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A História feminina do esporte argentino

Há mais de 100 anos, em seu relatório anual de 1918, P.P Phillips, diretor de educação física da Asociación Cristiana de Jóvenes (ACJ) de Buenos Aires, escreveu: “Ao contrário de sua tendência tradicional, os argentinos agora estão desenvolvendo uma sede insaciável pela educação física e os esportes estrangeiros”. Por outro lado, ressaltou que em um rápido olhar para os estudantes em seu ginásio, podia observar “os tipos de homens e crianças bem educados” que a ACJ atraía, assim como “o clima democrático, gentil” que se mantinha nelas. Para mostrar a aprovação que geravam as iniciativas da instituição, Phillips citou um médico local, para quem seus colegas portenhos poderiam enviar mulheres jovens o suficiente para abrir uma seção feminina se a ACJ estivesse disposta a realizar o mesmo trabalho “para nossas meninas gordas”.

O Relatório de Phillips demonstra a crescente importância do esporte na Argentina no começo do século XX e a ordem genérica que prevalecia. O esporte estava reservado e era controlado por homens, que estavam habilitados para beneficiarem-se de todos os valores atribuídos à sua prática. Entretanto, como indica a prescrição do médico, as mulheres tinham permissão para participar dos esportes se isso resultasse na melhora da saúde (sobretudo reprodutiva), e não alterasse o ideal feminino estabelecido. Vale a pena destacar que a Asociación Cristiana Femenina (ACF) de Buenos Aires teve seu início em 1890, sendo uma das instituições femininas mais antigas do país. O fato do médico citado por Phillips ignorá-la também expõe as enormes dificuldades que enfrentava, e ainda enfrenta, o esporte feminino. 

A história da ACF demonstra que, apesar dos discursos esportivos dominantes que durante muito tempo o silenciaram ou minimizaram, e que ainda o fazem, sempre houve, e há, mulheres e instituições que favoreceram, materializaram e exemplificaram a emancipação e o empoderamento feminino através da prática esportiva. Se pode, e deve, considerá-las como pioneiras no sentido de que eram, e muitas ainda seguem sendo, as primeiras a ingressarem em um espaço novo. Da mesma forma que se pode, e deve, considerá-las lutadoras e militantes no sentido de que nesse corajoso ingresso, criaram novos espaços participativos por meio dos quais se questionaram estereótipos de gênero e se imaginaram visões políticas alternativas. Teria mencionado algo sobre isso Alicia Moreau quando a ACJ a convidou para falar sobre “O feminismo como problema social” em seu ciclo de conferências de 1919?

Sabe-se relativamente pouco da vida dessas mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes do campo do esporte, visto que elas estão em grande parte ausentes da narrativa histórica e jornalística tradicional. Felizmente, o trabalho paciente de várias colegas começa a interpretar o complexo processo pelo qual as mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes, em suas buscas, suas conquistas, e seus fracassos, contribuíram para resistir, negociar e ressignificar a ordem genérica que operava no esporte ao longo do último século. Ao torná-las visíveis, percebemos sua larga e importante, mas agora latente, presença no esporte nacional. 

O exemplo de Lilian Harrison é norteador. Anos depois de converter-se como a primeira pessoa a cruzar a nado o Río de la Plata em 1923, declarou:

“Nunca posso me esquecer que um dos presentes [em Colonia] não se cansava de dizer que eu estava louca e que não chegaria nem ao penhasco. Veja que estranho, quando toquei a terra, em Punta Colorada, próximo de Punta Lara, a primeira coisa que me aconteceu foi pensar naquela pessoa que havia comentado de minha loucura um dia antes”.

Lilian Harrison

Se nos interessa a produção de discursos e de sentidos genéricos, assim como a igualdade de gênero no esporte, nem a fala e nem a vida de figuras como Harrison, nem o seu significado, deveriam ser esquecidos. Resgatá-las, mantê-las presentes e problematizá-las ajuda a tornar visível o papel vital da mulher no esporte e em outros espaços sociais.


Texto originalmente publicado no site El Equipo no dia 29 de maio de 2021

Tradução: Abner Rey e Fausto Amaro

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Pensar a luta no jogo do engajamento e da representatividade nas narrativas futebolísticas

Um apresentador de televisão em suas redes sociais constantemente reclama de que querem transformar o futebol em matéria de faculdade e se vangloria de fazer um “programa raiz”. Nosso glorioso Universo do Futebol (DAMATTA, 1982), não necessariamente o pioneiro, o Charles Miller dos estudos nas áreas de ciências humanas e futebol completará quarenta anos em 2022. Caro apresentador, não é porque você não estuda que as coisas não existem.

Essa lógica “raiz” e a desvinculação do futebol com os estudos ou o que se poderia entender como circuito mais amplo da cultura quase sempre se associa a um raciocínio conservador como resposta quando práticas naturalizadas são colocadas em questão. Dentro desta matriz de pensamento o comportamento adequado de jogadores, comunicadores, torcedores e clubes deveria repetir o que ocorria em nossa juventude, mesmo que tal comportamento seja muito mais uma construção de memória coletiva do que episódios comprovados historicamente.

Apesar da importância normativa que possui dentro do futebol de espetáculo, o discurso “raiz” convive com uma série de outras discursividades. Essas discursividades não convivem em harmonia ou em igualdade de condições, mas estão constantemente participando de lutas por significados. Essas lutas não são novas. A novidade, talvez, esteja no protagonismo que discursividades até então relegadas a espaços muito pontuais passaram a ocupar na cultura futebolística.

Em artigo publicado com a jornalista, e especialista em jornalismo esportivo, Caroline Patatt (PATATT; BANDEIRA, 2020), discutimos o engajamento dos clubes de futebol no Brasil a pautas sociais que variavam da paternidade responsável, racismo, homofobia até a demarcação de terras indígenas. Apenas durante o mês de maio corrente, em sua página no Facebook, o Grêmio compartilhou postagens sobre o dia mundial da criança desaparecida, dia mundial do combate à LGBTfobia, além de homenagens ao dia do gari e ao dia das mães.

Existem alguns grupos de torcedores e torcedoras progressistas (esse adjetivo foi escolhido por sua abrangência dada a diversidade de grupos que têm tentado desnaturalizar as práticas da cultura futebolística) que criticam os clubes de futebol por limitarem-se a posicionamentos nas redes sociais, muito mais na lógica publicitária ou das próprias redes do que efetivamente engajados com demandas sociais. A crítica me parece absolutamente justa e correta. Entretanto ainda é muito recente essa “permissividade” para abordar temas sociais que durante muito tempo foram marcados como não tendo relação com o futebol.

Em 2015 e 2016, durante a produção do material empírico de minha tese de doutorado (BANDEIRA, 2019), a partir de certo retorno da Coligay as memórias dos torcedores do Grêmio e a historiografia oficial do clube[1], questionei os torcedores sobre a possibilidade da experiência da torcida homossexual entre o final da década de 1970 e princípios da década de 1980 poderia autorizar uma descrição do clube como mais plural em relação as sexualidades não normativas. As respostas dos torcedores também pareciam estar nessa lógica entre diferentes legitimidades nas práticas dos estádios de futebol:

Poderia acontecer, mas eu acho que não teria aceitação pelo fato de que seria motivo de chacota dos outros”.

“O clube faz muito bem em resgatar isso aí para fazer uma nova imagem perante às outras torcidas, perante à imprensa, perante à opinião pública”.

Eu acho que não vai fazer porque vai sofrer muita crítica velada, lá dentro mesmo, os próprios conselheiros”.

“Não é uma coisa que um time de futebol, que um clube, deva se preocupar como uma questão cultural, do mundo”.

Não é aqui o lugar. Aqui é lugar para se ver futebol, curtir futebol”.

Não há dúvidas de que os cards nas redes sociais são muito pouco dentro do engajamento que os clubes com seu alcance midiático poderiam fazer. Tenho receio, também, se meu entendimento de que esse deslocamento dos últimos anos seja algo significativo não esteja autorizado pelo meu local de privilégio como um sujeito cis-gênero, branco e heterossexual quase sempre muito bem contemplado nas normatividades dessa cultura futebolística.

Talvez os clubes possam começar a copiar o, também tímido, passo dado por nosso jornalismo esportivo hegemônico ou normativo. A presença das jornalistas nas redações já permitiu uma curta alteração das percepções sobre fenômenos até então naturalizados nas discursividades do esporte e do próprio jornalismo futebolístico. Em janeiro, aqui mesmo neste espaço, comentei que um canal pago de esportes tinha celebrado uma frase machista dita pelo, felizmente, ex-treinador do Grêmio Renato Portaluppi. Trinta anos mais jovem, Neymar repetiu a mesma frase comparando posse de bola e mulheres. Ele disse a mesma frase. Em trinta anos esse raciocínio machista não conseguiu nem ao menos construir uma frase nova…

Renata Silveira, Ana Thais Matos, Natália Lara, Renata Mendonça e Fernanda Colombo formam o time de narradoras e comentarista do esporte da Globo, no Brasileirão 2021. Fonte: https://oglobo.globo.com/

A diferença nesta ocasião é que foi possível localizar uma matéria falando sobre o machismo de Neymar em sites esportivos. Ao ler os comentários sobre a reportagem nas redes sociais (eu sei que não deveria fazer isso, mas tem vezes que é inevitável) um homem indignado bradou que essa discussão só acontecia porque tinha muita mulher jornalista atualmente e que elas estariam levando pautas identitárias para o jornalismo esportivo. Em um primeiro momento, meu desejo foi apenas de xingar o torcedor revoltado, mas ele estava correto. Sim, quando se aponta para a necessidade de representatividade é disso que se trata. Deslocar o pensamento normativo é mais fácil quando pluralizamos as experiências. Essa pode ser outra metodologia para o enfrentamento das violências naturalizadas na cultura futebolística e, também, no circuito mais amplo da cultura. Precisamos de mais mulheres, mais pessoas negras, mais LGBTQIA+ com protagonismo discursivo. Precisamos multiplicar a representatividade, multiplicar as experiências, multiplicar as narrativas!

Temos que exigir mais de nossos clubes! E que cada um exija do seu, de rivalidade tratamos em outro momento. Ao mesmo tempo não podemos esquecer que estamos em permanente luta por significados. Os cards de data são muito pouco, mas essa não é uma vitória garantida. Vamos por mais e estejamos atentos para não permitirmos regredir nos poucos passos dados até agora. Se hoje um clube não tem medo da chacota dos outros e publica mensagens favoráveis às sexualidades não normativas o discurso “raiz” também ganha espaço, eventualmente até entre alguns de nós saudosos não necessariamente das práticas, mas de nossas memórias juvenis.

Referências

BANDEIRA, Gustavo Andrada. Uma história do torcer no presente: elitização, racismo e heterossexismo no currículo de masculinidade dos torcedores de futebol. 1. ed. Curtiiba: Appris, 2019.

BANDEIRA, Gustavo Andrada; SEFFNER, Fernando. A Coligay e as memórias dos torcedores do Grêmio. REVES – Revista Relações Sociais, v. 3, p. 35-49, 2020.

DAMATTA, Roberto. ______. (Org.). Universo do futebol: esporte e sociedade brasileira. Rio de Janeiro: Edições Pinakotheke, 1982.

PATATT, Caroline; BANDEIRA, Gustavo Andrada. Paixão e representatividade: a percepção dos torcedores brasileiros quanto às campanhas sociais dos clubes nacionais de futebol. Culturas Midiáticas, v. 13, p. 261-279, 2020.


[1] Ver BANDEIRA; SEFFNER, 2020.

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Dizer não ao assédio também é um ato de resistência

Volta e meia assisto e ainda fico chocada com as cenas de violência que são exibidas nos noticiários locais. Constato com tristeza que de tão frequentes em grandes cidades como o Rio de Janeiro, crimes nas favelas envolvendo populações vulneráveis são banalizados, relegados ao lugar do comum. Em relação ao assédio sexual as coisas não são diferentes. Embora considerado crime pela Lei 10.224/2001, na prática, o tipo penal quase não é usado e os casos de assédio acabam sendo solucionados por outros ramos do ordenamento jurídico.

No ambiente de trabalho as histórias de assédio e impunidade se repetem. Segundo dados publicados pelo G1 de uma pesquisa feita pelo LinkedIn em parceria com a consultoria de inovação social Think Eva que, no fim do ano passado ouviu 414 profissionais de todo Brasil, quase metade das mulheres já sofreu algum assédio sexual no trabalho.

No último dia primeiro de abril, em uma atitude inédita, a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) determinou  a perda temporária do mandato do deputado Fernando Cury (Cidadania) que, durante uma sessão extraordinária, vergonhosamente passou a mão no seio da deputada Isa Penna (PSOL). O futebol coleciona atitudes vexaminosas como a desse deputado.

Nos estádios, nos clubes e em ambientes tidos no passado como redutos masculinos, há anos jornalistas esportivas são desrespeitadas. E, por incrível que pareça, isso não surpreende com a frequência que deveria surpreender. Muitos assistem impassíveis às provocações e ouvem os coros nas arquibancadas dos estádios que repetem em alto e bom som xingamentos como “piranha, vagabunda, etc”. Como se o simples fato de trabalharem e, por que não, gostarem de futebol,  pudesse colocá-las num patamar de igualdade com as chamadas Marias-chuteiras, mulheres que se aproximam de jogadores de futebol com interesse em engatar um romance ou algum tipo de relação em troca de visibilidade ou vantagem financeira.

Vale lembrar que o próprio termo Maria-chuteira nasceu lá atrás impregnado de preconceitos machistas em relação à presença feminina nos estádios. Esse personagem carrega estereótipos que associam malícia e astúcia ao feminino.

Driblando o machismo estrutural

Mesmo depois do futebol ter perdido a fidalguia que levava apenas as mulheres das classes mais abastadas às arquibancadas, a presença feminina resistiu às interdições e está cada vez mais atuante nas torcidas dos estádios.  Mas nem mesmo lá, no espaço de quem olha, sente e vibra com o espetáculo do futebol elas estão livres de comportamentos masculinos inadequados. Tampouco as jornalistas esportivas.  Nos seus mais diferentes papéis, seja como repórteres, comentaristas ou narradoras elas também vivenciam no dia-a-dia esses comportamentos sexistas. Mesmo assim, não são todas que associam essas atitudes com preconceito em relação a participação da mulher no jornalismo esportivo.  É o caso, por exemplo, de Marluci Martins, que começou a cobrir futebol no início dos anos 90. Nessa época as entrevistas em vestiário eram comuns, o que não deixava nem a jornalista nem os jogadores à vontade.

Com seis copas do mundo no currículo, Marluci acredita que a estranheza e as dúvidas em relação a competência das mulheres eram motivadas pela quantidade reduzida de mulheres no jornalismo esportivo. Elas sempre tinham que provar alguma coisa.

 “Teve jogador entrando no meu quarto. Mas acho que isso não é nem preconceito, é outra coisa muito mais grave. Um assédio horroroso. Mas sempre compreendi que fui vítima disso tudo por ser uma das pioneiras. Naquela época a gente nem sabia que aquilo era preconceito. Hoje em dia a gente tem uma percepção muito maior desses fatos. Eu era muito nova e não gostava que duvidassem da minha competência. Queria provar que podia fazer como os homens faziam. Era um desafio pra mim.”

Marluci Martins

Marluci provou por diversas vezes que tinha competência para estar ali. Foram mais de 30 anos enfrentando cobranças em jornais populares como O Dia, Extra, O Globo e em programas dos canais por assinatura SporTV e Fox Sports.  Como conseguiu se impor e chegar aonde queria, não acha que foi vítima de preconceito. Ficava muito mais incomodada com fato de ser chamada para dar palestras sempre para falar de preconceito e nunca sobre temas como técnicas de reportagem e táticas de futebol, assuntos sobre os quais tinha pleno domínio.

Por ter trabalhado a maior parte da carreira em jornal, Marluci se livrou da terrível experiência de ouvir xingamentos entoados em coro pelo público no Maracanã e em outros estádios.  Como repórter de televisão, não tive a mesma sorte. Gostaria de pensar que esses foram ecos de um tempo que ficou para trás.  Mas, infelizmente, o que vivi no passado se repetiu muitas vezes com jornalistas que atuaram depois de mim e com as que estão hoje na linha de frente.

Fonte: Imagem enviada pela autora

A diferença é que atualmente a voz das jornalistas ecoam com mais força e rapidez. A consciência por parte das mulheres aumentou e elas hoje se  organizam em coletivos como o Jornalistas Contra o Assédio, criado no Facebook em 2016, e botam a boca no trombone para denunciar abusos em todos os espaços. As redes sociais ajudam a dar peso a essas denúncias.  Em 2015 a repórter do SporTV Gabriela Moreira, então na ESPN, fez um desabafo no Facebook depois de constatar com indignação o que na época ela chamou de licença poética para o machismo no futebol.

Depois de passar cinco anos como repórter policial, Gabriela não imaginou que enfrentaria preconceito de gênero justamente na editoria de esportes. Acostumada a ter chefes mulheres em outras editorias, Gabriela de cara se surpreendeu com a quantidade diminuta de mulheres em cargos de comando na editoria de esportes. Mas a surpresa maior viria depois.

Eu conheço o machismo de perto. Ontem pude sentir o bafo dele. Úmido, quente. Não pisquei o olho. Não me movi. Eu conheço o pior do ser humano e não é de hoje.

Na morte do Gaguinho, miliciano, grávida, vi a perícia levantar a pele que sobrava do rosto dele entre os 20 buracos de bala de fuzil do qual foi alvo. Ouvi de perto também os prantos da mãe de Matheus, que aos 4 anos fora morto no Complexo da Maré. Nas mãos da criança, uma moeda de R$ 1 que usaria para comprar pão. Os prantos da mãe de Matheus ainda não consigo esquecer.

Por ter visto o pior do ser humano de tão perto é que não me abalo quando vejo um machista pela frente. Ao contrário, respiro o mesmo ar que ele. De preferência, bem de perto. O machismo não se instala somente no futebol. É que aqui, ele ganha ares de licença poética.

 O machismo que vi na polícia e na política é o mesmo. Mas aqui, ele sai entre um “olê, olê, olá” e vez em quando, depois de um “Chupa”. Se o ouvinte é um homem, o “chupa” é “verbo” sem complemento. Para nós, mulheres, ele sempre vem acompanhado. E ontem, ele foi acompanhado de muitas coisas mais, durante muito tempo.

 “Você vai ver eu te chupando todinha, sua vagabunda”, foi um dos gritos que ouvi por longos 40 minutos. Gritado por dezenas de torcedores, na frente de pessoas com as quais me relaciono diariamente. Não pisquei, não desviei o olhar. Respirei bem de perto.

Para que entenda o machista que nem o ar que ele respira eu não posso ter. Nada terão eles que nós não possamos ter. Ouvir o que ouvi hoje é para os fortes. Falar o que disseram, não.

 Aos covardes, um aviso: essa luta já está perdida. Pelo filho que eu crio, que nós criamos. Pela força dos que estão porvir. Não tenham dúvida, esse título já é nosso!”

Gabriela Moreira (texto publicado pela jornalista no Facebook)

Segundo a jornalista, diferentemente da cobertura policial onde o machismo existe mas é velado pelo fato dos policiais saberem o que é crime e conduta imprópria, no esporte o assédio ainda é  normal e, o que é pior, existe uma omissão por parte dos próprios colegas jornalistas. Chegou a essa constatação na época da publicação do desabafo acima, depois de ser agredida por torcedores com palavras obscenas na final da Copa do Brasil entre Palmeiras e Santos, em 2015.

O preconceito, não apenas o de gênero, está de tal forma entranhado na nossa sociedade, que muitas vezes o teor sexista de determinadas ações passa despercebido. Para Marluci as mulheres estão dando um show de competência no jornalismo esportivo. Ela não sente que haja mais qualquer diferença nem na forma como o trabalho delas é feito nem recebido. Mas, num ato falho, repetiu: “Tem gente que fala assim: elas estão fazendo jornalismo como homem.” Riu e, depois, emendou:  “Frase preconceituosa, né? Elas fazem como homem fazia antigamente. Hoje em dia é normal.”

Referências bibliográficas

COSTA, Leda M da. Marias-chuteiras x  torcedoras “autênticas”. Identidade feminina e futebol, Arquivo Público do Estado do Rio de Janeiro – APERJ

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O jormachismo esportivo precisa entrar em pauta

O Esporte Espetacular, da Rede Globo de Televisão, exibiu durante os domingos 10[1] e 17[2] de janeiro de 2021 uma série de reportagens assinada por Henrique Arcoverde e produzida por Amanda Kestelman, Bárbara Mendonça e Renata de Medeiros sobre a Violência contra mulher. Ainda antes do início da matéria, a apresentadora Bárbara Coelho contextualizou o cenário nacional de violência contra a mulher no Brasil mostrando como acusações de agressões, estupros e assassinatos têm aparecido no cenário do futebol brasileiro.

O assassinato de Eliza Samúdio foi lembrado e ilustrado com uma fala do, então, goleiro do Flamengo Bruno Fernandes, em 2010, naturalizando agressões entre casados. A agressão do, atualmente, goleiro do Atlético GO, Jean, sobre a ex-mulher Milena Bemfica, em 2019, também apareceu na matéria. Apesar de ter seu contrato suspenso com o São Paulo, o goleiro seguiu atuando na série A do Campeonato Brasileiro. A ex-esposa criticou que seu agressor possa seguir sua trajetória futebolística como se nada tivesse acontecido.

A matéria argumentou que o caso Robinho marcava um novo momento na relação entre o futebol e a violência contra a mulher. O jogador condenado na Itália por violência sexual de grupo, em 2017, foi contratado pelo Santos, em 2020, enquanto aguardava julgamento de recurso. A divulgação de escutas telefônicas de conversas do jogador sobre o episódio com seus amigos fez com que torcida, imprensa e, especialmente, patrocinadores pressionassem o clube que suspendeu o contrato do jogador condenado novamente em dezembro de 2020 ainda tendo um último recurso na justiça italiana disponível.

No segundo domingo de apresentação da matéria, além de uma rápida definição sobre o que seria “ser homem”, a reportagem questionou a importância da intervenção nos clubes em que muitos postulantes a atletas acabam convivendo em ambientes de pouco contato com a diferença de gênero dificultando a criação da empatia nas relações com as mulheres. Existiu certo consenso na fala dos entrevistados e das entrevistadas na responsabilidade das instituições em procurar criar um ambiente que permita o surgimento de outro tipo de masculinidade desde as categorias de base.

A narrativa da reportagem encerrou apostando na necessidade de uma maior valorização da presença das mulheres no futebol com cargos de destaque. Se evidencia como hipótese que uma maior presença de mulheres permite a criação de espaços com menos machismo. Regiani Ritter, repórter de campo na década de 1980 e 1990, lembrou que ao contrário dos homens que tinham seus erros transformados em piadas, os erros dela eram associados a seu sexo/gênero seguido das ordens de retorno ao fogão ou à cozinha. A árbitra FIFA Edina Alves, que será a primeira mulher da história a apitar uma partida do campeonato mundial de clubes de futebol masculino em 2021, afirmou que ainda tem seus erros justificados por ser uma mulher.

Me parece muito importante que um programa tão relevante de nosso jornalismo esportivo consiga pautar temas tão urgentes em nossa cultura. Nas linhas que seguem, porém, quero pensar o quanto esse mesmo jornalismo esportivo, entendendo-o como espaço de disputa e não como um espaço homogêneo, ajuda a construir essa narrativa masculina e machista no ambiente do futebol de espetáculo jogado por homens em nosso país.

Com Arlei Damo (2006) entendo que o futebol de espetáculo pode ser dividido em quatro categorias de agentes: os profissionais, os torcedores, os dirigentes e os mediadores especializados. Os mediadores especializados são os profissionais que trabalham na espetacularização do futebol e produzem narrativas sobre os eventos futebolísticos. Eles podem ser profissionais da comunicação ou ex-atletas e ex-dirigentes que teriam a função de “explicar” os eventos para o público que, de alguma forma, não seria “apto” a lê-los sozinho. Esses mediadores, apesar de suas diferentes origens, são chamados, costumeiramente, de cronistas esportivos e são os principais atores do que se pode nomear de jornalismo esportivo ou de imprensa esportiva.

As narrativas construídas pelo jornalismo esportivo produzem significados diversos e ampliam o fenômeno futebolístico. Segundo as teorias literárias e culturais, as narrativas possuem centralidade na cultura. São as histórias que nos permitem entender as coisas e pensar no mundo e em nossas vidas como certa progressão lógica que leva a algum lugar (CULLER, 1999). As narrativas possuem a potencialidade de nos ensinar diferentes pontos de vista e de entender as posições dos outros. Ao mesmo tempo, as narrativas policiam autorizando ou desautorizando a construção de significados, por exemplo, sobre a masculinidade.

No primeiro domingo de exibição, a reportagem lembrou a acusação de 4 ex-jogadores – Henrique, Fernando, Eduardo e Cuca (atual treinador do Santos) – do Grêmio que em uma excursão à Europa, em 1987, mantiveram relações sexuais com uma menina de treze anos. O jornalista Cláudio Dienstimann que acompanhou a excursão reconheceu, passados mais de trinta anos, que, infelizmente, a cobertura não pensou no ponto de vista da menina agredida. Segundo ele, o foco da reportagem era ver os atletas em liberdade para retornarem ao Brasil. A reportagem lembrou que a época parte da torcida apoiou a atitude dos jogadores. Podemos ler esse apoio em um diálogo muito estreito entre clubismo e machismo, não necessariamente nesta ordem. Carmen Rial lembrou que a imprensa esportiva gaúcha fez o mesmo. Junto com Miriam Grossi ela publicou um texto na revista Mulherio em que mostrava algumas das impressões dos torcedores e da imprensa gaúcha naquela oportunidade. Acompanhando o retorno dos quatro agressores, elas afirmaram que a “crônica esportiva (…) conseguiu em um mês transformar os quatro acusados de crime em vítimas de um ‘juiz nazista’ e o estupro de uma menina de 13 anos por três dos jogadores em uma ‘travessura’ inconsequente” (1987, p. 3). Em uma das falas, o jornalista Lauro Quadros tentou “ensinar” para o público o que poderia se imaginar ser certo consenso cultural da época (ou ainda estaria entre nós?):

(…) eu sou pai, você que é mãe ou pai vai me entender, não é a mesma coisa um filho ou uma filha. Todo pai quer que o seu filho fature todas as meninas do bairro, quer que ele seja o garanhão da turma. Já com a filha é diferente. Não se deve culpar os rapazes do Grêmio por terem feito o que todo pai gostaria de ver o seu filho fazer (GROSSI; RIAL, 1987, p. 4).

Em 2020, o ex-jogador Caio Ribeiro, hoje comentarista esportivo, se autorizou a dar o “benefício da dúvida” a Robinho afirmando que apenas a justiça deveria julgá-lo. Aparentemente ele não se sentia confortável em criticar a conduta do jogador, naquele momento já condenado em primeira instância. Após acesso a novas reportagens o comentarista modificou sua percepção: “Na hora que eu vejo, ainda mais eu que tenho uma filha menina, a forma como ele se dirige à vítima, a forma baixa como ele fala do estado da menina… Cara, me caiu mal. Me deu dor de estômago”[3]. Curiosamente o reforço de seu posicionamento aparece na sua posição enquanto homem, pai de menina. A percepção de violência ainda aparece na relação entre homens. A lógica dessa justificativa que aproxima a agressão de um homem ao sofrimento de outro homem, pai de menina, não estabelece a plenitude da humanidade para as meninas ou mulheres. Se ele não fosse pai de uma menina, não seria possível criar empatia e condenar a violência contra mulheres?

Muito mais do que as opiniões sobre casos de violência extrema, o problema de nosso jormachismo esportivo está em suas ações cotidianas. Ele vai da absurda defesa do comportamento machista de um treinador como realizada por Maurício Saraiva:

Guto Ferreira gosta de mulher, é casado, não sei se tem filha, mas certamente não tem nada contra mulheres. (…). O mundo da bola ainda é assim. Muito homem junto, mulheres recém começando a ocupar a arquibancada e muitas ainda mais atentas ao bonitinho do que ao bom jogador. Também as mulheres estão na transição de gostar do futebol pelo futebol, capazes de ir ao futebol sem marido, amigo ou namorado. Então, todos em aprendizado. [4]

E também é alimentado pelas “brincadeiras” do Carlos Cereto que pergunta sobre novela para Ana Thaís Matos[5], o Peninha Bueno mandando a Eduarda Streb[6] voltar para a cozinha… Escondidas atrás de “piadas”, essas manifestações dão pouca margem para que a violência apareça. Para as ofendidas acaba sendo oportunizado apenas o lugar de mal humoradas. Nas redes sociais os torcedores cobram engajamento de jornalistas mulheres que “ousaram” reclamar do machismo em alguma oportunidade ao mesmo tempo em que o silêncio dos jornalistas homens não é colocado em questão.

Após classificar o Grêmio para final da Copa do Brasil nesse interminável 2020, Renato Gaúcho – machista quando perde “até mulher grávida faria gol na gente” – voltou a fazer uma manifestação machista, desta vez após uma vitória. Questionado sobre ter menos posse de bola que o adversário, Renato contou uma “historinha”:

Teve um cara que pegou uma mulher bonita e levou ela para jantar. Levou para jantar à luz de velas, conversou bastante. Saiu do restaurante, foi na boate e ficou até às 5 horas da manhã com ela. Gastou uma saliva monstruosa. Aí, na boate, chegou um amigo meu, conversou com ela 15 minutos e levou ela para o motel. Entendeu? Se não entendeu outra hora eu explico. Meu amigo ganhou o jogo [7]

Para Cosme Rímoli, do R7, “Este é Renato Portaluppi, finalista da Copa do Brasil 2020…”[8]. Na conta do Instagram do Fox Sports Brasil a fala foi acompanhada de risos:

No Programa Redação Sportv, o apresentador Marcelo Barreto chamou a jornalista Renata Mendonça para tentar entender se a escolha das palavras de Renato foi boa ou ruim. Renata reforçou como a frase do treinador objetificava as mulheres ao definir que o objetivo dos homens seria apenas levá-las ao motel mostrando que a única importância da mulher seria satisfazer o homem, e pelo exemplo do treinador, sexualmente. Ela reforçou que não seria possível “inverter” a “piada” uma vez que os homens, em nossa cultura, não são entendidos como objetos para satisfação dos desejos das mulheres[9]. Ao mesmo tempo em que é bastante produtiva a participação das mulheres nessa discussão, essa metodologia acaba desconvocando os homens para o debate sobre o machismo. Um homem não seria qualificado para ver o machismo presente nesta manifestação?

A frase de Renato parece fazer tanto sentido dentro da lógica desse jormachismo esportivo que a conta do Instagram da Fox Sports Brasil já a replicou ao ilustrar a vitória de uma equipe com menor posse de bola.

Situações como essa mostram que esse machismo atravessa as narrativas do futebol de espetáculo no Brasil. Frases como a de Renato, Lauro Quadros, Caio Ribeiro, Carlos Cereto, Peninha Bueno e tantos outros não são atitudes individuais de sujeitos desajustados. Ao contrário, elas fazem sentido nessa péssima lógica machista da nossa cobertura esportiva.

Esse é mais um espaço de enfrentamento contra as desigualdades de nossa cultura. Pautar esse jormachismo esportivo é urgente. E ela é uma luta de todos os que militamos neste espaço como profissionais, pesquisadores e torcedores. Nós, homens, não temos o direito de terceirizar o protagonismo deste enfrentamento às mulheres. Precisamos nos posicionar ao lado delas nesta trincheira e não podemos abrir mão de agir quando situações como essa, infelizmente, se repetirem.


[1] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9166660/. Acesso em 23/01/2021, às 13h34.

[2] Disponível em: https://globoplay.globo.com/v/9185792/. Acesso em 23/01/2021, às 16h44.

[3] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sp/santos-e-regiao/futebol/times/santos/noticia/caio-ribeiro-fala-sobre-o-caso-robinho-tem-que-pagar-como-qualquer-outra-pessoa.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 9h32.

[4] Disponível em: http://globoesporte.globo.com/rs/blogs/especial-blog/vida-real/post/guto-e-mulheres.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h22.

[5] Disponível em: https://www.lance.com.br/fora-de-campo/ana-thais-matos-incomoda-com-pergunta-machista-apresentador.html. Acesso em 24/01/2021, às 11h13.

[6] Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/ultimas-noticias/2018/04/27/peninha-pede-desculpas-apos-piada-machista-e-comentarista-chora-ao-lembrar.htm. Acesso em 24/01/2021, às 11h16.

[7] Disponível em: https://esportes.r7.com/prisma/cosme-rimoli/renato-compara-posse-de-bola-a-pagar-jantar-e-nao-levar-mulher-ao-motel-31122020. Acesso em 24/01/2021, às 11h31.

[8] Ver nota anterior.

[9] Disponível em: https://globoesporte.globo.com/sportv/programas/redacao-sportv/video/renata-mendonca-sobre-fala-de-renato-nao-seria-nem-engracado-se-ele-fizesse-o-contrario-9143513.ghtml. Acesso em 24/01/2021, às 11h56.

Referências:

CULLER, Jonathan. Teoria literária – uma introdução. São Paulo: Beca Produções, 1999.

DAMO, Arlei Sander. O ethos capitalista e o espírito das copas. In: GASTALDO, Édison Luis; GUEDES, Simoni Lahud. (Orgs.). Nações em campo: Copa do Mundo e identidade nacional. Niterói: Intertexto, 2006, p.39-72.

GROSSI, Mirian; RIAL, Carmem. Os estupradores que viraram heróis. In: Mulherio. Fundação Carlos Chagas, outubro 1987, p.3-4.

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O caso Bruno e o espetáculo para o tio do pavê

Machismo, hipocrisia e os limites do mercado Em 2019, a população prisional no Brasil atingiu a marca de 812.564 pessoas, de acordo com dados do Conselho Nacional de Justiça. Desse total, incríveis 41,5% (337.126) são presos provisórios, ou seja, são aqueles que não foram julgados e não receberam decisão condenatória. Dos principais crimes cometidos destacam-se… Continuar lendo O caso Bruno e o espetáculo para o tio do pavê

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Machismo, futebol e jornalismo

Após o assédio contra a repórter de TV do Esporte Interativo Bruna Dealtry durante a transmissão do jogo do Vasco, na última quarta, dia 14, me senti no dever de falar sobre a posição da mulher perante o machismo no futebol e no jornalismo. Outro caso recente foi o da jornalista Renata de Medeiros, da… Continuar lendo Machismo, futebol e jornalismo

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“Não é só esporte”

Essa expressão, muitas vezes vinculada ao futebol e que aqui generalizei, está vinculada ao fato de que o esporte não se limita ao território esportivo, ele o ultrapassa e se constitui em um dos elementos da construção da identidade nacional. É inegável que o esporte tem a capacidade de envolver multidões e despertar sentimentos. Contudo… Continuar lendo “Não é só esporte”

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Qual a relação entre o caso Bruno, o futebol e o feminismo?

Como é de conhecimento de todos, no final do mês de fevereiro, o ex-goleiro do Flamengo, Bruno Fernandes de Souza, deixou a cadeia após quase sete anos preso. Em 8 de março de 2013, Bruno foi condenado em primeira instância a pouco mais de 22 anos de prisão como mandante do assassinato da modelo Elisa… Continuar lendo Qual a relação entre o caso Bruno, o futebol e o feminismo?

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O preconceito está nos olhos de quem vê? O empoderamento das torcedoras e o machismo no futebol

“O preconceito está nos olhos de quem vê” foi uma frase que ouvi da boca de alguns comentaristas esportivos para fazerem referência às reações negativas geradas pela apresentação do novo uniforme do clube Atlético Mineiro. Ela poderia ser eleita como uma das frases mais infelizes dos últimos tempos. Geralmente quem a profere, o faz com… Continuar lendo O preconceito está nos olhos de quem vê? O empoderamento das torcedoras e o machismo no futebol

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