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Um homem possível

No dia 26 de março deste ano, o Internacional, apesar da superioridade exercida durante a partida, acabou eliminado pelo Caxias nas semifinais do campeonato gaúcho de 2023 em pleno Beira-Rio. Com isso, o colorado completava sete anos longe do título estadual o que é muito tempo considerando que nos vinte e três campeonatos gaúchos disputados neste século, Grêmio e Internacional venceram vinte e dois. Imediatamente após converter a penalidade que classificava o time visitante, o atacante Wesley Pomba, formado nas categorias de base do rival – Grêmio, colocou as mãos nas orelhas como quem afirma não ouvir a torcida mandante. Deste gesto/provocação decorreu-se uma pancadaria generalizada entre os jogadores das duas equipes, incluindo, dentre outros, os experientes Alan Patrick, de 31, e Rodrigo Moledo, de 35 anos.

Em meio à confusão generalizada após eliminação do Inter, torcedor com criança de colo invade o campo para agredir jogador. Créditos: O Dia.

Não bastasse a cena recorrente e lamentável envolvendo o enfrentamento físico entre adversários ao final de uma partida eliminatória, tivemos uma cena que assustou os diferentes atores envolvidos com o futebol profissional jogado por homens no Brasil. Um homem de 33 anos, descrito nas reportagens como torcedor (penso em tantos adjetivos antes desse…) do Internacional entrou com uma criança de três anos no colo e agrediu um jogador do Caxias. A cena talvez não tenha ficado ainda pior porque os jogadores do Caxias ao pensarem em revidar a agressão viram a criança e recuaram. Para a sequência desse texto quero pensar se a ação desse homem (não quero chamá-lo de torcedor. Ele é um torcedor, mas antes de ser torcedor, nesse caso, ele é homem) foi algo absurdo, terrível, exógeno ao esporte e às práticas torcedoras ou se,  ao contrário, foi uma ação que dialogou razoavelmente bem com algumas das normativas que circulam nesse esporte. Me refiro especialmente a duas delas: a paternidade e o “ódio eterno ao futebol moderno”.

Começo pelo “ódio eterno ao futebol moderno”. Esse slogan, movimento, iniciativa ou percepção goza de alguma simpatia dentre nós, acadêmicos e torcedores progressistas que militam contra a super mercantilização do futebol, chamado por alguns colegas de neoliberal. Ele carrega um importante movimento popular contra a elitização dos estádios de futebol, defende a festa e a tradição do que pode ser entendido como “cultura do futebol”. Por outro lado, parece possível afirmar que a defesa dessa “cultura do futebol” passa pela manutenção de outras formas de violência, dentre as quais o racismo, o machismo, a LGBTfobia… Esse “ódio” acaba dialogando bem com perspectivas mais conservadoras de nossa cultura que acham que o mundo está “chato” por não ser mais possível reproduzir impunemente preconceitos da mesma forma que eram realizados até a primeira década de nosso século.

Uma das críticas que seus interlocutores (talvez simpatizantes seja melhor por não conseguir enxergar um movimento organizado) realizam e que me captura é de que agora no futebol tudo é provocação. Não me refiro às violências nomeadas no parágrafo anterior, mas as faltas marcadas por dribles “excessivos”, cartões amarelos na comemoração dos gols e uma série de restrições que não se limitam às arquibancadas ou cadeiras de nossos estádios/arenas, mas que entram no campo de jogo. Se colocar as mãos atrás das orelhas pode produzir violência, o “futebol moderno” venceu, pois não aceita a provocação esportiva. Está na lógica de nossas trocas jocosas (GASTALDO, 2010) que ao vencedor é dado o direito de “gozar” o vencido, uma vez que esse lugar não é fixo e seja ele mesmo quem cria ou, no mínimo, reforça o ambiente agonístico do esporte. Provavelmente seja essa autorização a brincar que nos dá tanto medo de perder para nossos rivais para não sermos os “alvos” de suas brincadeiras.

O homem que invadiu o campo era sócio do clube e integrante de uma torcida organizada. As torcidas organizadas são um dos principais suportes do “ódio eterno ao futebol moderno”. Elas desejam a festa, as provocações e, também, a violência. Seria muito simples narrar uma contradição entre aqueles que acham que o mundo está chato, mas que não aceitam uma provocação esportiva. Talvez seja necessário pensar na normativa torcedora como algo que aceita esses dois textos, mesmo que contraditórios entre si. O potencial subversivo desse grupo de torcedores contra a hipermercantilização do futebol neoliberal é ignorado (ou, no mínimo, muito diminuído) quando o assunto é gênero. Me parece que o torcedor que invade o campo é contra a “chatice” do futebol moderno, mas também, como um homem bastante tradicional, não aceita sofrer um deboche, não pode permitir levar desaforo para casa.

Vamos ao segundo ponto: paternidade. Em meu último texto para esse blog, comentei como a desobrigação paterna parece uma constante nas narrativas sobre o futebol profissional jogado por homens. Ilustrei o argumento com as concentrações antecipadas para que os jogadores possam dormir, o anedótico caso do atacante (que seguia em negociações com o Internacional enquanto digito essas linhas) que fingiu uma lesão para não ser preso pelo não pagamento de pensão alimentícia e o orgulhoso torcedor que perdeu o nascimento e os primeiros dias de vida da filha não somente porque foi ao jogo no dia de seu nascimento como envolveu-se em uma briga e acabou preso.

O homem que invadiu o campo com a criança de colo está muito distante dessa perspectiva de paternidade? Ele seria um bom pai por levar sua filha ao estádio? A indignação com o resultado e a necessidade de recuperar a honra da derrota esportiva autorizam que a segurança da criança fosse colocada em risco? Eu tenho os ensaios de resposta, mas não tenho estômago para escrevê-los. Eu gostaria de corroborar a hipótese de tratar-se de uma ação que não faz parte do nosso futebol cotidiano, mas não consigo. No máximo eu conseguiria afirmar que o episódio não é um problema de torcedor, mas de homem, do gênero masculino. Eu me permito apostar que os torcedores de nossa cultura são melhores que os homens dessa mesma cultura, mas ainda existe uma aproximação muito grande. Talvez a única perspectiva para tentar enfrentar esses episódios violentos seja tentar “desmasculinizar” o futebol e o torcer. Infelizmente, para mim esse é um homem possível, um homem autorizado nesse esporte ainda tão androcentrado em suas produções discursivas.

Referências


GASTALDO, Edison. As relações jocosas futebolísticas: futebol, sociabilidade e conflito no Brasil. In: Mana, v. 16, 2010 p. 311-325.

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Paternidades ensinadas através do futebol

Neste mês de novembro retornei aos eventos acadêmicos presenciais. Passei três dias em Belo Horizonte, no IV Simpósio Internacional Futebol, linguagem, artes, cultura e lazer e do III Futebol nas gerais. Foi a primeira vez desde outubro de 2019 que participei de um evento presencialmente. Uma curiosidade desimportante, naquele outubro, de 2019, mais precisamente no dia 24, fiz uma fala presencial no Leme, ali na UERJ, ao lado do Maracanã, onde estive um dia antes quando o meu Grêmio tomou um sonoro 5 a 0 do Flamengo.

Procurem as fotos do encontro nos canais do Leme e vejam como eu estava vestido. Voltando ao assunto verdadeiro do texto, entre o evento da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação (Anped), na UFF, em Niterói, e o evento organizado pelo Grupo de Estudos sobre Futebol e Torcidas (GEFuT), na UFMG, por culpa da Covid-19 (ampliada pela estupidez negacionista que nos cerca) “estive” em congressos no Rio de Janeiro, em São Paulo, Florianópolis e até em Montevidéu, todos eles sentando na mesma cadeira em meu escritório. Neste intervalo, porém, o que efetivamente revolucionou minha vida foi a chegada do meu filho Martin, na metade de 2021.

Fonte: Acervo pessoal.

Desde sua chegada, os três dias em BH foram os primeiros que fiquei inteiros longe dele. Pode parecer excessivamente romântico ou piegas, mas a alegria de reencontrar grandes amigas e amigos contrastou com um sentimento de falta que não conhecia até então.

Para a sequência deste texto, em alguma medida, quero falar sobre isso. Sobre diferentes paternidades que circulam no dispositivo pedagógico do futebol e que constituem conteúdos do currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. Narrarei mais três episódios envolvendo homens e suas masculinidades e paternidades. Durante o Simpósio, em Belo Horizonte, um participante/torcedor, integrante de torcida organizada, afirmou que suas filhas torciam para o rival e odiavam o seu clube. Ele relatou, ao ser questionado pela filha, sem titubeio, que amava mais o time do que a própria filha.

Não satisfeito ainda ampliou seu relato informando que foi conhecer a filha somente em seu quarto dia de vida já que ela nasceu em dia de jogo e ele ainda ficou preso por três dias por ter se envolvido em uma briga de sua torcida. Além da naturalidade com que o relato foi feito chamou minha atenção como ele foi acompanhado de risos, não de deboche, mas de aprovação, por parte significativa da plateia.

            Saindo do simpósio e acompanhando as notícias da Copa do Catar, esse fatídico evento que me obrigou a terminar o ano futebolístico que realmente importa – o do Grêmio – no início de novembro, duas delas me chamaram a atenção. Quatro dias antes da estreia, o menino Benício, de quatro anos, gritou pelo pai, Lucas Paquetá. Distantes desde a concentração da seleção brasileira, na Itália, o menino chorou pelo pai que subiu as arquibancadas para acudir o menino.

Ao mesmo tempo que a chamada do Instagram no GE falava do “momento fofura”, o comentarista esportivo João Paulo Cappellanes, da Rádio Bandeirantes, criticou o episódio no Twitter: “Cara, não quero ser chato, mas será que os jogadores não conseguem ficar 30 dias totalmente focados e longe da família?! 30 dias não vai [sic] tirar pedaço de ninguém, né?! Porra?”… Pedaço talvez não tire, mas se eu tive dificuldades em três dias, me parece que em trinta me atrapalharia bastante.

Mas acho que a pergunta mais pertinente deveria ser: precisa? É necessário ficar trinta dias longe da família? Um jogador de futebol não pode ser pai? A paternidade dificulta o desempenho esportivo do jogador? É isso que pode nos tirar o hexa? O eterno ídolo, estátua e dublê de treinador do Grêmio, Renato Portaluppi já havia justificado a antecipação de uma concentração dizendo que os jogadores tinham filhos pequenos que acordam durante a noite e atrapalham o sono dos atletas. A fala não sofreu questionamentos durante a coletiva de imprensa ou em repercussões no meio da imprensa esportiva.

Me parece bastante curioso como é fácil entender que a demanda de um filho, e que compete a qualquer adulto funcional, atrapalha um jogador. Sim, filho demanda, sim, filho atrapalha[1], sim, filho é responsabilidade dos adultos responsáveis por seus cuidados. Em 2018, seis dos onze titulares da seleção brasileira na Copa do Mundo da Rússia cresceram distantes do pai biológico[2]. Será que não é isso que atrapalha? Em agosto deste ano já tínhamos mais de cem mil crianças nascidas em 2022 no Brasil registradas sem o nome do pai[3]. Será que não é isso que atrapalha?

            O último episódio escolhido para este texto envolve o principal destaque do jogo de estreia da Copa do Catar, entre a seleção local e o Equador. Em 2016, Enner Valencia, atacante que marcou os dois gols da equipe sul-americana, fingiu lesão para sair do estádio e não ser preso pela falta de pagamento de pensão para sua filha. A polícia não conseguiu prender o jogador por ele ter saído de ambulância direto para o hospital. Neste intervalo, seus advogados conseguiram reverter a ordem de prisão e o jogador permaneceu em liberdade. Existe uma troca de acusações dele com a mãe da criança, mas me pareceu bastante curioso o tom anedótico apresentado nas reportagens sobre o episódio. Não consegui perceber um esforço jornalístico para buscar verificar se se tratava de caso isolado ou se a relação de atletas com filhos de relacionamentos anteriores e o pagamento de pensão pode ser entendido como um problema com alguma regularidade.

            Nos três episódios narrados consigo perceber uma naturalização da desresponsabilização paterna pelo cuidado de suas filhas ou de seus filhos. O riso de meus colegas de simpósio, o questionamento sobre a necessidade de acudir o filho associado ao conceito de que filho atrapalha, mais a “malandragem” para fugir da cobrança do pagamento de pensão são atravessados pelas disputas de gênero que tenho encontrado ao longo dos anos nas pedagogias do futebol e do torcer. Olhando em movimento podemos ver tímidos passos em busca de uma diminuição da desigualdade entre os gêneros nesse espaço, mas quando olhamos o cenário congelado, como uma fotografia, ele ainda é muito marcado por comportamentos que reforçam as diferenças e ampliam as desigualdades de gênero.

Infelizmente, os conteúdos que compõem essa pedagogia seguem sendo muito difundidos em nossa cultura. O futebol não produz uma cultura exclusiva. Quando se naturaliza a ausência paterna no futebol, também se naturaliza essa ausência em outros espaços. É preciso que nós, homens, saibamos que não somos cúmplices somente quando rimos de um desses episódios, mas que esses episódios nos beneficiam a todos. Eu posso ser considerado um bom pai apenas por ter sentido saudades do meu filho.

Lucas Paquetá, além de criticado, foi exaltado por ter abraçado seu filho. Se não enfrentarmos essas desigualdades ampliaremos nossos privilégios de gênero. Não me parece a melhor escolha se pensarmos em uma sociedade democrática e que valoriza os direitos humanos. Talvez criticar a falta de direitos humanos no Catar seja mais fácil do que reconhecer como as mulheres sempre, sempre (incluindo a mãe do meu filho) são mais responsabilizadas pelos cuidados da prole. A mim não parece possível aceitar essa naturalização. Sigamos questionando as construções de nossas subjetividades que nos trouxeram até aqui!


[1] Sugiro a análise da colunista do UOL, Luiza Sahd. Disponível em: https://tab.uol.com.br/colunas/luiza-sahd/2022/11/22/afinal-a-quem-o-filho-do-jogador-paqueta-atrapalhou-nessa-copa-do-mundo.htm

[2] Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2018/06/21/deportes/1529536206_588160.html

[3] Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2022-08/mais-de-100-mil-criancas-nao-receberam-o-nome-do-pai-este-ano

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Um golaço de Richarlyson ou um frangaço do futebol de homens

Na memória recente, o Flamengo de 2019, o Atlético MG de Hulk e o Palmeiras bicampeão da Libertadores podem aparecer como os grandes times dos últimos tempos no futebol brasileiro. Como clubista nada isento poderia citar o Grêmio de Marcelo Grohe, Arthur e Luan. Mas ao contrário do que pensam os jovens, o futebol já existia em anos anteriores. Na primeira década deste século, o São Paulo, campeão mundial em 2005 e tricampeão brasileiro em 2006, 07 e 08, parecia construir uma dinastia sem data para acabar. O time comandado por Paulo Autuori e, especialmente, por Muricy Ramalho teve grandes jogadores. Pessoalmente me encantava a dupla de volantes. Primeiro Josué e Mineiro. Depois, para grande surpresa mantendo a mesma qualidade, Hernanes e Richarlyson. Mais jovens, os dois últimos conseguiram tornar o meio campo ainda mais dinâmico. Richarlyson jogava e marcava com a mesma facilidade. Quando necessário, exagerava um pouco na virilidade e poderia ser excessivamente ríspido com seus adversários.

Apesar de ter sido protagonista em um meio campo campeão e de bom futebol, Richarlyson ficou marcado pela entrevista dada pelo ex-dirigente do Palmeiras, José Cyrillo Júnior, que em 2007 insinuou que o jogador era homossexual. O jogador denunciou o dirigente por preconceito, mas teve seu caso arquivado. O juiz Manoel Maximiliano Junqueira Filho, à época, “sugeriu que se o jogador fosse homossexual, ‘melhor seria que abandonasse os gramados’”.

A própria torcida do São Paulo passou a tratar o talentoso e multicampeão jogador de forma discriminatória ao não citar seu nome quando “escalava” a equipe. Um integrante da torcida organizada Independente afirmava com orgulho. “Nós mandamos o Richarlyson embora”. Segundo o torcedor, “ele [Richarlyson] manchava a imagem da instituição”. Mesmo tendo defendido Richarlyson no processo, em 2007, “o presidente do Sindicato dos Atletas Profissionais de São Paulo, Rinaldo Martorelli, também faz ressalvas. ‘Não aconselharia nenhum jogador a se assumir. É algo que traria muito desgaste à carreira’”.

Em 2012, o Palmeiras estudava a contratação do jogador. A torcida palmeirense protestou contra essa hipótese. Uma das faixas de protesto da torcida contra essa contratação dizia: “A homofobia veste verde”. Um integrante da Mancha Verde (principal torcida organizada do clube) negava o envolvimento da torcida na produção do material, ao mesmo tempo em que dizia que “não via nada de agressivo na faixa”.

Em 2017, Richarlyson foi contratado para jogar o Campeonato Brasileiro da série B pelo Guarani, de Campinas. Pouco antes de ser apresentado como jogador do clube, dois torcedores identificados com camisetas do clube “atiraram bombas em frente ao estádio Brinco de Ouro como forma de protesto pela contratação”. Na página oficial do Guarani no Facebook, apareceram diversas manifestações, algumas de apoio e outras com insultos. Esses insultos foram proferidos tanto por torcedores da equipe quanto por rivais. O vereador da cidade de Campinas, Jorge Schneider, torcedor do principal rival do Guarani, a Ponte Preta, ironizou: “A pessoa certa no lugar certo”.

Agora em junho de 2022 foi lançado o podcast do GE Nos armários dos vestiários, produzido pela Feel The Match apresentado por Joanna de Assis e William de Lucca. Em seu episódio de estreia, Richarlyson, hoje comentarista da Rede Globo, se sentiu à vontade para informar que já teve relacionamento sexual tanto com homens quanto com mulheres. No programa ele afirmou:

Com certeza minha carreira poderia ter sido muito melhor em termos midiáticos por aquilo que eu construí dentro do futebol se não tivesse essa pauta (sexualidade). Isso é visível, todo mundo sabe disso, mas chegou num ponto em que eu fiquei saturado mesmo. Chegou um ponto que alguém me pedia entrevista, e eu perguntava: “Vai falar sobre o quê?”. Mas questionamento de que poderia ser melhor? Sim, poderia.           

Foto extraída da página: Jornal de Brasília

A manifestação do ex-jogador foi muito bem recebida por militantes LGBTQIA+, especialmente aqueles vinculados aos esportes em geral e ao futebol em específico. Em um ambiente muito machista e cisheteronormativo, um jogador de grande qualidade e projeção “assumir” uma posição não-normativa além da direta ação afirmativa pode permitir que se tente, minimamente, implodir essa premissa esportiva masculina/machista e cisheteronormativa. Ao mesmo tempo em que a positividade da manifestação de Richarlyson se fez destacar e encheu de alegria meu coração de torcedor militante, não consegui abdicar do exercício intelectual de discutir nesse espaço do futebol de homens quais os comportamentos são definitivos para marcar um jogador e quais não são.

Meu amigo e idealizador do Observatório da Discriminação Racial no Futebol, Marcelo Carvalho, afirma que uma das grandes dificuldades de engajar jogadores negros para que eles realizem denúncias contra casos de racismo é que na maioria das vezes todos os seus atributos profissionais são colocados a margem e o atleta fica sempre identificado como aquele do episódio de racismo. Mesmo com todo seu esforço, Richarlyson acabou ocupando o lugar da masculinidade em suspeição mesmo sem disposição de fazer isso.

Diego Maradona sempre teve a brilhante trajetória esportiva e midiática marcada por problemas que incluíram sobrepeso e o abuso de drogas ilícitas. O não reconhecimento da paternidade de Diego Sinagra, entretanto, parece ter pesado pouco sobre sua construção biográfica. Mesmo com teste de DNA confirmando, o rei Pelé nunca reconheceu sua paternidade em relação a Sandra Regina Machado. Richarlyson foi excelente, mas não foi Pelé nem Maradona, mas não me parece que a diferença de tratamento dada as suspeitas sobre sua sexualidade e as confirmadas ausências paternas dos maiores jogadores de todos os tempos se baseie no que fizeram em campo. Me parece que nossa “cultura futebolística” se preocupa muito mais com homens que não performam a cisheteronormatividade do que homens que abandonam a prole.

Além dos títulos com o São Paulo, Richarlyson também ganhou a Libertadores com o Atlético MG treinado por Cuca. Então jogador do Grêmio, Cuca foi condenado por participação em estupro coletivo de uma menina de 13 anos em 1987 enquanto o clube realizava uma excursão na Suíça. Vejam, Cuca foi condenado a 15 meses de prisão por violência sexual contra pessoa vulnerável, não foi acusado, denunciado ou suspeito. Ainda assim, segue sua brilhante carreira de treinador sem dar muitas explicações sobre o ocorrido sendo fortemente considerado como possível treinador para a seleção brasileira após a Copa do Mundo de 2022.Condenado em primeira instância em 2017 por estupro coletivo realizado contra uma mulher albanesa na Itália em 2013, Robinho conseguiu atuar sem maiores dificuldades no futebol turco por dois anos e meio. O jogador condenado em última instância no início de 2022 teve problemas apenas em seu retorno ao Santos em outubro de 2020. Mais do que o protesto de torcedoras, o clube paulista desistiu de sua contratação após pressão de seus patrocinadores.

Parece um tanto fora de qualquer possibilidade imaginar que jogadores condenados ou acusados de violência sexual ou agressão contra mulheres resolvam assumir essas condutas, mas me chama atenção que temos muito mais facilidade em colocar essas condutas como do âmbito do privado enquanto uma forma de correr que possa colocar a masculinidade de um atleta em risco vire assunto de domínio público.

Sem dúvida, Richarlyson marcou um golaço, mas não deixa de ser mais um frangaço do futebol de homens que permite que exige/obriga que um jogador LGBTQIA+ se assuma ao mesmo tempo em que toleram jogadores ou ex-jogadores que são pais ausentes. Quantos jogadores ou ex-jogadores acusados ou condenados por violência doméstica ou sexual seguem suas trajetórias sem serem importunados?

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Texto adiado

Na minha organização de envio de textos para os queridos amigos do LEME tinha pensado em discutir o que chamei inicialmente de falácia da meritocracia. Queria problematizar como o rebaixamento do Grêmio incomodou a imprensa esportiva uma vez que o clube tinha uma folha de pagamento muito elevada, supostamente a terceira da série A, e era cumpridor de suas obrigações. O esporte, que muitas vezes é utilizado para ilustrar a lógica da meritocracia em que os competidores partiriam de condições idealmente igualitárias, parece não admitir o fracasso dos “ricos” (a falta de títulos do Flamengo em 2021 também entraria na escrita). Mas não, este texto não sairá agora. Assim como não se jogou o Grenal no último sábado, 26 de fevereiro, este texto está suspenso, adiado ou será mandado para algum julgamento em instância competente. Um ditado muito comum e recorrente é que “uma imagem vale mais do que mil palavras”. Paradoxalmente, é impossível dizer esta frase sem usar as palavras. Com essa armadilha da linguagem precisarei escrever um texto para não o escrever.

Durante a semana anterior ao clássico conversei com meu amigo José Paulo. Trocamos curtas provocações sobre o clássico. Na realidade como estávamos muito desconfiados do início de temporada dos nossos times, o Grêmio, recentemente rebaixado e já com troca de treinador, e o Internacional, com um novo treinador que não consegue boas atuações no fraco campeonato estadual, mais colocávamos o favoritismo no adversário do que qualquer outra coisa. É uma estratégia comum para justificar uma eventual derrota. Com o professor Diogo retomei nossas apostas. Entre nós, antes da pandemia, Grenal valia vinho. Ele ainda me deve um, tivemos uma boa hegemonia nos últimos anos, então meu risco era muito pequeno, mesmo com o que joga esse time do Grêmio. Infelizmente, tive minhas brincadeiras com meus amigos adiadas.

No sábado, pouco antes de chegar ao estádio Beira-Rio para disputa de mais um Grenal, o ônibus com os atletas, trabalhadores, do Grêmio sofreu um ataque e uma das pedras atiradas acabou rompendo o vidro e acertando o paraguaio Villasanti que precisou ir ao hospital. Após adiar o jogo por 2 horas, a Federação Gaúcha de Futebol, o Sport Club Internacional e o Grêmio Foot-Ball Porto Alegrense decidiram suspender a partida naquela data. O presidente gremista não quis participar da coletiva conjunta com o rival e a federação por discordar da narrativa do adversário.

Reprodução: Diário Carioca

Esse foi mais um dos “cotidianos” casos isolados de violência no esporte brasileiro. Somente na semana passada foram quatro contra jogadores, três dos quais contra jogadores do mesmo clube dos torcedores agressores. Faço esse registro pela curiosidade, não para autorizar a violência entre adversários. Não é nenhuma novidade que a violência é uma importante forma de socialização entre os torcedores. Ela também é uma importante forma de socialização masculina. Aqui a formação dos torcedores e dos homens acaba acontecendo concomitantemente. Desde a década de 1990 os estudos sobre violência e o torcer fazem coro contra a criminalização das Torcidas Organizadas. Das TOs sempre se escuta que se deve punir o CPF e não o CNPJ. Sim, me parece que ainda é necessário trabalhar contra a criminalização desses coletivos. Entretanto, me parece que as instituições, sim, precisam ser responsabilizadas.

Sim, os clubes não são responsáveis pela segurança pública, mas me parece que a responsabilização deles por eventos praticados por suas torcidas e torcedores pode ter um produtivo efeito pedagógico. Antes que alguém possa imaginar que se trate de um gremismo enrustido já deixo o link para o texto em que solicito que o Grêmio, clube que eu torço, fosse punido por invasão de campo e racismo. Segue valendo, ainda mais para o novo caso flagrado no último Grenal. Torcedores do Brasil de Pelotas expulsaram um torcedor com símbolos nazistas das arquibancadas sabendo que o clube poderia ser punido. Por que os torcedores do Grêmio não denunciam ou expulsam os torcedores que insistem em reproduzir os xingamentos racistas? Por que os torcedores do Internacional não evitaram que um dos seus atirasse a pedra? Ou a pedra só foi noticiada porque rompeu o vidro do ônibus?

Juridicamente posso estar falando uma aberração, mas meu texto não é jurídico. Já fui acusado de pertencer a esquerda liberal punitivista por proposições como esta, mas me parece que algo precisa ser, no mínimo, tentado. Alguém poderá dizer, e eu concordei alguns parágrafos acima, que a violência não é nova, por que agora isso deveria ser feito? Primeiro porque nunca foi, não sistematicamente. Segundo, porque não se trata nem mesmo da tal cultura de “pista”, os trabalhadores estão sendo agredidos. Sim, existem aqueles que não lembram, mas jogadores são, antes de mais nada, trabalhadores. Além disso, poucas coisas são mais reacionárias do que não fazer nada escondido na complexidade, real, dos fenômenos. Com isso as agressões físicas, xingamentos racistas, homofóbicos e machistas continuem sendo ditos sem problemas.

Aos que quiserem argumentar que isso faz parte da “cultura torcedora” nem venham. A violência faz parte da cultura torcedora, sim, mas é de uma parte e concorre com outras. Cada processo histórico tolera algumas práticas e não tolera outras. Isso é sempre uma disputa, nunca um consenso. Mais do que qualquer coisa esse não texto serve para marcar minha posição. Estou entre aqueles que querem colocar essas violências como intoleráveis dentro da cultura torcedora.


Referências:

Violência no futebol: em 3 dias, capitais brasileiras têm 4 casos graves de agressões contra atletas

Um clube de futebol pode ser racista?

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Pensar transmissões esportivas mais plurais

Reprodução: Internet

É bastante recorrente que sujeitos mais associados as lógicas conservadoras em nossa sociedade reiterem a afirmação, no mínimo equivocada, de que política e esportes não se misturam. O raciocínio que sustenta este tipo de argumento é o mesmo que afirma que não se pode discutir política nas escolas ou em outras instituições que deveriam, por sua natureza, ser “apolíticas”. Todos os conceitos normativos que ordenam os entendimentos nos esportes ou na escola, por exemplo, são resultado de disputas por significação que possuem um acordo extremamente pontual e limitado que nos permitem ler os entendimentos que possuem status de senso comum. Negar a participação e a disputa política nesse espaço é um esforço para naturalizar esses acordos tirando os de seu espaço de construído politicamente para transformá-los em conceitos naturalizados.

Desde a década de 1980, talvez mais explicitamente a partir da hegemonia das democracias representativas burguesas, os movimentos de política identitária têm ganhado destaque nas formas de organização das diferentes militâncias. Nas próximas linhas pretendo problematizar algumas das formas com que essa política identitária tem aparecido nas transmissões esportivas. Como as emissoras têm utilizado algumas identidades e de que maneira a representatividade já começa a produzir efeitos nestes espaços.

Com um ano de atraso os Jogos Olímpicos e Paralímpicos de 2020 foram realizados em Tóquio, mesmo que sem público. É lugar comum nas transmissões dos megaeventos esportivos a contratação de comentaristas especializados, quase sempre atletas ou ex-atletas, para ajudarem na transmissão esportiva, podendo estabelecer alguma informação mais qualificada de alguma modalidade ou traduzir para um público leigo ou para os jornalistas algum vocabulário específico dos praticantes. Para a transmissão dos Jogos Paralímpicos, dentro dessa perspectiva, foram convocados e convocadas paratletas e ex-paratletas que teriam essa função. Verônica Hipólito extrapolou, e muito, o que se espera desses comentaristas. A paratleta, medalhista no Rio em 2016, mostrou um conhecimento sobre os participantes e as modalidades que causaram fortíssimo constrangimento entre comentaristas consagrados que insistentemente repetem lugares comuns e indicam que uma equipe poderia melhorar seu desempenho a partir da entrada de um atleta lesionado… Minha impressão neste caso é de telespectador e me faltam elementos técnicos que atravessam as decisões das direções das emissoras, mas Verônica subiu a vara de qualidade das transmissões. É inaceitável que os demais comentaristas não estudem como ela e, o mais importante para meu argumento, é inaceitável que ela comente apenas jogos paralímpicos. Verônica foi brilhante por ter realizado um trabalho jornalístico de excelência, não por ser paratleta. Isso não é a exaltação da meritocracia, mas uma reclamação pela falta de estudo de outros profissionais com espaços midiáticos muito maiores.

Não são apenas paratletas que são chamados para comentar o paradesporto. Quando eclodem casos de racismo ou machismo, pessoas negras e mulheres são chamadas para opinar. Alguns dos especialistas convidados falam somente destes conteúdos. Isto gera um problema duplo. A partir dos processos de políticas identitárias se transformam sujeitos marcados como pertencentes as “minorias” como identitários enquanto outros não teriam identidade. Ou seja, as mulheres falariam de problemas de mulheres, mas os homens não falam dos problemas dos homens, falam da humanidade, falam de tudo. E aí aparece o segundo problema: eles falam de tudo, mas nesse tudo não se incluem violências contra essas chamadas “minorias”. Neste caso, essas violências não são um problema da humanidade, mas acabam sendo reportados como problemas identitários ou, o que seria ainda pior, problemas de identidade. O muito utilizado e pouco estudado conceito de “lugar de fala” reporta justamente essa dificuldade de quem está e de quem não está autorizado a falar sobre qual assunto.

As comentaristas mulheres no futebol jogado por homens trabalham com uma lógica inclusiva distinta. Ali elas estão autorizadas a falar sobre futebol, sem gênero. Mulheres, da mesma forma que os homens, são capazes de falar sobre qualquer assunto para os quais tenham se preparado. O mesmo vale para pessoas negras que possuem capacidade de discorrer sobre qualquer assunto para o qual estudaram e não somente para relatar suas vivências. Então não faria diferença se quem comenta é homem ou mulher, branco ou negro? Sim, segue fazendo diferença. A presença das mulheres obriga a um esforço reflexivo maior dos homens (ao menos deveria exigir). Machismo travestido em piadas começam a ser menos oportunos. Nosso chamado país do futebol por muito tempo excluiu as mulheres. Quando elas entram seja no campo, nos microfones e até na direção do futebol de mulheres da CBF (conduzidas graças a luta das mulheres no mandato de um presidente afastado por acusação de assédio sexual), inevitavelmente elas apresentam novas pautas. E isso fará o país do futebol ser mais país do futebol. Um país que exclui as mulheres não é um país. Quando muito é a metade de um país. Acredito que se tivéssemos mais mulheres ou homens não brancos em nossas transmissões esportivas ou mesas redondas, seria mais difícil ouvir ridículos argumentos que associam o mal desempenho esportivo com o esforço estético para a manutenção de um penteado afro.

É a partir da ampliação da participação de diferentes sujeitos atravessados por diferentes marcadores identitários com o aumento de representatividade que poderemos colocar a disputa política no centro dos nossos esportes e das nossas transmissões esportivas. É lugar comum (em alguns lugares de forma equivocada) entender que os esportes em geral e, no caso sul-americano, o futebol em específico, como microcosmos ou espelho da sociedade (eu sigo preferindo pensá-lo como integrado com). Ampliarmos a participação de atores e desnaturalizarmos a posição normativa dos homens cisgênero brancos, heterossexuais é ampliar a democracia. Poderia ser um catalisador para qualificarmos as discussões desses mesmos problemas em outros espaços de nossa cultura.

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Pensar a luta no jogo do engajamento e da representatividade nas narrativas futebolísticas

Um apresentador de televisão em suas redes sociais constantemente reclama de que querem transformar o futebol em matéria de faculdade e se vangloria de fazer um “programa raiz”. Nosso glorioso Universo do Futebol (DAMATTA, 1982), não necessariamente o pioneiro, o Charles Miller dos estudos nas áreas de ciências humanas e futebol completará quarenta anos em 2022. Caro apresentador, não é porque você não estuda que as coisas não existem.

Essa lógica “raiz” e a desvinculação do futebol com os estudos ou o que se poderia entender como circuito mais amplo da cultura quase sempre se associa a um raciocínio conservador como resposta quando práticas naturalizadas são colocadas em questão. Dentro desta matriz de pensamento o comportamento adequado de jogadores, comunicadores, torcedores e clubes deveria repetir o que ocorria em nossa juventude, mesmo que tal comportamento seja muito mais uma construção de memória coletiva do que episódios comprovados historicamente.

Apesar da importância normativa que possui dentro do futebol de espetáculo, o discurso “raiz” convive com uma série de outras discursividades. Essas discursividades não convivem em harmonia ou em igualdade de condições, mas estão constantemente participando de lutas por significados. Essas lutas não são novas. A novidade, talvez, esteja no protagonismo que discursividades até então relegadas a espaços muito pontuais passaram a ocupar na cultura futebolística.

Em artigo publicado com a jornalista, e especialista em jornalismo esportivo, Caroline Patatt (PATATT; BANDEIRA, 2020), discutimos o engajamento dos clubes de futebol no Brasil a pautas sociais que variavam da paternidade responsável, racismo, homofobia até a demarcação de terras indígenas. Apenas durante o mês de maio corrente, em sua página no Facebook, o Grêmio compartilhou postagens sobre o dia mundial da criança desaparecida, dia mundial do combate à LGBTfobia, além de homenagens ao dia do gari e ao dia das mães.

Existem alguns grupos de torcedores e torcedoras progressistas (esse adjetivo foi escolhido por sua abrangência dada a diversidade de grupos que têm tentado desnaturalizar as práticas da cultura futebolística) que criticam os clubes de futebol por limitarem-se a posicionamentos nas redes sociais, muito mais na lógica publicitária ou das próprias redes do que efetivamente engajados com demandas sociais. A crítica me parece absolutamente justa e correta. Entretanto ainda é muito recente essa “permissividade” para abordar temas sociais que durante muito tempo foram marcados como não tendo relação com o futebol.

Em 2015 e 2016, durante a produção do material empírico de minha tese de doutorado (BANDEIRA, 2019), a partir de certo retorno da Coligay as memórias dos torcedores do Grêmio e a historiografia oficial do clube[1], questionei os torcedores sobre a possibilidade da experiência da torcida homossexual entre o final da década de 1970 e princípios da década de 1980 poderia autorizar uma descrição do clube como mais plural em relação as sexualidades não normativas. As respostas dos torcedores também pareciam estar nessa lógica entre diferentes legitimidades nas práticas dos estádios de futebol:

Poderia acontecer, mas eu acho que não teria aceitação pelo fato de que seria motivo de chacota dos outros”.

“O clube faz muito bem em resgatar isso aí para fazer uma nova imagem perante às outras torcidas, perante à imprensa, perante à opinião pública”.

Eu acho que não vai fazer porque vai sofrer muita crítica velada, lá dentro mesmo, os próprios conselheiros”.

“Não é uma coisa que um time de futebol, que um clube, deva se preocupar como uma questão cultural, do mundo”.

Não é aqui o lugar. Aqui é lugar para se ver futebol, curtir futebol”.

Não há dúvidas de que os cards nas redes sociais são muito pouco dentro do engajamento que os clubes com seu alcance midiático poderiam fazer. Tenho receio, também, se meu entendimento de que esse deslocamento dos últimos anos seja algo significativo não esteja autorizado pelo meu local de privilégio como um sujeito cis-gênero, branco e heterossexual quase sempre muito bem contemplado nas normatividades dessa cultura futebolística.

Talvez os clubes possam começar a copiar o, também tímido, passo dado por nosso jornalismo esportivo hegemônico ou normativo. A presença das jornalistas nas redações já permitiu uma curta alteração das percepções sobre fenômenos até então naturalizados nas discursividades do esporte e do próprio jornalismo futebolístico. Em janeiro, aqui mesmo neste espaço, comentei que um canal pago de esportes tinha celebrado uma frase machista dita pelo, felizmente, ex-treinador do Grêmio Renato Portaluppi. Trinta anos mais jovem, Neymar repetiu a mesma frase comparando posse de bola e mulheres. Ele disse a mesma frase. Em trinta anos esse raciocínio machista não conseguiu nem ao menos construir uma frase nova…

Renata Silveira, Ana Thais Matos, Natália Lara, Renata Mendonça e Fernanda Colombo formam o time de narradoras e comentarista do esporte da Globo, no Brasileirão 2021. Fonte: https://oglobo.globo.com/

A diferença nesta ocasião é que foi possível localizar uma matéria falando sobre o machismo de Neymar em sites esportivos. Ao ler os comentários sobre a reportagem nas redes sociais (eu sei que não deveria fazer isso, mas tem vezes que é inevitável) um homem indignado bradou que essa discussão só acontecia porque tinha muita mulher jornalista atualmente e que elas estariam levando pautas identitárias para o jornalismo esportivo. Em um primeiro momento, meu desejo foi apenas de xingar o torcedor revoltado, mas ele estava correto. Sim, quando se aponta para a necessidade de representatividade é disso que se trata. Deslocar o pensamento normativo é mais fácil quando pluralizamos as experiências. Essa pode ser outra metodologia para o enfrentamento das violências naturalizadas na cultura futebolística e, também, no circuito mais amplo da cultura. Precisamos de mais mulheres, mais pessoas negras, mais LGBTQIA+ com protagonismo discursivo. Precisamos multiplicar a representatividade, multiplicar as experiências, multiplicar as narrativas!

Temos que exigir mais de nossos clubes! E que cada um exija do seu, de rivalidade tratamos em outro momento. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que estamos em permanente luta por significados. Os cards de data são muito pouco, mas essa não é uma vitória garantida. Vamos por mais e estejamos atentos para não permitirmos regredir nos poucos passos dados até agora. Se hoje um clube não tem medo da chacota dos outros e publica mensagens favoráveis às sexualidades não normativas o discurso “raiz” também ganha espaço, eventualmente até entre alguns de nós saudosos não necessariamente das práticas, mas de nossas memórias juvenis.

Referências

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. 1. ed. Curtiiba: Appris, 2019.

BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. A Coligay e as memórias dos torcedores do Grêmio. REVES – Revista Relações Sociais, v. 3, p. 35-49, 2020.

DAMATTA, Roberto. ______. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982.

PATATT, Caroline; BANDEIRA, Gustavo Andrada. Paixão e representatividade: a percepção dos torcedores brasileiros quanto às campanhas sociais dos clubes nacionais de futebol. Culturas Midiáticas, v. 13, p. 261-279, 2020.


[1] Ver BANDEIRA; SEFFNER, 2020.

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O jormachismo esportivo precisa entrar em pauta

O Esporte Espetacular, da Rede Globo de Televisão, exibiu durante os domingos 10[1] e 17[2] de janeiro de 2021 uma série de reportagens assinada por Henrique Arcoverde e produzida por Amanda Kestelman, Bárbara Mendonça e Renata de Medeiros sobre a Violência contra mulher. Ainda antes do início da matéria, a apresentadora Bárbara Coelho contextualizou o cenário nacional de violência contra a mulher no Brasil mostrando como acusações de agressões, estupros e assassinatos têm aparecido no cenário do futebol brasileiro.

O assassinato de Eliza Samúdio foi lembrado e ilustrado com uma fala do, então, goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, em 2010, naturalizando agressões entre casados. A agressão do, atualmente, goleiro do Atlético GO, Jean, sobre a ex-mulher Milena Bemfica, em 2019, também apareceu na matéria. Apesar de ter seu contrato suspenso com o São Paulo, o goleiro seguiu atuando na série A do Campeonato Brasileiro. A ex-esposa criticou que seu agressor possa seguir sua trajetória futebolística como se nada tivesse acontecido.

A matéria argumentou que o caso Robinho marcava um novo momento na relação entre o futebol e a violência contra a mulher. O jogador condenado na Itália por violência sexual de grupo, em 2017, foi contratado pelo Santos, em 2020, enquanto aguardava julgamento de recurso. A divulgação de escutas telefônicas de conversas do jogador sobre o episódio com seus amigos fez com que torcida, imprensa e, especialmente, patrocinadores pressionassem o clube que suspendeu o contrato do jogador condenado novamente em dezembro de 2020 ainda tendo um último recurso na justiça italiana disponível.

No segundo domingo de apresentação da matéria, além de uma rápida definição sobre o que seria “ser homem”, a reportagem questionou a importância da intervenção nos clubes em que muitos postulantes a atletas acabam convivendo em ambientes de pouco contato com a diferença de gênero dificultando a criação da empatia nas relações com as mulheres. Existiu certo consenso na fala dos entrevistados e das entrevistadas na responsabilidade das instituições em procurar criar um ambiente que permita o surgimento de outro tipo de masculinidade desde as categorias de base.

A narrativa da reportagem encerrou apostando na necessidade de uma maior valorização da presença das mulheres no futebol com cargos de destaque. Se evidencia como hipótese que uma maior presença de mulheres permite a criação de espaços com menos machismo. Regiani Ritter, repórter de campo na década de 1980 e 1990, lembrou que ao contrário dos homens que tinham seus erros transformados em piadas, os erros dela eram associados a seu sexo/gênero seguido das ordens de retorno ao fogão ou à cozinha. A árbitra FIFA Edina Alves, que será a primeira mulher da história a apitar uma partida do campeonato mundial de clubes de futebol masculino em 2021, afirmou que ainda tem seus erros justificados por ser uma mulher.

Me parece muito importante que um programa tão relevante de nosso jornalismo esportivo consiga pautar temas tão urgentes em nossa cultura. Nas linhas que seguem, porém, quero pensar o quanto esse mesmo jornalismo esportivo, entendendo-o como espaço de disputa e não como um espaço homogêneo, ajuda a construir essa narrativa masculina e machista no ambiente do futebol de espetáculo jogado por homens em nosso país.

Com Arlei Damo (2006) entendo que o futebol de espetáculo pode ser dividido em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os mediadores especializados são os profissionais que trabalham na espetacularização do futebol e produzem narrativas sobre os eventos futebolísticos. Eles podem ser profissionais da comunicação ou ex-atletas e ex-dirigentes que teriam a função de “explicar” os eventos para o público que, de alguma forma, não seria “apto” a lê-los sozinho. Esses mediadores, apesar de suas diferentes origens, são chamados, costumeiramente, de cronistas esportivos e são os principais atores do que se pode nomear de jornalismo esportivo ou de imprensa esportiva.

As narrativas construídas pelo jornalismo esportivo produzem significados diversos e ampliam o fenômeno futebolístico. Segundo as teorias literárias e culturais, as narrativas possuem centralidade na cultura. São as histórias que nos permitem entender as coisas e pensar no mundo e em nossas vidas como certa progressão lógica que leva a algum lugar (CULLER, 1999). As narrativas possuem a potencialidade de nos ensinar diferentes pontos de vista e de entender as posições dos outros. Ao mesmo tempo, as narrativas policiam autorizando ou desautorizando a construção de significados, por exemplo, sobre a masculinidade.

No primeiro domingo de exibição, a reportagem lembrou a acusação de 4 ex-jogadores – Henrique, Fernando, Eduardo e Cuca (atual treinador do Santos) – do Grêmio que em uma excursão à Europa, em 1987, mantiveram relações sexuais com uma menina de treze anos. O jornalista Cláudio Dienstimann que acompanhou a excursão reconheceu, passados mais de trinta anos, que, infelizmente, a cobertura não pensou no ponto de vista da menina agredida. Segundo ele, o foco da reportagem era ver os atletas em liberdade para retornarem ao Brasil. A reportagem lembrou que a época parte da torcida apoiou a atitude dos jogadores. Podemos ler esse apoio em um diálogo muito estreito entre clubismo e machismo, não necessariamente nesta ordem. Carmen Rial lembrou que a imprensa esportiva gaúcha fez o mesmo. Junto com Miriam Grossi ela publicou um texto na revista Mulherio em que mostrava algumas das impressões dos torcedores e da imprensa gaúcha naquela oportunidade. Acompanhando o retorno dos quatro agressores, elas afirmaram que a “crônica esportiva (…) conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vítimas de um ‘juiz nazista’ e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma ‘travessura’ inconsequente” (1987, p. 3). Em uma das falas, o jornalista Lauro Quadros tentou “ensinar” para o público o que poderia se imaginar ser certo consenso cultural da época (ou ainda estaria entre nós?):

(…) eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender, não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do Grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer (GROSSI; RIAL, 1987, p. 4).

Em 2020, o ex-jogador Caio Ribeiro, hoje comentarista esportivo, se autorizou a dar o “benefício da dúvida” a Robinho afirmando que apenas a justiça deveria julgá-lo. Aparentemente ele não se sentia confortável em criticar a conduta do jogador, naquele momento já condenado em primeira instância. Após acesso a novas reportagens o comentarista modificou sua percepção: “Na hora que eu vejo, ainda mais eu que tenho uma filha menina, a forma como ele se dirige à vítima, a forma baixa como ele fala do estado da menina… Cara, me caiu mal. Me deu dor de estômago”[3]. Curiosamente o reforço de seu posicionamento aparece na sua posição enquanto homem, pai de menina. A percepção de violência ainda aparece na relação entre homens. A lógica dessa justificativa que aproxima a agressão de um homem ao sofrimento de outro homem, pai de menina, não estabelece a plenitude da humanidade para as meninas ou mulheres. Se ele não fosse pai de uma menina, não seria possível criar empatia e condenar a violência contra mulheres?

Muito mais do que as opiniões sobre casos de violência extrema, o problema de nosso jormachismo esportivo está em suas ações cotidianas. Ele vai da absurda defesa do comportamento machista de um treinador como realizada por Maurício Saraiva:

Guto Ferreira gosta de mulher, é casado, não sei se tem filha, mas certamente não tem nada contra mulheres. (…). O mundo da bola ainda é assim. Muito homem junto, mulheres recém começando a ocupar a arquibancada e muitas ainda mais atentas ao bonitinho do que ao bom jogador. Também as mulheres estão na transição de gostar do futebol pelo futebol, capazes de ir ao futebol sem marido, amigo ou namorado. Então, todos em aprendizado. [4]

E também é alimentado pelas “brincadeiras” do Carlos Cereto que pergunta sobre novela para Ana Thaís Matos[5], o Peninha Bueno mandando a Eduarda Streb[6] voltar para a cozinha… Escondidas atrás de “piadas”, essas manifestações dão pouca margem para que a violência apareça. Para as ofendidas acaba sendo oportunizado apenas o lugar de mal humoradas. Nas redes sociais os torcedores cobram engajamento de jornalistas mulheres que “ousaram” reclamar do machismo em alguma oportunidade ao mesmo tempo em que o silêncio dos jornalistas homens não é colocado em questão.

Após classificar o Grêmio para final da Copa do Brasil nesse interminável 2020, Renato Gaúcho – machista quando perde “até mulher grávida faria gol na gente” – voltou a fazer uma manifestação machista, desta vez após uma vitória. Questionado sobre ter menos posse de bola que o adversário, Renato contou uma “historinha”:

Teve um cara que pegou uma mulher bonita e levou ela para jantar. Levou para jantar à luz de velas, conversou bastante. Saiu do restaurante, foi na boate e ficou até às 5 horas da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Aí, na boate, chegou um amigo meu, conversou com ela 15 minutos e levou ela para o motel. Entendeu? Se não entendeu outra hora eu explico. Meu amigo ganhou o jogo [7]

Para Cosme Rímoli, do R7, “Este é Renato Portaluppi, finalista da Copa do Brasil 2020…”[8]. Na conta do Instagram do Fox Sports Brasil a fala foi acompanhada de risos:

No Programa Redação Sportv, o apresentador Marcelo Barreto chamou a jornalista Renata Mendonça para tentar entender se a escolha das palavras de Renato foi boa ou ruim. Renata reforçou como a frase do treinador objetificava as mulheres ao definir que o objetivo dos homens seria apenas levá-las ao motel mostrando que a única importância da mulher seria satisfazer o homem, e pelo exemplo do treinador, sexualmente. Ela reforçou que não seria possível “inverter” a “piada” uma vez que os homens, em nossa cultura, não são entendidos como objetos para satisfação dos desejos das mulheres[9]. Ao mesmo tempo em que é bastante produtiva a participação das mulheres nessa discussão, essa metodologia acaba desconvocando os homens para o debate sobre o machismo. Um homem não seria qualificado para ver o machismo presente nesta manifestação?

A frase de Renato parece fazer tanto sentido dentro da lógica desse jormachismo esportivo que a conta do Instagram da Fox Sports Brasil já a replicou ao ilustrar a vitória de uma equipe com menor posse de bola.

Situações como essa mostram que esse machismo atravessa as narrativas do futebol de espetáculo no Brasil. Frases como a de Renato, Lauro Quadros, Caio Ribeiro, Carlos Cereto, Peninha Bueno e tantos outros não são atitudes individuais de sujeitos desajustados. Ao contrário, elas fazem sentido nessa péssima lógica machista da nossa cobertura esportiva.

Esse é mais um espaço de enfrentamento contra as desigualdades de nossa cultura. Pautar esse jormachismo esportivo é urgente. E ela é uma luta de todos os que militamos neste espaço como profissionais, pesquisadores e torcedores. Nós, homens, não temos o direito de terceirizar o protagonismo deste enfrentamento às mulheres. Precisamos nos posicionar ao lado delas nesta trincheira e não podemos abrir mão de agir quando situações como essa, infelizmente, se repetirem.


[1] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9166660/. Acesso em 23/01/2021, às 13h34.

[2] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9185792/. Acesso em 23/01/2021, às 16h44.

[3] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/caio-ribeiro-fala-sobre-o-caso-robinho-tem-que-pagar-como-qualquer-outra-pessoa.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 9h32.

[4] Disponível em: http://globoesporte.globo.com/rs/blogs/especial-blog/vida-real/post/guto-e-mulheres.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h22.

[5] Disponível em: https://www.lance.com.br/fora-de-campo/ana-thais-matos-incomoda-com-pergunta-machista-apresentador.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h13.

[6] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2018/04/27/peninha-pede-desculpas-apos-piada-machista-e-comentarista-chora-ao-lembrar.htm. Acesso em 24/01/2021, às 11h16.

[7] Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/renato-compara-posse-de-bola-a-pagar-jantar-e-nao-levar-mulher-ao-motel-31122020. Acesso em 24/01/2021, às 11h31.

[8] Ver nota anterior.

[9] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sportv/programas/redacao-sportv/video/renata-mendonca-sobre-fala-de-renato-nao-seria-nem-engracado-se-ele-fizesse-o-contrario-9143513.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 11h56.

Referências:

CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. São Paulo: Beca Produções, 1999.

DAMO, Arlei Sander. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.39-72.

GROSSI, Mirian; RIAL, Carmem. Os estupradores que viraram heróis. In: Mulherio. Fundação Carlos Chagas, outubro 1987, p.3-4.

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Sobre contar uma história que não deveria ter acontecido

Durante a realização da sexta rodada do absurdo Campeonato Brasileiro de 2020, o Grêmio sagrou-se campeão gaúcho de 2020. Essa foi a trigésima nona conquista do tricolor gaúcho, a terceira consecutiva. O clube quebrou muitos recordes ao conquistar esse campeonato que não deveria ter sido retomado. Foi o primeiro tricampeonato desde 1987. Tirando as brincadeiras que eu, nascido em 1983, e meu amigo Felipe, nascido em 1984, realizamos com meu irmão, Gabriel, que nasceu em 1988, foi o meu primeiro tricampeonato. Renato Portaluppi, ou Gaúcho, como vocês o chamam no Brasil, igualou uma marca ainda mais distante. A última vez que um mesmo treinador havia conquistado três títulos estaduais em sequência pelo Grêmio foi em 1964, quando Oswaldo Rolla alcançou tal façanha.

A qualidade técnica do campeonato não é das mais empolgantes. Ao longo dos anos vemos “craques do Gauchão” sucumbirem dos quadros da dupla Grenal e acabarem realizando trajetórias modestas em clubes de segundo ou terceiro escalão do futebol nacional. O campeonato que era chamado de “charmoso” pelo narrador Paulo Britto, agora virou o Gauchão “raiz” na voz do atual narrador da RBS, Luciano Périco. Em ambos os casos, um apelo afetivo ao tradicional, marca tão premente na cultura gaúcha, é o elemento mais “vendável” dessa competição.

 A temporada de 2020 começou empolgante para o futebol do Rio Grande do Sul. Grêmio e Internacional disputariam juntos a Libertadores da América e, muito provavelmente, se enfrentariam pela fase de grupos da principal competição do continente, o que enquanto escrevo esse texto aconteceu uma única vez, no último jogo de todos os tempos[1]. Mais uma vez a dúvida que aparecia era sobre quem seria o campeão gaúcho: Internacional ou Grêmio. Neste século, apenas uma vez o campeão não foi Grêmio ou Internacional. No século passado, desde 1940, apenas em 3 oportunidades um dos dois grandes de Porto Alegre não se sagrou campeão.

Para além da previsibilidade e de uma eventual deficiência técnica, o campeonato gaúcho de 2020, tal qual o mundo todo, enfrentou a pandemia da Covid-19. O campeonato que iniciou ainda durante o mês de janeiro, com derrota do Grêmio frente ao Caxias, ficou interrompido de 15 de março até 22 de julho. Quando de sua interrupção, o Rio Grande do Sul apresentava 6[2] casos registrados da doença. Na data de seu retorno, 3.233 casos novos somavam-se chegando ao total de 53.073. Somente no dia em que Internacional e Grêmio se enfrentaram na cidade de Caxias do Sul, Porto Alegre não permitia a realização de partidas de futebol, 53 pessoas faleceram no Estado em função da pandemia.

Por melhores que fossem as condições de prevenção e de cuidados de saúde dos clubes, e nessa lógica parece que todos os clubes possuiriam as mesmas condições técnicas e financeiras para dar conta dos protocolos, não faz muito sentido que você proponha a paralisação de um campeonato no início da pandemia no Estado para retomá-lo com sua curva ascendente.

Imagem enviada pelo autor

A continuação do campeonato foi apenas a explicitação de um longo processo que acompanha o futebol brasileiro ao menos desde o final da década de 1980. O futebol de espetáculo, e não somente no Brasil, assume, definitivamente, que pode prescindir do público nos estádios. Alguns mecanismos como totens de torcedores, vídeos, faixas e áudios se propõem a criar um “clima” de jogo de futebol. Não consigo precisar se esse “clima” é criado para os jogadores ou para a televisão (estaria mais inclinado a apostar nessa segunda hipótese). Para mim, torcedor de estádio, o campeonato acabou no dia 15 de março quando o Grêmio enfrentou o São Luiz, da cidade de Ijuí, na Arena do Grêmio com os portões fechados. Ao ser, corretamente, proibido de frequentar o estádio, o jogo de futebol perdeu, para mim, torcedor de estádio, sua parte mais importante: a socialização torcedora.

Em 1993 fui a minha primeira “final” de Gauchão. A fase decisiva daquele campeonato foi realizada em formato hexagonal. Após conquistar o título no interior do Estado, o Grêmio enfrentaria o Internacional para a entrega das faixas. Foi, também, meu primeiro Grenal. Desde lá, excluído 2020, o Grêmio esteve em mais 14 finais do Campeonato Gaúcho. A única em que não estive no jogo de ida ou de volta, sempre como mandante, foi em 2010 quando minha lua de mel coincidiu com a data da decisão no antigo estádio Olímpico. Ganhei oito e perdi cinco, mas sempre estive. Quando da volta do futebol (sem eu poder ir ao estádio, seria futebol?) já sabia que em caso de uma eventual classificação à final, não poderia estar presente.

Fomos então para a final do turno (nosso campeonato tem imitado a forma do Campeonato Carioca nos últimos anos) enfrentar nosso maior rival. Em 5 de agosto (precisei adiantar o jantar de comemoração de aniversário da minha esposa) realizamos o quarto Grenal da temporada. Foi nossa terceira vitória (certamente a com maior diferença técnica). Mantivemos nossa invencibilidade de dois anos contra o rival. Neste ano só não ganhamos o clássico com o apoio de nossa torcida. Será que demos azar ao Grêmio? (Se sim, azar do Grêmio. Eu é que não deixarei de ir aos jogos – quando isso for sanitariamente possível).

Mais três semanas de intervalo, dessa vez por culpa das primeiras rodadas do campeonato brasileiro, e voltamos ao estádio Centenário, palco do Grenal da retomada. Na verdade, eles voltaram. Com torcida estamos juntos, sem torcida são eles: o time, os jogadores… Ganhamos por 2 a 0. O segundo gol, um golaço (ou uma bucha conforme a emissora mecenas do campeonato) marcado por um jogador que fazia sua estreia no campeonato. Sim, tivemos estreia na final do campeonato (e não foi a única). No domingo seguinte, atrasamos nosso percurso no campeonato brasileiro (provavelmente apenas adiamos mais um empate) e recebemos (eles receberam, mas não consigo me pensar de fora do clube) o Caxias, o mesmo que nos derrotou em janeiro (e, também, na final do primeiro turno), para terminarmos, finalmente, nosso Covidão 2020. Iniciamos aumentando nossa vantagem com gol de Diego Souza. Sim, Diego Souza. Grande artilheiro do campeonato aos trinta e cinco anos com nove gols, praticamente o dobro dos segundos colocados que marcaram cinco. O que parecia ser uma jornada futebolisticamente tranquila virou mais um daqueles jogos horrorosos do Grêmio que conseguiu sofrer a virada e viu seu goleiro salvar nos minutos finais e garantir o tricampeonato. Curiosamente, nosso goleiro Vanderlei e nosso centroavante Diego Souza já eram nascidos na última vez que conquistamos o tricampeonato.

Para não perdermos totalmente a sociabilidade torcedora, meu irmão Gabriel, meu amigo Felipe e eu conversamos um pouco antes de cada partida para mantermos um pouco de nossos encontros associados as partidas. “Empolgadíssimo” com a conquista, meu irmão resolver nos ligar após o jogo para “comemorarmos”. Nossa cara de desolação com a atuação do time, mas também com tudo o que foi esse campeonato nessas condições e nossa ausência do estádio seria um ótimo resumo do que é presenciar uma história que nunca deveria ter acontecido. Como temos alguma responsabilidade por nossas saúdes mentais nesse período tão difícil, obviamente não tiramos um print da tela. Se meu texto não foi o suficientemente explícito para dizer o quão o campeonato não deveria ter sido retomado, e não divulgaremos nossas imagens para vocês, sugiro que assistam ao segundo tempo de Grêmio e Caxias. Se vocês conseguirem assistir essa partida como se fossem torcedores do Grêmio será bastante fácil entender o que é pensar em jogar futebol nesse Brasil 2020 em que a pandemia da Covid-19 consegue a façanha de não ser o maior problema nacional.


[1] Ver O último jogo de todos os tempos. Disponível em: https://www.ludopedio.com.br/arquibancada/o-ultimo-jogo-de-todos-os-tempos/

[2] Disponível em https://www.ufrgs.br/sig/mapas/covid19-rs/

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O direito à memória

Estamos sem futebol ao vivo. Sem esportes ao vivo. Temos o campeonato alemão, mas não temos nossos times/clubes jogando. O narrador Everaldo Marques saiu dos canais ESPN para o Sportv e em sua chegada anunciou a alegria de poder narrar os diversos esportes na nova emissora. Hoje, em função da pandemia, ele está narrando jogos de videogame entre jogadores de futebol… A discussão nesse texto não é se o e-sport é ou não é esporte ou o que se deveria transmitir agora (eu pensei que as emissoras poderiam transmitir o campeonato do “e se…”, os torcedores poderiam escolher um lance e mudar sua história… – tenho outras sugestões como o Brasileirão de meia-hora, mas estou perdendo o foco). Nas próximas linhas quero tentar pensar no direito à memória nos esportes em geral e no futebol em específico.

Nesse momento em que o futebol ao vivo não inclui nossos times/clubes ou mesmo a seleção, temos visto uma escolha por jogos específicos que autorizam algumas memórias e não outras. Sabemos que a memória não é algo qualquer:

(…) a memória, que implica reconhecer informações como sendo informações sobre o passado, precisa ser assumida como processo ativo de construção que se faz no presente e para atender a interesses do presente. Não se copia, nem se resgata, nem se descobre, nem se desvenda o passado, mas se constrói o passado. Assim, nossa relação com o passado é sempre de ruptura, é sempre lacunar, pois construímos determinadas memórias, inventamos determinadas tradições, lembramos de determinados episódios e de determinados heróis, e não de outros. É para o presente e no presente que se constrói a memória (SEFFNER, 2002, p. 370).

A memória não apenas é produzida por e para o tempo presente, ela também ensina sobre o tempo presente. Um dos ensinamentos facilmente verificáveis é a dimensão que a televisão, especialmente a aberta, ainda ocupa. É verdade que boa parte dos jogos transmitidos na televisão aberta e fechada estão disponíveis na internet, mas as audiências da televisão aberta na transmissão de jogos em que a Seleção Brasileira de futebol masculino conquistou títulos não é um dado insignificante.

Fonte: goal

Outro aprendizado importante é sobre os jogos que importam. Quase sempre os jogos que importam são aqueles que vencemos e, especialmente, em competições relevantes. Na televisão aberta, somente as vitórias. Na fechada apenas as grandes competições. Lembro de um golaço de Elivélton pela seleção em 1991 em amistoso contra a, hoje inexistente, Tchecoeslováquia. Esse jogo poderia ser reprisado? Aquele chocolate que demos na Argentina na Copa do Mundo de 1990, mas perdemos por 1 a 0 estaria na lista das possíveis exibições? Brasil e Paraguai pelas Eliminatórias para a Copa de 2002 faz algum sentido? México 1 a 0 no Brasil pela Copa Ouro, em 2003 (Thiago Mota jogando na Seleção Brasileira) poderia aparecer na televisão ou terá que ser relegado a minha memória individual por ter sido o único jogo da Seleção Brasileira que assisti fora de casa?

No cenário clubístico temos algo semelhante. Na televisão aberta alguns regionalismos aparecem, assim como alguns clubes nacionais. Parece existir times com direito à cidade, vide o exemplo dos paranaenses, times de estado, nós gaúchos estamos aqui e times nacionais, especialmente de Rio e São Paulo. Existem clubes grandes sem direito a transmissão no seu bairro… Alguém me dirá que isso é calculado pela audiência ou pelo número de torcedores. Eu sei, é verdade. Mas eu também sei que o “gosto” se constrói. Sabemos que o Flamengo campeão da Libertadores é mais brasileiro do que o Internacional campeão da mesma Libertadores. O imperativo da vitória também aparece. Está certo, meu time já perdeu algumas reprises no canal fechado, mas não eram os jogos que importavam para o meu time, mas os jogos que importavam para o adversário e que, por acidente, estivemos ali para preencher a narrativa.

A escolha dos jogos mostra algumas escolhas do que vem acontecendo desde muito, talvez especialmente a partir da virada do século ou se quisermos voltar um pouco mais podemos pensar na criação do Clube dos 13, que marcam não apenas os jogos, mas quais os clubes têm direito a memória. Na Copa do Brasil de 2004, XV de Novembro, de Campo Bom – interior do Rio Grande do Sul, e Santo André – do ABC Paulista, fizeram um grande enfrentamento com muitas viradas. Os gaúchos, então comandados pelo novato Mano Menezes venceram no Pacaembú por 4 a 3 e conseguiram ser eliminados pelos paulistas no estádio Olímpico ao serem derrotados por 3 a 1. Não me parece que esses jogos estejam sendo pensados para serem reprisados, nem mesmo para Campo Bom ou para Santo André.

Com um pouco de surpresa, vi que o Sportv transmitiu Grêmio 2 X 1 Sport pela Copa João Havelange, no ano 2000. Achei uma escolha um tanto curiosa, um enfrentamento de uma fase ainda não tão decisiva de uma competição em que o Grêmio não foi campeão. Voltei a programação e vi que aquele jogo era um da série de jogos especiais em função de Ronaldinho Gaúcho, que marcou dois gols naquela partida. Pelo Campeonato Brasileiro de 1999, o Grêmio venceu o Flamengo no Maracanã por 4 a 3 com 3 gols do atacante Zé Alcino. Apesar do feito, Zé Alcino não parece merecer a mesma reprise que Ronaldinho.

Em minha tese de doutorado ao conversar com os torcedores do Grêmio sobre o trânsito entre o estádio Olímpico e a Arena do Grêmio notei esse mesmo exercício na construção das memórias:

Conversando com torcedores sobre o estádio Olímpico, notei que as lembranças, as minhas e as deles, sempre tratavam das grandes vitórias, dos primeiros jogos e dos títulos. Boa parte das narrativas dos sujeitos sobre uma memória do estádio Olímpico era eleita em uma partida específica dos quase sessenta anos de atividades do estádio. Eu poderia ter lembrado do Gre-Nal em que perdemos por 2 a 5, da derrota no Campeonato Gaúcho de 2011, dentre outras. A história de um estádio de futebol se faz disso: de vitórias e de derrotas, de grandes jogos e de jogos ‘meia-boca’. Mas a seleção do que nós, gremistas, escolhemos quando vamos rememorar o estádio Olímpico, está quase sempre associada aos afetos de grandes jogos e vitórias (BANDEIRA, 2017, p. 17).

Na memória dos torcedores de estádio, geralmente ainda existe lugar para esse jogo de estreia. Lembro com carinho de dois jogos contra o Sport Recife no Olímpico, em 1994, estreia do meu irmão e 2012, estreia do meu afilhado. Não me parecem jogos elegíveis dessa memória coletiva.

Eu assisti 681 jogos do Grêmio no estádio. E minhas memórias não cabem apenas nas conquistas, nas grandes vitórias ou nos grandes jogadores. Assisti a 49 gloriosos empates sem gols. Vi grandes vitórias, empates e derrotas, mas também vi vitórias, empates e derrotas desimportantes que não deram mais do que o caminho de volta do estádio para casa para serem digeridos. Nosso espetacular futebol de espetáculo não é tão espetacular assim na maioria dos eventos, mas esses eventos também nos constituem torcedores. Eu sei que existem torcedores que preferem poder reclamar de uma atuação ruim do que gozar com uma grande goleada a favor.

Fonte: globoesporte

Qual o espaço para a criação do torcedor que perde nessa escolha de memórias? Todos os anos, quinze clubes perdem o campeonato brasileiro e apenas um vence (os quatro que caem é outro assunto), mas nossa formação nesse momento sem futebol parece seguir olhando apenas para os que vencem. Nossos times/clubes do futebol nos dão muito mais e muito menos do que os títulos. Sinto falta de ver os times médios do Grêmio ou aqueles que não ganharam campeonato, mas fizeram duas boas partidas no ano. São de todos esses jogos que somos feitos, quando os apagamos de nossas memórias acabamos diminuindo nossa possibilidade de nos constituirmos torcedores com os mais diferentes gostos e choros também.

Referências

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Do Olímpico à Arena: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de estádio. 2017. 342 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Faculdade de Educação, UFRGS, Porto Alegre, 2017.

SEFFNER, Fernando. Explorando caminhos no ensino de história local e regional. In: RECZIEGEL, Ana Luiza Setti; FÉLIX, Loiva Otero (Orgs.). RS: 200 anos definindo espaços na história nacional. Passo Fundo: UPF, 2002, p. 367-382.

Artigos

Renato e os recalcados da imprensa esportiva

Arlei Damo (2006) entende que o futebol de espetáculo se divide em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os profissionais seriam os jogadores, treinadores e preparadores envolvidos com os jogos. Os torcedores se constituem no público com variados graus de interesse e envolvimento durante as partidas. Os… Continuar lendo Renato e os recalcados da imprensa esportiva

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