A estruturação do futebol mostrada em The English Game

Com a necessária parada do entretenimento ao vivo, o consumo de jogos antigos, mas também de séries e filmes sobre futebol nos ajudam a dirimir um pouco da saudade das partidas. Aqui, tratarei de The English Game, série da Netflix lançada este ano, do ponto de vista de alguns conceitos adaptados dos estudos de Crítica à Economia Política.

Fonte: Netflix

Aviso de antemão que neste texto eu não irei avaliar a série do ponto de vista cinematográfico (roteiro, fotografia etc.), nem verificar os problemas de representação histórica. Para ambos objetivos, sugiro que acompanhe a live do podcast Na Bancada que tratou muito bem dessas questões.

Em 2014, publiquei o artigo “Os três pontos de entrada da Economia Política no futebol” (SANTOS, 2014), em que adapto “os pontos de entrada da Economia Política” apontados por Mosco (2009) – mercantilização/comodificação, espacialização e estruturação –, enquanto categorias conceituais para análise do futebol profissional ao longo do tempo, entendendo aí as transformações histórico-dialéticas, logo, na perspectiva da totalidade social, para estudar esse esporte.

Fonte: Cena da série The English Game.

“Deixamos o jogo civilizado”

Até pelo período histórico recortado na série, final do século XIX, aqui nos interessará especificamente a estruturação – ainda que a mercantilização também começasse a se fazer presente. Sobre ela, Mosco (2009, p. 311) afirma que:

Especificamente, a estruturação equilibra a tendência na análise político-econômica ao apresentar as estruturas, normalmente as instituições empresariais e governamentais, estudando e incorporando as ideias de ação, de relações sociais, do processo social e da prática social. Ao mesmo tempo, […] rechaça como extrema a ideia de que se pode analisar a ação em ausência de estruturas. Isto se explica porque a estrutura proporciona o meio a partir do qual a ação atua.

A partir disso, eu inicio o artigo apontando a importância de estruturas formais para normatizar o futebol da maneira que temos até hoje, com destaque para as escolas no momento da diferenciação entre as práticas, que definem valores liberais básicos, com a competitividade sendo limitada pelo conjunto de regras, o que diminuiria a violência, mas também geraria algum nível de igualdade na disputa.

Mascarenhas (2014, p. 68) indica que em diversas regiões do mundo a prática ruidosa de uma partida deixou de ser vista como distúrbio apenas “adicionando ao jogo um conjunto de sentidos e significados nobres, trabalho cultural realizado por bacharéis, educadores laicos e missionários”.

The English Game trata, de forma romantizada, de 1879 ao início da década seguinte, com a transição da exclusividade da prática do jogo pelas pessoas de elite para trabalhadores, contando já ali com times de operários das fábricas inglesas, com os primeiros jogadores sendo “contratados”, mas apenas para jogar nos clubes, que assim podiam concorrer com os aristocráticos. A cada nova FA Cup aproximam-se do título, o que gera revolta nos controladores e participantes do jogo, que buscam usar o seu poder como barreira de atuação de outros jogadores e clubes.

Ainda que apareça de forma clara nas discussões sobre os problemas referentes à participação de determinados clubes, esse modelo de decisão é o que será aplicado na formação das entidades em caráter internacional. Assim, “por mais que a habilidade e a técnica estejam com os jogadores, o ordenamento da lei e a organização institucional e corporativa convergem numa grande entidade paraestatal” (SANTOS, 2014, p. 564), que no caso do filme é a FA (Football Association).

Fonte: Cena da série The English Game

“Mas também precisam do futebol”

Mesmo com a possibilidade da participação de operários jogando ou, como ocorre com Fergie, enquanto trabalhadores, logo podendo negociar a sua força de trabalho para um patrão, este segue detendo a posse dos meios de produção necessários para que a prática profissional ocorra.

Na série, vemos greves e outras formas de manifestação da classe operária e também o papel do futebol como forma de diversão, mas cuja gestão estrutural era garantida financeiramente pelos patrões.. Mascarenhas (2014, p. 91) afirma sobre isso que os capitalistas estavam preocupados com o movimento sindical do período, assim, “o trabalhador vestindo a camisa da empresa para jogar futebol significaria, muito mais que fazer sua propaganda, assumi-la como ‘sua’ instituição, um grau inequívoco de pertencimento”. Isso faz com que não seja estranho que alguns clubes tenham surgido a partir da gerência industrial, que tornava ainda eficiente certa “‘pedagogia da fábrica’: trabalho em equipe, obediência às regras, especialização nas tarefas, submissão ao cronômetro etc.” (idem, p. 91).

A estrutura de classes se estabelece naquele momento, com a elite político-econômica de dada localidade deixando aos poucos a atuação nos gramados para passar ao comando gerencial do futebol, caminhando já ali para uma prática lucrativa. Enquanto isso, cabia às classes populares o acesso ao jogo enquanto trabalhador ou, quando consegue pagar a entrada, como assistente. Nesse processo é que aparece a construção dos espaços de hegemonia. Como afirma Bolaño (1999, p. 53), “há um processo de edificação de uma ordem esportiva que, partindo do mundo da vida, sobrepõe-se a ele e o coloniza”.

Importante ainda dialogar com Mascarenhas quando ele faz uma relação direta com a organização taylorista do trabalho, que também passa a ocorrer nas fábricas naquele momento histórico. O saudoso pesquisador brasileiro salienta a especialização individual que passa a ser necessária para quem atuará profissionalmente no esporte: “Um jogador de futebol assume determinadas funções relacionadas à sua posição no time e no campo de jogo, e deve nela se especializar, tal qual o operário numa linha de montagem” (MASCARENHAS, 2014, p. 91).

***

Dado o limite da proposta deste espaço, pararemos por aqui. Vejam que não só não me aprofundei nas claras questões sobre a mercantilização, mas também não avancei na espacialização do jogo e como determinados aspectos estruturais hão de se repetir em outros países, como o Brasil. Creio que as referências específicas sobre futebol aqui utilizadas podem jogar luz sobre outras questões, da mesma forma que a série vem instigando outras reflexões para os estudos sobre o futebol.

Referências

BOLAÑO, C. R. S. A capoeira e as artes marciais orientais. Candeeiro, Aracaju, v. 3, p. 51-56, out. 1999.

MASCARENHAS, G. Entradas e bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: Eduerj, 2014.

MOSCO, V. La Economía Política de la Comunicación. Barcelona: Bosch, 2009.

SANTOS, A. D. G. dos. Os três pontos de entrada da Economia Política no Futebol. Revista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 36, n. 2, p. 561-575, abr.-jun. 2014.

THE ENGLISH Game. Direção: Birgitte Stærmose e Tim Fywell. Produção: Jorge Ramos de Andrade. Londres: Netflix, 2020. Streaming (série com 6 episódios).

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