Colômbia e a experiência do “barrismo social”

Onde há futebol, tem torcedores. E onde tem torcedores, há organização. Porque este esporte é, acima de tudo, uma experiência coletiva. Com essa certeza como ponto de partida inauguramos uma saga que tem como centro os torcedores organizados: barras, torcidas organizadas, ultras, hooligans, porras, tifosis, peñas, antifas. Diferentes brotos da mesma raiz. Viajaremos pelo mundo todo para conhecer as suas origens históricas, as estéticas das arquibancadas, seus diferentes níveis de violência, as lógicas organizacionais e as políticas públicas aplicadas a elas em cada país.

Começaremos com a Colômbia e as suas barras populares. A escolha se deu porque, na minha opinião, está ocorrendo ali um dos processos mais interessantes da América Latina. As primeiras barras colombianas surgiram nos anos oitenta, Los Saltarines do Santa Fé e o Escándalo Verde do Nacional são alguns exemplos. No entanto, foi na década de 1990 quando nasceram aqueles grupos que depois serão chamados de barras populares: Blue Rain e Comandos Azules do Millonarios; Barón Rojo Sur do América de Cali; Los del Sur do Nacional de Medellín, entre outras.

 Vale lembrar que a Colômbia, naqueles anos, era um dos países mais violentos do mundo devido a um fogo cruzado entre facções criminosas ligadas ao tráfico de drogas paramilitares (parecidos com milícias), guerrilhas, policiais e o exército. A cidade de Medellín, em 1993, atingiu uma taxa de homicídios de 382 assassinatos por cada 100.000 habitantes. Quinze vezes maior que a taxa de homicídios que o Rio de Janeiro tem hoje.

As barras de futebol, criadas nesse contexto, não ficaram alheias a tanta violência. Lutas de faca e facão, roubo de bandeira, emboscadas de visitantes e tiroteios de vingança eram comuns. Os mortos se acumulavam e crescia o pânico moral contra as barras. Porém, nesses grupos não tinha só violência. Também tinha contenção, identidade, música, organização, cidadania, amizade, herança familiar e pertencimento. Eliminar de um dia para outro esses grupos era tão impossível como desnecessário. 

O Estado colombiano entendeu a complexidade do assunto e decidiu abordar o problema de forma multidimensional. A primeira coisa que fez foi promover espaços de diálogo entre todos os atores envolvidos: acadêmicos, políticos, forças de segurança, lideranças e, principalmente, as próprias barras. Daí nasceu uma ideia que se tornou política e desde então tem norteado a abordagem do fenômeno, refiro-me ao conceito de “barrismo social”.

A experiência do barrismo social refletiu-se em iniciativas tão concretas quanto positivas. O Estado sancionou o Plan Decenal de Seguridad, Comodidad y Convivencia en el Fútbol 2014- 2024; o Estatuto del Aficionado al Fútbol en Colombia (Decreto 1007 -2012) e, recentemente, abriu o Centro de Investigación y Documentación para el Fútbol que depende do Ministério Nacional de Esportes.

Mas nenhuma dessas importantes políticas “de cima para baixo” teria sido possível sem inúmeras ações que vêm “de baixo para cima”, cujos protagonistas são os próprios componentes das barras. Uma primeira inciativa dessa galera foi a criação do Colectivo de Barristas Colombianos, onde se reúnem a maioria das barras de diferentes times. O movimento ganhou unidade, peso político e objetivos comuns.

A primeira meta e mais importante é combater a violência gerada por eles mesmos, fortalecendo o trabalho social em cada território. Daí o slogan “dejar de ser barras bravas para ser barras populares”. Evitar brigas, incorporar lideranças femininas, eliminar canções racistas, promover campanhas de conscientização contra o consumo problemático ou estimular a participação política são algumas das mudanças concretas que já foram feitas.

Um dos grupos que melhor desenvolveu a experiência do “barrismo social” foi a barra Los del Sur do Atlético Nacional de Medellín. Com presença em quase todas as favelas da cidade, a barra  coordena oficinas para “lideranças positivas”, organiza festas do “día del niño” ou a “navidad verdolaga”, gera empregos para seus componentes , incentiva produções culturais próprias como música, murais, desenho ou conto, o que estimula o debate interno e externo sobre questões relacionadas à violência, gênero, xenofobia, consumo problemático, racismo, etc.

Fonte da imagem: telemedellin.tv

O mesmo pode ser dito de outras barras importantes neste processo, como Rexixtenxia Norte do Independiente de Medellín, La Guardia Albiroja do Santa Fé, Holocausto Norte do Once Caldas, Fortaleza Leoparda do Atlético Bucaramanga, Garra Samaria do Unión Magdalena, entre outras.

Fonte para imagem: Independiente Santa Fe

Nada do falado até aqui impede que a violência continue. Nem que os mortos ligados ao futebol colombiano ainda existam. Não há soluções simples para problemas estruturais. No entanto, há grandes avanços. E, acima de tudo, estou interessado em destacar a novidade e a criatividade da abordagem colombiana. Enquanto os demais países da América do Sul propõem apenas soluções repressivas e punitivas para combater a violência no futebol e criminalizar as barras; A Colômbia indica outro caminho possível a partir de um enfoque integral, preventivo, inclusivo e democrático. Tudo isso a partir de uma ideia que virou experiência: o barrismo social.

Fonte da imagem: Vanguardia

Um conjunto de vivencias que misturam tanto a viabilidade política quanto a criatividade intelectual. Ao contrário do resto dos países da região que continuam a citar o “caso inglês” e sua luta contra os hooligans como o farol a seguir, a Colômbia está preocupada e ocupada em buscar uma resposta própria e autóctone. E tem outra coisa: eles mantêm a festa e o carnaval nas arquibancadas. Porque aprenderam que bandeiras, faixas e baterias não matam. Porque o futebol, na Colômbia, no Brasil, ou em canto qualquer é, principalmente, cultura popular. 

Referências bibliográficas

ALCALDÍA DE MEDELLÍN: Diagnóstico rápido participativo sobre convivencia con barras populares y organizadas de fútbol de la ciudad de Medellín. Medellín, Colombia, 2014.

CABRERA, Nicolás: “La hora de las barras” en Boletín 2: Centro de Investigación y Documentación para el Fútbol (abril a junio de 2020), Ministerio de deportes de Colombia, 2020.https://www.mindeporte.gov.co/recursos_user/2020/IVC/Septiembre/Boletin_Observatorio_Violencia_02.pdf

CABRERA, Nicolás: Que la cuenten como quieran. Pelear, viajar y alentar en una barra del fútbol argentino. Buenos Aires: Prometeo libros, 2022.

MARTINEZ, Raúl (Coord.): Los Del Sur, creadores del barrismo social. Diciembre, 2022.

TAFUR, Sacha & AMAYA, Alirio: Fútbol y políticas públicas. Una mirada desde América Latina. Cali: Universidad Santiago de Cali, Editorial Diké, 2019.

VILLANUEVA BUSTOS, Alejandro, AMAYA DÍAZ, Alirio & RODRÍGUEZ MELENDRO, Nelson. Fabián: Hasta que el cuerpo  aguante. Un análisis de las barras de fútbol capitalinas. Bogotá, Colombia: Uniediciones, 2011.

VILLANUEVA BUSTOS, Alejandro; BERNAL SANDOVAL, Felipe Andrés; & DEMERA, Juan Diego: Guerreros del camino. El aguante y el riesgo por la hinchada. Bogotá: Corporación Universitaria Republicana, 2020.

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading

Pular para o conteúdo