Os heróis por eles mesmos

“Na Copa do Mundo de 1998, eu tinha 21 anos de idade e o futebol era simplesmente uma coisa divertida para mim. Eu marquei quatro gols até a partida final contra a França. Então, no dia da final, aconteceu algo que eu simplesmente não consigo explicar. Eu fiquei muito, muito doente e tive uma convulsão na cama. Eu não me recordo muito a respeito disso. Mas quando os médicos fizeram os testes e me liberaram para jogar, eu joguei. É claro que eu não joguei bem, e nós perdemos o jogo por 3 a 0. Foi um momento devastador. Mas, na minha cabeça, eu ainda era jovem, e ainda haveria muitas outras Copas do Mundo. Existiriam outras oportunidades”. O relato é de Ronaldo, o Fenômeno, sobre uma noite exaustivamente debatida pela imprensa e por todos nós: a final da Copa da França em 1998 e seus “mistérios” (“Se vocês soubessem o que aconteceu…”). 

As histórias daquela partida que se contam pela narrativa da mídia tradicional não são novidades. O que me interessa aqui é quem conta e o formato: o próprio personagem principal em um depoimento de texto em primeira pessoa que nos leva pelos dramas e glórias de sua trajetória vitoriosa. Trata-se do site The Players Tribune. Uma plataforma criada por um recém aposentado jogador de beisebol, Derek Jeter, que abriu o espaço para as histórias de vida contadas pelos próprios atletas. Uma oportunidade para que cada um deles dê a própria versão de sua trajetória. Sem o intermédio do jornalista.

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Revista “The Players Tribune” é singular por ceder maior espaço e com menos filtros a atletas (Imagem: divulgação “The Players Tribune”)

O site não é nenhuma novidade, já que a “tribuna” está no seu terceiro ano. Embora Pelé tenha escrito em maio de 2016, as postagens de 2017 levantaram debates, inclusive na mídia tradicional: a exemplo do Rei, as cartas para si mesmos, quando jovens, de Ronaldinho Gaúcho e Marta; As dificuldades e garra de Dani Alves às vésperas da final da UEFA Champions League; O drama de Leandrinho quando chegou a NBA… E, por último, a comovente história dos três atletas sobreviventes do voo da Chapecoense – Neto, Jakson Follmann e Alan Ruschel .

“Quando eu chutei a bola de novo pela primeira vez depois do acidente, eu me senti como se fosse criança novamente. Era para eu ter morrido naquele dia. Eu disse as minhas últimas palavras em voz alta. Deus me deu uma segunda chance, e eu farei o melhor para honrá-lo, e honrar todos os meus amigos que se foram” – Neto.

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Texto de Neto que revela pesadelo com avião dias antes da tragédia da Chapecoense, foi publicado pela “The Players Tribune” e comoveu a  opinião pública. (Foto: Getty Images

Estamos habituados a conhecer a trajetória de atletas pela imprensa. Comumente, são narrativas que nos levam a uma identificação, seja pela humanização do processo até o status de ídolo, seja pelo desejo de uma carreira bem-sucedida. Essa representação pela imprensa é tema de pesquisadores da interface Comunicação e Esporte. Ronaldo Helal (2008) por exemplo, estuda a construção da imprensa sobre o próprio Ronaldo Nazário, entre outros atletas. Na maioria dos casos de idolatria, notamos a “saga clássica do herói” de Joseph Campbell: um ser que parte do mundo cotidiano e se aventura a enfrentar obstáculos considerados intransponíveis, os vence e retorna à casa, trazendo benefícios aos seus semelhantes (Campbell, 1995, p. 36).

Ao ler os textos do “The Players Tribune”, nos deparamos com histórias de superação. De vencer obstáculos. De conquistas. Sucesso aliado à personalidade e persistência. Escritas próximas às narrativas midiáticas tradicionais. Nós que estudamos essa construção pela mídia sobre as questões do Esporte, agora, somos colocados diante de alguns questionamentos: Seria o olhar da imprensa que exagera ao buscar semelhanças entre as trajetórias de atletas e a do herói – com seus recortes e preferências, ao escolher/valorizar determinada palavra e situação para a narrativa – ou realmente essas histórias são parecidas e seguem o roteiro de heroísmo? O fato de ser essa uma construção comum na mídia influencia na escrita e nas escolhas dos próprios atletas sobre o que contar?

O Esporte, ao lidar com vitoriosos e vencidos, é campo fértil para histórias de superação. De disputas com heróis e vilões. Um amigo próximo costuma dizer que todos temos histórias assim, de vitórias em batalhas da vida. Contamos nossas glórias superando dramas, e exagerando na “contação”. Talvez o exagero não seja só da imprensa, como acostumamos a trabalhar em nossas análises. Talvez apenas não conhecemos a vida dos atletas. Agora, podemos saber deles próprios suas histórias de “heroísmo”.

Referências:

CAMPBELL, Joseph. O Herói de Mil Faces. São Paulo, Cultrix. 1995.

HELAL, Ronaldo. Mídia, Construção da Derrota e O Mito do Herói. Motus Corporis (UGF), Universidade Gama Filho, Rio d, v. 5, n. 2, p. 141-155, 1998.

https://www.theplayerstribune.com/

 

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