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Copa do Mundo 2023 e por que ainda precisamos falar de luta no futebol de mulheres

Por Emanuela Amaral [1]

A Copa do Mundo Feminina de 2023 foi um sucesso absoluto e reafirmou que o futebol profissional praticado por mulheres é uma realidade. Seu êxito se expressou de diversas formas, seja na quebra de recorde com o público nos estádios, a crescente audiência nas transmissões ou até mesmo com o avanço da qualidade das partidas.

Essa foi a edição de maior público presente em estádios. Segundo a diretora de futebol feminino da FIFA, Sarai Bareman, a Copa registrou cerca de 1,9 milhões de torcedores nos estádios até a final.[2] Também alcançou números relevantes de audiência nas transmissões dos jogos. No Brasil, mesmo com a campanha decepcionante da seleção canarinha, foi possível observar números importantes de audiência. A Cazé TV, canal do Youtube[J3]  que transmitiu as 64 partidas da competição, alcançou mais de uma vez a marca de 1 milhão de dispositivos conectados simultaneamente.[3]

Além disso, foi possível observar a evolução do nível técnico e tático apresentado pelas jogadoras em campo. O primeiro mundial com 32 seleções impressionou por demonstrar que o futebol de mulheres tem evoluído em todo o mundo. Se a expectativa era que as seleções novatas fossem tomar goleadas constrangedoras, isso não se concretizou e, ao contrário, as seleções com menor tradição na modalidade surpreenderam e jogaram de igual para igual com as “grandes seleções”.

Fonte da imagem: Billboard.

Com todos esses números e avanços em torno da competição é difícil não se empolgar. A visão deve ser otimista, mas há indícios em torno do mesmo torneio que indicam que há ainda muita luta para se travar quando falamos dessa modalidade.

Já no início do mundial vimos notícias sobre problemas na seleção de Zâmbia em relação à dispensa de atletas, como a camisa 10 do time, Grace Chanda, que denunciou o técnico, Bruce Mwape, por assédio sexual. A FIFA, durante toda a participação de Zâmbia na competição, não se manifestou e ainda censurou o trabalho de jornalistas que questionaram o técnico sobre as denúncias.[4] Depois de muito barulho sobre o caso, a entidade foi obrigada a se manifestar já na fase de mata-mata, na qual a seleção zambiana já não participava mais, dizendo que o técnico está sendo investigado sobre o caso. Ainda não houve nenhum resultado da investigação até a finalização deste texto.

Também foi possível ver histórias que já estamos cansados de presenciar, como da seleção jamaicana que foi para a Copa graças a uma “vaquinha” feita na internet e principalmente pelo mecenato de Cedella Marley (filha de Bob Marley).[5] Isso porque as jogadoras não receberam estrutura suficiente da federação de futebol do país para ir para a Austrália.

Mas, talvez seja na campeã Espanha que percebamos o ponto-chave[J4]  da luta que ainda deve ser travada. É fato que a Espanha é um país europeu, portanto têm maiores condições financeiras, e também por isso tem aumentado seu investimento na modalidade. Não é à toa[J5]  que o país pode dizer que é campeão de todas as competições mundiais da modalidade. As vitórias na categoria de base abriram o caminho das espanholas para conquistar o campeonato mundial adulto. Porém , esse investimento foi fruto de mobilização de luta das próprias atletas.

Fonte da imagem: Reuters.

Das 11 jogadoras titulares, 7 eram jogadoras do Barcelona, que pode ser considerado hoje a melhor equipe do mundo, mas que profissionalizou o futebol feminino só em 2016, quando suas jogadoras fizeram um movimento interno de cobrança do clube para isso. No mesmo ano, as jogadoras espanholas romperam o silêncio e denunciaram seu treinador Ignacio Quereda, como autor de vários casos de assédios nos 28 anos que esteve à frente da seleção.[6]

O histórico de assédio é confirmado novamente em um episódio recente da seleção campeã mundial. A imprensa espanhola chamou esse movimento como a ‘revolta de las 15’,em que 15 jogadoras enviaram um manifesto por e-mail à federação questionando a falta de estrutura e denunciando processos de assédio moral por parte da comissão técnica. [7] Essas jogadoras se negaram a serem convocadas a partir daquela data (setembro de 2022) enquanto medidas não fossem tomadas em relação aos problemas que as mesmas apresentavam.

Nesse momento[J8] , a federação abriu uma guerra pública contra as “rebeldes”, manteve o técnico Jorge Vilda, e contratou uma empresa de marketing político para criar uma imagem pública das jogadoras como desertoras e mimadas. O conflito, pelo o que é possível observar nas notícias da mídia espanhola, não foi resolvido. Com pequenos avanços na estrutura oferecida pela federação, parte das jogadoras decidiu voltar atrás para participar da Copa, entendendo que tinham perdido o debate público do conflito.

Apesar da vitória no torneio, que poderia apagar de vez as reivindicações das jogadoras, um ato em meio às comemorações parece ter dado razão para a revolta das atletas. Isso porque, o presidente da Real Federação Espanhola de Futebol (RFEF), Luís Rubiales, no momento da premiação, deu, a olhos vistos, um beijo na boca de Jenni Hermoso, sem o consentimento da camisa 10 da seleção. Ou seja, a autoridade máxima do futebol espanhol assediou uma atleta em público. O ato foi seguido por muita repercussão e obrigou governantes espanhóis a se manifestarem.

Rubiales em um primeiro momento ofendeu aqueles que apontaram o assédio, mas teve que gravar um vídeo em que aparece constrangido pedindo desculpas. Mesmo com o vídeo constrangedor a pressão da opinião pública foi aumentando em cima do caso. O governo espanhol, chefiado por Pedro Sanchéz, do Partido Socialista Operário Espanhol, de centro-esquerda, entrou com diversas denúncias judiciais contra o presidente da federação. Mas nem os processos na justiça desportiva da Espanha impediram que o Luis Rubiales fosse protagonista, junto aos seus pares, de uma cena que expressa o que são as estruturas de poder no futebol. Rubiales convocou uma assembleia da RFEF para se pronunciar sobre o ocorrido.

Em um discurso de autoafirmação, o cartola conseguiu culpabilizar a jogadora, dizer que estava sendo vítima de um processo de difamação, alegou que as mulheres que o estavam criticando eram falsas feministas e ainda deu créditos única e exclusivamente ao treinador da seleção feminina de futebol espanhol, Jorge Vilda pela vitória da equipe no Mundial, sem ao menos mencionar o trabalho das jogadoras.[8] Após o discurso, uma maioria de homens engravatados aplaudiram o presidente da RFEF de pé. Esse cenário é uma verdadeira alegoria da reafirmação do poder masculino no futebol.

Importante ressaltar que houve resposta ao discurso de Rubiales, todas as jogadoras campeãs mundias da Espanha se manifestaram repudiando o ato e juntas divulgaram uma carta dizendo que não voltarão a vestir a camisa da seleção espanhola até que haja uma mudança na direção da federação. Outros poucos jogadores homens também se manifestaram dizendo que abrirão mão da convocação caso Rubiales continue no cargo. Jornalistas, políticos, e gente influente em todo mundo encampou os protestos, e a tag #SeAcabó tomou conta da pauta pública mundial. Aparentemente, dessa vez, o dirigente agressor terá que responder pelos seus atos. Por enquanto, a FIFA suspendeu o presidente por 90 dias e estuda endurecer ainda mais as sanções caso a RFEF insista em manter Rubiales na presidência.[9]

Esse episódio demonstra que, apesar dos avanços que o futebol profissional de mulheres teve nos últimos anos, há uma mudança importante que ainda não foi alcançada na modalidade: quem detém o poder.

É inegável a importância da popularização da modalidade e dos números alcançados, isso deve ser comemorado. Mas se não tivermos poder de fato para as jogadoras, e se quem estiver nos lugares em que se tomam as decisões, como nas presidências das Federações Nacionais da modalidade, não forem pessoas realmente comprometidas com o futebol feminino e com a equidade de gênero, o avanço será incompleto.

Os lugares de poder masculinos estão calcados nas sociedades mais antigas da humanidade, e esse é muitas vezes medido junto à capacidade desses homens de silenciar mulheres (BEARD,2018). Ainda são homens como Bruce Mwape e Luis Rubiales que detêm  o poder no futebol profissional de mulheres. São eles que trabalham para manter as mulheres em silêncio.

Romper com o silenciamento e tomar o poder é um desafio complexo, mas que deve ser um horizonte a ser buscado por quem quer impulsionar a modalidade. Há muitas que já trabalham para isso, quanto mais mulheres perceberem isso, mais serão os motivos para comemorarmos a cada final de Copa do Mundo.

Versão final do texto enviada no dia 31 de agosto de 2023.

 Referências Bibliográficas:

 BEARD, Mary.  Mulheres e poder: Um manifesto . São Paulo: Crítica; 1ª edição. 28 março 2018.160p.


[1] Mestre em Comunicação pelo Programa de Pós Graduação em Mídia e Cotidiano pela Universidade Federal Fluminense (UFF)

[2] Disponível em: < https://www.terra.com.br/nos/de-maior-publico-a-atleta-trans-as-barreiras-que-a-copa-feminina-2023-derrubou,258e1ca951e362e47f720a538a1e6d3ewtfc7fp7.html > . Acesso em: 20 de agosto de 2023.

[3]  Disponível em: < https://trivela.com.br/futebol-feminino/copa-do-mundo-feminina/copa-audiencia-recordes-brasil/> Acesso em:20 de julho de 2023.

[4] Disponível em: < https://ge.globo.com/futebol/copa-do-mundo-feminina/noticia/2023/07/25/zambia-tem-coletiva-encerrada-apos-perguntas-sobre-abuso-sexual.ghtml> Acesso em: 20 de agosto de 2023.

[5] Disponível em: <https://ge.globo.com/futebol/copa-do-mundo-feminina/noticia/2023/08/02/filha-de-bob-marley-transforma-jamaica-para-fazer-historia-na-copa-feminina.ghtml> Acesso em: 21 de agosto de 2023

[6] Saiba mais no documentário ‘Romper el silencio. La lucha de las futbolistas de la Selección’ . Disponível em:< https://www.youtube.com/watch?v=O6B-dmw0spE&list=WL&index=66&t=592s> Acesso em:21 de agosto de 2023.

[7] Disponível em: < https://www.relevo.com/futbol/mundial-femenino/paso-juegan-espana-respuestas-conflicto-20230720100443-nt.html> Aceso em: 21 de agosto 2023

[8] Discurso completo disponível em: < https://www.youtube.com/watch?v=N9R7XYq1nLA> Acesso em: 31 de agosto de 2023.

[9] Disponível em: < https://www.espn.com.br/futebol/copa-do-mundo/artigo/_/id/12497021/fifa-suspende-rubiales-provisoriamente-beijo-forcado-jogadora-espanha > Acesso em: 31 de agosto de 2023.

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O saldo da seleção brasileira feminina na Copa do Mundo de Futebol: mais vitórias que derrotas

Por Soraya Barreto Januário

Este texto começou a ser escrito em dias muito dolorosos, dias que se seguiram a eliminação precoce da seleção brasileira de mulheres da Copa do Mundo de 2023, durante a fase de grupos, na Austrália e Nova Zelândia. Um resultado que ninguém esperava, nem nos piores pesadelos. Diante da infinidade de assuntos que poderia debater neste momento, uma fala sobre a eliminação que ecoou nas redes sociais digitais e na mídia hegemônica me chamou a atenção: segundo o tribunal da internet e da mídia esportiva, hegemonicamente masculina, a seleção feminina não podia, justamente agora, que tem “alguma” estrutura, decepcionar dessa forma. É interessante notar a misoginia que empacota este pensamento travestido de opinião. O deboche e o discurso de ódio é , de forma evidente,  fruto da estrutura machista que a nossa sociedade ostenta, somado ao discurso neofascista no qual este país foi parcialmente tomado. Caso estrutura ganhasse Copa, a nossa seleção de homens tinha a obrigação de ter muito mais estrelas que as cinco que ostentam no peito – e devo lembrar que a história do futebol das mulheres no Brasil é recente, começa profissionalmente quando a modalidade masculina já era tricampeã mundial.

Finalmente assistimos a mídia abraçar e publicizar este percurso, contando o histórico de  proibições, seja por força de lei, como o Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, seja pelas invisibilidades pautadas em premissas patriarcais. Essa história vem sendo escrita e contada ao longo dos anos por pesquisadoras e ativistas do futebol das mulheres, como exemplos ressalto os trabalhos de Silvana Goellner (2003; 2005; 2021), Ludmilla Mourão e Marcial Morel (2005), Leda Costa (2017), Aira Bonfim (2019), Lu Castro e Darcio Ricca (2021) e meu último livro organizado em parceria com o Jorge Knijinik (2022). As motivações do afastamento, invisibilidade e proibições para que as mulheres  participassem da construção da cultura futebolística brasileira estão claramente associadas a premissas biologizantes, pautadas numa ideia de que a “condição de mulher” e a “natureza feminina” seriam impeditivas de certas práticas, dentre elas o futebol. Um claro mecanismo biopolítico de coerção e vigilância do corpo feminino. Retomo essa história aqui devido à grande influência que este fato histórico tem na falta de desenvolvimento e no apagamento das mulheres no mundo clubístico e futebolístico, bem como nas dificuldades enfrentadas pela modalidade até os dias atuais (Barreto Januário; Knijnik, 2022).

Se formos traçar um paralelo histórico mais recente, devemos lembrar que a Copa de 2015, no Canadá, pouco ecoou na mídia hegemônica, seja noticiosa ou publicitária, como demonstrei com outras pesquisadoras, em trabalhos realizados no OBMIDIA UFPE (Barreto Januário; Veloso, Cardoso, 2016). Assistimos  ao inegável crescimento, com  aumento em 533% de peças jornalísticas veiculadas sobre a competição (Barreto Januário; Lima; Leal, 2020), da Copa do Mundo de Futebol de 2019, na França. Além disso, foi a primeira em que todos os jogos da seleção foram televisionados. Lá em 2019 ouvimos também o Guaraná Antárctica, que já patrocinava a seleção masculina e feminina há anos, ativar o patrocínio com a seleção das mulheres de forma efetiva. Até aquele momento, essa havia sido a competição com maior visibilidade da história da modalidade e que permitiu o fortalecimento do debate em torno do futebol de mulheres no Brasil. Devo ressaltar que essa ascensão não ocorreu do dia para a noite, e se deve a muita luta, persistência e insistência de muitas mulheres, jogadoras, técnicas, jornalistas e ativistas do futebol de mulheres e ainda, dos feminismos. Somado a isso, o fenômeno conhecido como “primavera feminista” que observou o aumento do agendamento midiático de pautas e bandeiras feministas, permitiu também uma maior abertura da visibilidade da modalidade. O mau desempenho da seleção brasileira masculina em 2018 também foi um fator  que despertou o debate e gerou interesse de uma parte da população sobre a seleção de mulheres.

A Copa do Mundo de 2023, sem sombra de dúvida, está sendo ainda maior que o divisor de águas que foi a edição de 2019. Alguns pontos merecem ser ressaltados, como a cobertura para além dos jogos da seleção, com apresentação e biografia das principais atletas brasileiras e estrangeiras, acompanhamento das famílias das jogadoras nacionais e abordagem de tópicos da vida delas; cobertura dos jogos das outras seleções; publicidade de diversas marcas nacionais e internacionais; e claro, a ajuda inestimável do consumo on demand, streamings e plataformas digitais, como o canal no Youtube Cazé TV, que comprou o direito de transmissão de todos os jogos e montou um time respeitável de comentaristas, narradoras e repórteres, além de uma equipe que produziu conteúdo e entretenimento in loco. Tudo isso reforça a maturação de uma possível mudança significativa na cobertura midiática hegemônica e independente.      

Esse fato dialoga com a melhora significativa da cobertura esportiva entre as edições de 2019 e 2023 que, mesmo com uma pandemia no meio, parece ter diminuído substancialmente o chamado “movimento sanfona” – Ludmila Mourão e Márcia Morel (2005) defenderam a existência desse movimento em referência ao interesse sobre o futebol de mulheres na mídia, e observaram que a modalidade não teria encontrado um espaço permanente na sociedade e no jornalismo esportivo. As autoras pontuam ainda que este interesse tinha o comportamento de ondas, oscilando de acordo com a visibilidade  de certas competições, como é exemplo as Olimpíadas e a própria Copa do Mundo. Leda Costa (2017) observa o mesmo movimento, afirmando haver alguns booms de pautas do futebol de mulheres na mídia de massa, que acabam se dissipando quando as competições finalizam. 

Com efeito, posso dizer sem medo, que a Copa de 2023 marca um período de continuidade significativo. Como exemplos, posso citar que a maior rede de TV nacional agora apresenta os melhores momentos e gols do brasileirão feminino e a “equipe” de cavalinhos, mascote lúdico que apresenta a corrida entre os times na disputa do campeonato brasileiro, personagem do programa dominical Fantástico da Rede Globo, conta  agora com uma “eguinha” para falar do futebol de mulheres. Outro ponto de destaque é o aumento significativo de mulheres jornalistas cobrindo, comentando e narrando a Copa. Na própria TV Globo, que em 2019 tinha apenas Ana Thaís Matos comentando os jogos, compôs uma equipe com 11 profissionais entre narradoras, comentarista e a jornalista Bárbara Coelho que cobriu a Copa na Austrália (Sá, 2023). É um momento de consolidação do espaço da mulher, inclusive no jornalismo esportivo. São processos mediaticamente pedagógicos que começam a fomentar uma continuidade com consistência. Outro tópico a destacar é o aumento de perfis em redes sociais digitais, sites e blogs, que além de ativistas produzem conteúdo especializado, como Dibradoras, Miga Esporte Clube, Passa no DM, @futebolfeminino.e-arte, @futebolporelas, @paginafutebolfeminino, @planetafutebolfeminino, entre outros. Somado a isso, importa ressaltar que a ampla cobertura da mídia de massa em torno da eliminação, com comentários, análises e críticas embasadas e duras é sinal de avanço também, já que por muito tempo a eliminação da seleção rendia no máximo uma chamada e notas menores, para além de comentários condescendentes, tratando a modalidade como café com leite, ao que finalmente a modalidade é vista de forma mais profissional com as cobranças devidas.

E voltando a falar em estrutura, o fato de que a seleção finalmente teve voo fretado, camisa com escudo próprio, linha de uniformes feitos para elas, a maior delegação da história do futebol de mulheres do Brasil com 31 integrantes e dentre eles, 18 eram mulheres (em 2019 foram apenas 4), devo dizer que ainda é o mínimo. Assistimos com alegria ao despertar de um novo cenário, fruto de muita luta, ativismo, briga e talento. Todavia, o momento é de cobrança, seja pelo futebol desastroso apresentado contra a Jamaica, seja por uma técnica inerte ao que ao mundo estava assistindo nas duas últimas partidas ou ainda pela apatia apresentada no jogo de eliminação. Cobrar e criticar é respeitar o futebol das mulheres, lamentar é respeitar a dor de ver uma saída precoce num momento histórico tão importante para a modalidade nacional. Marta merecia um final de carreira mais coerente com sua trajetória, não necessariamente precisava ser o título, mas um último ato digno de sua grandiosidade e este é um dos meus maiores lamentos.

Por fim, resta dizer que foram muitas conquistas sim, é preciso celebrá-las. Tivemos um número recorde de seleções disputando a Copa, pulamos de 24, em 2019, para 32, em 2023. Ampliamos o número de técnicas a frente das seleções, foram 12 contra nove na última copa. O futebol das mulheres segue vivo e precisa continuar lutando. São muitas lutas que precisam ser travadas ainda, como nos disse a rainha, “tem que chorar antes para sorrir depois”. Enxuguemos as lágrimas e sigamos!


Referências:

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, DanielFutebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019Observatório (OBS*), v. 14, n.4, December, 2020.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya; KNIJNIK, Jorge D. Novos rumos para as mulheres no futebol brasileiro. Futebol das mulheres no Brasil: emancipação, resistências e equidade, p. 434-458, 2022.

Bomfim, Aira. F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019, Dissertação – Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro.

CASTRO, Luciana; RICCA, Darcio. Futebol feminista: ensaios, 2021.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

GOELLNER, Silvana. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. 

GOELLNER, Silvana. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 19(2), 143-151, 2005

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campoRevista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 26, n. 2, p. 73-86, 2005.

SÁ, Luiza. Globo aposta em diversidade e quer bater recordes na Copa feminina. UOL, 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/07/12/globo-aposta-em-diversidade-e-quer-bater-recordes-na-copa-feminina.htm Acesso: 02 ago. 2023.

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Da ficção à realidade: os homens que odeiam as mulheres

Assim como no ano passado, dois mil e vinte e três também é ano de Copa do Mundo. Agora é a vez das mulheres entrarem em campo para um jogo que vai além das quatro linhas do gramado. Forças políticas, sociais, esportivas se entrelaçam nesse megaevento que coloca em evidência, tanto a potência das mulheres, quanto o ódio destilado a elas.

A intolerância com aquelas que rompem os padrões normativos de feminilidade não é de hoje. No esporte não é novidade que o futebol e outras modalidades foram proibidas – por lei – para o gênero feminino. Isso acontece em pleno Estado Novo, durante o governo ditatorial de Getúlio Vargas. Durante 38 anos (1941 a 1979), as mulheres praticavam um futebol de guerrilha e de guerreiras. Clandestino. Marginal. Sagaz. Resistente.

A justificativa para a proibição se encontrava na – suposta – fragilidade dos corpos femininos, que serviam para engravidar, não para jogar bola. O mesmo corpo que pare é o corpo que corre, é o corpo que se retrai, é o corpo que é machucado. Corpo que é atacado diariamente por homens, os mesmos que nos julgam frágeis, os famosos “cidadãos de bem”. Inseguros. Complexados. Covardes. Violentos.

O título desse texto faz alusão a uma coleção de livros do autor sueco Stieg Larsson “Os homens que não amavam as mulheres” ou “Os homens que odeiam as mulheres”, dependendo da tradução. O livro, embora fictício, narra de forma bem verossímil como os homens se apropriam dos corpos femininos e, como um sistema social falho, pode também estar à serviço da misoginia.

A escolha por este título em específico também veio após me deparar com a entrevista da jornalista Milly Lacombe, no videocast “Desculpa alguma coisa”, no qual ela afirma: “homem gosta de homem, das mulheres eles só querem o sexo”. Há quem diga que essa frase é forte demais, ou que “as coisas não são bem assim”. Fica difícil, porém, contestá-la quando, em um dia que era para ser festivo para os amantes de futebol, uma estreia de Copa do Mundo, você se depara com a notícia de que a CazéTV teve que desativar os comentários da transmissão Nova Zelândia x Noruega, o jogo de abertura da competição, por estarem recebendo centenas de mensagens preconceituosas.

O que leva um sujeito a acordar de madrugada (a partida começou às 04h30 da manhã), abrir o computador, buscar a transmissão do jogo, e escrever coisas para menosprezar as mulheres? Em qualquer rede social, as postagens relacionadas à Copa do Mundo Feminina são inundadas de comentários preconceituosos feitos por homens que, além de ignorantes, propagam desinformação, e não têm base nenhuma para serem feitos.

Fonte da imagem: Terra / Foto: Brendan Moram/Sportsfile via Getty Images

Outra situação que movimentou os bastidores da Copa foi a denúncia anônima de uma atleta da Zâmbia relatando abuso sexual por parte do treinador da seleção, Bruce Mwape. O relato veio à tona através de uma reportagem do The Guardian. O resultado: duas atletas afastadas. A goleira Hazel Nali, por lesão, embora ela tenha dito que nunca recebeu os exames médicos. E mais recentemente a meio campista Grace Chanda, uma das lideranças da seleção, também foi cortada por “indisciplina”. Esse é o recado que a Associação de Futebol da Zâmbia dá para as mulheres que ousam lutar pelos seus direitos: denuncie que é vítima de violência e perca uma Copa do Mundo. Uma forma de violência institucional apoiada na desqualificação da experiência feminina e na validação do comportamento masculino.

Em uma conversa com a jornalista Gabriela Moreira, ela relatou que tinha mais facilidade de se conectar com as jogadoras mulheres do que com os atletas homens, quando o assunto eram pautas sociais, pois a trajetória das mulheres é indissociável dessas causas. Ou seja, se na Copa do Mundo Masculina os homens recuaram no protesto de usar a braçadeira em apoio à causa LGBTQIA+ por medo da punição com cartão amarelo, para as mulheres, o que é um cartão em meio a tanta violência que elas já sofreram e sofrem? São sentidos diferentes porque são sofrimentos diferentes.

Como dito no início, porém a história das mulheres é de luta, e não de ressentimento. Resiliência. Força. De alguns anos para cá soma-se a essas palavras: companhia. A consciência é de que a caminhada é longa, mas não mais só. Mulheres torcedoras, mulheres jogadoras, mulheres pesquisadoras, mulheres apropriadas de seus corpos. Mulheres que não odeiam as mulheres.

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Por que a Revista Placar optou por não “manchetar” a Copa do Mundo Feminina 2023?

Por Daniel Leal

*Doutorando em Comunicação pela Universidade Federal de Pernambuco e membro do ReNEme – Rede Nordestina de Estudos em Mídia e Esporte. @lealdaniel87 (IG).

Passado o ciclo de quatro anos de duas históricas edições relativas ao futebol de mulheres, a Revista Placar voltou a dar um espaço de maior destaque à modalidade. Se por um lado, existe uma inequívoca frustração por ver a mais longeva e importante revista nacional esportiva (RIBEIRO, 2007) perder a oportunidade de trazer a Copa do Mundo Feminina 2023 como manchete, por outro não se pode desprezar mais uma casa andada com avanços que pontuaremos. O ponto é: já não era momento suficiente para solidificar essa evolução com uma nova capa dedicada à modalidade?

Em dezembro de 2020, publiquei a dissertação Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres sobre a mutabilidade acerca dos critérios de noticiabilidade nas últimas três décadas na Placar. Valores-notícia (VN) como “Musa ou modelo atleta”, pouco a pouco, ficaram para trás em detrimento de outros que surgiram – como, por exemplo, a figura de “Marta” como VN por si mesma.

O fato é que, historicamente, existe uma espécie de “estica e puxa” com o desenvolvimento do futebol de mulheres. Isso faz com que especialmente as pesquisadoras e pesquisadores, mas também torcedores, as próprias atletas e pessoas que fazem a modalidade, estejam sempre “armados” para contra-atacar ao mínimo sinal de retrocesso. Talvez até mais: a quebra no ritmo de evolução é, hoje, suficiente para críticas. Difícil julgar sem sentir na pele. E não é só sentir, há ciência envolvida nesse protesto.

Faz quase duas décadas que Ludmila Mourão e Marcia Morel (2005) observaram o que chamaram de “efeito sanfona” na cobertura do futebol de mulheres no Brasil. Mais de dez anos depois, Leda Costa (2017, p. 505) basicamente repetiu o cenário em outro contexto, já mais próximo ao atual, ao afirmar (e prever) que “outros booms do futebol feminino poderão ser notados de tempos em tempos”. Eu entendo que as duas afirmações são didáticas para que evitemos precipitações na análise que cerca a modalidade e, mais do que isso, as citações permanecem atualíssimas.

Seguramente, sem tensionamento, pouco teria mudado. Foi, por exemplo, fruto do jornalismo feminista das Dibradoras que a Placar, na histórica edição 1453 de julho de 2019, realizou o passo mais emblemático do seu revisionismo histórico relativo ao futebol de mulheres. Aquele editorial, sob o título “A busca pela igualdade”, trouxe um pedido de desculpas histórico pela trajetória machista da revista ao noticiar, não só o futebol de mulheres, mas as mulheres no esporte como um todo. “Nas décadas de 1980 e 1990, olhávamos o futebol feminino com uma visão equivocada, quase objetificando as mulheres jogadoras. Pedimos perdão por aquele período de ignorância e buscamos evoluir” (PLACAR, 2019, ed. 1453). Mas a Placar, a instituição precisa entender que não adianta se desculpar na teoria e falhar na prática.

Fonte da imagem: Twitter.

O editorial foi escrito pelo jornalista Ricardo Corrêa, à época no comando da revista. Apesar de não estar assinado, ele confirmou à nossa pesquisa ter escrito o texto e que a ideia partiu de uma publicação das Dibradoras. O sucesso da Copa do Mundo, com audiências recordes nas televisões do Brasil e do mundo (BARRETO JANUÁRIO; LIMA; LEAL, 2020) aguçou ainda mais o progressivo interesse da Placar pelo futebol de mulheres. A edição 1457, mais uma vez histórica, trouxe pela primeira vez na história do cinquentenário periódico (LEAL, MESQUITA, 2021) uma jogadora de futebol sozinha na capa: Marta. Foi uma edição inteira – e até hoje única – dedicada exclusivamente ao futebol de mulheres.

Placar, edição 1501, julho de 2023

No mês da nona edição do Mundial Fifa para o futebol de mulheres, a revista Placar ficou entre a frustração e o progresso. O primeiro, obviamente, por não ver novamente uma edição exclusiva ao futebol de mulheres e, pior, não ter sequer a capa da revista dedicada ao tema. Avanço porque, sim, a revista, na obrigação jornalística de noticiar o fato, deu um passo adiante na sua lenta, mas gradual caminhada de evolução.

Primeiramente, vale salientar que a revista está novamente sob nova direção. Desde o final de 2022 a Editora Abril realizou um acordo de licenciamento da marca, que passou a ser administrada pela Score Editora, do empresário carioca Alan Zelazo. Leal e Mesquita (2021) trazem um histórico detalhado da história do periódico.

A mudança, obviamente, impacta diretamente na linha editorial da revista. Internamente, a decisão de escolher Casemiro, jogador do Manchester United, em detrimento à Copa Feminina, foi questionada e alvo de debates. A partir de fontes consultadas pela nossa pesquisa, ficamos sabendo que foi difícil convencer parte da direção de que valeria ter um guia da Copa – o primeiro já feito.

Fonte da imagem: Placar.

Teria pesado a favor da capa com um jogador o “público raiz” da revista, composto majoritariamente por consumidores homens e do futebol masculino. Neste contexto, a revista ainda recebeu um convite para ir à Inglaterra entrevistar Casemiro. A negociação para essa exclusiva era ter o atleta da Seleção Brasileira como capa da revista.

A solução encontrada foi dividir os esforços: metade Especial Premier e metade guia da Copa feminina. Na capa, inclusive, há uma chamada para o guia feminino em que a atacante Debinha, destaque da Seleção, aparece numa fotografia menor, no canto inferior. O esforço de alguns por ter uma mulher na capa acabou sendo um tiro pela culatra, a partir de uma questão semiótica em que a mulher aparece inferiorizada em detrimento do homem, reforçando o lugar de subalternidade dado pela revista ao futebol de mulheres mesmo às vésperas da maior competição mundial da modalidade.

Outro ponto destacado, de acordo com a nossa apuração, foi a dificuldade em entrevistar nomes como Bia Zaneratto e Marta, com assessorias de difícil diálogo. Diante isso, a Placar trouxe 33 páginas, com ótimo conteúdo – incluindo material de colaboradores, como a historiadora Aira Bonfim, hoje uma das maiores referências sobre a modalidade no país.

O balanço interno da equipe comandada pelo jornalista Fábio Altman é de que a decisão foi acertada. A repercussão mundial com a entrevista exclusiva com Casemiro teria valido a pena. Além disso, a revista comemora o fato de ter mais repórteres na equipe – casos de Bianca Molina, Isabela Labate e Maria Fernanda Lemos. Existe, de fato, um quê de progresso que é freado por iminentes questões mercadológicas e mesmo construcionistas – afinal, no mundo, há um machismo enraizado. É inegável, e louvável, o esforço que parte da equipe faz para dar espaço (com conteúdo qualificado!) ao futebol feminino.

Mas até que ponto, na sociedade atual, ignorar a relevância de ter uma manchete com uma jogadora de futebol na capa seria menos impactante? Quanto de imagem positiva a revista conseguiu agregar à marca com a capa de Marta em 2019? Que mensagens ao mercado/público a Placar passa, ou deixa de passar, ao perder a oportunidade de “manchetar” o Mundial Feminino? Será que o “impacto mundial” pontual com a entrevista de Casemiro seria mesmo maior do que uma Debinha reinando à frente da maior revista esportiva do país? São ponderações a fazer.

No editorial, inclusive, a revista traz uma nova reflexão sobre a relevância de dar espaço ao futebol de mulheres e à evolução da modalidade. Num trecho, o texto diz:

“Haverá sempre algum incômodo relativismo, ‘porque os humores eram outros, a sociedade era outra, o machismo imperava etc. etc.’ – nós mesmos, de PLACAR, fomos dar a primeira capa da revista exclusivamente dedicada a mulheres em 2019, com uma foto da rainha Marta. Mas não pode ser assim, o jogo tem de mudar”.

De fato, o jogo tem de mudar. Vamos juntos?

REFERÊNCIAS

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, Daniel. Futebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019. Observatório (OBS*), VOL. 14, Nº4, December, 2020.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

LEAL, Daniel. Noticiabilidade na Placar: a mutação dos valores-notícia em três décadas de cobertura do futebol de mulheres (Dissertação de Mestrado). Programa de Pós-Graduação em Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, PE, Brasil, 2020.

LEAL, Daniel, MESQUITA, Giovana. A singularidade da cinquentenária Placar para o contexto histórico do jornalismo esportivo no Brasil. Sur le journalisme, About journalism, Sobre jornalismo [En ligne, online], Vol 10, n°2 – 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: A diferença que faz uma medalha de prata. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, 2005.

PLACAR. São Paulo: ed. Abril, edição 1453, jul., 2019.

______. São Paulo: ed. Abril, edição 1457, nov., 2019.

______. São Paulo: ed. Score, edição 1501, jul., 2023.

RIBEIRO, André. Os donos do espetáculo: histórias da imprensa esportiva do Brasil. São Paulo: Terceiro Nome, 2007.

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Há cem anos: a inauguração de Wembley recebeu 250 mil pessoas – e quase terminou em tragédia

Final da Copa da Inglaterra de 1923 teve público estimado em mais de 250 mil presentes, contou com a presença do Rei, deixou milhares de feridos e marcou a memória do futebol inglês

Até a criação do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, o símbolo maior da popularidade atingida pelo futebol cabia ao Wembley, estádio localizado na cidade de Londres, capital do Reino Unido. Utilizado pela primeira vez em 28 de abril de 1923, na final da Copa da Inglaterra (FA Cup) em que o Bolton venceu o West Ham por 2 a 0 para um público estimado em mais de 250 mil pessoas, essa que é uma das arenas mais famosas do mundo agora completa 100 anos de uma história repleta de curiosidades, antes, durante e depois de sua inauguração.

Hoje, transformado em moderna arena após longo período reforma entre 2000 e 2007 – quando passa a ser propriedade de The Football Association (a federação inglesa) –, o estádio de Wembley foi originalmente projetado como parte da British Empire Exhibition de 1924, um dos muitos eventos do tipo “exposição universal” realizados à época.

Wembley na época da inauguração — Foto: Divulgação

Essas grandes e custosas exibições serviam como momento especial para projetar a imagem desses países – no caso das potências, as suas ambições imperialistas (o Brasil, por exemplo, realizou a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922).

Era uma oportunidade de apresentar inovações tecnológicas, proporcionar oportunidades comerciais e, de certa forma, também impulsionar o interesse dos grupos econômicos locais ao redor do globo. O nome do Wembley, inicialmente, não à toa, era “The Empire Stadium” (O Estádio Imperial).

Portanto, erguia-se naquele momento um símbolo do poderio do império e da grandiosidade dos feitos do capitalismo britânico, elaborado exatamente para causar impacto visual e projetar uma imagem de solidez do Reino Unido e de suas colônias após a I Guerra Mundial.

Quase demolido

Desenvolvido por um grupo de empreiteiros e projetado para receber até 126 mil espectadores, o estádio de Wembley não tinha previsão de ter tanta longevidade. Assim como quase toda a estrutura da grandiosa “Exhibition” realizada em um imenso terreno de Wembley Park, no subúrbio de Londres, a ideia original era simplesmente demolir o estádio logo em seguida, uma vez que desde o começo a estrutura era considerada financeiramente inviável.

Isso só não aconteceu porque o investidor imobiliário James White teve a ousada ideia de adquirir o que sobrou do evento, especular sobre a estrutura e repensar sobre a demolição do estádio. White morre pouco depois (em suicídio, em razão de problemas financeiros) e quem acaba ficando com o Wembley é seu funcionário, o jovem Arthur Elvin, um rapaz de 25 anos que havia lutado na guerra e depois trabalhado como vendedor de cigarros em um quiosque da “Exhibition” (!). 

Foi Arthur Elvin quem se responsabilizou, ao longo de muitas décadas, por manter o gigantesco estádio de Wembley de pé, através de uma sociedade criada para adquirir a estrutura. O fato era que praças daquela magnitude não eram comuns. Era uma época em que os clubes esportivos de futebol e rugby já construíam as suas próprias praças desportivas que, ainda que com menor capacidade, já eram capazes de receber públicos de mais de 60 mil espectadores (como se imagina, em condições bem pouco confortáveis).

Diferente do que ocorreu no Brasil e nos principais centros do futebol da Europa nas décadas seguintes, a Inglaterra não costumava erguer grandes estádios públicos. Isso obrigava a Football Association (FA, a federação inglesa) a buscar acordos para utilizar praças esportivas, companhias privadas e clubes (que já eram em sua maioria sociedades limitadas) na ocasião da grande final da FA Cup – prioritariamente na capital Londres.

Wembley recebeu a final da última Eurocopa entre Inglaterra e Itália — Foto: Lee Smith/Reuters

A FA Cup, que em 2023 será disputada entre Manchester United e Manchester City, é a competição de futebol mais antiga do mundo ainda em disputa, realizada desde 1872. Só não havia completado 50 anos quando da inauguração do Wembley porque foi interrompida por quatro edições durante a I Guerra Mundial.

É de se imaginar, portanto, o tipo de sensação de “tradição anual” que cinco décadas de um evento quase ininterrupto provocava na população local. Não apenas torcedores dos clubes finalistas, mas o público em geral se excitava para assistir ao evento decisivo da competição. O fluxo de pessoas no sofisticado sistema ferroviário britânico aumentava consideravelmente rumo a Londres e a própria população da metrópole se mobilizava em massa para testemunhar a final da copa.

É certo que já havia registros de finais com mais de 100 mil presentes no estádio Crystal Palace, como em 1901 (110 mil); em 1905 (101 mil), em 1913 (121 mil). Entretanto, em razão de problemas financeiros dos proprietários desse estádio, a final da FA Cup passou a ser realizada em Stamford Bridge após a guerra. Um estádio menor que não comportava a demanda desse grande evento anual – que recebeu no máximo 72 mil espectadores.

É em virtude desse quadro pouco estruturado de estádios que a FA vai se interessar no projeto de construção do Wembley e definir, ainda em 1921, que esta seria a sede da final da FA Cup de 1923. É quando a história começa a acontecer.

Artigo publicado originalmente no site GE.Globo.com, em 28 abr. 2023 por Irlan Simões.

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FIFA+: streaming com fontes para investigações sobre o futebol

Por: Marcelo Viana

O “FIFA+”[1], ou melhor, o FIFA Plus, é uma plataforma de streaming que oferece ao pesquisador uma variedade de fontes. Nela é possível assistir futebol ao vivo, ter acesso aos conteúdos originais da própria FIFA,[2] documentários de parceiros, podcasts, textos de diferentes naturezas e uma série de informações sobre o esporte mais popular do mundo. De fato, não é uma plataforma que tenha sido construída para a pesquisa histórica ou das ciências humanas. Ainda assim, dentro dela é possível investigar e realizar análise crítica de fontes, sobretudo aqueles que estão interessados na história do futebol e sua evolução ao longo do tempo.

O recém criado “FIFA+” é um prato cheio para os pesquisadores da área de esporte. Divulgação: FIFA.

Ao oferecer acesso aos ‘filmes oficiais’, podemos não apenas ver jogos e agentes históricos, mas também analisar este conteúdo com o objetivo de apreender melhor o contexto histórico em que o jogo estava inserido. Logo, é atentar à imersão subjetiva da vida em sociedade, do futebol como produto cultural e social pertencente a determinada época e, mais do que isso, como produção de significado e expressão de determinada cultura em determinado tempo histórico. Confesso que ao assistir aos filmes oficiais de 1930 até 2018, no futebol masculino, notei o quanto as vestimentas, os cabelos, as barbas, os objetos transportados pelos jogadores e até o material esportivo foram sendo modificados ao longo do tempo. O mesmo pode ser dito para além das quatro linhas.

 Outro exemplo significativo foi o ‘filme oficial de 1930’,[3] a primeira Copa do Mundo que, na época, se chamava Taça Jules Rimet, brinda o espectador com imagens aéreas belíssimas de Montevidéu. Conta também com a presença, o relevo e o rosto de trabalhadores da região da Prata que levantaram o icônico estádio Centenário.

Por vezes, quando estudamos o fenômeno cultural, que é o futebol, colocamos à margem, em certa medida, aqueles que produziram os monumentos, os quais os homens – e cada vez mais as mulheres – se tornam gênios/as do ludopédio. Com isso, ao assistir o curto documentário sobre a Copa de 1930, vemos a reflexão basilar no campo da História Social que é pensar o peso ignorado, negligenciado e invisibilizado do registro da classe trabalhadora em contextos, sobretudo nessa indústria que hoje, movimenta enormes cifras apenas na FIFA-IB.

Ainda sobre os ‘filmes oficiais’ da FIFA, notamos uma pretensão da Instituição de construir uma história linear da própria Instituição se confundindo com a do futebol mundial, cruzando o futebol praticado por homens e aqueles praticados por mulheres. Embora Joseph Blatter tenha dito no final da década de 90 que “o futuro do futebol é feminino”,[4] com a primeira Copa do Mundo ocorrida em 1991,[5] na China, o primeiro ‘filme oficial’ da FIFA consta de 2011. Sendo assim, dentro do próprio canal oficial ainda consta um hiato de duas décadas de silenciamento e invisibilidade de corpos femininos praticantes do futebol.

Acredito que a própria ‘FIFA +’ mereceria um estudo de caso próprio. Salta aos olhos o quanto o futebol se tornou capaz, ele mesmo, de se tornar um produto de expressão cultural que nos une e, ao mesmo tempo, nos distingue. Na medida em que se apresenta como ‘universalizante’, foi possível notar processos particulares na relação do fenômeno – jogo de bola – com determinadas sociedades. Talvez, identificar mais do que a importância da Copa do Mundo para as sociedades contemporâneas, seja interrogar os processos de como este fenômeno se relaciona com essas sociedades e questionar como estas são socialmente construídas. Não sabe o que fazer após terminar essa leitura? Que tal navegar um pouco no ‘FIFA +’.


[1] Disponível em https://www.fifa.com/fifaplus/pt. Acesso em 5 abr. 2023.

[2] FIFA significa: Fédération Internationale de Football Association que, no português seria Federação Internacional de Futebol Associação.

[3] Disponível em https://www.fifa.com/fifaplus/pt/watch/movie/3XF3edWbspCLGbpdca1uVM. Acesso em 5 abr. 2023.

[4] TIESLER, Nina Clara, et al. Introdução: O Futebol Globalizado: Uma Perspectiva Lusocêntrica. Análise Social, vol. 41, no. 179, 2006, pp. 313–43. JSTOR, Disponível em http://www.jstor.org/stable/41012272. Acesso em 6 abr. 2023.

[5]  Disponível em https://museudofutebol.org.br/crfb/eventos/616956/. Acesso em 6 abr. 2023.

Produção audiovisual

Já está no ar o episódio 59 do Passes e Impasses

O tema do nosso quinquagésimo nono episódio é a “Misoginia e racismo no surfe brasileiro”. Com apresentação de Júlio Cesar Barcellos e André Tavares, gravamos com Érica Prado, apresentadora, repórter, produtora de conteúdo, modelo e ex-sufista profissional.

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no SpotifyDeezerApple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o quinquagésimo nono episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Zumbi”, de Jorge Ben.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):

Negras raízes: A Saga de Uma Família – Alex Harley [Livro]

Eliana Alves [Autora]

Djamila Ribeiro [Autora]

Afrosurf – Mami Wata [Livro]

Equipe

Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Filipe Mostaro e Fausto Amaro
Roteiro e produção: André Tavares
Edição de áudio: Abner Rey
Apresentação: Júlio Cesar Barcellos e André Tavares
Convidada: Érica Prado

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Copa do Mundo e etnocentrismo padrão FIFA


Mesmo promovendo o principal evento do futebol mundial no Catar, um país com leis que legitimam a homofobia, FIFA estende bandeira LGBTQ+ em sua sede. Foto: Divulgação/Twitter oficial da FIFA

Mesmo promovendo o principal evento do futebol mundial no Catar, um país com leis que legitimam a homofobia, FIFA estende bandeira LGBTQ+ em sua sede. Foto: Divulgação/Twitter oficial da FIFA

A Copa do Mundo do Catar trouxe para o futebol mundial muitas discussões importantes sobre o tema desportivo do jogo. Claramente natural a movimentação do assunto, um grande evento, como sempre, movimentou a paixão de torcedores de diversas nações pelo mundo. E a Copa do Catar tem um grande peso de peculiaridade, podemos dar o destaque tanto para o aumento do número de convocados por cada seleção, passando para 26 jogadores, como para a realização da Copa no fim de ano, por conta das altas temperaturas que assolam o país do Oriente Médio no meio do ano (época tradicional para a realização do evento).

Contudo, há questões que vão muito além das 4 linhas, mas que são expressas de forma inconfundível por uma Copa do Mundo. Esporte é política. E, sobretudo, esporte é movimento social. O futebol, nesse caso, é expoente para unir as sociedades, mesmo em meio as diferenças. De modo que, o futebol dentre uma Copa do Mundo possa aproximar nações que não se encontram sequer na ONU – a Fifa tem mais países-membros que a própria Organização das Nações Unidas -, para poder disputar um torneio esportivo movido a paixão.

Entretanto, em 2022, com a Copa sendo realizada no Catar, a FIFA assume a responsabilidade de promover o grande evento desportivo do mundo sem a garantia de seguridade aos cidadãos do mundo. Isto, porque, o Catar é um país onde as diferenças sociais podem ser reprimidas de forma legítima, conforme a legislação disposta no país. Trata-se, portanto, de um exemplo de etnocentrismo imposto ao mundo. Visto que, a FIFA escolhe o país para receber o “mundo”, mesmo que este país não queira receber o mundo em sua forma por acreditar que a diferenciação dentre a cultura imposta pelo governo do Catar seja maligna.

O etnocentrismo é expresso dessa forma. Acreditar que a cultura e os princípios da sociedade pertencente é a ideal ou superior à oposta. 

“Se oferecêssemos aos homens a escolha de todos os costumes do mundo, aqueles que lhes parecessem melhor, eles examinariam a totalidade e acabariam preferindo os seus próprios costumes, tão convencidos estão de que estes são melhores do que todos os outros”, a citação de Heródoto, historiador grego, é mencionada por Roque Laraia em seu livro Cultura: Um Conceito Antropológico e evidencia como a funcionalidade do etnocentrismo pode se tornar ferramenta de preconceito.

Nasser Al Khater, presidente do comitê organizador da Copa do Mundo de 2022, já deu declarações sobre o caso do Catar receber pessoas de todas as partes do mundo: “Somos abertos e acolhedores – hospitaleiros. Compreendemos a diferença nas culturas das pessoas. Entendemos a diferença nas crenças das pessoas e, então, acho que, novamente, todos serão bem-vindos e todos serão tratados com respeito.”.

Porém, a insegurança para as minorias que estarão presente no Catar é inconfundível com a postura que o país adota e prega moralmente. Segundo relatório divulgado pela organização Human Rights Watch (HRW) no final de outubro, uma série de ilegalidades cometidas pelo governo do Qatar contra as pessoas LGBT foram registradas. O governo do Qatar negou as informações do relatório e disse que elas são falsas. Ainda que, no Qatar as relações entre pessoas do mesmo sexo e o casamento igualitário sejam proibidas, além de que judicialmente, as pessoas LGBTQ+ podem ser punidas até 7 anos de prisão.

Ainda tratando das incoerências da FIFA, o presidente do comitê da Copa, Nasser Al Khater, tentando contornar o assunto declarou que o Catar será hospitaleiro e receberá bem quaisquer pessoas, incluindo pessoas com relação homoafetiva, porém, destacou como relações afetuosas devem ser vedadas no país:

“O Catar e a sua região são mais conservadores, então as demonstrações públicas de afeto, que são desaprovadas, devem ser evitadas. É a única indicação a ser respeitada, tirando isso, cada um pode viver sua própria vida. Só pedimos aos torcedores que respeitem”.

É com essas demonstrações de intolerância e homofobia que nos situaremos na copa do mundo de 2022. O futebol, assim como qualquer meio social, sempre foi conhecido por ser um âmbito de “habitação” ao machismo e a homofobia, mudar esse quadro é necessário e a luta para o respeito das diversidades e diferenças é essencial. 

Contudo, a escolha da FIFA pelo Catar como sede da Copa do Mundo passa a sua mensagem: será bem-vindo ao evento quem não for diferente ao que a cultura do país considere aceitável. É em meio a esse abraço ao preconceito, que a FIFA, em junho de 2021, se declarou contra a discriminação, através de sua secretária geral Fatma Samoura: 

“Fifa está orgulhosa em apoiar o Mês do Orgulho e celebrar jogadores, técnicos, dirigentes, funcionários, voluntários, líderes e fãs LGBTQIA+ ao redor do mundo. Futebol é um jogo de equipe. Pertence a cada um de nós. A Fifa tem tolerância zero com qualquer forma de discriminação”.

Referências 

UOL. Fifa estende bandeira LGBT em sua sede: ‘Tolerância zero com discriminação’. 25 jul. 2021. Disponível em < https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2021/06/25/fifa-bandeira-lgbt-sede.html. Acesso em 07 out. 2022.

TERRA. Catar diz que vai ‘acolher’ gays na Copa, mas proíbe beijos. 01 dez. 2021. Disponível em < https://www.terra.com.br/esportes/futebol/copa-2022/catar-diz-que-vai-acolher-gays-na-copa-mas-proibe-beijos,d2b42b89aab201785285cb10ef5bdc35u9ox2a4h.html.  Acesso em 07 out. 2022.

LARAIA, Roque de barros. Cultura: um conceito antropológico. Rio de Janeiro: Zahar, 2007.

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O maximalismo e os óculos da soberba

O estilo maximalista adotado por grande parte dos 26 “foras de série” que representaram nosso país na Copa do Mundo 2022, promovida pela FIFA, foi usado para “contar a narrativa do hexa”. Título prometido ao “Mito” que, junto a sua vitória nas urnas, dariam, sim, um novo valor simbólico à camisa canarinho (e a Bandeira Nacional). 

Este estilo, construído de fora para dentro, com cabelos criados por “personal hair style”, headphones exclusivos banhados a ouro ou inseridos em óculos de design avançado (por acaso estilo dos anos 1980) junto às coreografias dignas dos musicais da Broadway, fizeram parte deste “mais é mais” promovido por esta casta de privilegiados que esqueceram de fazer o principal (os Gols), com o intuito de maximizar as experiências do consumidor (torcedor em outras épocas), mascarar a realidade do futebol brasileiro atualmente em cartaz  e o clima político vivido no momento.

Todos esses elementos, em conjunto com a soberba dos mitos socialmente construídos, não permitem avaliar com precisão a força à disposição, como também os leva a desconsiderar de forma arrogante a força dos oponentes, sempre sob a tutela da mídia e sua fome de audiência. Nunca perdemos porque os outros demonstraram superioridade e sim porque por algum motivo nós permitimos.

Está na hora de esquecer esses mitos de origem, campeonatos morais e glórias históricas que não entram em campo e revisitar conceitos, ou então mudar o método pedagógico formativo, se é que existe algum método nesse campo. 

Já se vão cinco Copas do Mundo onde os protagonistas em campo, dirigentes, “cartolas” e a imprensa esportiva especializada (em entretenimento) prometem aprender com a derrota e voltar mais fortes na próxima (?). No atual contexto, fica evidente que não se aprende com a derrota, se aprende corrigindo os erros. E a primeira atitude a ser tomada para ter êxito é identificá-los e reconhecê-los. Simplesmente admitir a derrota torna-se ineficaz, ela é óbvia, normalmente testemunhada ao vivo por alguns bilhões de espectadores ao redor do planeta.

Fonte: Esportes R7

O reconhecimento desses erros revela invariavelmente os CPFs da autoria, deixando a descoberto indivíduos ineptos ou incompetentes e exigem principalmente um “minha culpa” público. Nobre atitude que nunca tiveram, têm ou terão, enquanto uma casta desprovida de ética. Que ao invés de buscar o sportswashing, procurem superar as dificuldades, transpor os obstáculos com vistas à construção de um espaço de ordem onde curriculum, tradição, história e peso de uma camisa tenham seu devido lugar: no imaginário da torcida e da imprensa (e não no campo de jogo). 

Num esporte coletivo, a identificação de um “vilão” para o fracasso não exime os “pecados”, pelo contrário, relativiza a análise da derrota, jogando uma máscara na realidade. A falta de críticas construtivas nas vitórias (onde não haveria nada a melhorar) colaboram para permanência da atual conjuntura.  

Partindo de algumas hipóteses vou tentar contestar algumas “verdades” travestidas de tradição que regem este imaginário popular:

  • Somos o país do futebol… Será?

Em primeiro lugar, se fôssemos, estaríamos para o futebol, como os Estados Unidos estão para o basquete – mesmo que eles não se autodenominem o “país do basquete” ou como os africanos estão para as maratonas.

Segundo, deveríamos ter políticas públicas oriundas da CBF, que no lugar de organizar campeonatos regionais e/ou nacionais, limitasse sua atuação às Seleções Nacionais e seus compromissos esportivos. Brindasse apoio material, técnico e de infraestrutura aos Estados e Municípios para normatizar, desenvolver e fiscalizar o futebol infantil, que hoje está na mão de “experts” travestidos de pseudoeducadores nas “Escolinhas de Futebol” com a “marca” de craques do passado que nem conhecem o espaço físico onde estas ficam localizadas.  

Terceiro, sendo o “país do futebol” dono dos jogadores mais habilidosos e técnicos do universo e única seleção pentacampeã Mundial, deveríamos ter mais protagonismo global. Pelo contrário, utilizamos o futebol como mais uma commodity: exportamos “pé de obra” (DAMO) e importamos o espetáculo pronto, repatriamos craques aposentados e retransmitimos ao vivo as Ligas mais poderosas do mundo, pagando royalties para assistir alguns outrora meninos nossos da periferia. 

Não é por acaso ou por abuso infantil que os meninos brasileiros são recrutados cada vez mais cedo. E então levados para centros de excelência para serem formados ética, moral e esportivamente.  

A exportação da maioria de nossos jogadores tem como destino as ligas menores. São poucos aqueles que atuam nas ligas Inglesa, Alemã, Espanhola, Italiana ou Francesa e o mais sintomático: nossos Técnicos não frequentam (nem frequentaram) as ligas da elite mundial.

O acaso não é responsável de que a Licença de Treinador da CBF na Europa, valha o mesmo que minha carteira de motorista… a UEFA não reconhece e não autoriza seu portador a exercer função remunerada no continente. 

A título de curiosidade, podemos olhar para as 10 últimas Copas do Mundo e contar quantos técnicos brasileiros estão ou estiveram a frente de seleções europeias, ou para ir geograficamente mais perto, olhar nas últimas cinco edições da Copa América e fazer o mesmo levantamento[1].

Também caberia fazer essa pesquisa em nível de Clubes nas cinco maiores Ligas do velho continente, sem atribuir isso à barreira idiomática… Portugal não deixa.  

Os argentinos, por exemplo, também teriam essa barreira, e mesmo assim têm simultaneamente quatro ou cinco técnicos nas maiores ligas europeias, sendo também maioria nas Seleções sul-americanas.

O reconhecimento desse fato fica evidenciado quando após a saída do “Mister” Tite, (aquele mesmo, que abandonou os guerreiros caídos no final da batalha após a derrota) a CBF busca um não-nativo para comandar o próximo “ciclo” mundial à frente da Seleção Nacional. Deve ser reflexo de que nos últimos 5 anos no Brasil, os técnicos que brilharam por estas terras eram estrangeiros, entre eles Jorge Jesus e Abel Ferreira.

  • Somos os únicos pentacampeões … E daí? 

O título de pentacampeão, por si só, não confere nenhuma vantagem ou meritocracia ao portador. O histórico não alinha em campo nem converte gols.

Se fizermos uma leve reflexão, perceberíamos que nos últimos 52 anos (meio século) não existe hegemonia de seleção alguma no planeta. Tanto Brasil quanto Argentina e Alemanha, ganharam três edições da Copa do Mundo cada uma.

  • Somos a única seleção a participar de todas as Copas… Mérito próprio? 

Verdade, somos a única a participar de todas as Copas e não temos que nos orgulhar disso. A geopolítica (e não a classificação na bola, via eliminatórias) nunca atuou contra a Seleção Brasileira, nunca barrou a sua participação por motivos burocráticos ou políticos, como fez com algumas nações. Portanto somos os únicos que participamos de todas as edições do evento sim, sem contestação, de novo… qual o mérito, por quais motivos?

Na Copa do Mundo da França, em 1938, a FIFA deixou de fora a Espanha porque em 1937 o país atravessava um conflito armado por conta da guerra civil e não permitiu que disputasse as eliminatórias.

No Brasil, em 1950, a ONU (Organização das Nações Unidas) solicitou à FIFA que excluísse Alemanha e Japão por conta de sanções impostas pela entidade em 1945, após o término da Segunda Guerra Mundial.  

Na Copa de 1954 na Suíça, as representações de Bolívia, Costa Rica, Cuba, Índia, Islândia e Vietnã não cumpriram o prazo de inscrição e perderam as Eliminatórias. 

Em 1958, na Suécia, onde o Brasil se sagrou Campeão pela primeira vez, a FIFA limitou o número de participantes deixando de fora os africanos, que à época tinham acabado de formar sua Confederação e disputavam as eliminatórias junto aos asiáticos, e enviaram por último a documentação (Rígida a FIFA, né?). A África do Sul ficou de fora devido ao regime do Apartheid, e Turquia, Indonésia e Sudão se retiraram das disputas por se recusarem a enfrentar a seleção de Israel.

Em 1966, na Inglaterra, a África do Sul permaneceu de fora pelo Apartheid e os demais países africanos não compareceram por achar injusta a forma de disputa[2]. As Filipinas que não efetuaram o pagamento das taxas de inscrição, além de Congo e Guatemala, que perderam o prazo de inscrição, também foram excluídas.

Em 1970, no México, quatro seleções tiveram os pedidos rejeitados pela FIFA, mas as razões são desconhecidas. Albânia, Cuba, Guiné e Zaire foram as barradas da vez.

Nas edições de 74 e 78 não houve interferência alguma da FIFA. Somente em 1982, na Espanha, a República-Centro-Africana ficou de fora por não efetuar o pagamento das taxas. 

Na Copa do México, em 1986, vencida pela Argentina, mais uma vez um conflito armado decide a participação ou não de uma nação. Irã e Iraque foram os protagonistas do confronto, e somente o primeiro ficou de fora. O Iraque foi autorizado a participar das eliminatórias e se classificou para a disputa.  

Ao tentar fraudar a FIFA, inscrevendo jogadores acima da idade permitida (vulgo gatos) para o Mundial Sub-20 de 1989, o México foi punido, sendo proibido de disputar a Copa do Mundo de 1990, na Itália. As representações de Belize, Ilhas Maurício e Moçambique não disputaram as Eliminatórias por dívidas com a entidade máxima do futebol.

Um fato ocorrido no Maracanã em 1989, na última rodada das Eliminatórias para 1990, protagonizada por um sinalizador e o goleiro chileno Rojas, suspendeu o Chile da Copa dos Estados Unidos de 1994 por simulação e fraude. Rojas foi banido do futebol e vários jogadores foram suspensos. A ONU pediu também a suspensão da Iugoslávia e da Líbia, devido ao conflito dos Balcãs e a atentados terroristas, respectivamente.

Nas Copas de 2014 e 2018, a tentativa de interferência de Governos nas respectivas federações, tirou da Copa o Brunei e a Indonésia, respectivamente.

Por último, na Copa de 2022, no Qatar, a FIFA desfiliou a Rússia pela invasão (em curso) da Ucrânia, deixando-a de fora da disputa da repescagem e por consequência, da Copa do Mundo. Como podemos perceber, o mérito de o Brasil ter participado de todas as edições do maior evento do planeta é exógeno.

Dito isto, acho que está na hora de deixar de pensar o futebol brasileiro como um museu (que vive do passado) ou como um ser acadêmico (que vive de curriculum). Deixar de pensar que as derrotas são fruto de conspirações e, principalmente, que gostamos de futebol, gostamos mesmo é de ganhar. Se gostássemos de futebol, não vibraríamos com a eliminação de uma seleção ou estaríamos torcendo para outra ser eliminada, só pelo fato de serem concorrentes, nem escolheríamos (quando possível) qual time preferíamos enfrentar na seguinte fase. 

Outro sentimento que (convenientemente) não temos muito claro, por exemplo, é referente aos nossos vizinhos de continente: “Com Argentina e com Uruguai temos rivalidade”, por isso torcemos contra. 

Não, contra eles temos alteridade Como gostaríamos de ter ganho a Copa de 1950, já seríamos hexa… Também não ter perdido a Copa América 2021 no Maracanã para esses racistas (nós não, eles…) … “Ganhar é bom, mas ganhar da Argentina é muito melhor”… Como seria bom ter, além do penta, cinco Prêmios Nobel e dois Oscar no cinema.Quiçá os óculos maximalistas da soberba não nos permitam perceber nada do acima exposto. Se despir dela, a soberba, seria no meu humilde entender, o primeiro passo para mudar o estado da arte. O simples fato de ter participado de todas as Copas, ou de ser a única pentacampeã são argumentos paupérrimos como único pilar de orgulho de qualquer Nação e sem relevância fora do eixo histórico.


[1] Os treinadores argentinos estão representados em todos os lugares. Na Copa do Mundo 2018 eles eram maioria, e comandaram cinco das 32 seleções. Na fase de grupos da Copa Libertadores 2020, conduziram 14 dos 32 participantes. Um estudo recente publicado pelo Centro Internacional de Estudos do Futebol, na Suíça, revelou que, de todo o mundo, o país que mais tem técnicos em atividade em outras ligas é justamente a Argentina. São 68 representantes em 22 países diferentes. O Brasil tem só 16.

[2] Em 1964, todos os países africanos boicotaram a FIFA devido à forma como as Eliminatórias de lá eram disputadas. Os africanos não tinham vaga garantida. O vencedor do continente deveria disputar ainda com os vencedores da Ásia e da Oceania o direito de disputar o Mundial. O protesto não funcionou para aquela Copa e as Eliminatórias continuaram a ser disputadas daquela maneira, sofrendo alterações apenas no Mundial seguinte, em 1970. Disponível em https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2022/09/17/quais-paises-ja-foram-barrados-da-copa-do-mundo.htm?

Artigos

O verde e amarelo volta à cena

Há alguns dias, pensando sobre qual seria o tema que abordaria nesse artigo, achei que gostaria de falar sobre um que tem me interessado particularmente nos últimos tempos: como os hábitos funcionam e, de que forma eles influenciam positivamente ou negativamente a vida das pessoas.

No entanto, há nove dias do início da Copa do Mundo Catar 2022, me senti compelida a abordar outro tema que tem movimentado bastante as redes nos últimos dias, aconvocação dos jogadores.

Com a internet os consumidores perderam a inibição e a cada dia se sentem mais à vontade para exercerem seu direito à liberdade de expressão nas plataformas digitais, inclusive o “jus sperniandi”, ou melhor, o direito de espernear.  Foi assim no último dia 7, depois do técnico Tite anunciar na sede da CBF a lista com os 26 jogadores que farão parte da seleção brasileira na Copa do Mundo. Como em convocações passadas, a lista sempre é motivo de polêmica. Dessa vez o alvo foi o lateral direito Daniel Alves, ex-jogador do Barcelona e atualmente no Pumas, do México, que ganha mais uma vez a oportunidade perdida em 2018 quando, por causa de uma lesão no joelho, não disputou a Copa do Mundo da Rússia.

No Twitter, a reação à convocação do jogador, que está treinando com o time B do Barcelona desde 12 de outubro pelo fato do Puma estar sem calendário de partidas, não demorou. Não faltaram discussões e memes, principalmente em alusão à idade do lateral-direito, que está com 39 anos. Em uma das imagens transmitidas, que viralizou na internet, um senhor pilotando uma scooter para idosos com a bandeira do Brasil parte pra cima de uma simpatizante petista. No texto que acompanha a imagem, “Daniel Alves dando carrinho no Mbappe em plena final da Copa do Mundo”, em alusão à suposta diferença de qualidade técnica em relação ao atacante Mbappé, um dos destaques da seleção francesa.

Outras imagens retiradas das manifestações políticas que geravam interações ininterruptas relacionadas a Lula e Bolsonaro no Twitter também foram aproveitadas nas postagens, que ultrapassaram a marca de um milhão de respostas. Numa delas, o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Alexandre de Moraes, é convocado para impedir a ida de Daniel Alves para o Catar. 

Na imagem abaixo, o motivo do protesto do homem no caminhão que já tinha movimentado as redes, passa a ser a convocação de Daniel Alves que, em 2021, ajudou Brasil a conquistar o ouro olímpico participando de todos os jogos e com uma atuação importante como capitão e líder do grupo. Além disso, com 42 conquistas, é o maior campeão da história do futebol. O que remete aos limites tênues existentes entre heróis e vilões no futebol ressaltados pela pesquisadora Leda Maria da Costa.

“Tanto a derrota quanto a vitória podem filtrar nossa opinião acerca de uma determinada jogada e de um determinado jogador. E os vilões nascem em meio ao turbilhão provocado por uma derrota (COSTA, 2008, p.12)”.

A vitória de Lula nas urnas talvez tenha contribuído, em parte, para a revolta da opinião pública em relação à convocação de Daniel Alves, que chegou a declarar publicamente apoio à candidatura derrotada à reeleição do presidente Jair Bolsonaro. Polêmicas à parte, a convocação e a proximidade da estreia da seleção brasileira tirou momentaneamente o foco na divisão existente na sociedade. O atual  hábito de polarização que era comum entre os nossos antepassados, cuja sobrevivência dependia da lealdade e de tratar adversários como inimigos mortais, numa democracia, pelo menos teoricamente, deveria ter sido substituído  pelo diálogo e pelo convencimento através de propostas claras. No entanto, orientadas por algoritmos, as próprias redes sociais fomentam esse e outros tipos de violência.

A partir de Pariser (2011), recorre-se a terminologia de “filtros-bolha”, que permitem apenas que determinados conteúdos circulem criando uma percepção falsa de Espaço Público e opinião pública onde, teoricamente, “todos” falam e a “maioria concorda”. Nesse sentido, Tite demonstrou em resposta às perguntas feitas durante a coletiva em que anunciou os convocados, um certo desdém em relação a essa maioria que movimenta as redes sociais.

Em conformidade com esse pensamento, Byung-Chul Han defende em entrevista ao jornal El País de Barcelona que a comunicação global contemporânea só tolera os iguais:

 “Sem a presença do outro, a comunicação degenera em um intercâmbio de informação: as relações são substituídas pelas conexões, e assim só se conecta com o igual; a comunicação digital é somente visual, perdemos todos os sentidos; vivemos uma fase em que a comunicação está debilitada como nunca: a comunicação global e dos likes só tolera os mais iguais; o igual não dói!” (HAN, 2018, online).

Como disse o presidente eleito, talvez seja o momento, de diminuir a violência para com quem pensa diferente e substituir o hábito de vestir a camisa verde-amarela para fomentar disputas ou questionamentos em relação ao resultado das eleições, por outro mais saudável, o de torcer pelo hexa, pelo espírito de liderança de Daniel Alves e pela manutenção da democracia no país.

Referências

COSTA, Leda Maria da. A trajetória da queda: as narrativas da derrota e os principais vilões da seleção brasileira em Copas do Mundo.  Tese (doutorado), Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Instituto de Letras, 2008.

HAN, B-C. Byung-Chul Han: “Hoje o indivíduo se explora e acredita que isso é realização”. [Entrevista concedida a] Carles Geli. Jornal El País, Barcelona, 7 de fevereiro de 2018.

PARISER, Eli. The filter bubble: what the internet is hiding from you, 2011. Disponível em: https://books.google.com.br/books?hl=pt-BR&lr=&id=-FWO0puw3nYC&oi=fnd&pg=PT3&dq=Parisier+2011&ots=g5MuBmtRW_&sig=te_T1BjCRl9wT4upZonKkyIVF0w#v=onepage&q=Parisier%202011&f=false