Racismo no Futebol: o golaço do combate ao racismo pode partir do futebol

Por Camila Valente

O racismo no futebol tem sido assunto principal nas mais diversas mídias esportivas do Brasil. Casos explícitos como o do jogador do Real Madrid, Vinicius Jr., recentes embates entre Brasil e Argentina e até mesmo casos que não ocorram de forma tão explícita, como é o caso do John Kennedy, jogador do Fluminense. Entretanto, é muito importante destacar que o racismo e o futebol se interseccionam desde o início do século passado. Negros já foram impedidos de estar nas arquibancadas, dentro dos clubes e até mesmo de praticarem esta modalidade esportiva.

Entendendo o futebol enquanto um microcosmo constituinte da sociedade brasileira, que influencia e é influenciado por esta sociedade, falar de racismo no futebol é também falar de racismo na sociedade brasileira. Antes de debatermos sobre esses aspectos dentro deste esporte, é primordial que possamos entender a importância do futebol na cultura nacional.

A importância cultural do futebol

O futebol é um esporte que historicamente está imerso na cultura brasileira. É possível perceber que todo brasileiro em algum grau já teve contato com esta modalidade esportiva e tem alguma familiaridade com ele, mesmo que não de forma direta. O fato de o futebol ser um esporte que não necessita de muitos materiais para se jogar no dia a dia facilita sua presença nas periferias e por conseguinte sua massificação. Todo brasileiro já assistiu/jogou/torceu – viu alguém torcer – alguma partida de futebol, seja profissional ou não. Outro aspecto que aproxima o futebol da grande massa da população brasileira é o fato de ser um esporte fortemente difundido pelos meios de comunicação, sejam por veículos escritos ou audiovisual. “A comunicação de massa – jornal, revista, rádio, televisão – traz fatos, notícias de regiões e grupos espacialmente distantes, mas que podem se tornar familiares pela frequência e intensidade com que aparecem” (VELHO, 1978, p.128). A Internet, com a popularidade das redes sociais, colabora para que essa “paixão” permaneça se perpetuando para as novas gerações. 

O torcedor de futebol pertence a um grupo social marcado pela heterogeneidade de suas características e composições. Desde que o futebol foi introduzido no Brasil, despertou-se o interesse de cada vez mais pessoas. Esses “aficionados” começaram a se unir para prestigiar os jogos e com isso passaram a se organizar, mas o futebol tomou uma proporção tão grande na sociedade brasileira que torcer deixou de ser algo que se restringe às arquibancadas dos campos de futebol, massificou-se ao ponto de que ele se torna assunto no trabalho, na escola, entre familiares, entre amigos e nos mais diversos espaços, nas mídias, nas redes sociais, nos rádios, entre outros meios de comunicação.

O torcedor, agente responsável pelo ato de torcer, é também um indivíduo que compõe a sociedade e reflete toda diversidade social também dentro das arquibancadas, dos estádios, ou onde quer que esteja torcendo. Por isso, o futebol se torna um importante campo para discutir e combater as opressões (como o racismo) que ocorrem na sociedade, pois elas também acontecem no futebol, assim como se manifestam os movimentos contra hegemônicos dentro e fora deste âmbito. Sobretudo, este esporte está tão imerso na cultura brasileira que ele também pode ser como uma espécie de vitrine para a sociedade como um todo.

O Racismo no futebol 

O Brasil é um país que, ainda na atualidade, apresenta características semelhantes às suas raízes coloniais e escravocratas, consequentes de sua história e formação social. As opressões aos grupos tidos como minoritários1, como o racismo aos negros e indígenas e o machismo contra as mulheres, estão nas estruturas sociais do país. Esse padrão também está presente no âmbito do futebol e ele acontece das mais diversas formas e nos mais variados espaços deste esporte.

Desde sua origem elitista que excluía os grupos mais periféricos dos espaços de lazer a popularização deste esporte, que é entendido como pertencente a cultura nacional, ainda hoje, o terreno do futebol é um espaço em que o discurso de ódio e, muitas vezes, o apagamento desses grupos minoritários se fazem presentes, mesmo que a maioria dos grandes ídolos do futebol, historicamente, sejam homens negros, inclusive o Pelé que é considerado o “Rei do Futebol”. E, se adentrarmos no campo do futebol feminino, as jogadoras mais famosas também são negras, como a Marta, a Formiga e a Cristiane.

Ignora-se que a própria história do futebol no Brasil, inicialmente praticado por representantes de elites majoritariamente de descendência europeia, é perpassada por lutas pelo direito de jogar bola e de torcer, pelo direito de ser reconhecido como jogador e torcedor de futebol. (PINTO, 2017, p.18)

Porém nem sempre o negro foi bem-quisto no futebol – assim como hoje, apesar de “aceito”, o negro não pode cometer nenhuma falha, pois a “régua” moral é muito mais rígida. “A derrota do Brasil em 50, no campeonato mundial de futebol, provocou um recrudescimento do racismo. Culpou se o preto pelo desastre de 16 de julho”2 (FILHO, p.17, 2010), no caso, o goleiro Barbosa3. Mario Filho, vai relatar em seu livro “O negro no futebol”, a exclusão do negro neste esporte, tanto no campo como nas arquibancadas, no início do século passado. Segundo Mario Filho (2010), aos jogadores brancos estava reservado os grandes clubes, e aos negros os clubes menores. Aos torcedores brancos as arquibancadas, aos negros a geral. “O fato é que mesmo com as tentativas de manter o futebol exclusivo das elites, a popularização e a consequente massificação foram inevitáveis” (MAGALHÃES, p.22, 2014).

O futebol se popularizou e o negro não só passou a fazer parte deste esporte, como tornou-se o protagonista. Os times formados pelos operários das fábricas foram fundamentais para essa inserção, mas outros aspectos como a profissionalização do futebol foram muito importantes para este fato, como descreve Soraya Bertoncello (p.82, 2022):

A profissionalização do futebol, nos anos 1930, foi determinante para a inserção do negro no esporte. A transformação do amadorismo para o profissional, porém, não foi tranquila: houve conflitos entre as federações com os que eram contrários às mudanças acarretadas. A profissionalização também mudou o perfil dos torcedores no estádio, uma vez que a modalidade já não era mais um lazer exclusivo para a elite. Porém, as diferenças sociais seguiram bastante marcadas nas arquibancadas: aos ‘novos’ torcedores, oriundos das classes populares, eram reservados os espaços chamados de ‘geral’.

De certo, nos últimos anos, tivemos alguns avanços no que diz respeito ao combate a essas opressões. Posicionamentos contra hegemônicos presentes nas arquibancadas, debates na grande mídia, campanhas nos estádios e nas redes sociais promovidas pelos clubes, são alguns aspectos que contribuem para este fato. Contudo, o discurso de ódio a estes grupos ainda é predominante no âmbito do futebol, por isso, é necessário compreender o porquê, ainda na atualidade, é tão difícil de superar essa narrativa dentro deste esporte.

Entendendo – a partir do conceito de Guedes (1998), que o campo de futebol é o lugar onde foi colocado o povo brasileiro – que a arquibancada é um microcosmo constituinte da sociedade brasileira4, pode-se afirmar que o racismo presente nesta sociedade também está na arquibancada e no campo futebolístico como um todo. Visto que, a partir desta concepção, o futebol reflete e influencia essa sociedade. Portanto, é fundamental o desenvolvimento de estudos acerca da questão racial no futebol.

De fato, o futebol, como a maioria dos esportes, é um excelente terreno para a construção e confrontação de juízos sobre a nação. E é justamente porque os esportes se constituem em ‘domínio menor’ da sociedade que apresentam enorme abertura às mais diversas apropriações ideológicas. (GUEDES, 1998, p.20)

O que o futebol de hoje fala sobre o racismo

Assim como Barbosa não podia errar, e tantos outros jogadores negros que vieram antes ou depois dele, ainda hoje, o homem negro continua sem poder cometer erros (dentro ou fora do âmbito futebolístico). O jogador negro não pode ter falhas. É o que vem acontecendo com o jogador John Kennedy, do Fluminense, e que foi convocado para a atual seleção pré-olímpica. Mais popularmente chamado pela torcida do tricolor carioca como JK, ao longo de sua recente carreira profissional o jogador foi assunto nas “Redes Sociais” e em páginas de futebol sobre o uso de drogas, inclusive teve um carro apreendido com 10 gramas de maconha, mas o jogador não estava no veículo e as duas pessoas no carro não tinham habilitação5

Contudo, na última temporada, JK se tornou um dos jogadores mais importantes da história do Fluminense, com apenas 21 anos. Foi dos pés do jogador que saiu o gol do título da Copa Libertadores da América, título esse que o tricolor das Laranjeiras almeja há tempos, principalmente após o vice-campeonato em 2008, e o qual o clube nunca havia conquistado. Além disso, foi importante em todas as fases eliminatórias da competição, inclusive iniciando a virada contra o Internacional na semifinal do mesmo campeonato. No mundial de clubes, ainda em 2023, após a conquista da Libertadores, fez o gol na semifinal contra o Al Ahly que garantiu a vaga na final contra o Manchester City.

Entretanto, apesar de todas essas conquistas, o que ficou marcado no JK foi o seu envolvimento com as drogas, ou com o técnico, Fernando Diniz, um homem branco, que recuperou o menino perdido. A torcida do Fluminense, inclusive, fez uma música para o jogador, se referindo às questões do mesmo com as drogas.

 Ele fuma, ele cheira, ele gosta de baforar. Oba, oba, mais um gol do JK.

Ainda após a semifinal do Mundial de Clubes, viralizou na internet uma “Fake News” dita por um jornalista no “UOL News Esporte’’, que a comemoração feita pelo jogador, imitando um urso, é uma referência a um chefe de uma facção criminosa do Rio de Janeiro6. Após críticas na internet, o jornalista pediu desculpas e declarou que ouviu boatos e que “pode ter” caído em uma “Fake News”. O jogador já havia dito, anteriormente, que a comemoração tinha um duplo significado, primeiro em relação a ter fome de gols, ainda na base, e também como uma referência ao jogador Cristiano Ronaldo, ídolo do JK7.

Outro aspecto que precisa de atenção é acerca do aprofundamento da rivalidade entre Brasil e Argentina no futebol. Durante a Copa Libertadores, ocorreram diversas denúncias de jogadores e torcedores brasileiros que foram jogar na Argentina e que sofreram racismo, principalmente de torcedores rivais nas arquibancadas imitando macacos. Essa questão ganhou maior projeção na final na Libertadores, com a invasão argentina no Rio de Janeiro e após o confronto entre a seleção da Argentina e o Brasil no Maracanã culminando em uma briga generalizada na arquibancada. De repente, o brasileiro se tornou antirracista e usou deste suposto antirracismo para ser xenofóbico. Não é porque um grupo de argentinos foi racista que todo argentino é racista, não podemos generalizar. Todavia, o que na realidade incomoda não é somente o “racismo argentino” e sim que este racismo é dirigido ao brasileiro como um todo, inclusive ao branco, por isso incomoda de forma generalizada. A mesma sociedade que é diariamente racista, que tem esse racismo enraizado em sua estrutura, nas suas instituições, levanta a pauta antirracista quando esse racismo é oriundo da Argentina.

Na final da Libertadores a torcida do Fluminense modificou um canto direcionado ao flamengo com o termo mulambo, trocando o termo por racista:

“E pra você flamenguista me escuta, mulambo imundo, filha da puta”

“E pra você argentino me escuta, racista imundo, filha da puta”

Contudo, em 2021, a Bravo 52 anunciou nas redes sociais que iria retirar o termo mulambo desta e de outras músicas da torcida para se referir a torcida do Flamengo, entendendo ser um termo pejorativo de cunho racista. No mesmo dia houve uma série de ataques pelas redes sociais da Força Flu contrária à decisão da Bravo causando uma grande tensão que fez com que a Bravo voltasse atrás na decisão e não quisesse mais tocar nesse assunto para evitar conflitos.

Interface gráfica do usuário, Texto, Aplicativo

Descrição gerada automaticamente

No jogo seguinte a final no Maracanã, que foi retirado o termo racista para fazer um protesto antirracista, o canto original com a expressão mulambo retornou às arquibancadas.

Para finalizar, é importante destacar os casos recentes de racismo contra os jogadores brasileiros Vinicius Jr. e Rodrygo do Real Madrid, na Espanha, e a forma como ambos denunciaram a opressão e deram visibilidade a essa pauta que é muito importante. Quando estes jogadores denunciam o racismo dentro do futebol, esta opressão passa a ser debatida dentro deste âmbito. Eles são referência para os diversos jovens negros que sonham em ser como eles. É importante ressaltar que o futebol é um campo importante no combate às opressões devido ao fato deste esporte penetrar as mais diversas camadas sociais, as mais diferentes idades e a heterogeneidade que representa a sociedade brasileira.


1Tidos como minoritários, pois são minorias nos espaços de poder, porém são a maioria da população brasileira.

2Em 1950 o Brasil perdeu a Copa do Mundo em casa, no Maracanã, para o Uruguai. O estádio mesmo com mais de 100 mil pessoas ficou em completo silêncio após a derrota, com as pessoas sem acreditar no que estava acontecendo, este fato ficou conhecido como “Maracanazo”.

3Barbosa foi acusado de ter falhado no gol que deu a vitória ao Uruguai, ainda hoje há dúvidas sobre esta falha ter acontecido de fato.

4VALENTE, 2023

5Carro de John Kennedy é apreendido com tabletes de maconha | O Globo

6Jornalista faz acusações sobre comemoração de John Kennedy e depois se desculpa | Terra

7Final do Mundial de Clubes: Entenda a comemoração de John Kennedy, do Fluminense, que já foi associada à polêmica | Terra


Referências Bibliográficas

BERTONCELLO, Soraya. O futebol enquanto instância midiática da publicidade social: uma análise do discurso das campanhas do Esporte Clube Bahia. PUC-RS, Porto Alegre, 2022.

FILHO, Mario. Mario. O negro no futebol brasileiro. Rio de Janeiro: Mauad. 5ª edição: 2010.

GUEDES, Simoni Lahud. O povo brasileiro no campo de futebol. Revista DF-letras, Brasília – DF, 1998.

MAGALHÃES, Lívia Gonçalves. Com a taça nas mãos. Sociedade, copa do mundo e ditadura no Brasil e na Argentina. Lamparina, FAPERJ. 1ªed. Rio de Janeiro, 2014.

PINTO, Mauricio. Rodrigues. Pelo direito de torcer: das torcidas gays aos movimentos de torcedores contrários ao machismo e à homofobia no futebol. São Paulo, 2017.

VALENTE, Camila. Muito Além do Futebol: política, conservadorismo e resistência nas torcidas de futebol do Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro, 2023.

VELHO, Gilberto. “Observando o Familiar.” In: A Aventura Sociológica. NUNES, Edson de Oliveira. Rio de Janeiro, Zahar, 1978.

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading

Pular para o conteúdo