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Há cinquenta anos, uma frustrada visita olímpica

Lorde Killanin no décimo segundo congresso da ODEPA (no centro com a cabeça baixa). Estádio (Santiago de Chile), 5 de junho de 1973.

“Conheço pouco do esporte latino-americano e vim mais para ouvir e aprender”, assegurou o irlandês Michael Morris, conhecido como Lorde Killanin por seu título de nobreza, em uma coletiva de imprensa durante o décimo segundo congresso da Organização Desportiva Pan-Americana (ODEPA), organizado de 29 a 31 de maio de 1973 em Santiago do Chile. Killanin havia sido eleito presidente do Comitê Olímpico Internacional (COI) no ano anterior, e aproveitou o convite para realizar uma extensa turnê pela América Latina, que incluía uma breve estadia na Argentina. Essa experiência, frustrada, constituiu a primeira visita de um presidente do COI em exercício ao país.

A turnê de Killanin, bem como sua ascensão à presidência do COI, tinham gerado grande expectativa no esporte regional. Ao contrário do seu antecessor, o americano Avery Brundage, a quem considerava um autocrata, Killanin era visto como um reformista. De fato, formalizou a estrutura tripartida do movimento olímpico, em que o COI, os comitês olímpicos nacionais e as federações desportivas internacionais trabalham em cooperação. Nesse sentido, antes de sua chegada ao Brasil em 21 de maio, o jornal Folha de S. Paulo o descreveu como tendo “ideias revolucionárias”. Além disso, naqueles dias, Killanin era apresentado como inteligente e irônico, e segundo a revista chilena Stadium, era “bonachão, simples, espontâneo [sic] e de bom humor”. A revista cubana Bohemia publicaria tempos depois que com Killanin “o COI experimentou uma saudável injeção de novos ares”.

Killanin permaneceu no Brasil, reunindo-se com autoridades esportivas e políticas no Rio de Janeiro e em Brasília, até 25 de maio. Nesse dia chegou a Montevidéu e visitou vários funcionários, incluindo o vice-presidente do país, já que o presidente Juan María Bordaberry se encontrava em Buenos Aires para a posse de Héctor J. Cámpora, que havia sido eleito em 11 de março com 49,5% dos votos sob o lema “Cámpora ao governo, Perón ao poder”. O venezuelano José Beracasa, presidente da ODEPA e membro do COI, e Fernando Madero, presidente do Comitê Olímpico Argentino (COA), haviam viajado a Montevidéu para acompanhar Killanin. No dia seguinte teve uma agenda intensa, com atividades que começaram às 9:30 e só terminaram depois das 22:30.

O plano original era que Killanin visitasse Buenos Aires em 27 de maio e dormisse lá para viajar até Santiago no dia seguinte. No entanto, Madero, em contato com Buenos Aires, não achou conveniente que o presidente do COI se hospedasse em solo portenho, ainda que brevemente, a dois dias da posse de Cámpora. Os motivos não foram esclarecidos, mas em um relatório escrito em agosto, Killanin explicou: “Minha visita coincidia com a investidura do novo Presidente Peronista. Obviamente, não era muito recomendável de minha parte ir à Argentina, onde minha presença só daria problemas adicionais à polícia”. Segundo seu relato, em Montevidéu foi designada uma guarda com uma dúzia de polícias à paisana. O que teria conjecturado Madero diante da massiva mobilização do peronismo, proibido desde 1955, no dia da assunção presidencial e da posterior libertação dos presos políticos das prisões argentinas, que deram início ao período conhecido como “Primavera Camporista”?

Enfim, Killanin partiu para Santiago no dia 28 de maio pela manhã. Faria uma breve parada em Buenos Aires, onde chegaria às 10:30 para pegar um voo para a capital chilena proveniente do Rio de Janeiro, que sairia às 12:55. No aeroporto de Ezeiza, o esperavam Madero, Mario Negri, membro argentino do COI, com sua esposa e filho, e Otto Schmitt, secretário geral do COA, com sua esposa. No entanto, o que deveria ter sido uma curta espera acabou sendo uma “breve” estada de oito horas. O avião do Rio de Janeiro se atrasou. Killanin admitiu ter recebido um tratamento preferencial: tomaram-lhe o passaporte para evitar filas no controle migratório, mas a gentileza produziria outro atraso. De acordo com Killanin, talvez justificando a mudança no programa original, nesse dia houve “bastantes tiroteios” em Buenos Aires, e pensou que aqueles que o acompanhavam não iriam querer chegar tarde a seus lares. Disse-lhes para não esperarem pela sua partida e recebeu de volta o passaporte. Mais tarde, quando passou pelo controle migratório, lhe informaram que não podia sair do país, porque não havia entrado formalmente. Isso atrasou o voo pelo menos mais uma hora, até que um oficial de maior patente se apresentou para confirmar sua entrada ao país pela manhã e sua saída à tarde. Decolou por volta das 18:30.

Killanin pôs os pés em Santiago tarde da noite e foi imediatamente recepcionado pelo prefeito da cidade. Pela manhã, assistiu à inauguração do congresso da ODEPA. Em seu relatório, ressaltou que Salvador Allende, o presidente chileno, impossibilitado de comparecer ao evento, lhe havia enviado uma placa comemorativa. Allende tinha estado em Buenos Aires para a posse de Cámpora e assistiu a um jogo de futebol entre Racing e Boca Juniors, no dia 27 de maio, junto do novo chefe de Estado argentino e com Osvaldo Dorticós, o presidente cubano. Ou seja, no dia em que Killanin deveria ter visitado Buenos Aires, aqueles três presidentes estavam em um estádio de futebol lotado por uma multidão, que os saudava. Enquanto isso, Beracasa preparava seu discurso no Congresso da ODEPA. Proferiria estas palavras, que certamente teriam sido do agrado de Cámpora, Allende e Dorticós: “A América é livre como quiseram seus pais, e é por isso que dentro do marco esportivo da Organização Pan-Americana não devem existir pressões nascidas de pequenos interesses ou de inconfessáveis atitudes antidesportivas”.

Ao fim do congresso da ODEPA, Killanin continuou a turnê latino-americana visitando Panamá, Colômbia e México. Na capital mexicana declarou: “Conheço os jovens; quando fui, quis revolucionar o mundo” e se promulgou “a favor de modificar os Jogos (Olímpicos)”. Na Argentina, seu espírito renovador só chegou ao aeroporto. Monique Berlioux, diretora-geral do COI, pediu a Negri que lhe enviasse recortes de jornais sobre a estada de Killanin no país, mas, com a mudança de data, a imprensa não havia sequer aparecido. Lamentando a situação, Negri resumiu o ocorrido: “Lorde Killanin não visitou Buenos Aires, por outro lado conheceu muito bem o aeroporto de Ezeiza (sic!)”. Enquanto Killanin permanecia nesse aeroporto, a sociedade mobilizada continuava festejando o fim da ditadura que havia governado a Argentina desde 1966. De qualquer forma, a “Primavera Camporista” ou que a América fosse livre ou subjugada, não teria feito diferença para Killanin. Em 1974, o movimento olímpico acolheu “ditaduras de esquerda e de direita, monarquias e repúblicas”. Para Killanin, ele estava acima dessas diferenças e unia todos os povos. Sua renovação não incluía esse aspecto do ideário olímpico”.

Texto originalmente publicado em relatores.com no dia 6 de março de 2023.

Tradução por: Júlio Barcellos.

Revisão por: Carol Fontenelle e Leda Costa.

Artigos

As delegações olímpicas, a carne e a identidade nacional argentina

Depois de quase duas décadas de tentativas fracassadas, as elites argentinas conseguiram enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1924 em Paris. Rapidamente, as participações olímpicas argentinas se articularam, citando o antropólogo Eduardo Archetti, como “um espelho de onde se vê e é visto ao mesmo tempo”. Desta maneira, as andanças dos/as desportistas argentinos no estrangeiro construíam, disseminavam e afirmavam uma identidade nacional. Até meados dos anos cinquenta, a tipificação e a diferenciação nacional através das excursões olímpicas incluíram uma crescente relação com outro elemento central do sentimento coletivo de pertencimento argentino: a carne.

Dadas as dificuldades para estabelecer o Comitê Olímpico Argentino (COA) no ano anterior, a inexperiência da incipiente direção olímpica nacional e a estrutura dos Jogos Olímpicos, a conformação da delegação que viajou a Paris em 1924 esteve repleta de inconvenientes. Um destes ressaltaria, obliquamente, o papel da carne na vida nacional. Antes da partida à Europa, houve queixas porque o barco onde viajaram os esgrimistas e os remadores não contava com as acomodações necessárias para que chegassem em condições competitivas adequadas. Tratava-se de um barco frigorífico contratado por empresas do ramo “que deviam carregar seus porões com carnes congeladas”. O barco atrasou sua partida pelo processo de carga, embora o capitão tenha consentido instalar dois estandes de esgrima no convés e embarcar um aparato de treinamento de remo. Criticando o COA por sua falta de planejamento, Román López, presidente da Federação Argentina de Esgrima, manifestou: “Para viajar em um barco como o ‘Vasari’ é necessário ser um verdadeiro patriota”. Esse barco transportou, inesperadamente, duas marcas identitárias da nação argentina: desportistas e carne. 

Publicidade do Vasari (The Review of the River Plate, 10 de outubro de 1919, p. 952).
Vista do Vasari (Bulletin of the International Union of American Republics, junho de 1909, p. 1018).

A Confederação Argentina de Esportes-Comitê Olímpico Argentino (CADCOA), instituição que substituiu o COA em 1927, também teve sérios inconvenientes, principalmente econômicos, para enviar uma delegação aos Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã. Uma vez ali, a alimentação holandesa foi percebida como um obstáculo para a correta aclimatação dos desportistas. O capitão da equipe de luta declarou que os lutadores deveriam “acostumar seu organismo a mudança de alimentação, que entre parênteses não era grande coisa, em termos de variação e seu sabor, apesar de ser saudável”. Acrescentou: “Só o grande apetite que despertava o treinamento, fazia com que se ingerisse esta comida deficiente e monótona a que não está acostumada a maioria dos nossos atletas”. Ou seja, a delegação sentia saudades da comida “crioula” e possivelmente da carne, aspecto que a CADCOA tentaria corrigir no futuro.

Treinamento no convés de parte da delegação para os Jogos Olímpicos de 1928 em Amsterdã (Federico Dickens, Manual técnico de atletismo, 1946, sp).

Apesar da CADCOA ter lidado com numerosos problemas administrativos, econômicos e de condução relacionados à delegação nos Jogos Olímpicos de 1932 em Los Angeles, a alimentação não foi um deles. De fato, os desportistas parecem ter estado satisfeitos a respeito. Por exemplo, poucos dias antes que Juan Carlos Zabala ganhasse a medalha de ouro na maratona, Alejandro Stirling, seu treinador austríaco radicado na Argentina desde 1922, explicou que seu pupilo “come com grande apetite dois bifes no almoço e dois na janta” e que, além de treinar, lia e escutava discos “que lhe recordam a pátria distante”. O fulgurante triunfo do “nandú crioulo”, o apelido com que a crítica havia batizado Zabala, foi utilizado pela imprensa dominante para gerar imagens identitárias nacionais. Uma semana depois de ter ganhado a maratona, a delegação japonesa ofereceu uma festa em sua honra durante a qual lhe perguntaram por seu regime de treinamento e de alimentação. É de se supor que ressaltou os benefícios dos quatro bifes diários. 

Para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim, a CADCOA, que havia ignorado a intenção argentina de boicotar o evento organizado pela Alemanha nazista, implementou medidas para que toda a delegação tivesse “carne na quantidade e da qualidade a que estavam habituados os atletas”. Por um lado, a CADCOA argumentou que a carne favorecia o rendimento esportivo. Por outro, afirmou que “constitui a base da alimentação de nossos desportistas”. É que a carne, como diria mais de cinco décadas depois o escritor Juan José Saer, “não é unicamente o alimento base dos argentinos, mas o núcleo de sua mitologia e inclusive de sua mística”. Em Berlim, esporte e carne sincretizaram a nação argentina e seu imaginário. Considerando “o sério inconveniente que supunha a insegurança de encontrar durante a viagem e na estadia na Alemanha” o precioso e significativo alimento, a CADCOA conseguiu que a Junta Nacional de Carnes, um órgão criado em 1933 para regular o mercado em questão, doasse quinze toneladas de carne. O regime alimentício da delegação recomendava entre 250 e 350 gramas de carne diários. De todas as maneiras, o maratonista Luis Oliva consumia 500 gramas de carne diários, “preferentemente assada”, aludindo, como assinalou o antropólogo Jeff Tobin, a “comida mais fortemente associada ao nacionalismo argentino”.

A CADCOA inclusive enviou um cozinheiro a Berlim, Arnoldo Damm. Graças a sua “arte culinária crioula”, na Vila Olímpica “qualquer um logo e gostosamente se esquece da cozinha alemã”.  Damm conseguiu que ali “se respirasse um ambiente do país alegre e confiante, sempre menos pesado e rígido que o ambiente germânico”. A dieta da delegação servia para afirmar o nacional e diferenciar-se do outro significante. Em uma “significativa cerimônia” ao terminar os Jogos Olímpicos, Alberto León, presidente da delegação, entregou 300 quintais de carne às autoridades municipais berlinenses para que se distribuíssem em hospitais e sociedades de beneficência. Essa carne, destacou León, “testemunha a amizade germano-argentina e a gratidão da Argentina pela acolhida que teve sua delegação”. Segundo a CADCOA, “o gesto foi elogiosamente comentado pelas autoridades e diários berlinenses”.

Membros da delegação para os Jogos Olímpicos de 1936 em Berlim no refeitório nacional (La Nación, 21 de julho de 1936, p. 12).

Após a interrupção pela Segunda Guerra Mundial, os Jogos Olímpicos voltaram a ser organizados em 1948 em Londres. A CADCOA enviou uma numerosa delegação, bancada pelo governo de Juan Domingo Perón. Ao se despedir do grupo, Perón pronunciou: “É uma imensa satisfação que o Governo teve ao apoiar este tipo de manifestação, e é somente o início desse apoio que temos de levar até limites que muitos não imaginavam ainda”. Também acrescentou: “Para o futuro, procuraremos organizar melhor essas viagens, para que os atletas argentinos cumpram sua missão com o mínimo de sacrifício e o máximo de proveito”. A delegação enviada a Londres contou com uma remessa de carne própria, visibilizada além das fronteiras argentinas. Assim, no Chile se perguntaram se o rendimento nacional teria sido tão destacado “se a equipe não tivesse levado toneladas de carne”. Além de seu efeito no rendimento esportivo, a carne foi utilizada para festejar as conquistas em Londres. De acordo com o Noticias Gráficas, Delfo Cabrera celebrou sua medalha de ouro na maratona com um “assado a la criolla, sobre a grama de um parque jamais pisado pelo mais insignificante piquenique”, que surpreendeu aos “fleumáticos ingleses”.

Quatro anos mais tarde, quando Perón se despediu dos/as desportistas rumo aos Jogos Olímpicos de Helsinki, declarou que para esse tipo de evento era conveniente transportar “um pedaço da República ao lugar onde se realizam [os Jogos]”. Dessa maneira, a delegação teria todo o necessário para render plenamente. Por isso, Perón achou “oportuno mandar um barco, como fazemos, para que essa seja nossa casa, onde haja carne argentina, comida argentina, e água argentina; sabemos que isso não nos faz mal e, se não é a melhor, é boa”. Perón acreditava que um regime alimentício baseado na carne não era “científico”. Entretanto, sua abundância na delegação manifestava a Nova Argentina, na qual o crescente poder aquisitivo fomentava o consumo de carne e o esporte era promovido em todos os seus níveis como nunca antes e nunca depois. 

Juan Domingo Perón subindo no barco que transportou a delegação para os Jogos Olímpicos de 1952 em Helsinki (Mundo Deportivo, 19 de junho de 1952, p. 22).

Em parte devido às mudanças estruturais nos Jogos Olímpicos, que requeriam aos/às participantes residir na Vila Olímpica durante o evento, a partir do golpe de Estado que derrubou Perón em 1955, as delegações deixaram de projetar uma marcada relação com a carne, que sintetizou a identidade nacional. Não obstante, essa relação permanece. Por exemplo, dias antes do começo dos Jogos Olímpicos de 2008 em Pequim, o COA, instituição que substituiu a CADCOA em 1956, ofereceu um churrasco aos/às desportistas “para demonstrar que estão com as forças necessárias para fazer um bom papel na China”. Por uma ou outra via, as delegações e a carne continuam condensadas, com maior ou menor força, naquilo que se imaginava como meio que tipifica e que diferencia a identidade nacional. 

Texto originalmente publicado pelo site El Furgón no dia 17 de setembro de 2022.

Tradução por: Júlio César Barcellos.

Revisão por: Leda Costa e Carol Fontenelle.

Produção audiovisual

Já está no ar o quadragésimo primeiro episódio do Passes e Impasses

O tema do nosso quadragésimo primeiro episódio é A estreia do surfe nos Jogos Olímpicos. Com apresentação de Mattheus Reis e Abner Rey, gravamos remotamente com Bruno Bocayuva e André Tavares. Bruno é jornalista, apresentador, repórter e pesquisador de surfe e esportes de ação. André é pesquisador do LEME e mestrando em Comunicação da UERJ.

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no SpotifyDeezerApple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o quadragésimo primeiro episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Misirlou”, composta em 1962 por Dick Dale.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):

The World in the Curl: An Unconventional History of Surfing – Peter Westwick e Peter Neushul [livro]

Afro Surf -Mami Wata [livro]

The Critical Surf Studies Reader – Dexter Zavalza Hough-Snee, Alexander Sotelo Eastman (Eds.) [livro]

O surfe nas ondas da mídia: esporte, juventude e cultura – Rafael Fortes [livro]

Equipe

Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro: André Tavares
Produção: Eduardo Ribeiro
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Mattheus Reis e Abner Rey
Convidados: Bruno Bocayuva e André Tavares

Artigos

Música brasileira e esporte: uma combinação de ouro    

Há mais proximidade entre a música e o esporte do que muita gente pode imaginar. Minha hipótese é de que existe uma relação visceral entre esses dois objetos de estudo. Uma harmonia que foi percebida pelo Barão Pierre de Coubertin, fundador dos Jogos Olímpicos da era moderna. A pedido dele, música, pintura, literatura, escultura e arquitetura foram inseridas nos Jogos como modalidades olímpicas. Isso mesmo. Entre 1912 e 1948, essas modalidades artísticas se misturavam às esportivas e valiam medalhas numa proposta de integração entre corpo, mente e intelecto. Alguns competidores eram também atletas e disputavam medalhas tanto em modalidades artísticas quanto esportivas. As Artes não tiveram longevidade nos Jogos, mas a música, com a sua onipresença e onipotência, permaneceu, ainda que não mais como modalidade competitiva. Os Jogos seguiram brindando os expectadores do maior evento esportivo do mundo com um pot-pourri de estilos musicais.

As Olimpíadas de Tóquio 2020, disputadas em 2021 por causa do coronavírus, trouxeram uma miscelânea de estilos musicais para agradar a gregos e troianos. Nas cerimônias de abertura, de encerramento e, também, durante as disputas esportivas, as múltiplas sonoridades representavam a cultura do país sede e das diversas nações a competir. Já na abertura dos Jogos, a entrada dos atletas e federações teve como pano de fundo hits populares entre os gamers, como Kingdom Hearts, Final Fantasy, Chrono Trigger e outras. Eu, que tenho uma filha fã de animes e mangás, também não poderia deixar de citar a trilha de abertura do anime de Demon Slayer, usada no encerramento dos Jogos.

Foto tirada da internet do anime Demon Slayer

O pop brasileiro, por sua vez, embalou as disputas nas arenas esportivas. O DJ austríaco Stari, admirador confesso da música brasileira, escolheu hits de Anitta, Barões da Pisadinha, Israel & Rodolfo e Pabllo Vittar para animar as disputas. O ponteiro da seleção brasileira de vôlei Douglas Souza, que viralizou nas redes sociais com as postagens olímpicas, tinha até  uma música especial quando pontuava – do album “Batidão Tropical” de Vittar – a “Zap Zum”. Outra música do cantor e drag queen brasileiro teve destaque na apresentação de Laura Zeng, da ginástica rítmica dos Estados Unidos – “Energia” é uma colaboração com o duo americano Sofi Tukker.

A música que mais representou o Brasil nessas olimpíadas, porém, foi “Baile de favela”, do MC João. Não só porque a canção veio acompanhada de duas medalhas inéditas da ginástica feminina, uma de prata e uma de ouro, conquistadas pela ginasta Rebeca Andrade, mas porque representa muito da cultura brasileira, da negritude do nosso país e, acima de tudo, da garra e criatividade verde-amarela. Nesses últimos quesitos, dá para listar pelo menos 15 pessoas que fazem parte da equipe multidisciplinar que ajudou na conquista dessas medalhas, além, é claro, do talento e concentração incríveis de Rebeca.

Gostaria de citar aqui uma pessoa em especial: o coreógrafo Rhony Ferreira. Rhony se valeu de um misto de sensibilidade e astúcia para escolher a música que “vestiu” a coreografia da medalhista. E isso foi lá atrás, durante os Jogos de 2016, no Rio.  Em um dos intervalos da ginástica, quando o DJ coloca música para distrair, “Baile de Favela” levantou a torcida.  Rhony, que na época vivia mais em Curitiba, onde o funk ainda não era moda, ficou extasiado com o ritmo e a reação do público com a música. Na mesma hora, sacou o pen drive pequenininho, que está sempre com ele num cordão, e foi até o DJ perguntar sobre a música e pedir que a colocasse no pen drive. A letra mesmo só foi conhecer há um ano e meio.

Foto do acervo pessoal de Rhony Ferreira

“O cara copiou e eu guardei na manga. Sempre que eu escuto alguma coisa diferente ou que me traz alguma emoção, eu gravo no pen drive, ponho no meu computador e deixo lá até achar alguém com uma personalidade que combine com a música. Eu precisava ter a sorte de entrar uma menina na seleção brasileira com aquelas características. Foi aí que pensei: essa música combina com a Rebeca. Ela só foi saber da música quando já estava pronta”.

A questão da música na ginástica não é tão simples quanto na dança. Ela precisa vestir e acompanhar o movimento e a acrobacia que a ginasta aprende primeiro. Além disso, tem a questão da duração. Precisa ter um minuto e meio. “Baile de Favela” repetia vários trechos, o que obrigou Rhony a escolher apenas uma pequena parte e a achar outra melodia para fazer a junção. Depois de procurar em vão por outros funks que combinassem, decidiu fazer o oposto, buscar um clássico. Ele queria mostrar para as pessoas que tinham visto Rebeca dançando uma música de Beyoncé toda melindrosa em 2016 que ela era capaz também de fazer um clássico.

Depois de muita pesquisa e algumas tentativas frustradas com músicas de orquestra, chegou à conclusão de que teria que optar por uma música de um instrumento só. Foi quando chegou em “Tocata e Fuga”, de Johann Sebastian Bach e, com a ajuda do maestro Misa Jr. e da diretora musical Angela Molteni,  com quem trabalha há muitos anos, foi fazendo os ajustes necessários.

Com Daiane dos Santos e o Brasileirinho, de Waldir Azevedo, o processo não tinha sido diferente. Era preciso cronometrar cada uma das quatro diagonais e fazer muitas idas e vindas ao maestro para os ajustes. Alguns acordes de Brasileirinho entravam nos pequenos intervalos de descanso entre uma diagonal e outra sem dar ao expectador a chance de decifrar a música, que só entrava do meio para o final da coreografia.

A música deve se adaptar à evolução da ginasta. “Baile de Favela”, por exemplo, passou por oito versões até chegar a que Rebeca apresentou nas olimpíadas. O curioso é que a atleta ainda poderia ter feito uso de uma outra versão, que estava na cartola, a depender de qual estratégia seria adotada na competição.  Na ordem do sorteio para apresentação final, Rebeca ficou em penúltimo. O treinador Francisco Porath Neto, o Chico, teve a oportunidade de assistir as apresentações das outras meninas e, a partir dos erros delas, sabia que Rebeca não precisaria arriscar.

“Claro que é o treinador que assiste e fala o que ela tem que fazer e eles entram num consenso. É uma estratégia. A coreografia não é engessada.”

Foto do acervo pessoal de Rhony Ferreira

Rhony mais uma vez sentiu um frio na barriga. Já tinha batido na trave duas vezes em finais olímpicas. De longe, só restava a ele torcer. Por causa da pandemia, apenas o treinador estava em Tóquio.

“Nós latinos temos sangue quente, a gente se emociona muito. A parte psicológica, alias, era uma grande deficiência que tínhamos. Os psicólogos têm ajudado muito, inclusive aos treinadores, que antigamente faziam muitas vezes o papel de pai, amigo, médico e psicólogo das atletas. Hoje, graças ao trabalho multidisciplinar e à ajuda deles, os treinadores também conseguem se blindar, não fraquejar diante da pressão e passar segurança para as atletas”, explica Rhony.

Foto do acervo pessoal de Rhony Ferreira

Rebeca é um exemplo da evolução conquistada no último ciclo olímpico. Na primeira olimpíada, em 2016, estava nervosa. Já em Tóquio, manteve a concentração, mas o semblante demonstrava que estava se divertindo. O resultado? Um baile de favela de raiz com repertório coreográfico para nenhum jurado botar defeito. Com um estilo próprio, a seleção brasileira conquistou um lugar entre as melhores do mundo.

Tudo indica que a música nacional também ditará o ritmo da ginástica nas olimpíadas de 2024, em Paris. A parceria musical de Rhony agora é com o produtor de Anitta e Ludmilla, em busca de mais notas e acordes em tons de bronze, prata e, principalmente, ouro.

Produção audiovisual

Já está no ar o trigésimo nono episódio do Passes e Impasses

O tema do nosso trigésimo nono episódio é Diversidade LGBTQIA+ nos Jogos Olímpicos. Com apresentação de Eduardo Ribeiro e Filipe Mostaro, gravamos remotamente com Wagner Xavier de Camargo, pós-doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal de São Carlos, e Leonardo Morjan Britto Peçanha, doutorando em Saúde Coletiva pelo Instituto Fernandes Figueira (IFF/FIOCRUZ).

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no SpotifyDeezerApple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o trigésimo nono episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Indestrutível” da cantora e drag queen brasileira Pabllo Vittar. A música é parte do álbum Vai Passar Mal, lançado 2017.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):

Nova onda filme]

Tomboy [filme]

Trabalhos de Eric Seger de Camargo [autor brasileiro]

Pose [série]

Portal Ludopédio

Raça [filme]

Presença de pessoas trans nos Jogos Olímpicos: pertencimento e denúncia – Leonardo Peçanha [artigo]

@feminismoegronoesporte [perfil no Instagram]

Equipe

Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Eduardo Ribeiro e Carol Fontenelle
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Filipe Mostaro e Eduardo Ribeiro
Convidados: Wagner Xavier de Camargo e Leonardo Morjan Britto Peçanha

Artigos

O torneio de futebol olímpico que merece ser lembrado: Los Angeles, 1984

Nos Jogos Olímpicos de 1984, realizados em Los Angeles, o torneio de futebol passou por uma mudança radical. Atletas profissionais passaram a ser admitidos. Até a Olimpíada anterior, apenas amadores podiam participar. Essa restrição havia sido decisiva para o sucesso dos países comunistas nos torneios de 1952 a 1980. Seus atletas, oficialmente, tinham outras profissões e praticavam o esporte como atividade de lazer, o que era uma falsidade (uma falsidade evidente e comentada às claras, aliás). Eram atletas, na realidade, que se dedicavam muito ao futebol. Estavam em nível comparável ao dos jogadores profissionais dos países capitalistas. E enfrentavam, nas Olimpíadas, seleções formadas por amadores (juniores, muitas vezes). Acontecia o que era óbvio. Hungria, União Soviética, Iugoslávia, Polônia, Alemanha Oriental e Tchecoslováquia foram as seleções campeões olímpicas no período 1952-1980, sendo a Hungria campeã três vezes. Predomínio absoluto dos países que estavam à sombra do regime comunista sediado em Moscou.

Com a mudança de 1984, equipes da América do Sul, da Europa capitalista e até de outras regiões do planeta passariam a ter chances reais de êxito. Isso deveria despertar o interesse dos seus torcedores. Consequentemente, aumentaria o público que acompanhava as partidas nos estádios e, em especial, nas transmissões televisivas. A expectativa era de audiência alta e bons lucros. Um acordo entre o COI e a FIFA, então, extinguiu a distinção entre atletas amadores e profissionais no futebol olímpico. Para a FIFA, que defendia e promovia a expansão do profissionalismo no futebol, foi uma vitória de grande significado. Seu presidente, João Havelange, enfatizava a importância daquela mudança ao falar sobre o acordo com o COI.

Mas para que a hegemonia do futebol comunista não fosse substituída por uma outra hegemonia (a das poderosas seleções da CONMEBOL e da UEFA), criou-se uma outra restrição. Ficou estabelecido que as equipes vinculadas a essas duas entidades não poderiam ter jogadores que já tivessem disputado partidas da Copa do Mundo. Assim, países da África e da Ásia, por exemplo, ganhavam uma vantagem considerável, já que podiam escalar atletas profissionais e com experiência em partidas de Copa do Mundo ou de qualquer outra competição. A disputa, desse modo, ficava mais nivelada. Era necessário promover esse nivelamento para que o torneio fosse, de fato, atraente e mantivesse a audiência alta (algo que não acontecia nos torneios olímpicos de futebol).

Alemanha Oriental – Medalha de ouro em 1976

No Brasil, as novas regras não fizeram surgir maior interesse pelo futebol olímpico. Os torcedores continuaram mais interessados nos campeonatos estaduais do que na seleção que viajaria para os Estados Unidos. O torneio em Los Angeles era considerado uma disputa de importância inferior. Nem a CBF parecia muito atenta aos Jogos Olímpicos. Na primeira convocação dos atletas, foram chamados apenas amadores, como se a antiga restrição ainda existisse. Alguns dias depois, a Confederação divulgou uma outra lista: foi convocada uma seleção com 17 atletas, sendo onze jogadores titulares do Internacional (de Porto Alegre) e mais seis. O técnico, Jair Picerni, havia trabalhado em apenas três clubes paulistas: Ponte Preta, Internacional de Limeira e Santo André. Não era um currículo de peso. Aquela, afinal, era uma seleção que não tinha a admiração da torcida e não inspirava confiança na imprensa.

Na primeira fase, o Brasil estava no grupo C e enfrentou as seleções da Arábia Saudita, Alemanha Ocidental e Marrocos. Foram três vitórias brasileiras. A partida mais difícil foi contra os alemães. O resultado final foi 1 a 0, com um gol de Gilmar Popoca (em cobrança de falta) aos 43 minutos do segundo tempo. Contra a Arábia Saudita, o placar foi 3 a 1. Contra o Marrocos, 2 a 0.

Veio, então, a partida contra o Canadá nas quartas-de-final. Foi quando a seleção brasileira começou a atrair maior atenção. Os canadenses, sem grande tradição futebolística, se mostraram mais fortes do que se esperava. Começaram vencendo, com um gol de Mitchell aos 13 minutos do segundo tempo. O Brasil empatou 14 minutos depois (gol de Gilmar Popoca, que já era tratado como um dos melhores jogadores da seleção). A partida foi para a prorrogação e, depois, para a disputa por pênaltis. Foi a vez de outro Gilmar se destacar (o goleiro). Defendeu duas cobranças e a seleção brasileira venceu por 4 a 2.

No ano seguinte, o futebol do Canadá voltaria a mostrar força. Contando com vários jogadores desse time olímpico de 1984, a seleção canadense ficou em primeiro lugar nas eliminatórias da CONCACAF e se classificou pela primeira vez para uma Copa do Mundo. 

Na semifinal, a adversária do Brasil foi a Itália. A disputa olímpica, enfim, se tornou interessante para os torcedores brasileiros. Comentava-se bastante sobre a possibilidade da seleção chegar à final do torneio de futebol e conquistar, pela primeira vez na história, uma medalha. Os mais animados chegavam a dizer, com exagero, que aquela semifinal era uma revanche da traumática vitória italiana na Copa do Mundo de 1982. A partida foi emocionante. Houve empate em 1 a 1 no tempo regulamentar. Na prorrogação, o Brasil venceu por 1 a 0 e se classificou. Uma medalha, pelo menos, já estava garantida.

Gol do Brasil em Los Angeles (1984)

Na noite de 11 de agosto de 1984, os brasileiros tinham duas finais olímpicas para assistir. No futebol, Brasil contra França. No vôlei, a seleção masculina enfrentaria os Estados Unidos. Havia muita confiança e milhões de televisores ligados por todo o país. O Brasil podia comemorar, naquela noite, duas vitórias que entrariam para a história esportiva nacional.

A decepção foi dupla. A seleção de vôlei norte-americana, com o apoio de sua torcida e enorme confiança, venceu por 3 sets a 0. Na final do torneio de futebol, a França se impôs e venceu por 2 a 0.

O futebol francês passava por uma das suas melhores fases. Menos de dois meses antes, a sua seleção profissional havia sido campeão da Europa. O técnico da seleção olímpica da França era o próprio técnico campeão europeu, Henri Michel, que montou para as Olimpíadas um ótimo time, com jogadores jovens, mas já inseridos no futebol profissional francês. Alguns desses jogadores campeões em Los Angeles foram escalados para a Copa do Mundo de 1986. Entre esses estava o atacante Xuereb, que foi o artilheiro do torneio olímpico com 5 gols (empatado com Cvetkovic, da Iugoslávia).

Gilmar Popoca foi considerado pelo COI o melhor jogador da competição. Era um dos seis convocados que não jogavam no Internacional. Seu clube, naquele ano de 1984, era o Flamengo. Jogou por mais 14 anos e chegou a ser contratado por clubes de Portugal, México e Bolívia. A conquista da medalha de prata em Los Angeles foi a que lhe deu maior projeção.

A decisão foi disputada no Estádio Rose Bowl e teve público de 102.000 pessoas. Outras partidas também tiveram públicos numerosos. Um sucesso indiscutível, para satisfação de João Havelange, que tanto havia defendido as novas regras para o torneio de futebol. No entanto, as emissoras de TV dos Estados Unidos falavam pouco sobre a competição, o que levou Havelange a reclamar publicamente e a exigir uma atitude do presidente do COI, Juan Antonio Samaranch.

Brasil- Medalha de prata em 1984 

Uma novidade marcante foi a presença de nomes famosos do futebol profissional. Além do já citado Henri Michel, o italiano Enzo Bearzot, técnico campeão da Copa de 1982, esteve em Los Angeles. Era o técnico da seleção olímpica da Itália. Esteve em Los Angeles também o camaronês Roger Milla, que havia ficado famoso na Copa do Mundo de 1982 ao marcar o gol de empate de sua seleção contra a Itália. Ele participou do torneio olímpico e até marcou um gol, mas a seleção de Camarões não passou da primeira fase. Henri Michel, Bearzot e Milla foram os pioneiros. Depois vieram outros. E o torneio passou a exibir, principalmente da década de 1990 em diante, atletas e técnicos conhecidos mundialmente (e até campeões da Copa do Mundo). Ronaldo Fenômeno e Messi foram alguns desses. Na Olimpíada de 2016, no Rio de Janeiro, Neymar participou e foi campeão.

E assim o torneio olímpico de futebol perdeu a sua aparência de disputa amadora e de “campeonato das seleções comunistas”. Mas ainda haveria uma última vitória olímpica “vermelha”: a União Soviética, em 1988, venceu o Brasil na final e foi a campeã nos Jogos Olímpicos de Seul. 

A inclusão de atletas profissionais no torneio de 1984 satisfez João Havelange, mas a ideia não era seguir adiante até criar uma competição de tanto prestígio que pudesse ser considerada uma “segunda Copa”. Manter o torneio olímpico abaixo da Copa do Mundo foi uma preocupação constante da FIFA ao longo de várias décadas e assim continua sendo até hoje, com a manutenção de normas restritivas para os atletas dos times masculinos. Atualmente, impõe-se um limite de idade, admitindo-se três exceções.

O torneio olímpico, então, continuou sendo, mesmo com as mudanças de 1984, um torneio cheio de atletas jovens e alguns muito promissores. Promissores como havia sido o goleiro Carlos, que participou da Olimpíada de 1976 e dez anos depois foi titular da seleção brasileira na Copa do Mundo de 1986. Os jovens promissores em 1984 foram o alemão Brehme (campeão na Copa do Mundo de 1990), o brasileiro Dunga (campeão na Copa do Mundo de 1994) e o italiano Baresi (vice-campeão na Copa do Mundo de 1994), entre outros que também poderiam ser destacados.

Por tudo o que trouxe de novo (atletas profissionais, a primeira medalha brasileira, altíssima audiência televisiva, participação do técnico campeão da última Copa do Mundo,…) e por ter iniciado uma nova fase na história do torneio olímpico de futebol, aquela competição de 1984 merece ser lembrada e relembrada várias vezes. Foi, sem dúvida, uma das mais interessantes.

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O novo lema olímpico e suas implicações

O lema citius, altius, fortius (mais rápido, mais alto, mais forte) é amplamente reconhecido e reverenciado no Movimento Olímpico. Foi adotado em 1894 quando o Barão francês Pierre de Coubertin instituiu o Comitê Olímpico Internacional (COI). Ele pegou emprestado esse lema de seu compatriota Henri Didon, um padre dominicano que Coubertin ouviu recitar a frase em 7 de março de 1891 durante a cerimônia de premiação de um evento esportivo na Escola Albert Le Grand, em Arcueil, perto de Paris, na qual ele era o reitor. Impressionado, Coubertin citou o futuro lema olímpico em uma reportagem publicada na revista Les Sports Athlétiques alguns dias depois.

Barão de Coubertin, responsável por introduzir o lema olímpico. Fonte: Olimpíada todo dia

Em seu website, o COI afirma que o lema olímpico “resume uma filosofia de vida ou um código de conduta” que “incentiva os atletas a darem o seu melhor durante as competições”. Além disso, de acordo com a Carta Olímpica, a mesma “expressa às aspirações do Movimento Olímpico”. O COI esclarece em seu site que o lema olímpico compreende não apenas um significado esportivo e técnico, mas também uma perspectiva moral e educacional. Nesse sentido, Coubertin já havia dito em 1929 que “a chamada sonora” dessas três palavras e os enormes esforços para melhorar o rendimento são necessários “para a vida esportiva e as proezas excepcionais indispensáveis ​​à atividade geral”. Assim, o lema olímpico implica uma postura perfeccionista sobre a vida humana com ênfase na excelência individual.

A persistente pandemia de coronavírus gerou uma mudança imprevista e incomum no lema olímpico. Perturbado por seus efeitos sobre o Movimento Olímpico e motivado pelas reformas que vem promovendo desde sua eleição como presidente do COI em 2013, o alemão Thomas Bach propôs em março deste ano “complementar este lema adicionando, após um hífen, a palavra juntos”, para o qual evocou a palavra latina communis.

Sua proposta, realizada durante o discurso de aceitação de sua reeleição como Presidente do COI, reconhece que “aprendemos do jeito mais difícil durante esta crise do coronavírus que podemos estar de acordo com nosso lema olímpico ‘mais rápido, mais alto, mais forte’, no esporte e na vida, somente se trabalharmos juntos em solidariedade”. Encorajando seus colegas do COI a imaginar metas mais ambiciosas para o mundo pós-coronavírus, Bach proclamou: “Precisamos de mais solidariedade dentro das sociedades e entre as sociedades e isso se tornou óbvio no início do coronavírus, quando se pôde ver que o fosso social estava se ampliando”. Prosseguiu explicando que “o mundo é tão interdependente que ninguém consegue mais resolver os grandes desafios sozinho” e insistiu que sua proposta expressa “essa necessidade de solidariedade”. Não surpreende que, quase um século antes, Coubertin disse que, no Olimpismo, a filosofia constituinte do Movimento Olímpico, “tudo gira em torno das ideias obrigatórias de continuidade, interdependência e solidariedade”.

No mês seguinte, em uma reunião virtual, o comitê executivo do COI endossou a proposta de Bach e decidiu submetê-la aos seus membros para consideração durante a assembleia geral a ser realizada antes do início dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2020. Já é dado como certo que o novo lema olímpico será aprovado com entusiasmo. Por um lado, explicita que o esporte, a prática social estruturante do Movimento Olímpico, é um projeto comunitário que exige reconhecimento, cooperação e cuidado dos adversários. Por outro lado, enfatiza o caráter ecumênico do Movimento Olímpico, assim como sua aspiração, conforme consta na Carta Olímpica, de “favorecer o estabelecimento de uma sociedade pacífica e comprometida com a manutenção da dignidade humana”. Uma preocupação central do Olimpismo é a criação de uma communitas de iguais morais que respeitem suas diferenças. Desta forma, o Olimpismo propõe, tomando emprestado livremente do filósofo francês Emmanuel Levinas, o reconhecimento celebrativo da alteridade e nos convida a cultivá-la no caminho compartilhado em direção à excelência.

A Sessão do Comitê Olímpico Internacional (COI) aprovou a mudança no lema olímpico. Foto: IOC/Greg Martin

O novo slogan olímpico resume melhor, esclarece e torna muito mais coerente a ideologia olímpica. É razoável esperar que o COI, como líder do Movimento Olímpico, se esforce para torná-lo realidade e o utilize para orientar suas políticas e iniciativas. Por isso, também é razoável esperar que o COI indique claramente sua posição sobre os próximos Jogos Olímpicos de Inverno de Pequim 2022 e a repressão violenta por parte das autoridades chinesas contra as pessoas uigures e outras minorias predominantemente muçulmanas em Xinjiang. Um setor da comunidade internacional argumenta que o genocídio está sendo cometido contra essas minorias e que mais de um milhão de pessoas foram transferidas para prisões e campos de doutrinação. Vale a pena perguntar o lugar dessas minorias no “juntos” do novo lema olímpico. O que deve implicar a solidariedade invocada por Bach para justificar tal acréscimo no caso dessas minorias? Imputando a inação do COI, o antropólogo cultural estadunidense John J. MacAloon declarou recentemente que os verdadeiros movimentos sociais se levantam e se opõem a ele. Ver-se-á se o COI, estimulado pelo novo lema olímpico e pelos demais preceitos, se comporta dessa forma.


Texto originalmente publicado no site Página 12 no dia 21 de julho de 2021

Tradução: Eduardo Ribeiro e Fausto Amaro

Produção audiovisual

Já está no ar o vigésimo sétimo episódio do Passes e Impasses

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no Spotify*, Deezer*, Apple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O tema do nosso vigésimo sétimo episódio é “O legado dos Jogos Olímpicos Rio/2016”. Com apresentação de Filipe Mostaro e Mattheus Reis, recebemos Vivian Fonseca, doutora em História, Política e Bens Culturais pela Fundação Getúlio Vargas – RJ e professora adjunta na UERJ e na FGV.

Fonte: Rio On Watch

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o vigésimo sétimo episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Aquele abraço“, composta por Gilberto Gil e interpretada por Luiz Melodia.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

ARTIGOS, LIVROS E OUTRAS PRODUÇÕES:

Portal Memória Olímpica – Fundação Casa de Rui Barbosa

Rio Olímpico: legado dos Jogos – Instituto PACs

Obras do Gilmar Mascarenhas

Memória das Olimpíadas no Brasil – diálogos e olhares – volumes 1 e 2

Equipe
Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Marina Mantuano, Carol Fontenelle e Fausto Amaro
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Filipe Mostaro e Mattheus Reis
Convidada: Vivian Fonseca

Artigos

Competições olímpicas de arte e a história das mulheres no esporte

A trajetória das mulheres no esporte durante algum tempo foi contada a partir da ênfase naquilo que não foi ou naquilo que poderia ter sido. Trata-se de uma perspectiva importante e justa que chamou a atenção para o longo silêncio sobre uma parte importante da história do esporte. Essa parte cabe às mulheres e ela é composta de inúmeros eventos e ações que precisam ser trazidos à cena, montando assim um quadro não de lacunas somente, mas de atos e gestos movidos por esforços solitários e coletivos. Esforços que possuem laços com diferentes esferas da cultura e da sociedade, entre as quais a arte.

Diversas foram as vezes em que o esporte foi artisticamente representado. As vanguardas europeias são um exemplo dessa aproximação. A ânsia por tematizar o frenesi da modernidade e seus ícones – entre os quais o esporte – moveu a tinta de artistas futuristas como Giacomo Balla, Umberto Boccioni e Carlo Carrà[1].

Porém, uma das mais fortes demonstrações da relação entre arte e esporte está nas Olympic Art Competitions (Competições Olímpicas de Arte) quase esquecidas hoje em dia, mas que já fizeram parte do programa dos Jogos Olímpicos. Essas competições começaram oficialmente, em 1912, nos Jogos de Estocolmo e terminaram em 1948, em Londres. Elas surgiram da vontade de Pierre Coubertin de relacionar esporte, arte e literatura, pois essa união representaria o que Coubertin considerava como a verdadeira essência dos Jogos Olímpicos, do modo como acreditava terem sido concebidos na Antiguidade.

Essas disputas artísticas foram um momento importante para as mulheres no esporte. Em 1928, o mexicano Ángel Zárraga levou para as competições seus quadros La Futebolista Rubia e La Futebolista Morena nos quais são retratadas jogadoras de futebol parisienses que atuavam nos gramados franceses em uma época considerada como a “idade de ouro” do futebol feminino[2].

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La futebolista morena, obra pintada, em 1926, por Ángel Zárraga e inscrita nas Competições Olímpicas de arte de 1928

Porém, as mulheres, também, se destacaram como artistas. E várias delas conseguiram medalhas.

Competições Olímpicas de arte e as mulheres

Pelo menos desde a metade dos anos de 1910, Pierre Coubertin não mediu esforços para a organização de uma conferência consultiva que visava convencer o Comitê Olímpico Internacional sobre a necessidade de se integrar ao Jogos, manifestações que fossem além dos esportes e abarcassem as artes. Richard Stanton, em seu livro The forgotten Olympic Art Competitions, nos mostra o empenho de Coubertin em convidar importantes artistas da época para comporem a conferência, enviando-lhes cartas individuais.

Em 1906, na abertura desse evento, Coubertin fez a leitura intitulada “A Grand Merriage” na qual enfatiza a necessidade de unir músculo e mente[3]. Seu esforço gerou resultado:

A conferência aprovou por unanimidade a ideia de instituir cinco concursos, arquitetura, escultura, pintura, literatura e música, que se juntarão a seguir as Olimpíadas e farão parte delas com o mesmo status das provas atléticas. Os trabalhos apresentados devem ser inspirados na ideia do esporte ou referir-se diretamente ao esporte. Eles seriam examinados por um júri internacional. As obras vencedoras seriam, na medida do possível, exibidas, publicadas ou executadas (como se fossem pictóricas, arquitetônicas, escultóricas ou literárias, ou finalmente, musicais ou dramáticas) ao longo dos Jogos. (tradução minha) [4]

Após alguns percalços, finalmente nos Jogos Olímpicos de Estocolmo, em 1912, as competições artísticas foram oficializadas. As principais categorias incluíam Arquitetura, Escultura, Pintura, Música e Literatura[5] tendo sua organização orientada pela nacionalidade. Assim como nos jogos esportivos, as premiações se dividiam em medalhas de ouro, prata e bronze. Em 36 anos foram concedidas 147 medalhas, sendo no total 24 para a Alemanha, 14 para Itália e 13 para a França.

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Competições Olímpicas de arte, 1932, Los Angeles. Júri observando as obras. Fonte: Olympic Museum

O único representante de destaque da América do Sul foi o Uruguai que obteve uma menção honrosa, em 1948, na categoria literatura, prêmio obtido por Clotilde Luisi, uma advogada, escritora e militante do direito das mulheres[6].

Várias foram as mulheres que participaram das Competições Olímpicas de Arte e que ganharam medalha como é o caso da escultora alemã Renée Sintenis que, em 1928, recebeu prata pela obra Footballeur. René era uma mulher que chamava atenção em sua época por seu estilo andrógino e por uma vida pública agitada, sendo com frequência vista em eventos esportivos ou dirigindo carros pelas ruas de Berlim.

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Footballeur, 1928, Renée Sintenis, medalha de bronze. Fonte: Playing Pasts

Outro destaque pode ser dado a Laura Knight que, em 1913, impactou a crítica e o público com seu Self-portrait with nude (Autorretrato com nu). Essa composição mostra uma cena ambientada em um estúdio no qual aparece Knight – vestida – em frente a uma tela em que pinta a modelo nua, Ella Naper.  Ao lado de Laura podemos ver um espelho refletindo o corpo real dessa modelo que posava para a artista. É uma pintura complexa que ao duplicar a imagem, atinge três planos de representação feminina: pintora, modelo e figuração.

Vale lembrar que no período de formação artística de Laura Knight, nas escolas de arte, era desaconselhado e até mesmo vedado que mulheres pintassem diretamente modelos nus, tendo que se limitar a trabalhar a partir de moldes ou copiar desenhos preexistentes. O quadro Autorretrato com nu, em grande medida, pode ser interpretado como uma provocação a essa sanção sofrida pela própria artista.

Knight foi alvo de críticas negativas de quem a considerou imoral e com uma postura considerada como incompatível com uma mulher. Entretanto com o passar do tempo, sua técnica que conjugava realismo e traços de impressionismo, a tornaram um dos principais nomes das artes plásticas da Inglaterra em sua época.  Uma artista muito popular, também, devido às suas pinturas sobre o cotidiano do circo. Laura Knight, em 1936, tornou-se a primeira mulher eleita para membro efetivo da Royal Academy desde sua fundação.

Antes disso, em 1928, Laura Knight foi medalhista das Competições Olímpicas de Arte ganhando a prata com a pintura Bouxeurs. Essa modalidade esportiva, aliás, já havia recebido atenção da artista em obras anteriores como é o caso de Physical Training at Witley Camp (1918), inspirada em cenas presenciadas pela própria artista no campo de treinamento militar Witley, onde soldados canadenses, francês e Belgas se preparavam para a primeira guerra mundial. Desde, então, a pintora costumava representar o boxe em suas produções como é o caso de Youngsters at the ring, Blackfriars (1937). Ainda em relação à temática esportiva, a artista fez o famoso cartaz Rugby at Twickenham by Tram, em 1921.

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Boxeurs, Medalha de prata, Competições Olímpicas de Arte 1932. Fonte: Olympic Museum

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Physical Training at Witley Camp (1918), Laura Knight. Fonte: Allpainter

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Youngsters at the ring, Blackfriars (1937), Laura Knight. Fonte: Artnet

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Rugby at Twickenham by Tram, cartaz feito por Laura Knight
Fonte: London Transport Museum

Agora é a vez de falar de Ruth Miller, nascida em Chicago, em 1904, filha de uma família abastada e conservadora da qual tentou desvencilhar-se e ir em busca de mais liberdade. Ruth chegou a fingir um colapso nervoso para não ser matriculada no tradicional Vassar College. Viajou para a Europa, casou-se sem autorização dos pais e estudou artes plásticas durante a efervescência das vanguardas europeias. Provavelmente desse contato surgiram os traços surrealistas que acompanham muitas de suas obras.

Já de volta aos Estados Unidos, em 1932, nos Jogos de Los Angeles, Ruth ganhou a medalha de prata nas competições artísticas com a interessantíssima pintura The Struggle, em que é possível observarmos dois homens, um negro e um branco, cuja luta corpórea pode ser interpretada como uma alusão ao embate racial comum à sociedade americana da época.

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Ruth Miller Kempster, The Struggle, Medalha de prata. Competições Olímpicas de Arte de 1932.
Fonte.: http://lacmaonfire.blogspot.com/

A pintora não deixou de lançar um olhar crítico também sobre os padrões femininos de sua época, como ocorre na bela e provocativa obra Housewife, de 1935. Nela, a partir da técnica de enquadramento usada, nos é passada uma forte impressão do enclausuramento do cotidiano doméstico das mulheres.

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Housewife, 1935, Ruth Miller Kempster. Fonte: Los Angeles Times.

As pintoras aqui mencionadas, de algum modo, deram mostras tanto na arte quanto em suas vidas de que havia espaços mais amplos a serem ocupados pelas mulheres na sociedade. E esse é um dos motivos que norteou a escolha delas para compor este texto. Além desse aspecto, o destaque dessas artistas, nesta postagem, também se justifica pela maior quantidade de informações acessíveis sobre suas carreiras e as obras que as levaram a ser premiadas nas Competições Olímpicas de Arte.

Foram 148 mulheres artistas que concorreram nessa disputa, sendo que 10 ganharam medalhas e cinco conseguiram menção honrosa. São números que dão mostras de uma participação exitosa. Desde a primeira edição oficial, em 1912, foi permitida a presença de mulheres, o que dá mostras de que pelo menos nas competições artísticas dos Jogos, essa questão não foi um problema. Nas regras das Competições Olímpicas de Arte não há passagens que façam alusão a regulações específicas em relação a artistas mulheres, assim como não se encontrava menção à sua exclusão das competições[7].

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Quadro de medalhistas mulheres nas Competições Olímpicas de Arte nas Fonte.: Natalia Camps Y Wilant. A Female Medallist at the 1928 Olympic Art Competitions: The Sculptress Renée Sintenis. The International Journal of the History of Sport. Volume 33, 2016

Tudo bem diferente do que ocorria com os Jogos Olímpicos esportivos cuja presença feminina foi algo contra o qual o próprio Barão de Coubertin manifestou-se explicitamente diversas vezes. Essa e outras oposições dificultaram sobremaneira a participação de mulheres atletas, mas como já disse, no início desta postagem, a trajetória das mulheres no esporte é fascinante devido ao seu caráter alternativo e em certa medida desobediente.

Afinal enquanto Barão de Coubertin dizia não, a francesa Alice Milliat, criou, e depois dirigiu, a Fédération Sportive Féminine Internationale (F.S.F.I.). Essa instituição durou 15 anos – (1921-1936) – e no decorrer desse esse tempo foi responsável pela organização de quatro edições dos Jogos Olímpicos Femininos.

Mas esse é tema para a próxima postagem.

[1] Sobre a relação arte e esporte há livros e artigos de Victor Andrade de Melo que podem ser consultados

[2] Uso a expressão de Xavier BREUIL no seu Histoire du football féminin en Europe. Paris.: Nouveau Monde Editions, 2011

[3] “to reunite a long-divorced couple – Muscle and Mind”, assim consta no discurso original que pode ser lido no livro de Richard Stanton The forgotten Olympic Art Competitions

[4] Pérez-Aragón, P. y Gallardo-Pérez, J. (2017). Coubertin and the Artistic Competitions in the Modern Olympic Games. Revista Internacional de Medicina y Ciencias de la Actividad Física y el Deporte vol. 17 (68) p.633-649.

[5] Com o tempo outras subdivisões foram acrescentadas

[6] Clotildi Luisi foi uma artista atuante no cenário político da América Latina saindo em defesa de ideias anti-imperialistas. Ela foi amiga de Alfonso Reys, poeta e diplomata Mexicano, com quem manteve intercâmbio intelectual frequente. Sobre a atuação de Luisi ver Mariana Moraes Medina. Crónica de una efusión: Alfonso Reyes, Luisa Luisi y el Comité Uruguay-México. Revista de Historia de América núm. 156, 2019.

[7] Ver  Natalia Camps Y Wilant. A Female Medallist at the 1928 Olympic Art Competitions: The Sculptress Renée Sintenis. The International Journal of the History of Sport. Volume 33, 2016 – Issue 13: Special Issue: Women and Sport

Artigos

Medo e coragem em tempos de pandemia: lições desportivas de 1987

Por David M. K. Sheinin* e César Torres**

Em 1987, se conhecia o suficiente da síndrome da imunodeficiência adquirida (AIDS) e sua causa, o vírus da imunodeficiência humana, para saber que se sabia muito pouco. Mundialmente, os casos de AIDS cresciam de forma exponencial. Enquanto se discriminavam os homossexuais, como suposta fonte da doença, novos temores surgiram. Até pouco tempo atrás, muitas pessoas acreditavam estar à margem da pandemia, já que a AIDS era considerada uma doença de homossexuais, confinada a seus círculos em uns poucos centros urbanos. Em 1987, porém, com novidades sobre a transmissão entre mãe e filho/a e entre casais heterossexuais, o perigo mudou. Paulatinamente, a sociedade se deu conta da sua proximidade com o perigo. E o medo aumentou.

Os Estados Unidos estão hoje na “1987” da pandemia da Covid-19. Não é mais uma infecção chinesa, ou de alguns poucos bairros do Queens e Brooklyn em Nova York. Cada notícia de como o vírus assola o corpo promove mais medo em algumas pessoas, fantasias insistentes de isenção em outras e novas buscas por “culpados” – desde políticos a enfermeiras asiáticas – pela crise.

O 1987 da AIDS tem eco na Covid-19 do presente. Naquele ano o mundo desportivo tinha medo e desconfiança. Desde Seul advertia-se sobre as medidas que seriam implementadas para evitar a chegada de esportistas portadores de AIDS durante os Jogos Olímpicos de 1988 (e assim impedir um desastre econômico e desportivo quase equivalente a um potencial cancelamento definitivo dos Jogos Olímpicos de 2020 em Tóquio). Na Iugoslávia, a organização dos Jogos Universitários colocou preservativos à disposição dos 4.500 esportitas como parte de uma campanha anti-AIDS. O boxeador japonês Akiro Kameda pediu que Terry Marsh fosse submetido a um exame de AIDS antes da luta no Royal Albert Hall de Londres (proposta esse rechaçada com indignação por Marsh).

Milhares de atletas de todo o continente viajaram à Indianápolis, em pleno meio-oeste estadunidense, para os Jogos Pan-americanos de 1987. Como no caso da Covid-19 atual, muitas pessoas naquela zona sentiram-se imunes à AIDS (uma enfermidade que se pensava estar confinada às duas costas do país), ainda que o medo gerado pelo desconhecimento sobre a doença estivesse aumentando. Assim, em janeiro, um jornal de Indianápolis se referiu à AIDS como “a nova lepra”, que, se não fosse tratada, poderia resultar em centenas de mortes e isolamentos na cidade. O alarme se propagou entre as delegações presentes.

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Jogos Pan-americanos de Indianápolis 1987. Fonte:  Wikipedia

José Soca Montero, técnico da equipe uruguaia de judô, reclamou que a organização dos Jogos Pan-americanos de 1987 não forneceu informações sobre a AIDS e nem sobre como iriam controlar a doença. O técnico argumentou que a maioria dos casos de AIDS no Uruguai tinha vindo dos Estados Unidos e do Brasil. Por esse motivo, ele sustentava que os atletas desses países deveriam ser submetidos a exames obrigatórios. Nesse sentido, uma revista mexicana afirmou que, como a AIDS havia sido vinculada com as relações homossexuais, “não se descarta a possibilidade de submeter os atletas e participantes em geral nesses tipos de eventos internacionais a exames anti-AIDS”. Esses exames, prosseguia a revista, poderiam prevenir muitos problemas “(até que) seja encontrada uma vacina eficaz contra essa síndrome do terror”. Por sua vez, o remador mexicano Juan Carlos Ortiz sentia-se desinformado e confessava o medo de se contaminar no restaurante e nos banheiros da vila pan-americana.

No entanto, no meio do crescente pânico, houve um momento de redenção ainda sem equivalência em 2020, um simples ato de clemência de um grande desportista, que humanizou a crise, demonstrou um pouco de esperança e acalmou a ansiedade social ao redor da AIDS. Esse ato de bondade envolveu o americano Greg Louganis, o saltador mais conhecido da história, e Ryan White, um adolescente de Indiana. White, a vítima de AIDS mais famosa do momento, havia se contagiado através de uma transfusão de sangue no final de 1984. Em 1986, com 14 anos, as autoridades proibiram-lhe de frequentar a escola, já que havia um temor irracional de que ele contaminasse parte dos alunos. Louganis, ganhador de duas medalhas de ouro nos Jogos Olímpicos de 1984 em Los Angeles, soube de White e sua luta e o convidou para presenciar o Campeonato Nacional de Saltos de 1986 em Indianápolis. Louganis contou, depois da competição, que havia se sentido motivado pelo caso de White. No ano seguinte, de volta a Indianápolis para os Jogos Pan-americanos, Louganis ganhou duas medalhas de ouro e presenteou White com uma delas, colocando-a em seu pescoço como um campeão. A mãe de White declarou que o gesto havia significado muito para seu filho.

Seis meses depois dos Jogos Pan-americanos de Indianápolis, Louganis foi diagnosticado com AIDS. Ele suspeitava de algo quando deu sua medalha a White em agosto de 1987? Não sabemos. O medo, porém, forçou Louganis a manter em segredo sua doença (e sua homossexualidade) por muito tempo. Nos Jogos Olímpicos de 1988, em Seul, ele bateu sua cabeça contra o trampolim. Umas gotas de sangue caíram na piscina e Louganis ficou perplexo. Contaminaria os demais? O incidente não teve consequências.

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pinterest.com

De campeão olímpico e pan-americano que consolou White, Louganis se transformou, em poucos meses, em todos os sentidos, em uma vítima da AIDS, que temia tanto pela sua carreira esportiva quanto por sua vida. White morreu aos 16 anos em 1990. Os dois, entretanto, mudaram a percepção social da AIDS e sua trajetória. A sociedade se deu conta do quão absurdo e discriminatório havia sido negar a White seu direito à educação. Nunca mais nos Estados Unidos proibiram um(a) estudante com AIDS de ir à escola. Louganis e White promoveram um avanço na forma de se relacionar com a doença, não por meio de uma vacina ou uma medicação milagrosa, mas por meio de uma breve amizade que humanizou as vítimas, exemplificando a “simpatia solidária (e respeito) diante do sofrimento dos semelhantes”. Esses amigos entenderam, como diz o filósofo espanhol Fernando Savater, que “ou estou com e para os outros ou sou outra coisa” e que “os outros me permitem ser eu, me resgatam”. Assim, marcaram um caminho otimista possível em meio a uma doença devastadora. Sua história, tão vigente nos tempos atuais, nos recorda que a melhor maneira de enfrentar esse tipo de calamidade é resgatando-nos mutuamente em uma cumplicidade coletiva.

Texto originalmente publicado no site Página 12 no dia 01 de agosto de 2020.

* Doutor em História. Professor na Universidade de Trent.

** Doutor em Filosofia e História do Esporte. Professor na Universidade do Estado de Nova York (Brockport).

Tradução: Leticia Quadros