Paradoxo: o melhor futebol do mundo necessita formar seus atletas lá fora

A boa metodologia das ciências sociais indica olhar com atenção para os paradoxos ou contradições. Vejamos um que parece ser importante. No Globo Esporte de hoje (02-08-2011) aparece um vídeo no qual os experientes Cafu e Ronaldinho aconselham Ganso e Lucas a irem jogar na Europa. Os motivos: melhorar, adquirir experiência, enfim, se tornar melhores para depois voltar e tem melhor desempenho no Brasil. Cafu declara que a defesa brasileira melhorou em virtude de havermos tido e termos muitos atletas jogando lá fora. Os novos aceitam o conselho e declaram que irão quando seja conveniente, isto é, quando realizarem seu ciclo no Brasil.

A prática de se aperfeiçoar lá fora também vigora no campo científico e tem o nome de doutorado sandwich ou de pós-doutorado. No entanto, há uma restrição: o sandwich é realizado quando o centro receptor está bem mais adiantado que o nosso em alguma especialidade ou linha de pesquisa. Caso contrário, não terá financiamento dos organismos de ciência e técnica. Quando existe centro nacional em igualdade de desenvolvimento, recomenda-se que o doutorando passe nele um período. No caso da ciência, parte-se do princípio da desigualdade no desenvolvimento e do reconhecimento da falta de desenvolvimento que temos em muitas áreas. Portanto, podemos melhorar lá fora.

Agora, no caso do futebol afirma-se que temos o melhor futebol do mundo. Se isto é certo, quais as razões para se aperfeiçoar em times do exterior? O que nos faltaria em termos de desenvolvimento do futebol para que os atletas procurem fora sua suplência? Cafu apresenta como exemplo a melhora da defesa do Brasil pela experiência no exterior. Se este fosse nosso ponto fraco, então, em analogia com a ciência, apenas jogadores de defesa deveriam ir jogar no exterior! Sabemos que isto não é certo e, talvez, a realidade estatística poderia mostrar o contrário. Voltemos a indagar: para que jogarmos fora se temos o melhor futebol do mundo?

Existem outros argumentos. Em média lá fora se ganharia melhor e os jogadores teriam melhores qualidades de vida, neste caso, até na China, na Rússia, na Turquia e na Índia? Lá fora se obteria visibilidade, exposição midiática, valorização e reconhecimento. Com esse capital futebolístico, diria Bourdieu, poderiam ser negociadas melhores condições para voltar e até ser convocado para a Seleção Canarinho. Sonhar em jogar na seleção é o “sueño del pibe”, diriam os argentinos. O fato das seleções serem de modo crescente formadas por jogadores que atuam fora do país pareceria confirmar a validade da estratégia.

Quatro tópicos se destacam: 1) temos o melhor futebol do mundo, mas devemos melhorar, completar a formação lá fora; 2) temos o melhor futebol do mundo, porém para o atleta ser reconhecido deve se destacar lá fora; 3) pareceria que o objetivo da formação lá fora é voltar melhor do que se saiu e, portanto, ser contratado por aqui em melhores condições, valorização por acúmulo de capital futebolístico; 4) os europeus são pouco malandros, eles formam nossos melhores atletas para o Brasil ter o melhor futebol do mundo.

Em outros termos, temos muitos diamantes em estado bruto e os europeus são craques da lapidação e talvez lhes falte  matéria prima. Por isso, importam jogadores tanto do Brasil quanto de outros países de América Latina e África. Isto nos leva na direção de um processo global: os países não desenvolvidos frequentemente são produtores e exportadores de matérias primas que, processadas, voltam com um alto valor agregado. Ganso e Lucas seriam diamantes que merecem ser lapidados ou matérias primas a serem processadas?

Parece que passou o tempo de Di Stéfano que foi contratado para melhorar e aprimorar o futebol italiano. Chegou o tempo no qual eles nos melhoram!

Os jornalistas esportivos, ao invés de repetir que temos o melhor futebol do mundo, deveriam observar os processos de formação de nossos jogadores de elite e dos que integram a seleção. O paradoxo merece reflexão e pesquisa de todos. Como a Julie do filme Julie e Julia, espero que os leitores comentem e argumentem, se possível, com novas interpretações do paradoxo.

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Abaixo, assista a entrevista mencionada nesse post:

3 pensamentos sobre “Paradoxo: o melhor futebol do mundo necessita formar seus atletas lá fora

  1. É curioso como a imprensa estrangeira (principalmente a espanhola) tem se comportado no caso Neymar. São inúmeros exemplos de notícias e crônicas, principalmente no jornal Marca, mostrando a incompreensão dos espanhóis pelo fato de Neymar “ainda” não ter se transferido para o Real ou para o Barcelona.

    Eu não consigo compreender como alguém aceita se mudar para Ucrânia sem pensar nos pontos negativos. O dinheiro seduz, mas não pode ser suficiente. Sempre me pergunto se sonhar em ter uma NBA do futebol no Brasil é algo viável…

    Mas creio que a novidade nessa discussão está no fato dos jogadores começarem a ter voz. Antes, as transferências eram conduzidas apenas pelos empresários e sequer ouvíamos a opinião dos atletas. E quando ouvíamos, verificávamos algumas pérolas. Lembro do caso do atacante Wagner Love que, quando se transferiu para Rússia foi perguntado se estava preparado para o frio que ia ter que enfrentar. Ele respondeu: “Não tem problema, quem saiu do calor de Bangu e se acostumou com o frio de São Paulo, está pronto para qualquer coisa”. Será?

  2. O João Paulo realizou comentários valiosos. Eu mer pergunto: o atleta melhora em qualquer equipe de qualquer país? Parece bom, em termos de capital futebolístico, jogar no Barcelona. Nem tanto em qualquer equipe ou lugar.

  3. Pois é, concordo com vocês. Agora, eu tentei não entrar nos aspectos econômicos. De fato, se pode sair para ganhar mais, nada ilegítimo nisso. Meu ponto é se se deve sair para melhorar, para se aprimorar. Em caso positivo, sob quais dimensões (treino físico, técnico ou tático)? Os jogadores estão crescendo em autonomia e dominio de seu destino. Isto parece ser bom.

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