Um apresentador de televisão em suas redes sociais constantemente reclama de que querem transformar o futebol em matéria de faculdade e se vangloria de fazer um “programa raiz”. Nosso glorioso Universo do Futebol (DAMATTA, 1982), não necessariamente o pioneiro, o Charles Miller dos estudos nas áreas de ciências humanas e futebol completará quarenta anos em 2022. Caro apresentador, não é porque você não estuda que as coisas não existem.
Essa lógica “raiz” e a desvinculação do futebol com os estudos ou o que se poderia entender como circuito mais amplo da cultura quase sempre se associa a um raciocínio conservador como resposta quando práticas naturalizadas são colocadas em questão. Dentro desta matriz de pensamento o comportamento adequado de jogadores, comunicadores, torcedores e clubes deveria repetir o que ocorria em nossa juventude, mesmo que tal comportamento seja muito mais uma construção de memória coletiva do que episódios comprovados historicamente.
Apesar da importância normativa que possui dentro do futebol de espetáculo, o discurso “raiz” convive com uma série de outras discursividades. Essas discursividades não convivem em harmonia ou em igualdade de condições, mas estão constantemente participando de lutas por significados. Essas lutas não são novas. A novidade, talvez, esteja no protagonismo que discursividades até então relegadas a espaços muito pontuais passaram a ocupar na cultura futebolística.
Em artigo publicado com a jornalista, e especialista em jornalismo esportivo, Caroline Patatt (PATATT; BANDEIRA, 2020), discutimos o engajamento dos clubes de futebol no Brasil a pautas sociais que variavam da paternidade responsável, racismo, homofobia até a demarcação de terras indígenas. Apenas durante o mês de maio corrente, em sua página no Facebook, o Grêmio compartilhou postagens sobre o dia mundial da criança desaparecida, dia mundial do combate à LGBTfobia, além de homenagens ao dia do gari e ao dia das mães.
Existem alguns grupos de torcedores e torcedoras progressistas (esse adjetivo foi escolhido por sua abrangência dada a diversidade de grupos que têm tentado desnaturalizar as práticas da cultura futebolística) que criticam os clubes de futebol por limitarem-se a posicionamentos nas redes sociais, muito mais na lógica publicitária ou das próprias redes do que efetivamente engajados com demandas sociais. A crítica me parece absolutamente justa e correta. Entretanto ainda é muito recente essa “permissividade” para abordar temas sociais que durante muito tempo foram marcados como não tendo relação com o futebol.
Em 2015 e 2016, durante a produção do material empírico de minha tese de doutorado (BANDEIRA, 2019), a partir de certo retorno da Coligay as memórias dos torcedores do Grêmio e a historiografia oficial do clube[1], questionei os torcedores sobre a possibilidade da experiência da torcida homossexual entre o final da década de 1970 e princípios da década de 1980 poderia autorizar uma descrição do clube como mais plural em relação as sexualidades não normativas. As respostas dos torcedores também pareciam estar nessa lógica entre diferentes legitimidades nas práticas dos estádios de futebol:
“Poderia acontecer, mas eu acho que não teria aceitação pelo fato de que seria motivo de chacota dos outros”.
“O clube faz muito bem em resgatar isso aí para fazer uma nova imagem perante às outras torcidas, perante à imprensa, perante à opinião pública”.
“Eu acho que não vai fazer porque vai sofrer muita crítica velada, lá dentro mesmo, os próprios conselheiros”.
“Não é uma coisa que um time de futebol, que um clube, deva se preocupar como uma questão cultural, do mundo”.
“Não é aqui o lugar. Aqui é lugar para se ver futebol, curtir futebol”.
Não há dúvidas de que os cards nas redes sociais são muito pouco dentro do engajamento que os clubes com seu alcance midiático poderiam fazer. Tenho receio, também, se meu entendimento de que esse deslocamento dos últimos anos seja algo significativo não esteja autorizado pelo meu local de privilégio como um sujeito cis-gênero, branco e heterossexual quase sempre muito bem contemplado nas normatividades dessa cultura futebolística.
Talvez os clubes possam começar a copiar o, também tímido, passo dado por nosso jornalismo esportivo hegemônico ou normativo. A presença das jornalistas nas redações já permitiu uma curta alteração das percepções sobre fenômenos até então naturalizados nas discursividades do esporte e do próprio jornalismo futebolístico. Em janeiro, aqui mesmo neste espaço, comentei que um canal pago de esportes tinha celebrado uma frase machista dita pelo, felizmente, ex-treinador do Grêmio Renato Portaluppi. Trinta anos mais jovem, Neymar repetiu a mesma frase comparando posse de bola e mulheres. Ele disse a mesma frase. Em trinta anos esse raciocínio machista não conseguiu nem ao menos construir uma frase nova…

A diferença nesta ocasião é que foi possível localizar uma matéria falando sobre o machismo de Neymar em sites esportivos. Ao ler os comentários sobre a reportagem nas redes sociais (eu sei que não deveria fazer isso, mas tem vezes que é inevitável) um homem indignado bradou que essa discussão só acontecia porque tinha muita mulher jornalista atualmente e que elas estariam levando pautas identitárias para o jornalismo esportivo. Em um primeiro momento, meu desejo foi apenas de xingar o torcedor revoltado, mas ele estava correto. Sim, quando se aponta para a necessidade de representatividade é disso que se trata. Deslocar o pensamento normativo é mais fácil quando pluralizamos as experiências. Essa pode ser outra metodologia para o enfrentamento das violências naturalizadas na cultura futebolística e, também, no circuito mais amplo da cultura. Precisamos de mais mulheres, mais pessoas negras, mais LGBTQIA+ com protagonismo discursivo. Precisamos multiplicar a representatividade, multiplicar as experiências, multiplicar as narrativas!
Temos que exigir mais de nossos clubes! E que cada um exija do seu, de rivalidade tratamos em outro momento. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que estamos em permanente luta por significados. Os cards de data são muito pouco, mas essa não é uma vitória garantida. Vamos por mais e estejamos atentos para não permitirmos regredir nos poucos passos dados até agora. Se hoje um clube não tem medo da chacota dos outros e publica mensagens favoráveis às sexualidades não normativas o discurso “raiz” também ganha espaço, eventualmente até entre alguns de nós saudosos não necessariamente das práticas, mas de nossas memórias juvenis.
Referências
BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. 1. ed. Curtiiba: Appris, 2019.
BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. A Coligay e as memórias dos torcedores do Grêmio. REVES – Revista Relações Sociais, v. 3, p. 35-49, 2020.
DAMATTA, Roberto. ______. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982.
PATATT, Caroline; BANDEIRA, Gustavo Andrada. Paixão e representatividade: a percepção dos torcedores brasileiros quanto às campanhas sociais dos clubes nacionais de futebol. Culturas Midiáticas, v. 13, p. 261-279, 2020.
[1] Ver BANDEIRA; SEFFNER, 2020.