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A Liga do Dinheiro, o futebol em transformação e a importância da análise econômica para o campo de estudos

Uma das principais “firmas de consultoria” do mundo lançou no dia 18 de janeiro,  a 26ª edição do seu relatório anual[1] sobre a grana levantada pelos clubes de futebol mais ricos de todo o planeta – e, portanto, quase sempre apenas da Europa. O “Deloitte Football Money League” é um documento de grande potencial para… Continuar lendo A Liga do Dinheiro, o futebol em transformação e a importância da análise econômica para o campo de estudos

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É fracasso voltar jovem da Europa?  Nosso caminho é o sul

Por Jorge Santana.

Na temporada nacional do futebol brasileiro a bola ainda não rolou, mas já temos debates profundos e que movem paixões a partir do movimentado mercado da bola. O retorno do meia Gérson ao Flamengo e a chegada do uruguaio Luis Suaréz ao Grêmio, com milhares de torcedores na Arena Grêmio apontam que a temporada vindoura será  de emoção. Pelos menos é o que mostra até agora algumas contratações do mundo da bola. Veremos se os campeonatos nacionais serão disputados, quebrando a hegemonia protagonizada por Palmeiras e Flamengo nos últimos dois anos.

Em especial, o retorno de Gerson Santos da Silva, com então 25 anos para o Flamengo, após 1 ano e meio no Olympique de Marselha produziu uma série de análises e discussões  as quais  pretendo tratar aqui. Em geral, as opiniões dos comentaristas de futebol versaram que significava um “fracasso” a prematura volta do jovem volante para as canchas tupiniquins. O portal Placar estampou como manchete: “Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube”[1], evidenciando um suposto insucesso. Segundo este, a volta para cá era significado de que não deu certo na Europa ou não vingou no centro do futebol mundial. 

Aqui estou reduzindo um pouco as análises, pois alguns comentaristas defenderam também que o meia revelado pelo Fluminense Football Clube configura um excelente reforço para o rubro-negro carioca. Contudo, no que tange à sua carreira pessoal, o segundo retorno da Europa, em apenas 8 anos de carreira, seria um atestado de  fiasco. Futebol este que foi fundamental para o Flamengo conquistar a taça  Liberadores de 2019, os campeonatos brasileiros de 2019 e 2020 e os campeonatos cariocas  de 2020 e 2021, porém insuficiente no centro do futebol do mundo

Esses dois anos de  um futebol versátil, moderno e sólido levaram o meia a vestir a camisa da seleção brasileira e fizeram com que o técnico  Jorge Sampaoli pedisse a sua contratação para o time do Sul da França. Apesar de alguns apontarem como fracasso, o Coringa, como é chamado pela torcida do Flamengo, fez a sua melhor temporada na França, com 13 tentos marcados e 10 assistências. Após a saída do técnico argentino, o jogador acabou indo para o banco, após uma discussão com o novo professor. O que contribuiu para o seu retorno para o Ninho do Urubu. 

O que fomenta esse artigo é um complexo de vira-latas de nós, brasileiros.   Pois consideramos que o retorno de um jogador jovem da Europa é um atestado de fracasso, no velho continente. E fracassar lá  significa,  partir da premissa de que há uma linha evolutiva inconteste no futebol, em que todos os  bons jogadores têm as ligas europeias como destino final. E  para receber o  selo europeu só devem voltar para seus países natais a partir de  33 ou 34 anos, para encerrar de preferência no clube que os revelou na terra de Vera Cruz. Essa linha evolutiva estabelece que o jogador nasce na América do Sul, cresce e se desenvolve na Europa e volta aqui apenas para morrer. No caso morrer, como metáfora de aposentar como profissional do futebol.

Nessa linha evolutiva, o futebolista brasileiro só aprende ao chegar na Europa, a famosa “educação tática”, pois aqui praticamos um futebol da desordem, da informalidade e do jeitinho brasileiro indomável que urge ser catequizado. Parece-me um erro tal como o cometido por  historiadores e antropólogos no século passado. Quando estes concebiam que o português colonizava o índio, sem adquirir nenhum traço da cultura dos povos originários que viviam aqui. O conceito de aculturação estabelece que apenas o indígena adquiriu a cultura do conquistador Uma revisão  avançou para o conceito de transculturação, no encontro do europeu com os dois foram impactados. 

No poema do modernista  Oswald de Andrade, “ Erro de português” de 1925, o autor  argumenta que na chegada dos portugueses chovia, portanto, o europeu colocou a roupa no índio. Se fosse um dia de sol, o índio teria despido o português. Aqui completaria o poema de Andrade, adicionando que no dia seguinte fez um sol dos trópicos e o índio ensinou os lusitanos a tomar banho todo dia e a ficar nu. Portanto,  os jogadores brasileiros aprendem jogando na Europa, assim como o velho continente aprende com os brazucas. Não é uma via de mão única, ela é sempre relacional e influencia as duas culturas envolvidas em uma interação, não poderia ser diferente com o futebol.  Ronaldinho Gaúcho ensinou a eles como bater falta por baixo da barreira e eles ensinaram Vinicius Junior que atacante também tem de recompor a defesa.

Essa linha evolutiva estabelece a Europa como Norte, a evolução só pode ser atestada lá, pois aquele que não vai a Meca não pode ser consagrado, e quem volta cedo de Meca também, tal como o Coringa.  Na década de 1940, o artista uruguaio Joaquín Torres Garcia (1874-1949) produziu uma arte que hoje constitui símbolo de Nuestra América ou Abya Yala (nome da nação Kuna para nosso continente). A arte intitulada “ América Invertida”, de 1943,  é uma crítica de Garcia Torres à dependência artística dos latinos americanos da produção artística europeia. Na época, os artistas  do Sul tinham que ir para lá aprender, Tarsila do Amaral, Di Cavalcanti, Portinari e muitos outros fizeram essa  passagem pelo Norte. De maneira maestral, Garcia Torres desenhou um mapa da América do Sul de cabeça para baixo, dessa forma provocando e colocando o Sul no lugar do Norte. Apontando por meio da arte e do lúdico que nosso caminho é o Sul.

“América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.

A genialidade da arte  do uruguaio fez  com que a mesma torna-se um símbolo das lutas sul-americanas. Aproveitando essa arte me questiono por que precisamos do atestado europeu para ratificar o nosso talento no velho esporte bretão?  Quantas vezes, jornalistas não advogaram que Edmundo foi o melhor do mundo moralmente, em 1997. E só não foi eleito como tal pela FIFA por jogar no Brasil. Naquela temporada, o Animal marcou no brasileiro 29 vezes, em 42 partidas, sendo 42% dos gols do Vasco, que foi campeão do Brasileirão. 

 E Romário, que como melhor jogador do mundo, campeão do mundo, campeão espanhol retornou ao Brasil, em 1995. Ele retornou fracassado  ou sua escolha foi permeada por outros desejos que não só estar no centro do futebol.  Por último, exemplo, o lateral Hermano.  Juan Pablo Sorín. Quando uma jovem promessa do River Plate foi jogar na Velha Senhora (Juventus), após dois anos voltou para o time que o revelou com apenas 26 anos (apenas um ano mais velho que Gerson).  Pouco tempo depois, veio para o Cruzeiro e simplesmente jogou muita bola no time celeste mineiro, que conquistou a tríplice coroa em 2003. O retorno de Sorín foi  um insucesso?

 Não serei aqui idealista em defender que o futebol brasileiro ou sul-americano é melhor do que o europeu. Lá estão as melhores ligas, os melhores jogadores e os melhores salários. Essa é a realidade. Contudo, não se pode atestar que para ser um grande jogador é preciso estar na Europa e, muito menos, quem retorna na casa dos 20 anos é um fracassado. Há mais coisas entre essa simplória definição evolutiva do futebol do que a Europa como  uma única régua para atestar qualidade ou sucesso. O fato de Gérson retornar, sendo a contratação mais cara do nosso futebol, demonstra que não foi um insucesso. 

 Aqui busco dizer que está longe, mas que todos nós sonhamos e desejamos o caminho do Sul. Chamo de caminho do Sul o que vos falo é uma liga brasileira forte, moderna, organizada e sólida. Quando chegarmos nesse caminho do Sul, nossos clubes gozarão de viabilidade econômica para manter nossos jovens craques em terras tupiniquins. E será que quando chegarmos nesse Eldorado do futebol brasileiro e quiçá sul-americano continuaremos a dizer que se o jogador não for consagrado na Europa é um fracasso?  Essa resposta só o tempo irá dizer.  Pensar em um futebol brasileiro forte e competitivo financeiramente e desportivamente é ter um futebol que passaremos a ser o centro e que talvez essa discussão seja coisa do passado. Tomemos o caminho do Sul assim como  nos apontou há 80 anos, o saudoso Garcia Torres. 

Jorge Santana é professor de História, doutorando em Ciências Sociais (PPCIS/UERJ), autor do romance “Desculpa, meu ídolo Barbosa” e torcedor do Fluminense.

Referências

Redação. Após fracassos na Europa, Gerson retorna ao Fla como 2º mais caro do clube. Placar, Brasil 5 jan. de 2023.

Imagem é uma reprodução da obra “América Invertida” do artista Joaquín Torres García, retirada do site Socialista Morena.

Disponível em: < https://www.socialistamorena.com.br/nosso-norte-e-o-sul/>.  Acesso em 18 jan. de 2023.


[1] Disponível em: < https://placar.abril.com.br/placar/apos-fracasso-na-franca-gerson-retorna-ao-fla-como-2o-mais-caro-do-clube/> Acesso em 18 jan. de 2023.

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“Nível Europa”

Semana passada uma discussão tomou conta das redes sociais e dos debates nas mesas redondas esportivas. A declaração do atacante do Flamengo Gabriel Barbosa após o empate contra o Palmeiras, em jogo adiantado pela quarta rodada do Campeonato Brasileiro, falando que precisamos de uma arbitragem “nível Europa” provocou reflexões sobre a qualidade do jogo e de todos os atores envolvidos.

“ A gente fez um bom jogo, acho que fomos melhores em todos os momentos. Eles não nos assustaram em nenhum lance. Tivemos um gol impedido, perdemos outras chances, mas creio que fizemos um bom jogo. O juiz atrapalhou muito. A gente fala muito que quer um futebol nível europeu, mas o árbitro também precisa ser nível Europa. Escolheram uma pessoa que não deixava a bola rolar, toda hora parou o jogo”.

Foto: Delmiro Junior

Há aqueles que questionaram se também não precisamos de jogadores nível Europa. Outros concordaram com o atacante. Alguns ficaram em cima do muro e, no fim, sobrou até para imprensa com torcedores pedindo “jornalistas nível Europa”.  

Estendendo o debate poderíamos dizer que precisamos de gramados nível Europa, VAR nível Europa, treinadores nível Europa, torcedores nível Europa, e assim chegaríamos à conclusão de que é mais fácil ligar a televisão e assistir a uma partida europeia. 

Lá trás, Nelson Rodrigues já alertava para o nosso complexo de vira-latas. A frase já é batida, um clichezão e às vezes até um pouco cafona, já que é usada nos mais variados contextos. Esse poderia ser mais um, e, talvez para a sua decepção, ou costume, meio que é.  

Mais do que almejar esse padrão, porém, é preciso entender o que faz o “nível Europeu” ser “nível Europeu”. Logo o Brasil, pátria das chuteiras (ou agora ex?), tendo que buscar lá, o que nós ensinamos daqui, dentro das quatro linhas do gramado. Precisando olhar para fora, para enxergar problemas extra-campo que dizem respeito da nossa sociedade, muito mais do que sobre o nosso futebol. 

Nós queremos ser como eles?

Que fase! Como diria Milton Leite. Que fique claro, eu não acho que está tudo bem com o futebol brasileiro, nem que o nível da arbitragem seja excepcional. Estamos vivendo um futebol precário, em todos os sentidos. Banalização da violência, qualidade baixíssima da arbitragem, maus exemplos em campo, desrespeito a jornalistas, respostas evasivas de quem deveria dar uma satisfação ao torcedor.  

É necessário, com ou sem nível europeu, tratar o esporte de forma séria, em sua totalidade. Regulamentar a profissão de árbitro, oferecer punições justas em caso de infrações, coibir todos e quaisquer tipos de violência, inclusive aquelas que não contém agressão física, afinal, considerar apenas um tapa como violência abre perigosos precedentes.  

Para quem defende essa tese, um lembrete, transferir responsabilidades, ao invés de assumi-las não é “nível Europa”. 

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“Arnaut Report”: há 15 anos a União Europeia elaborou ideias para o futebol. Pouco mudou

O ano de 2021 marca os 15 anos do lançamento do chamado “Arnaut Report”, um documento de grande importância histórica para o futebol global, a despeito dos seus poucos efeitos práticos.

Trata-se do “Independent European Sport Review 2006”, extenso documento encomendado pela União Europeia – mais precisamente pelos ministros dos esportes da França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido – para traçar propostas concretas para o futuro do futebol no continente, frente aos problemas visíveis já naquele contexto.

O documento leva tal alcunha porque foi coordenado e apresentado por José Luís Arnaut, político português que se destacou na realização da Euro 2004, quando era Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro no seu país de origem.

O objetivo geral do relatório era criar as bases para uma regulação conjunta do futebol europeu, visando a atacar os efeitos colaterais da “rápida e irreversível tendência de mercantilização do esporte”, nas próprias palavras do autor. Pontos que iam desde a entrada de investidores suspeitos nos clubes; à manipulação de partidas pela indústria das apostas; ao tráfico de jovens jogadores; até a regulação da atividade dos agentes de jogadores e o equilíbrio financeiro da atividade.

Entretanto, o ponto principal do relatório, exatamente pelo impacto direto que tem nas questões anteriormente listadas, se referia à propriedade dos clubes europeus. O “Relatório Arnaut” fazia apontamentos claros e objetivos à necessidade de criação de mecanismos de controle de gastos nos clubes e, por outro lado, mecanismos de participação dos torcedores no controle dos seus clubes.

Pelo sim ou pelo não, a existência de um esforço institucional por parte da União Europeia influenciou inúmeros debates e foi capaz de impulsionar alterações no estado das coisas da indústria global do futebol. Alguns desses tópicos ainda possuem força, outros se tornaram regulações reais e outros, no mínimo, ensejam debates frequentes sobre o futuro do jogo. Vale observar os princípios daquele documento, e pensa-los em perspectiva histórica.

Controle financeiro

Uma das grandes preocupações sobre o futebol do então novo milênio era como a ultra-mercantilização do jogo e o rápido processo de globalização da transmissão dos jogos de futebol dos clubes europeus alteraram consideravelmente as correlação de forças dessa indústria. Na altura de 2006, o chamado “G-14”, grupo que reunia os cubes europeus mais ricos do momento, já gozava de prestígio e poder, afetando as estruturas tradicionais de controle e regulação do futebol, como a UEFA.

Essa organização daria origem, ainda em 2008, à chamada European Club Association (ECA), a mesma que atualmente mobiliza os principais clubes do continente pela criação da European Super League – uma liga independente do controle da UEFA.

Parte do impulso encontrado pelos atores políticos envolvidos na elaboração da Independent European Sport Review consistia nessa realidade. O futebol estava ganhando nova configuração e as antigas estruturas reguladoras estavam ameaçadas.

O Arnaut Report apontava como a necessidade de criação de regras mais rígidas para o controle dos gastos dos clubes era indispensável para a própria atratividade de investidores: com o descontrole e consequente inflação salarial que o futebol já apresentava à época, aponta Arnaut, a instabilidade financeira era uma regra.

Não era à toa que tantos clubes estavam indo à falência ou abrindo processos formais de recuperação judicial; nem era coincidência que tantos investidores bilionários passaram a comprar clubes nesse período.

Diferente do que se projetou ao longo das décadas de 1980 e 1990 – quando diversos países adotaram legislações que obrigavam clubes a se transformarem em empresas (Itália, França, Espanha, Portugal, etc…) -, o fato era que a atividade financeira de um clube de futebol já era percebida como invariavelmente deficitária.

A nova leva de proprietários de clubes dos anos 2000 deixava nítida a relação de mera utilidade publicitária dos clubes. Com altos riscos, pouco ou nenhum retorno financeiro e diversas barreiras naturais de entrada para investidores (gastos anuais na ordem dos 300 milhões de euros); clubes de futebol tornaram-se ferramentas poderosas para grupos financeiros e políticos. Situação já destrinchada no artigo “Os donos no futebol”. 

O relatório sugeriu métodos de avaliação mais rígida quanto à origem da riqueza dos proprietários dos clubes. Medidas nesse sentido foram adotadas nos diversos países em questão, sem grande resultado, entretanto. O problema não era apenas o dinheiro ilícito que entrava no futebol, mas principalmente os objetivos desses compradores endinheirados.

Outra medida amplamente adotada foi a que sugeria o impedimento de que um mesmo grupo financeiro fosse proprietário de mais de um clube em uma mesma competição, sob o argumento de que isso feria a integridade esportiva de uma competição. O conceito ganha força nos anos seguintes, mas cai no primeiro grande teste: a UEFA autorizou os dois clubes da Red Bull – o Leipzig e o Salzburg – a comporem o mesmo grupo da Champions League de 2017/2018.

Já o Fair Play Financeiro, política adotada pela UEFA a partir de 2010 – com longo processo de adaptação e diversas regras graduais – possui grande influência do “Arnaut Report”. A política utilizada pela UEFA para autorizar a entrada de clubes em suas competições prevê punições aos clubes que gastem mais do que arrecadam em circunstâncias normais.

Indubitavelmente o ponto mais relevante e efetivo do relatório, a política de fair play financeiro de fato conseguiu conter a gastança desenfreada dos proprietários, ainda que não tenha passado alheia aos movimentos políticos de bastidores: Paris Saint-Germain, propriedade do Fundo Soberano do Catar, e o Manchester City, pertencente ao Fundo Soberano de Abu Dhabi, foram dois casos de clubes que descumpriram regras e não foram devidamente punidos. 

Esse mecanismo é muito contestado pelo efeito colateral de “engessamento” do futebol. Uma vez que clubes de menor porte tendem a arrecadar menos do que os mais ricos ou mais populares (aqueles capazes de se capitalizar sobre públicos de todo o mundo), reduziram-se drasticamente as chances de que algum novo clube consiga atingir postos de destaque ou disputar títulos.

Por fim, o relatório sugeria a concepção de um sistema regulatório comum a todos os países, de uma forma capaz de dirimir as discrepâncias financeiras externas (entre as ligas) e internas (entre os clubes). Essa proposta vem na esteira da sugestão de um sistema bem definido de “salary cap”, também conhecido como “teto salarial”, muito comum nas ligas esportivas norte-americanas. É curioso notar como, apesar de movimentar recursos de ordem semelhante ao futebol, as ligas esportivas norte-americanas pagam valores muito menores às suas principais estrelas.

Como se sabe, essa foi outra medida que não se aplicou, mas persiste como uma ideia possível de contenção da inflação salarial cíclica do futebol, e consequente restabelecimento da sustentabilidade financeira dessa indústria (em tese…).

Participação dos torcedores

No outro extremo das discussões viabilizadas ou ensejadas pelo Relatório Arnaut, está o debate que segue crescente no futebol europeu: a importância e as vantagens decorrentes do maior grau de participação dos torcedores nos processos decisórios dos seus clubes.

A própria iniciativa da Independent European Sport Review tem suas raízes em um programa real, e até então muito bem avaliado, no futebol inglês: a Supporters Direct.

A Supporters Direct [Diretório dos Torcedores] foi uma organização impulsionada pelo governo do trabalhista Tony Blair, que visava estimular, impulsionar e dar suporte à existência de “supporters trusts”. As “trusts” consistiam em iniciativas onde um grande número de torcedores se juntava para levantar fundos e comprar participações acionárias nos seus clubes de coração.

O princípio básico era garantir o direito de participação de grupos de torcedores nessas sociedades empresariais, de modo a inserí-los nas decisões mais importantes defendendo o interesse coletivos dos torcedores em geral, contribuírem com a instituição e, de forma mais precisa, possuírem direitos constituídos e não apenas “simbólicos” de propriedade sobre seus clubes.

O movimento começou originalmente no Northampton Town, clube que atravessava grande crise em 1992. Apesar de já serem corriqueiros os casos de mobilização de torcedores do futebol inglês pelo socorro financeiro aos clubes de suas comunidades, os torcedores do Northampton entenderam que era preciso criar uma estrutura que lhes conferisse maiores garantias de participação. Com foi bem sucedida – com a conquista de cadeiras no conselho de administração do clube –, essa experiência pioneira acabou estimulando torcedores de toda Inglaterra.

Em 1998 o movimento chegou a um dos maiores clubes do país, o Manchester United, que vivia sob a ameaça de compra do magnata australiano das comunicações Rupert Murdoch. Cerca de 200 mil torcedores dos Reds se uniram, garantiram a aquisição de partes relevantes das ações do clube e mantiveram o seu controle na cidade (até 2005, quando a família Glazer adquire o clube após violenta estratégia de aquisição do controle acionário).

O futebol inglês já era alvo de grandes interesses mercadológicos dessa ordem, uma vez que os direitos de transmissão de competições esportivas ganhava grande valor, na carona dos avanços tecnológicos das transmissões e das TVs a cabo. A globalização do futebol passou a colocar os clubes no radar de grandes grupos financeiros e políticos, o que acontece de forma mais agressiva a partir dos anos 2000.

Poucos anos após a criação da Supportes Direct enquanto política de estado, o futebol inglês já contava com mais de 110 supporters trusts, ainda que isso não se apresentasse como um avanço concreto do controle acionário dos clubes pelas mãos dos seus torcedores. Acontece que há mais de um século os clubes ingleses já eram controlados por números reduzidos de acionistas minoritários e a ideia de participação concreta na gestão desses era praticamente impensável até os anos 1990.

Esse nunca foi exatamente o caso dos clubes dos países vizinhos, dos quais a Espanha talvez seja o caso mais ilustrativo. Como em 1992 a Ley de Deportes obrigou todos os clubes espanhóis a deixarem de ser associações civis sem fins lucrativos (como são os clubes brasileiros), só então os clubes se transformaram em sociedades anônimas desportivas.

Aqueles então sócios com direitos políticos de voto até tiveram a prioridade na compra de ações, mas como parece óbvio apontar, a concentração de poder acabou ficando na mão de poucas das mais abastadas famílias vinculadas a essas agremiações. Para o caso espanhol, uma “supporter trust” não consistia no mesmo movimento que representou para o futebol inglês, ainda formas organizativas semelhantes sejam vistas em muitos clubes atuais.

De todo modo, a criação de uma “Supporters Direct Europe” teve seu valor. A ideia gestada no Relatório Arnaut logo foi recebida pela UEFA como uma política da gestão de Michel Platini, a partir de 2009, igualmente apoiadas pelos governos locais. Uma ampla rede de organizações torcedoras agora se articulava com um financiamento constante, visibilidade midiática e intercâmbio de modelos de organização e publicidade.

A “SD Europe” ensejou bons estudos e criação de casos onde torcedores retomaram poder de participação em seus clubes, ou ao menos acionou uma espécie de ativismo torcedor que parecia adormecido em um momento de alto nível de clientelização da relação entre torcedores e clubes, própria desse processo de mercantilização do futebol.

Se a ideia geral era buscar reverter o distanciamento cada vez maior entre os proprietários dos clubes e as comunidades que lhes compunham, é possível dizer que essa iniciativa teve algum valor. Apesar disso, consistia a imensa dificuldade de disputar em termos financeiros com proprietários que se deslocavam de todas as partes do mundo, carregando fortunas impensáveis mesmo para um número de dezenas de milhares de torcedores organizados e coesos.

Outra política elaborada pela Supporters Direct foi a criação dos “Supporter liaison office” (SLO), uma espécie de “oficial de relação com torcedores”. Quando a UEFA adota essa política como um dos seus critérios de licenciamento de clubes – espécie de certificado de qualidade obrigatório para a participação em competições continentais -, a criação desse cargo se tornou comum nos clubes. A proposta consistia em disponibilizar um profissional remunerado e legitimado a fazer o diálogo entre torcedores e o comando dos clubes.

O SLO deveria acolher as demandas dos torcedores e elaborar políticas para resolvê-las. Isso teve importante impacto na luta de muitos torcedores contra o aumento abrupto do preço dos ingressos, os direitos dos torcedores visitantes, e inclusive o retorno ou preservação das culturas festivas a alguns estádios europeus.

Da ideia para a prática

A relevância do Relatório Arnaut é indiscutível apesar de suas propostas resultarem em mudanças pouco consideráveis, principalmente em contraste com o crescimento abrupto dos valores que envolvem a indústria do futebol nos tempos atuais. Por se tratar de um objeto tão poderoso de manipulação política, há uma grande dificuldade natural de aplicação de políticas reguladoras sobre clubes de futebol, com os proprietários dos clubes hoje se colocando em uma escala de poder muito superior ao que jamais foi visto.

Tratam-se de grandes conglomerados financeiros, líderes de partidos políticos populares, monarcas teocráticos, interesses geopolíticos de grande proporção, e muitas outras forças conflitantes. A desregulamentação da indústria do futebol tende a favorecer esses grupos, mas principalmente atletas e seus agentes, que enriquecem como nunca, enquanto clubes fora do epicentro financeiro dessa indústria global do futebol tendem a sofrer com os efeitos inflacionários desse grande parque de diversões do poder global.

Por outro lado, sem a mobilização orgânica e constante dos torcedores, dificilmente essas políticas conseguem se sustentar. Uma vez que o público consumidor desses grandes clubes já está há muito tempo consolidado para além das fronteiras do país de origem – ou mesmo para além dos oceanos que separam os continentes – a organização que representa dezenas de milhares de torcedores locais mobilizados é cada vez menos impactante na realidade dessas empresas.

No mesmo sentido, o próprio processo de clientelização dos torcedores já perdura triunfal há muito tempo. O esvaziamento do sentido de pertencimento e identidade é uma política promovida pelo futebol há muitas gerações, ainda que volta e meia sejamos surpreendidos com indícios contrários.

Fonte: Getty Images
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