Ela está chegando…

Aguardada pelos amantes do futebol, a Copa do Mundo é um objeto amplamente estudado nas pesquisas voltadas para o esporte no campo acadêmico. Antropólogos, sociólogos, historiadores, geógrafos, publicitários e jornalistas encontram um ambiente fértil na produção de símbolos que esta competição oferece, desde a sua primeira edição em 1930. Seja na produção de mitos, heróis e vilões, seja como uma arena de disputa entre narrativas que procuram se tornar hegemônicas, suas edições marcam contextos onde se pode observar a metamorfose deste esporte ao longo de suas 21 edições. Especificamente no Brasil, ela é um momento ritualístico (como Simoni Guedes e Édison Gastaldo destacam), que possui um tempo próprio, uma atmosfera característica e que apesar de se adaptar a cada edição, ainda mantém o sentido de “duelo entre nações”.

Nosso grupo de pesquisa tem nesta competição um dos seus maiores focos de investigação. Dentre alguns dos questionamentos levantados por nós, temos a construção sociológica deste torneio no imaginário nacional, a formação de ídolos nacionais em consequência de sua participação positiva pela seleção brasileira e como a imprensa nacional formula suas narrativas associando futebol e brasilidade. Sustentamos que tal construção tem seu embrião na Copa de 1938. Muito se fala da emblemática coluna do sociólogo Gilberto Freyre chamada Football Mulato, publicada no dia 17 de junho de 1938 no jornal Diário de Pernambuco. Ela se tornou um objeto de análise frequente para compreender a vinculação do que seria “o tipicamente nacional” estar representado na seleção brasileira de futebol. Freyre argumenta que o estilo nacional de se praticar este esporte estaria imbricado à nossa miscigenação, enfatizando a presença do negro, índio e branco na equipe que ficou em terceiro lugar na Copa da França. A argumentação que antes pairava como “ilusão” e uma “mera” elaboração intelectual com intuito de fortalecer uma nova visão do Brasil, teve no sucesso da equipe na competição uma “prova concreta” de que “nossa mistura” era a causa do sucesso do time e, consequentemente, seria o motivo do eminente êxito da própria nação.

O texto de Freyre encontrou uma atmosfera amplamente favorável para que essa “prova” emergisse na sociedade e construísse este ritual Copa do Mundo. Capturar essa atmosfera foi um grande feito de Freyre. O Estado Novo interveio nas disputas políticas da CBD e “unificou” a seleção com a chegada de Luiz Aranha a entidade, instituiu a profissionalização dos atletas (seguindo sua política trabalhista) e teve nas transmissões radiofônicas o impulso que precisava para expandir a ideia de associação seleção-nação pelo país. O contexto era favorável para sustentar a Copa do Mundo como um ritual efusivo de nacionalidade. Criava-se também um quadro social no qual jogadores, imprensa e público saberiam e ajustariam seus papéis ao longo das edições.

Além destes fatores, um que considero essencial é a atmosfera de sentidos que a competição proporciona. Nesta atmosfera “aceitamos” determinados comportamentos: o choro efusivo na vitória ou derrota da seleção, o “feriado” nacional nos dias de jogo do Brasil e vestir verde amarelo num patriotismo cíclico. Essas ações podem ser relacionadas a um impulso, algo presente no imaginário social, no pathos, que nos faz agir, indo direto ao emocional. De modo direto: é xingar irracionalmente alguém durante uma partida de futebol na qual nos envolvemos de modo profundo. Pesquisar e falar sobre Copas do Mundo sem compreender essa atmosfera é algo complicado.

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Fonte: Metro

As ações daqueles que participam do frame Copa do Mundo, inclusive os jornalistas, tem sua base nesta atmosfera que circunda a competição no Brasil. É impossível se deslocar de tudo isso para se buscar uma objetividade e neutralidade. Tanto nós pesquisadores, quanto jornalistas se movem em alguma atmosfera, como a que Freyre estava imerso nos anos 1930. Em nossas pesquisas levamos em conta exatamente este mundo construído pelos profissionais da comunicação, colunistas e cronistas. Durante esse processo de formatação da competição como ritual nacional, não seria imprudente considerar que cobrir uma Copa do Mundo é o “sonho de criança” da grande maioria dos jornalistas. Suas escolhas refletem esta atmosfera na qual eles participam e que inevitavelmente os influencia bastante. O 7 a 1 de 2014, a derrota de 1950 e de 1982, a conquista em 1958, 1962, 1970, 1994 e 2002, todos estes acontecimentos fazem parte de determinadas atmosferas. Todos eles criam um mosaico, um processo narrativo que estará no ar em 2018, pronto para ser capturado e usado no mundo criado pelo jornalista de acordo com o contexto da competição na Rússia. Independentemente do que Neymar, Tite e Cia façam, eles já estão inseridos neste processo narrativo. Assim, associações, inovações e comparações, além de comuns, servem para manter e adaptar o fio condutor do mito país do futebol, recontado a cada ritual Copa do Mundo.

Ela está chegando…com todo seu imaginário, com todo seu simbolismo, com toda essa “ambiência”. Por mais que a ideia seleção-nação tenha perdido sua robustez, seu ritual e ações ainda permanecem vivos no imaginário social brasileiro. Buscar a emoção com lucidez é o ponto chave para o jornalista não escorregar durante a competição, já que tal atmosfera não exclui a possibilidade de reflexão dos fatos e acontecimentos.

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