Ondas à venda

Foto: Lucas Bertollo

O rigor acadêmico pressupõe imparcialidade, isenção, afastamento e problematização do objeto, por outro lado, enquanto pesquisador encarnado (WACQUANT, 2002), surfista há mais de trinta anos e publicitário que participou do planejamento de comunicação do projeto desta piscina de ondas especificamente, é impossível negar a emoção que senti ao surfá-la pela primeira vez. A piscina em questão é a Surfland, um clube resort localizado em Garopaba, Santa Catarina, a cerca de pouco mais de uma hora de distância de Florianópolis. Ela foi a terceira piscina de ondas de alta performance[1] inaugurada no Brasil.

A ansiedade durante os dias e as horas que precederam a minha ida foram quase iguais a da espera por um dia de ondas boas em uma praia normal, exceto a certeza de que na data e hora da sessão agendada surfaria ondas perfeitas. Diferentemente do surfe no mar, onde os mais diversos fatores que influenciam a condição das ondas são incontroláveis, como altura, força e direção das ondulações, maré, vento e fundo, na piscina, o único deles que escapa ao controle do homem é o vento. O restante é tudo milimetricamente coordenado a ponto de existir um menu de ondas a escolha do freguês.

Após fazer o check-in, uma das primeiras coisas que se revelam na paisagem é a parte de trás da piscina, com a máquina que gera as ondas no centro, dividindo o espaço entre lado direito e lado esquerdo. Essa divisão permite que sessões simultâneas aconteçam para diferentes níveis de surfistas. De um lado podem ser ondas para surfistas mais experientes, no nível avançado, e no outro, para surfistas iniciantes. Mas o que mais me chamou atenção foi o som das ondas exatamente como no mar, com aquele “chuá-chuá” calmante. 

A onda que escolhi surfar foi a expert barrels, que possui algumas das características mais cobiçadas pelos surfistas: é cavada e tubular, permitindo passar por dentro da onda ou entubar. Quinze minutos antes da sessão foi realizada uma reunião de briefing com um instrutor que basicamente explicou como era a onda e como se comportar caso você vacasse[2] para evitar acidentes. Essa organização remete a um aspecto disciplinar que torna o surfe nas piscinas diferente. No mar é cada um por si e existem regras tácitas que são ou não respeitadas a depender do lugar e dos surfistas. Em picos crowdeados[3] este é um dos maiores geradores de estresse no surfe. Ou seja, a paz que se busca na conexão com a natureza pode ser arruinada nessas condições. Mas voltemos à piscina: após o briefing, o instrutor avisou sobre o início da sessão e os surfistas entraram enfileirados atrás dele, no canal, que tem uma corrente de água que facilita a chegada até o outside[4]. Chegando lá, na lateral da máquina há um painel que informa, entre outras coisas, em quanto tempo virá a próxima sequência de ondas. O instrutor organizou a fila e mostrou o local exato, marcado na parede oposta, onde os surfistas deveriam se posicionar para pegar a onda.

Aguardei a minha vez, me posicionei no local certo e dropei[5] a minha primeira onda em uma piscina. A onda é forte e o fundo é bem raso. Lembra um slab, que é uma onda rápida que se forma em cima de uma bancada de pedras. Usei uma técnica para me atrasar na onda, de modo que pudesse ficar o máximo de tempo possível dentro do tubo, mas como era esperado, ainda não tinha pego o tempo certo da onda e acabei vacando. Nesse momento, percebi que o caldo poderia ser forte e que a brincadeira poderia se tornar perigosa[6]. Éramos nove surfistas e mais o instrutor na água, e apesar do meu intuito ter sido aproveitar o momento sem muitas preocupações, a razão me puxou para a realidade de ter pago R$ 450,00 por 50 minutos. Portanto, não há muito espaço para contemplação, pois você quer extrair o máximo daquele investimento. Consegui surfar oito ondas, sendo que vaquei em três. Ou seja, R$ 56,25 por onda ou R$ 9,00 por minuto.

As piscinas deslocam física e simbolicamente um dos principais referenciais do surfe: as ondas do mar (ROBERTS; PONTING, 2018). Atributos como natureza, aventura e descoberta são substituídos pela performance e a racionalização em um processo de camarotização (SANDEL, 2021) pautado pela previsibilidade do capital. Apesar de trazer um leque de novas possibilidades para o esporte espetáculo, certamente torna o surfe mais elitista e excludente. Em relação à dimensão corpórea, é provável que novas técnicas corporais (MAUSS, 1974) sejam transmitidas em prol de uma melhor eficácia e adequação ao surfe neste ambiente, talvez se aproximando mais da ideia de corpo máquina (LE BRETON, 2011). Mas colocando um pouco de lado a análise crítica esperada de um pesquisador, no final das contas me diverti como uma criança em um parque de diversões e o sorriso da foto não nega.

Referências

LE BRETON, D. Antropologia do corpo e modernidade. D. Petrópolis: Editora Vozes; 2011.

MAUSS, M. As técnicas corporais. In: Sociologia e Antropologia.Vol.IISão Paulo: EPU/EDUSP, 1974.

ROBERTS, Michael e PONTING, Jess. Waves of simulation: Arguing authenticity in an era of surfing the hyperreal. International Review for the Sociology of Sport, 2018.

SANDEL, Michel J. O que o dinheiro não compra: os limites morais do mercado/ Michel J. Sandel; tradução de Clóvis Marques. – 16ª ed. – Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

WACQUANT, Loic J. D. Corpo e alma: Notas etnográficas de um aprendiz de boxe / Loic Wacquant /  tradução Angela Ramalho – Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2002.


[1] Atualmente não há um termo exato associado a essas novas piscinas de ondas. Utilizo “nova geração”, “alta performance” para diferenciá-las das piscinas de ondas que já existiam anteriormente, mas que eram voltadas sobretudo para banhistas.

[2] Cair da prancha.

[3] Pontos de surfe cheios de surfistas.

[4] Ponto onde se descem as ondas, um pouco antes de começarem a quebrar.

[5] Desci a onda.

[6] Já existem relatos de acidentes nesse tipo de piscina e na Surfland é oferecido um capacete antes de cada sessão. Caso o surfista não queira utilizar, é necessário assinar um termo de responsabilidade.

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