. O original da Netflix, dirigido por Ben Nicholas e David Tryhorn, ajuda a construir uma imagem particular do craque, em tempo, uma imagem ideal: Neymar é o herói da sua narrativa, pois é o herói nas escolhas subjetivas que o recorte do documentário faz. Para edificar essa figura digna de admiração, O Caos Perfeito utiliza elementos narrativos típicos da Jornada do Herói, sob os conceitos de Joseph Campbell  e Christopher Vogler, descrita no artigo de Anelise Rubelscki e Giulianno Lara Olivar (2014), intitulado “A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas”.

Fonte: Netflix

Como protagonista de uma história que compreende um dom raro e um fardo grandioso, aversão e admiração em escalas semelhantes, Neymar encontra-se a todo o momento driblando e bailando perigosamente em cima da fronteira que separa os heróis dos vilões, uma fronteira que em seu caso parece cada vez mais estreita. Em certos momentos, é possível perceber na sua irresponsabilidade imatura uma loucura quase psicótica de um Coringa mentalmente atormentado por seu passado sem nenhum mentor moral. Em outros, a virtude espontânea e a força por aguentar tanto remetem a um Batman que parece estar bem próximo de sair das trevas e retornar triunfante. É dessa maneira que Neymar se enxerga e que o documentário faz questão de enfatizar: ele se vê como o Batman para a sua família e amigos e como o Coringa para todos os que o conhecem de modo superficial. Ou seja, nesse recorte narrativo, a série segue a ideia de que a verdadeira face de Neymar é a do herói, face reconhecida por aqueles que o conhecem em sua intimidade. Fazendo isso, o documentário fecha as portas para pensar sobre cada um dos dois alter egos possíveis de coexistência no jogador, ao mesmo tempo que traça uma trilha homérica como justificativa para o espectador o enxergar como ídolo. A jornada do herói é flexível à cultura em que busca se inserir, e sob a ótica do documentário não é diferente. A produção utiliza músicas, cenários, vocábulos e interações que remetem à identidade cultural brasileira, de modo que haja reconhecimento e assimilação do jogador com a cultura em que este tem origem.

Ronaldo Helal (2003, p .21), no artigo “A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro”, afirma que “os ídolos têm que conviver constantemente com o drama de ser dois: o homem e o mito”. Através da mitificação de Neymar como um ídolo futebolístico, a qual o documentário enfoca, há a tentativa de amenizar e relativizar o peso que a imprensa dá às suas falhas e derrotas, recorrendo ao cotidiano oculto aos olhares do público – a vida pessoal, a família, os sentimentos e o lado humano – para atribuir aos erros e às imperfeições o enquadramento de provação, estágio em que o protagonista é testado à exaustão para ao final ser recompensado com o conhecimento vital à sua jornada (RUBELSCKI; OLIVAR, 2014). Em parte, assim como toda forma de contar histórias sob o modelo da jornada do herói, O Caos Perfeito promove uma harmonização da vida e da realidade, uma espécie de acordo negociado com o estar no mundo (HELAL, 2003, p.3). Com isso, ao não definir a derrota como um ponto final e sim como uma vírgula, entendemos os acontecimentos negativos apenas como parte do processo em que o herói está se provando. Essa fase – possivelmente a mais extensa da carreira de Neymar – pode até mesmo explicar a constante impressão que se há nas narrativas da mídia sobre o jogador – o prolongamento da ideia de que é o “menino Ney”, o jovem jogador que ainda não alcançara todo o seu potencial. É em torno dessa narrativa que há a utilização do mito no documentário: entendemos que o herói Neymar passa por constantes situações de provação nos momentos em que não alcança o êxito, retirando o peso que a mídia atribui às suas derrotas.

Fonte: IGN Brasil

Neymar atende aos requisitos pelos quais um herói é reconhecido, já que, conforme Helal (2003, p. 20), no Brasil, as narrativas das trajetórias de vida dos ídolos “enfatizam a genialidade e o improviso como características marcantes e fundamentais para se alcançar o sucesso”, deixando de lado o esforço e o trabalho nesta construção. Por sua vez, Campbell descreve o herói como “aquele que descobriu ou realizou alguma coisa além do nível normal de realizações ou de experiências” (2009, citado por Rubelscki e Olivar, 2014). Porém, como em toda narrativa da Jornada do Herói, há a expectativa por desfechos positivos, talvez a parte mais carente do script da carreira de Neymar. Pelos mais variados motivos, o jogador é mais reconhecido por seu potencial do que propriamente por suas conquistas e postura como “herói – que se origina mais da sua capacidade de improvisação, o futebol bonito, o drible e a irreverência do que da disciplina, do trabalho, do metodismo e da dedicação –, por isso há a  dificuldade de reconhecer Neymar como um ídolo/atleta consolidado, e ele é tratado no documentário como um herói ainda em meio ao seu processo.

Já na mídia, muitas são as justificativas que buscam explicar os tropeços de Neymar em busca do êxito, como o fato de nunca ter ganho uma Copa do Mundo, por exemplo. Resgata-se a discussão sobre o dever moral do herói, um senso de que este necessita dar a própria vida por algo maior que ele mesmo, como descreve Campbell. O jogador reafirma no documentário que não abre mão de viver sua vida pessoal como bem entende, mas que tem plena consciência de que é frequentemente cobrado pela imprensa e pelos torcedores por isso. A postura de “pouco compromissado”, em muitas ocasiões, é atribuída como a responsável pelos fracassos de Neymar pela mídia e pelos torcedores. Sobre isso, Helal acrescenta que: “não basta o ato heroico em si, de forma isolada – no caso, as vitórias, as realizações e os gols no futebol. O herói tem que preencher outros requisitos – tais como perseverança, determinação, luta, honestidade, altruísmo – para se firmar no posto” (HELAL, 2003, p.23). 

Sob esta percepção, Neymar carece de alguns dos elementos citados, e seria, portanto, criticado na mídia com certa frequência por essa razão. O documentário, então, busca explorar situações em que estes elementos estejam presentes no cotidiano do jogador.
Ao descrever a “superioridade” de Zico sobre os outros mortais – os elementos que o tornam um herói –, Helal diz que esta reside mais “na forma com que enfrenta os desafios e os obstáculos que a vida impõe do que em seu talento extraordinário para o futebol” (2003, p. 23). Sob esta ótica, a “superioridade” de Neymar seguiria o caminho inverso, sendo valorizada pela sua capacidade desportiva, mas pouco por sua devoção e sacrifício. Tal senso moral engloba total dedicação, esforço e sacrifício em busca do objetivo final, elementos que não são observados no craque sob a percepção das pessoas ouvidas pelos entrevistadores do documentário – majoritariamente torcedores do Paris Saint Germain e jornalistas brasileiros –, e que entram em evidência nos discursos críticos ao jogador, principalmente nos momentos de dificuldade, em que a vitória não é alcançada.

O embate entre a perspectiva de Neymar como um herói ainda em seu período de provação versus um vilão que mais prejudicou do que propriamente agregou valor é, então, expresso no documentário em forma de dualidade – Batman e Coringa –, de modo que Neymar se entenda parte como herói e parte como vilão, sem determinar especificamente o que ele acredita ser. A sua identificação como ídolo, e também, portanto, como herói, aconteceria pela identificação do que valorizamos mais na jornada de um jogador de futebol, já que no Brasil, principalmente em Copas do Mundo, tendemos a valorizar o lado mais estético, alegre, criativo, e ‘artístico’ do futebol, como sendo características típicas da sociedade brasileira (HELAL, 2003, p.29), elementos presentes na jornada de Neymar. Já a sua imagem como vilão seria construída por suas derrotas, suas más decisões (a transferência para o Paris Saint Germain é apontada como uma), seu mau comportamento e pouca devoção ao trabalho, a uma suposta indisciplina e também por fatores extracampo – estes não abordados no documentário –, como as polêmicas relacionadas às acusações de abuso sexual e a declaração pública de apoio ao candidato derrotado nas eleições presidenciais de 2022, Jair Bolsonaro, que dividiu opiniões entre a então polarizada torcida brasileira um mês antes da realização da Copa do Mundo de 2022.

Referências

RUBELSCKI, Anelise. OLIVAR, Giulianno. A manutenção da Jornada do Herói no cinema: um olhar inicial sobre a trilogia do Cavaleiro das Trevas. Lumina, [S. l.], v. 7, n. 2, 2014. DOI: 10.34019/1981-4070.2013.v7.21066. Disponível em: https://periodicos.ufjf.br/index.php/lumina/article/view/21066. Acesso em: 9 fev. 2023.

HELAL, Ronaldo. A construção de narrativas de idolatria no futebol brasileiro. Revista Alceu, v. 4, n. 7, p. 19-36, jul./dez. 2003.

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Um Tabu com mais de 100 anos no Futebol brasileiro

“É isso mesmo. Enquanto o Campeonato do Nordeste e a Copa Sul-Minas vão digerir boa parte dos estaduais já em 2002, com o aval de clubes como Grêmio, Cruzeiro, Vitória e Sport, os campeonatos carioca e paulista devem segurar, pelo menos por mais um ano, a regionalização total do futebol brasileiro” (Revista PLACAR, 15.05.2001, p. 6).

A previsão falhou. Os campeonatos estaduais não foram digeridos. Renovaram-se e existem até hoje. As copas regionais, por outro lado, murcharam. O Rio-São Paulo e o Sul-Minas desapareceram. A Copa Centro-Oeste e a Copa Norte deram lugar à Copa Verde, um torneio de importância menor que conta até com a participação de algumas equipes semi-amadoras. Só a Copa do Nordeste manteve a mesma importância.

Então vamos falar de um campeonato estadual. Mais especificamente, do único campeonato estadual que ainda não teve um campeão do interior. É o campeonato carioca, um dos primeiros a serem realizados no Brasil. Começou em 1906.

Entre os seus campeões, estão quatro gigantes do futebol brasileiro (Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo), os tradicionais América e Bangu e dois clubes pequenos, o São Cristóvão e o Paissandu. Todos da cidade do Rio de Janeiro.

Os clubes do interior, que mais chegaram perto de quebrar o tabu, foram o Americano e o Volta Redonda. São os únicos de fora da capital que chegaram a ser vice-campeões estaduais. Um, em 2002, e o outro, em 2005.

O Americano no Campeonato de 2002

O campeonato carioca de 2002 se viu cercado, desde o início, dos piores sentimentos. Foi ofuscado pelo Torneio Rio-São Paulo, naquela época em que os campeonatos estaduais pareciam prestes a serem engolidos e digeridos pelos regionais. A emissora de TV detentora dos direitos de transmissão decidiu não exibir suas partidas (em especial, as partidas das semifinais e da final, que foram realizadas no mesmo mês da Copa do Mundo 2002 Japão-Coreia do Sul). O regulamento da competição sofreu críticas severas e o presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Eduardo Viana, voltou a ser tratado como o pai de todas as mazelas do futebol carioca (algo que já vinha acontecendo na imprensa há alguns anos, aliás). Aquele campeonato de 2002 parecia um campeonato amaldiçoado e fadado ao fracasso e à desgraça. Em alusão ao apelido Caixa d’Água, pelo qual era conhecido o presidente da Federação, o campeonato foi chamado de “Caixão 2002”.

Da cidade de Campos dos Goytacazes, veio a surpresa da competição. O Americano foi campeão da tradicional Taça Guanabara (primeira fase da competição) e da também tradicional Taça Rio (segunda fase da competição). Orgulho da torcida: foi o primeiro clube do interior a conquistar essas duas taças. É verdade que os clubes grandes, com presença garantida na terceira fase, não escalavam seus times titulares, o que ajuda a explicar por que os finalistas da Taça Rio foram Americano e Bangu. Mas os finalistas da Taça Guanabara foram Americano e Vasco da Gama. E entre os atletas vascaínos daquela decisão estavam os conhecidos Alex Oliveira, Léo Lima, Euler e Romário. O Americano venceu por 2 a 1, de virada.

Imagem 1: Americano, campeão da Taça Guanabara 2002.
(Fonte: internet)

Na terceira fase, o Americano estava no grupo A, ao lado de Bangu, Botafogo e Vasco da Gama. Ficou em primeiro lugar. Passou à fase seguinte (a semifinal) e superou o Friburguense. Assim, chegou à final ostentando um desempenho de enorme respeito. Vinte vitórias, quatro empates e nenhuma derrota, enquanto o seu adversário, o Fluminense, tinha doze vitórias e nove derrotas, além de cinco empates. Um desses empates foi contra o Bangu, na semifinal que virou escândalo. Os banguenses ficaram tão revoltados com a anulação do seu gol no fim da prorrogação que o clube impetrou uma ação judicial para anular a partida. O árbitro foi punido severamente. Não atuaria mais em competições da Federação de Futebol do Rio de Janeiro. Mas o público carioca pouco se importava com tudo isso. Estava preocupado mesmo era com a seleção brasileira, que jogou na Copa do Mundo um dia depois da semifinal entre Fluminense e Bangu. O Brasil venceu a Bélgica por 2 a 0 nas oitavas-de-final.

O processo judicial iniciado pelo Bangu só foi concluído em 2009. A semifinal não foi anulada.

O Fluminense, classificado para a final, adotou uma nova postura e transformou em prioridade máxima a conquista do título estadual. Era o ano em que o clube chegava ao seu centenário e a vitória daria realce à comemoração. Foi escalado o time titular para a decisão, disputada em duas partidas (ambas no Estádio do Maracanã, ambas sem exibição televisiva). E deu Fluminense. Vitória na primeira partida por 2 a 0 e na segunda por 3 a 1.

O campeão, em 28 partidas, juntou 47 pontos. O vice-campeão, com o mesmo número de partidas, juntou 64. O Americano nunca havia tido antes e não voltou a ter depois uma chance tão real de ser campeão do Estado. Vacilou na decisão, quando sofreu suas duas únicas derrotas no campeonato.

 Volta Redonda no Campeonato de 2005

No campeonato carioca de 2005, a surpresa foi o Volta Redonda. Chegou à final da Taça Guanabara (primeira fase do campeonato) e enfrentou o Americano. Aquela decisão, pela primeira vez com dois clubes de fora da capital, foi chamada de “Festa do Interior”. Confronto acirrado, só decidido na disputa por pênaltis, que o Volta Redonda venceu por 3 a 2.

Imagem 2: Volta Redonda, campeão da Taça Guanabara 2005.
(Fonte: GE – internet)

Na Taça Rio (segunda fase do campeonato), a capital se impôs. Um Fla-Flu decidiu o campeão em partida única. Vitória do Fluminense por 4 a 1.

Os campeões da Taça Guanabara e da Taça Rio partiram para a grande decisão estadual, em duas partidas no Estádio do Maracanã. E foi emocionante.

O Fluminense começou vencendo a primeira partida por 2 a 0 e parecia que o Volta Redonda seria tranquilamente reduzido à sua condição de clube pequeno. Veio, então, a reação surpreendente. O time do interior marcou quatro gols e o Fluminense só conseguiu diminuir para 4 a 3 aos 43 minutos do segundo tempo. O carismático Túlio, que havia feito história no Botafogo, agora fazia das suas no Volta Redonda e provocava os rivais com frases marotas após a vitória.

Na segunda partida, com mais de 63.000 torcedores no estádio, o Volta Redonda precisava apenas do empate para ser campeão e melhorou ainda mais a sua situação ao marcar 1 a 0 no início do primeiro tempo. Desde 2003 o time não perdia por dois gols de diferença. Sua torcida vibrava e sentia que o tabu estava caindo. Era um momento histórico.

Eis a decepção: o Fluminense empatou o jogo no fim do primeiro tempo e virou o jogo com um gol de Marcão. Aos 47 minutos do segundo tempo, quando todos já se preparavam mentalmente para uma dramática disputa por pênaltis, o goleiro Lugão falhou e permitiu a cabeçada de Antônio Carlos, que marcou o terceiro gol tricolor. Repetindo: o Volta Redonda não perdia por dois gols de diferença desde 2003. Deixou acontecer justamente na partida que o colocaria na história do futebol carioca e fluminense.

O técnico do Volta Redonda, Dário Lourenço, reclamou com dureza do árbitro. Também achou péssimo que o zagueiro Schneider e o goleiro Lugão tenham chegado a um acerto contratual com o Fluminense antes da partida. Um acerto que virou notícia. “Isso abalou os jogadores”, declarou Dário. Os jogadores do Fluminense, por sua vez, desabafavam e faziam graça com Túlio, que tanto os havia provocado.

Para quem acredita que uma espécie de barreira psicológica abate os jogadores de times pequenos em grandes decisões, o caso do Volta Redonda em 2005 é exemplar.

Os campeonatos cariocas de 2002 e 2005 foram os únicos em que clubes do interior se sagraram vice-campeões.

O campeonato carioca ainda é o único estadual do Brasil que nunca teve, como campeão, um clube de fora da capital. Alguns dizem que quando esse tabu cair, aí sim, o campeonato carioca poderá ser extinto. Outros dizem que quando isso acontecer, aí teremos certeza: o campeonato jamais será extinto.

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Jogo (não) consensual 

“Este é um lugar destinado para homens, onde eles podem fazer o que quiserem e, não importa o que aconteça, devem proteger uns aos outros”.

Essa poderia ser uma frase tirada de um filme americano, de um clube de homens de 1960. Poderia ser o lema de uma sociedade no século XIII ou até um slogan machista de alguma marca. Mas a ideia não fica apenas no campo das hipóteses. Essa parece ser a mensagem que, ainda hoje, é ensinada para os homens que jogam futebol e conseguem algum sucesso no esporte.

Em uma sociedade construída por homens e para homens, qual é o espaço que sobra para as mulheres ocuparem? Em um esporte que paga salários astronômicos para os jogadores, como não se ter tudo o que quer? Em país que já tornou ilegal a prática do futebol pelas mulheres, como legitimá-las nesse ambiente?

Nesse “clube do Bolinha”, quem não encarna essa ideia de masculinidade, fica de fora. Um exemplo é o ex-jogador e agora comentarista do Grupo Globo, Richarlyson. Em 2007, José Cyrillo Júnior, à época dirigente do Palmeiras, insinuou em rede nacional que o jogador seria gay. Richarlyson registrou uma queixa-crime, indeferida pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho, que arquivou o processo ao alegar que “não seria razoável aceitar homossexuais no futebol brasileiro porque prejudicaria o pensamento da equipe”. E ainda completou: “futebol é coisa de macho, não homossexual”.

A perpetuação do futebol como um lugar “para machos”, faz com que a cada cinco dias uma mulher denuncie um jogador por estupro, segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, em 2021. Em um país que, também em 2021, teve um estupro a cada dez minutos, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é compreensível que a acusação por estupro tenha repercutido duas vezes menos nas redes sociais do que a convocação de Daniel Alves. Afinal, como diriam alguns, precisamos de jogadores com raça, que sejam “machos mesmo” pra vencer. 

Fote da imagem: ge.globo.com

Outro caso que explicita essa realidade é o da Ponte Preta que contratou o atacante Dudu Hatamoto, investigado por estupro. Mesmo sob protestos da torcida, o clube manteve a contratação. Mas os torcedores deram uma resposta à altura. O auge de um aficionado por futebol,  se revelou também como um momento de protesto: Dudu marcou, e a torcida não comemorou. Nas redes sociais, torcedores e torcedoras foram enfáticos: “não comemoro gol de estuprador”.

Mas a lenta mudança na sociedade ainda não chegou no clube do Bolinha. O atual técnico do Barcelona, Xavi, que foi campeão ao lado de Daniel Alves pelo clube Catalão, disse que “se sentia mal” pelo lateral ter sido denunciado por estupro. As críticas vieram rapidamente e no dia seguinte ele se desculpou por ter ignorado a vítima e que condena qualquer ato de violência de gênero ou estupro, independente de quem o tenha feito.

O jornal OGlobo procurou 16 dos 26 jogadores convocados para a Copa do Mundo ao lado de Daniel Alves e ninguém quis se manifestar. Na mídia, coube às jornalistas mulheres levantar o debate, enquanto os homens confirmavam “realmente”, “sim, com certeza”, como se acenos de cabeça e respostas curtas fossem o máximo que poderia ser feito.

Escolher não falar sobre o Caso Dani Alves sob o argumento “mas ele não foi condenado”, é uma justificativa pífia para não se comprometer com o Clube do Bolinha. Afinal, o que está em questão é muito maior do que Daniel Alves. É sobre a misoginia e a cultura do estupro enraizadas no futebol. É sobre como esse é um ambiente ameaçador para as mulheres. É sobre como a mulher é descredibilizada e invisibilizada.

A jornalista Renata Mendonça, do Grupo Globo, e uma das fundadoras do site Dibradoras, levantou interessante questão: se fosse um carro roubado a cada cinco dias por jogadores de futebol, uma série de atletas envolvidos no tráfico de drogas, esportistas envolvidos em assaltos. Mas o estupro é diferente. Como ter certeza se a mulher não queria mesmo? Se ela não está querendo se promover? Talvez até ela tenha provocado ele, ou, na pior das hipóteses, ele cometeu um “deslize”. Para os amigos, “deu mole”. 

Acontece, porém, que o consentimento não está em uma linha tênue, ou em fronteiras borradas. Ele é claro, simples, direto e pode ser resumido em duas palavras: sim e não. O problema é quando os homens não respeitam a resposta negativa, afinal, não estão acostumados a terem seus desejos negados. Afirmam que elas falam “não”, querendo dizer “sim”. E que não reconhecem suas próprias ações como violentas e agressivas, afinal, eles sabem que no fundo elas queriam. Quem diria não para eles?  

Muitas mulheres.

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 Apenas um lado parece ter voz

O Ministério Público da Paraíba (MPPB) anunciou no dia 30 de janeiro que está em vias de finalizar um novo sistema que, segundo a instituição, vai tornar mais ágil o processo de cadastramento e de identificação dos torcedores organizados paraibanos. A ideia, segundo o procurador Valbero Lira, do famigerado Núcleo do Desporto e Defesa do Torcedor (Nudetor) do MPPB, é fazer isso de forma digitalizada e, consequentemente, mais célere e integrada.

Em outras palavras, o objetivo é “fichar” torcedores pobres e periféricos (perfil majoritário dos torcedores organizados paraibanos) e colocá-los num sistema acessível em tempo real pelas forças de segurança pública. Tudo isso sob o argumento de dar mais segurança aos estádios locais e proteger de forma mais eficiente os ditos torcedores comuns.

Valberto tenta dar ar de legalidade às suas ações. Faz um esforço hercúleo para deixar claro que tudo está sendo feito na base de muito diálogo, e cita uma série de reuniões sistemáticas que foram feitas nos últimos tempos com a Polícia Militar da Paraíba e com o Corpo de Bombeiros Militar da Paraíba.

“Com o sistema, todo o cadastramento será online, o que vai facilitar tanto para as torcidas organizadas como para os órgãos públicos”, defende o procurador.

Depois, ele diz em tom triunfante que já em fevereiro deve realizar uma série de reuniões com os comandos regionais da Polícia Militar e com os clubes paraibanos para falar da nova ferramenta, de seu cronograma de instalação, das possíveis consequências que isso vai provocar ao futebol paraibano.

Mas e aí, amigo leitor… Sentiu falta de algo?

Pois é. 

Fonte: ge.globo.com

O MPPB e o procurador Valberto Lira excluem de qualquer debate e diálogo os próprios torcedores organizados, os principais sujeitos sociais envolvidos em toda essa operação.

É um processo de invisibilização e de silenciamento em curso na Paraíba – no Brasil inteiro, imagino, mas atenho-me aqui ao local de onde escrevo – e que tem inclusive a participação e a cumplicidade de boa parte da crônica esportiva.

É o mesmo processo que transforma recomendação do Ministério Público em “determinação”, que institui a tal “torcida única” nos estádios, que “autoriza” a Polícia Militar a tratar de forma diferente – e bem mais violenta – diferentes perfis de torcedores.

São as “estratégias de controle” alardeadas por Tsoukala (2014) e que vão ser usadas para “conter” torcedores organizados antes mesmo de eventuais ilicitudes. A partir de mecanismos que passam ao largo de qualquer ordenamento jurídico e de qualquer previsão legal.

Ainda citando Tsoukala (2014), ela fala de uma subjetiva definição de “torcedor de risco” que vai autorizar a banalização do controle do comportamento por parte das forças de segurança e que vai inverter a lógica jurídica da presunção de inocência.

O problema ainda maior é que, do outro lado, está a crônica esportiva. Não raro, a referendar acriticamente as ações do Ministério Público e a reforçar um estigma de “bandido” a todos os torcedores organizados do estado.

Aqui, cito Misse (2010), que vai discorrer sobre uma “sujeição criminal” que territorializa a categoria “bandido” e que vai levar ao campo das moralidades qualquer ideia existente sobre crime e sobre conduta desviante.

É quase uma relação automática – e perversa – entre “periferia” e “bandido” que acaba por justificar os evidentes excessos do Nudetor. E que dá ares de legalidade a ações que, a rigor, estão à revelia da lei.

Principalmente porque, ao tempo em que as falas do procurador são automaticamente reproduzidas pela imprensa, quase ninguém parece muito preocupado em ouvir o que os torcedores organizados têm a dizer.

Bem, era só sobre isso mesmo o que eu queria refletir.

Referências

MISSE, Michel. Crime, sujeito e sujeição criminal: aspectos de uma contribuição analítica sobre a categoria “bandido”. Lua Nova, São Paulo, 79, pp. 15-38, 2010.

TSOUKALA, Anastassia. “Administrar a Violência nos Estádios da Europa: quais racionalidades?”. In: B. Hollanda e H. Reis (orgs.), Hooliganismo e Copa de 2014. Rio de Janeiro: 7Letras. pp. 21-35, 2014.

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A Liga do Dinheiro, o futebol em transformação e a importância da análise econômica para o campo de estudos

Uma das principais “firmas de consultoria” do mundo lançou no dia 18 de janeiro,  a 26ª edição do seu relatório anual[1] sobre a grana levantada pelos clubes de futebol mais ricos de todo o planeta – e, portanto, quase sempre apenas da Europa. O “Deloitte Football Money League” é um documento de grande potencial para… Continuar lendo A Liga do Dinheiro, o futebol em transformação e a importância da análise econômica para o campo de estudos

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Quem é o primeiro ídolo do seu clube?

Seminário debate tema, dia 7 de fevereiro na UERJ

O Seminário “Quem é o primeiro ídolo do seu clube?”, acontece no dia 7 de fevereiro, às 18h, no auditório do PPGCom da UERJ, no 10º andar, às 18h, com transmissão ao vivo do canal do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (Canal lemeuerj)[1]  no Youtube. A iniciativa é do Grupo de Pesquisa Esportes, Ídolos e Identidades (GEII), coordenado pelo professor do Departamento de Jornalismo da FCS da UERJ e doutor em Comunicação pela UFF, Sérgio Montero Souto, também pesquisador do LEME, e integrado pelos alunos e ex-alunos da graduação da FCS Enzo Tomaz Anselmo, Gustavo Silva Fernandes, Maíra Vallejo dos Santos e Maria Vitória Santos Pereira.

O recorte escolhido foi o incipiente material sobre o futebol carioca dos anos que antecedem ao primeiro campeonato do estado, em 1906, até 1932, último ano oficial do amadorismo. O professor Sérgio Souto explica: “Garrincha, Zico, Roberto Dinamite e Castilho ou Fred ou Assis.[1] Com a solitária exceção do Fluminense, que, ao longo da sua centenária história, não produziu um ídolo consensualmente considerado o maior de todos,  torcedores dos demais grandes clubes do Rio de Janeiro não têm dúvidas em apontar quem ocupa o topo do Olimpo das histórias, respectivamente, de Botafogo, Flamengo e Vasco. Tal reconhecimento não se limita aos torcedores de cada um dos três clubes; é acolhido pela imprensa e pela academia, sendo, inclusive, reconhecido pelos rivais. No entanto, se – com a ressalva à singular situação do Fluminense – inexistem dúvidas sobre o mais importante ídolo histórico dos clubes cariocas, um estranho silêncio faz-se presente se a pergunta tiver como alvo o primeiro ídolo de cada um. A inexistência de uma resposta positiva nos leva a uma lacuna intrigante: poderia um esporte capaz de despertar paixões tão catárticas e parte integrante da constituição da identidade nacional ter um início sem um rosto tão prenhe de simbolismo?”.

Para tentar responder a essa e diversas outras questões acontecerá o seminário. Abaixo, temos a programação:

PROGRAMAÇÃO

18h – Abertura do seminário pelo coordenador do GEII, professor Sérgio Souto

18h25min – Enzo Tomaz Anselmo: O extraordinário Mimi Sodré (Botafogo)

18h35min – Gustavo Silva Fernandes: Kunz, o primeiro grande goleiro brasileiro  (Flamengo)

18h45min – Maíra Vallejo dos Santos: O inigualável footballer Etchegaray (Fluminense)

18h55min – Maria Vitória Santos: Russinho, o jogador mais popular do Brasil (Vasco)

19h10min: Professor Filipe Mostaro: Idolatria no passado e no presente

19h30min: Debate e perguntas da plateia.

20h30min: Encerramento do seminário pelo professor Sérgio Souto


[1] Entre fevereiro e maio de 2020, o portal GE consultou cem jornalistas que “cobrem, cobriram ou conhecem a história do Fluminense”. Castilho  foi o mais lembrado, seguido de Fred e Assis < https://ge.globo.com/futebol/times/fluminense/noticia/eleicao-com-100-jornalistas-aponta-fred-como-o-2o-maior-idolo-do-fluminense-so-atras-de-castilho.ghtml>. A própria necessidade da votação para determinar um ídolo já indica tratar-se de questão longe de estar pacificada.