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É possível ser um torcedor sem se importar com o rival?

Em nossa cultura machista e extremamente desigual na distribuição dos trabalhos domésticos e dos cuidados com os filhos e filhas, o professor do Departamento de História aqui da nossa Universidade Federal do Rio Grande do Sul, o colorado César Augusto Barcellos Guazzelli ilustra, talvez mais constatando do que corroborando essa cultura, que a única obrigação de um pai é definir o time de futebol para o qual sua filha ou, especialmente (permanecendo nessa lógica machista), seu filho torcerá. Se por um lado me esforço bastante para diminuir a desigualdade de trabalho doméstico e de cuidados com o Martin (diminuir porque reconheço que igualar ainda seria uma utopia), assumi para mim a responsabilidade da vinculação clubística do Martin. Com pouco mais de 6 meses de vida ele já era sócio do Grêmio.

Pensar o futebol aqui no Rio Grande do Sul é pensar Gre-Nal. As identidades de suas torcidas são produzidas com a alteridade colocada nos torcedores do outro clube. É bastante comum entender que “gremistas e colorados são contrários, contraditórios e complementares” (DAMO, 2002, p. 85). Parece difícil fazer-se gremista sem pensar nos dois clubes. Aparentemente para um gremista, tal qual para um colorado, Grêmio e Internacional teriam quase a mesma importância. Mesmo que apenas um dos clubes participe de determinada competição, ambos são chamados a se interessar pelos confrontos1. Essa rivalidade, muitas vezes naturalizada, é constantemente alimentada pelos diferentes atores que compõem o futebol de espetáculo.

Ser torcedor de uma equipe específica significa, no contexto futebolístico em que fomos alfabetizados para o torcer, não torcer pelas outras (inclusive pega mal ser um torcedor misto, apesar de que os torcedores mistos existem…): “Dizer-se gremista é (…) dizer-se anticolorado e não-flamenguista, palmeirense, santista e assim por diante” (Damo, 2002, p. 54). Nessa relação o rival, acaba sendo a principal alteridade construída. Em seu trabalho sobra a identidade dos torcedores do Grêmio, Arlei Damo reforça o entendimento normativo: “A paixão pelo Grêmio implica também na aversão ao Internacional” (2002, p. 54).

Aqui em nosso estado os efeitos da rivalidade são tão fortes que atravessa até mesmo nossas torcidas antifascistas. Em 2019 promovemos um evento acadêmico no museu da UFRGS, em julho. Após confirmar sua participação, a antifa do Internacional não apareceu. Nos relatos recebidos eles reclamaram de uma desigualdade em evento anterior que tinha mais representantes gremistas do que colorados. Em novembro, um grande evento coordenado pelo Movimento Clube do Povo reuniu torcidas antifascistas de todo o Brasil. No ônibus que veio do Rio de Janeiro e de São Paulo, torcedores rivais dividiram o espaço sem nenhuma dificuldade. O único gremista que participou daquele evento fui eu a convite do meu amigo Marcelo Carvalho para representar o Observatório da Discriminação Racial porque ele tinha um compromisso fora do Rio Grande do Sul na mesma data. Nos movimentos de rua contra os ajustes neoliberais do governo Temer, cada antifa saía para o lado oposto. Eles chegaram a dividir uma coluna no Repórter Popular2 que acabou suspensa por limites identitários. Mesmo dentre os “progressistas” aparentemente alguns acreditam que um clube/time de futebol possua qualidades intrínsecas que faz com que seus torcedores sejam melhores que os torcedores do rival. Aparentemente as antifas da dupla Gre-Nal são contra todos os preconceitos, menos o clubístico…

O confronto entre Grêmio e Internacional é um duelo entre o que se aprendeu a chamar no Brasil de “grandes clubes”. Esses grandes clubes são os das capitais que concentraram as principais conquistas no país nos primeiros torneios nacionais. Se na Argentina somente cinco são os grandes clubes, inclusive excluindo o tetracampeão da Libertadores, Estudiantes, no Brasil em que Sul e Sudeste ainda dominam as representações (felizmente um pouco menos que em outros períodos) somos doze. Ou éramos ou não seremos mais dadas as diferenças econômicas maiores que outrora. Mas hoje, nenhum gremista ou colorado permite entender-se como não pertencente da elite do futebol nacional. Independentemente dessa grandiosidade nacional, no Rio Grande do Sul, Gre-Nal é uma forma de pensar.

Ter uma grande torcida, grandes títulos, ter aceitado atletas negros antes do outro hierarquiza os clubes entre si e produz representações sobre seus torcedores.

Completamente alheios ao que nos mostra a história, torcedores de Internacional e Grêmio procuram demonstrar até mesmo qual dos dois clubes é popular desde sua origem quando a resposta exata seria nenhum. Sobre isso, lembro nosso saudoso botafoguense Gilmar Mascarenhas:

O Internacional de Porto Alegre surgiu em 1909, como iniciativa de indivíduos de classe média para desafiar o Grêmio, então principal força do nascente futebol gaúcho e representante das elites alemães que então controlavam importantes setores da economia. (…) . Na década de 1930, esse clube investiu no processo de popularização de sua imagem, com êxito peculiar.

Mascarenhas, 2014, p. 128

O Internacional foi o primeiro clube da dupla Gre-Nal a admitir atletas negros. Essa aceitação permitiu a consolidação da imagem do Internacional como “clube do povo”. Nos últimos anos o Grêmio procurou abraçar a alcunha de “clube de todos” exaltando, inclusive, o protagonismo da Coligay3, torcida homossexual que frequentou o antigo estádio Olímpico entre o final da década de 1970 e início da década de 1980. Apesar desse esforço, ainda persistem diferentes representações que vinculam o Internacional como uma torcida popular e negra, enquanto a torcida do Grêmio ainda é representada como elitista e racista. Novamente recorro ao Gilmar Mascarenhas que me parece bastante lúcido ao mostrar os movimentos dessas representações:

Retomando as estratégias e os contornos simbólicos da rivalidade Gre-Nal, mantendo-se fiel a seus estatutos, o Grêmio persiste em recusar a inclusão de atletas negros até 1952, quando já não mais suporta o acúmulo de vitórias do inimigo direto. Nesse ínterim, o Internacional redimensionara no plano simbólico o confronto com seu rival, que passa a ser visto como um clube branco de elite e sobretudo racista, encastelado na área nobre da cidade, contra o adversário popular e negro, o carnavalesco “clube das massas” democraticamente instalado no subúrbio Menino Deus. Essa redefinição do confronto chega, nesse momento, a esboçar contornos de luta de classes. Com a reestruturação do Grêmio, entretanto, essa conotação classista vai gradativamente se esvaindo. Na atualidade, ambos os clubes possuem, igualmente, adeptos nas camadas sociais desfavorecidas.

Mascarenhas, 2014, p. 131-132.

Para além das representações e das disputas por seus significados, o Gre-Nal é, indubitavelmente, o jogo mais representativo na relação entre gremistas e colorados. “Clássico” é o nome dado para este tipo confronto, o embate direto entre clubes tradicionais ou rivais. Os clássicos garantem um grande envolvimento de suas torcidas, mesmo que, eventualmente, não apresentem boa qualidade técnica. Na realidade, esse elemento é totalmente dispensável e não são incomuns os clássicos de sangrar os olhos, sem nenhum gol e com uma briga generalizada entre os jogadores que parecem ter aprendido que jogar na dupla como se tivesse se feito torcedores desde suas infâncias.

Em Porto Alegre, ao pensar em gostar de futebol, uma criança precisa fazer sua “escolha” pretensamente definitiva. É preciso definir-se gremista ou colorada. Uma das estratégias para a associação a um dos clubes da cidade se dá nos enfeites dos berçários. Sabemos que esses enfeites ajudam a marcar a construção social do gênero pelas cores associadas a meninas (rosa) e meninos (azul). Em Porto Alegre, os enfeites dos meninos e meninas também podem ser diferenciados entre si. Aqui, além de azuis, os enfeites dos meninos podem ser vermelhos. Um enfeite azul do Grêmio para uma menina não chega a colocar as normas de gênero em tensão. Os símbolos de Grêmio e Internacional estão presentes nas maternidades e nos berçários para “confirmarem” a herança “genética” do clube. 

Todas essas linhas foram para dizer que como pai que precisa (e quer) garantir o “clube do coração” do filho, gostaria que fosse possível fazer um gremista de outro modo. Quero o Martin um gremista melhor do que eu. Quero que ele torça para o Grêmio, mas gostaria que ele se importasse muito menos com o Internacional do que eu. Será isso possível? Mais que adversário, o Internacional não poderia ser um parceiro para fazer os jogos acontecerem? Não sou tão revolucionário de imaginar que ele torceria por vitórias do Internacional, mas será que ele precisa torcer tanto pelas derrotas coloradas como eu? Assim como eu ele terá grandes amigos colorados. Por que é necessário despender tanta energia torcendo contra o fracasso do clube rival e, em alguma medida, dos meus amigos?

Falando nos meus amigos, o panamenho radicado em Porto Alegre desde a adolescência, Rodrigo Pareja tem um pouco mais de dificuldade de entender a necessidade dessa aversão. Tendo chegado na cidade depois da infância sua equivocada escolha pelo Internacional (me desculpem, eu não resisto) não contou com a mesma aversão pelo rival que a minha escolha pelo Grêmio. Ao comentar com ele sobre as possibilidades de o Martin ser um gremista que não seja anticolorado ele demonstrou bastante otimismo, bem maior que de dois outros grandes amigos, Cassio e Zé Paulo que acham que não é possível que isso aconteça e em nossa conversa aparentaram, inclusive, não entender o propósito disso. O Martin que, com dois anos e três meses, já me ensinou tanto poderá me ajudar a ver a viabilidade dessa hipótese de fazer um torcedor que não se importa com o rival.


1 Enquanto escrevo essas linhas estou com muito medo que o Internacional conquiste sua terceira Copa Libertadores da América. Espero que quando o texto seja publicado o Fluminense já tenha resolvido o “meu” problema ou serei mais um torcedor apaixonado do Palmeiras ou do Boca Juniors.

2 Agradeço a minha colega Soraya Bertoncello por me lembrar do nome do jornal.

3 Sobre a Coligay, ver Anjos, Luiza Aguiar dos. Plumas, arquibancadas e paetês: Uma história da Coligay. Santos: Dolores Editora, 2022.


Referências

Damo, Arlei Sander. Futebol e identidade social: uma leitura antropológica das rivalidades entre torcedores e clubes. Porto Alegre: Editora da Universidade (UFRGS), 2002.

Mascarenhas, Gilmar. Entradas e Bandeiras: a conquista do Brasil pelo futebol. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2014.

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Como é que faz pra sair da ilha? Hierarquias urbanas e disputa de classes no duelo catarinense Avaí x Figueirense

A ponte é muito, muito iluminada
O pôr-do-sol numa visão privilegiada
O povo quer passar, vê nela algo místico
A ponte virou ponto turístico.
Esse lugar é uma maravilha
No horizonte, no horizonte
Mas como é que faz pra sair da ilha?
Pela ponte, pela ponte.

Apesar de não fazerem referência à capital catarinense, os versos da música “A Ponte”1, composta por Lenine e Lula Queiroga e parafraseada em versão posterior pelo rapper GOG2 – desta vez fazendo alusão à superfaturada Ponte JK em Brasília – me remetem a um imaginário que persiste no cotidiano de Florianópolis desde 1926, quando foi inaugurado o cartão postal mais famoso da cidade: a Ponte Hercílio Luz, maior ponte pênsil do Brasil e primeira ligação terrestre entre a ilha de Santa Catarina e o continente. Com 821 metros de comprimento, duas torres que medem 75 metros a partir do nível do mar e estrutura de aço que pesa aproximadamente 5 mil toneladas, a Hercílio Luz foi projetada por engenheiros norte-americanos – e executada por mão de obra operária catarinense – durante o mandato do governador que lhe deu nome em homenagem póstuma. Fechada por motivo de segurança em 1982, a ponte foi reaberta somente em 2019, a princípio para pedestres e ciclistas.

Ponte Hercílio Luz na década de 1960. Foto: Reprodução/Portal Floripa
Centro

Nesse entremeio em que deixou de ser utilitária para se tornar o principal ponto turístico do estado, foram inauguradas as pontes Colombo Salles, em 1975, e Pedro Ivo Campos, em 1991, ambas interligando a ilha ao continente, como o fazem até hoje. Já a Hercílio Luz – que em 2021 voltou a ser liberada para o tráfego de veículos – foi oficialmente tombada como patrimônio histórico, artístico e arquitetônico de Florianópolis em 1997, coincidentemente o ano de lançamento da canção metafórica do recifense Lenine. Muito antes, em 1938, o violonista e compositor catarinense Luiz Henrique Rosa3 homenageara o patrimônio da capital na canção “Ponte Hercílio Luz”, posteriormente interpretada pelo sambista carioca Martinho da Vila. É também de autoria de Luiz Henrique (em parceria com Fernando Bastos) o hino do Avaí Futebol Clube, fundado na ilha em 1923, cerca de um ano depois de iniciadas as obras da ponte.

Naquela ocasião, o comerciante Amadeu Horn presenteara um grupo de jovens futebolistas da Pedra Grande (atual Bairro da Agronômica) com camisas listradas em azul e branco, dando origem ao então Avahy Football Club, em referência à batalha homônima de 1868 durante a Guerra do Paraguai. Dois anos antes da fundação do Avaí, surgia o Figueirense Futebol Clube. Embora tenha transferido sua sede para o lado de lá da ponte em 1945, o Figueirense também se originou na porção insular de Florianópolis, no popular bairro da Figueira, localizado à beira-mar, na porção oeste da ilha. Era ali que se estabelecia a população carente da cidade, grupos de pequenos comerciantes locais, marinheiros, estivadores e outros trabalhadores do mar, conforme narrado pelos pesquisadores Paulino de Jesus Cardoso e Karla Leandro Rascke (2014) em obra sobre as origens dos clubes catarinenses.

Assim como a maioria das agremiações futebolísticas no Brasil, Avaí e Figueirense também rivalizam para além dos limites do gramado. Esse embate geográfico entre o time da ilha e o time do continente alimenta o imaginário do torcedor catarinense desde que o clube do bairro da Figueira transferiu sua sede para o Estreito – bairro da porção continental da cidade – na década de 1940. Esse imaginário carrega ainda uma disputa social bem demarcada, na qual o Avaí é comumente associado ao estereótipo de time de elite e o Figueirense ao estereótipo de clube do povo. A memória histórica e geográfica de Florianópolis eleva o embate clubístico entre os dois principais clubes de futebol da cidade a esse patamar de disputa de classes – o que, não raro, é fomentado pelos torcedores e pela própria mídia esportiva.

No entanto, tais construções muitas vezes permeiam a ótica das tradições inventadas (HOBSBAWN; RANGER, 2008), ou seja, que se perpetuam desde a fundação dos clubes, mas que não necessariamente condizem com o contexto atual das agremiações. Em debate sobre a rivalidade entre os clubes catarinenses, veiculado em 2020 no Portal Ludopédio4, o historiador Felipe Matos (2020) pondera que a construção desses estereótipos – e sua propagação pelo jornalismo esportivo – é problemática porque deturpa a história dos clubes e perpetua trajetórias que não mais correspondem às agremiações.

Eu não tenho dúvidas de que a origem do Figueirense é muito mais popular do que a origem do Avaí. O Avaí surgiu em 1923 como um grupo de jovens filhos da classe média, estudantes do Colégio Catarinense, que é o colégio das elites da cidade. […] Mas a questão é: até quando o Figueirense foi popular? E por que o Avaí é considerado um time de elite mesmo quando o pessoal do Morro do Céu fazia história jogando pelo clube? […] Fala-se muito da oligarquia Ramos no Avaí, mas se o Avaí tinha os Ramos do PSD, o Figueirense tinha a UDN. Tinha Thomas Chaves de Cabral, tinha o Charles Edgard Moritz, tinha a família Ferrari, a família Galotti. São família populares? O Avaí tinha a família Amin, o Figueirense tinha a família Bornhausen. […] Até hoje, há muitas famílias tradicionais de Florianópolis que compram esse discurso estereotipado. Mas, ao longo de sua história, o Avaí não pode ser considerado um time de elite – pelo menos não o Avaí de muita gente da Costeira, do mangue, do Morro da Caixa, do Morro do Céu. (MATOS, 2020, s/p.).

Desde sua fundação em 1923, o Avaí contemplava em seus domínios essas oligarquias tradicionais de Florianópolis que ocupavam espaços de poder no clube, como as famílias Ramos e Amin. A memória do Figueirense, por sua vez, remete ao já extinto bairro da Figueira, situado nas proximidades do porto. Segundo Cardoso e Rascke (2016), esse pequeno território, considerado pelas elites locais como um antro de prostituição, reunia centenas de marinheiros, praças da Marinha de Guerra, estivadores e tantos outros populares que representavam um cenário afrontoso às elites dirigentes da época. Vale lembrar ainda que, até sua modernização na década de 1940, o bairro da Figueira constituía um dos locais com a maior presença de pessoas de origem africana em Florianópolis. Foi também na década de 1940 que o Figueirense transferiu sua sede para o bairro do Estreito, onde em 1960 inaugurou o Estádio Orlando Scarpelli, passando a mandar seus jogos definitivamente na porção continental de Florianópolis, que agora representava a “casa” do clube.

O bairro da Figueira, local de marcante presença africana e de seus descendentes extinguiu-se como território negro nos anos de 1940, quando a cidade estava transformada, conformando uma capital que deveria seguir os rumos do progresso, segundo aspirações das elites políticas dirigentes. A região central passara a ser espaço da administração pública, dos comércios estabelecidos, da prestação de serviços (CARDOSO; RASCKE, 2014). As classes populares tiveram que construir suas vidas nas regiões periféricas da cidade, nos contornos dos morros ou em áreas mais afastadas do perímetro central e suas bordas. (CARDOSO & RASCKE, 2016, p. 103).

Essa transformação se deu no contexto em que as elites portuguesas – colonizadoras do território que hoje corresponde à capital catarinense – foram suplantadas por elites germânicas nas primeiras décadas do século XX, forjando um modelo de urbe que atendesse aos anseios da República. Como resultado desse modelo, os populares de origem africana, bem como os demais pobres e desvalidos, foram empurrados para os morros adjacentes ao centro urbano, em um processo que se intensificou ainda mais com a inauguração da Ponte Hercílio Luz em 1926. Nesse aspecto, a estrutura planejada para ligar a porção insular à porção continental de Florianópolis também delimitava a segregação espacial. Não à toa, com a transferência do Figueirense para o Estreito a trajetória do clube ganhou novos contornos de popularidade, agora por integrar a porção continental da cidade, não mais dividindo território com a elite beira-mar da ilha.

Estádio Orlando Scarpelli inaugurado em 1960 no bairro do Estreito, em
terreno cedido pelo empresário e esportista que lhe deu nome. Foto: Memorial
Figueirense Futebol Clube

É importante situar a inauguração dos estádios de Avaí e Figueirense nesse contexto de disputa de classes e de territórios justamente porque a configuração geográfica de Florianópolis contribui para evidenciar tais marcações sociais. A origem dos dois principais clubes de futebol do estado, suas relações com as hierarquias urbanas da capital e o pertencimento clubístico de Avaí e Figueirense materializado na construção de seus respectivos estádios – Ressacada e Orlando Scarpelli – ajudam a compreender a consolidação dos estereótipos de time do povo e time de elite que se perpetuam até os dias de hoje, seja pelas narrativas do jornalismo esportivo, seja pela cultura torcedora em si.

Na década de 1970, o Avaí toma posse do estádio Adolfo Konder, de estrutura bastante acanhada, porém situado numa área muito valorizada da cidade: a Avenida Beira-Mar Norte. Nessa mesma época, o clube fez uma permuta com a construtora que ergueria o Beiramar Shopping no local. O Avaí então entrega a área do Adolfo Konder à essa construtora e inicia as obras do Estádio da Ressacada na Aderbal Ramos da Silva, inaugurado em 1983 sobre uma área de mangue no bairro Carianos. No citado debate do Portal Ludopédio, os pesquisadores Alexandre Vaz, Danielle Torri e Felipe Matos contextualizam esse cenário, apontando para as contradições evidentes entre a inauguração da Ressacada e o distanciamento de um clube que dialoga pouco com a comunidade do entorno que hoje lhe serve de casa.

O estádio do Avaí sai de uma área absolutamente valorizada, que é o primeiro shopping da ilha, o Beiramar Shopping, e vai para a Ressacada, que era também uma área muito rural naquele momento, uma área de mangue, mas lá se torna um estádio de elite. Então existe uma contradição interessante aí: quando se situava em um bairro central, era um estádio que atendia o Morro da Caixa D’água, que recebia um público muito popular. Inclusive,
vários jogadores do Avaí saíram dali. Agora, o estádio vai para um bairro muito afastado e se transforma em um lugar de elite. É muito difícil, por exemplo, chegar na Ressacada de ônibus. Sair, então, nem pensar. (VAZ,
2020, s/p).

Outra contradição que se pode evidenciar a partir desse raciocínio da invenção de tradições e da construção de estereótipos se evidencia na maneira como os torcedores do Figueirense usualmente provocam o rival, referindo-se ao Avaí de forma pejorativa como o “time do mangue”. Ora, se os manguezais são tidos como territórios suburbanos, por que o Figueirense reivindicaria para si o título de “time do povo” enquanto seus torcedores fazem chacota do rival que ergueu seu estádio nesse território essencialmente popular entre os bairros Costeira e Carianos? “A Costeira é um bairro de passagem. Ninguém vai para a Costeira se não mora na Costeira. Tu passas pela Costeira para ir pro sul da ilha, para ir ao aeroporto. É um bairro popular, assim como Carianos”, reforça o historiador Felipe Matos (2020, s/p.).

Estádio Aderbal Ramos da Silva, erguido sob o mangue da Ressacada
e inaugurado em 1983. Foto: Reprodução/Mercado do Futebol

Nesse sentido, convém destacar ainda o que Matos (2020) pondera sobre a identidade do Avaí em relação ao manguezal, referindo-se ao fato de o clube não reforçar essa política identitária junto à comunidade que o recebeu de braços abertos na década de 1980: “Hoje na Costeira a maioria da população é avaiana, não sei se era antes dos anos 80, antes de o Avaí chegar. Essa comunidade abraçou o clube e dialoga-se muito pouco com ela.”. Segundo o pesquisador Alexandre Vaz (2020), o fato de o Avaí não aproveitar esse diálogo com a comunidade que dá sustentação urbana à Ressacada também é fruto do atual processo de elitização do futebol: “É como se o Avaí saltasse a Costeira, saltasse o Carianos e chegasse ao centro direto. Por isso, por não ter perfil de torcida, o clube vai tomando um perfil de camadas médias e vai se afastando do elemento popular.”.

Isso, de certa maneira, talvez o Figueirense preserve um pouco mais, afinal, o clube está mesmo encravado numa confluência de bairros, sobretudo a Vila São João e a Coloninha – que são bairros populares – e até pelas ligações do clube com a escola de samba também, a Unidos da Coloninha. Então o diálogo com o elemento popular é quase que obrigatório ali. Não há como o Figueirense saltar. (VAZ, 2020, s/p.).

Quanto à construção dos estereótipos de povo e elite em si, Vaz é categórico: “origem não é destino”. E complementa: “As duas grandes oligarquias catarinenses uma basicamente adotou um time e, a outra, adotou o outro.”. Esse imaginário que fica na cidade e que é fomentado pela configuração geográfica da capital nos mostra que entender Florianópolis passa por conhecer o Avaí e o Figueirense, como bem salientou a pesquisadora Danielle Torri também no referido debate do Portal Ludopédio. Retomando os trechos da canção que ilustra o início deste texto, podemos refletir sobre o refrão em que o compositor Lenine se pergunta “como é que faz pra sair da ilha”. Nessa metáfora, estar ilhado não significa estar do lado insular da ponte, mas sim alienar-se em determinada zona de conforto, ancorando-se a imaginários que muitas vezes não condizem com a realidade e que nos impedem de enxergar o que há do outro lado – coisa que nós jornalistas fazemos com certa frequência. Portanto, nunca é demais lembrar que para sair da ilha é preciso cruzar a ponte.

*Uma versão mais completa deste texto integrou o GT Historiografia da Mídia, pertencente ao 8º Encontro Regional Sul de História da Mídia, promovido remotamente pela Associação Brasileira de Pesquisadores de História da Mídia (ALCAR) em parceria com a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) em abril de 2021.


Referências bibliográficas

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro. Figueirense: o bairro da Figueira e o nascimento de um clube. In: VAZ, Alexandre Fernandez; DALLABRIDA, Norberto (orgs). O futebol em Santa Catarina. Histórias dos clubes (1910-2014). Florianópolis: Insular, 2014. p. 17-45.

CARDOSO, Paulino de Jesus Francisco; RASCKE, Karla Leandro. Cidadania e expectativas no bairro da Figueira: o surgimento do Figueirense Foot Ball Club (Florianópolis/SC, 1921- 1951). Vozes, Pretérito & Devir, v.5, n. 1, p. 77-98, 2016.

HOBSBAWM, Eric; RANGER, Terence (org.). A invenção das tradições. 6. ed., Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2008.

MATOS, Felipe. Ludopédio em Casa #30: Rivalidades Catarinenses: Avaí x Figueirense. Portal Ludopédio.

TORRI, Danielle. Ludopédio em Casa #30: Rivalidades Catarinenses: Avaí x Figueirense. Portal Ludopédio.

VAZ, Alexandre. Ludopédio em Casa #30: Rivalidades Catarinenses: Avaí x Figueirense. Portal Ludopédio.


1 “A Ponte” integra o terceiro álbum de estúdio do cantor e compositor Lenine, “O Dia em que Faremos Contato”, lançado em 1997. Uma segunda versão da canção foi gravada com a orquestra holandesa Martin Fondse Orchestra, compondo o CD/DVD “The bridge: Lenine & Martin Fondse – live at Bimhuis”, lançado em outubro de 2016.

2 “Eu e Lenine (A Ponte)” foi composta pelo rapper brasiliense Genival Oliveira Gonçalves (GOG) e lançada em 2004 no álbum “Tarja Preta”. A letra é uma crítica à superfaturada Ponte Juscelino Kubitschek inaugurada em Brasília no ano de 2002, bem como à segregação espacial evidente na cidade e ao processo de gentrificação no curso da obra. Ao saber que sua canção foi parafraseada pelo rapper GOG, Lenine o convidou para cantá-la com ele em versão que integra seu segundo álbum ao vivo, o Acústico MTV, gravado no Auditório Ibirapuera em 2006. Esta história pode ser conferida em: https://youtu.be/p_SJ1Hlr738&t=1s.

3 Luiz Henrique Rosa foi um cantor, violonista e compositor brasileiro de bossa nova e MPB. Morreu aos 46 anos, em 1985, quando completaria 25 anos de carreira, vítima de um acidente automobilístico. Em 2003 foi organizado o CD “A Bossa Sempre Nova de Luiz Henrique”, no qual os músicos Martinho da Vila, Elza Soares, Ivan Lins, Luiz Melodia, Sandra de Sá, Biá Krieger e Toni Garrido interpretam as composições do homenageado, entre elas a citada canção “Ponte Hercílio Luz”.

4 O Ludopédio é a principal referência brasileira em divulgação científica sobre futebol da América Latina. Criado em 2010, trata-se de um portal independente composto por pesquisadores que visam propor uma ponte entre a produção acadêmica e a sociedade. Em março de 2020, no início da pandemia de Covid-19 no Brasil, o Portal lançou o quadro semanal “Ludopédio em Casa”, compondo mesas virtuais com jornalistas, pesquisadores e especialistas da área para debater diversos temas que envolvem o futebol para além das quatro linhas, como racismo, homofobia, política e torcidas.

Produção audiovisual

Já está no ar o vigésimo quarto episódio do Passes & Impasses

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no Spotify*, Deezer*, Apple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O tema do nosso vigésimo quarto episódio é “Rivalidade Brasil x Argentina no futebol”. Com apresentação de Filipe Mostaro e Mattheus Reis, recebemos Ronaldo Helal, coordenador do LEME e professor titular da UERJ, e Pablo Alabarces, que é professor de Cultura Popular da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires. Alabarces coordenou, entre 1999 e 2003, o Grupo de Trabalho “Esporte e Sociedade” no Conselho Latino-americano de Ciências Sociais (CLACSO).

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o vigésimo quarto episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Bad Moon Rising“, canção da banda Creedence Clearwater Revival, de 1969.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

ARTIGOS, LIVROS E OUTRAS PRODUÇÕES:

Equipe
Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Marina Mantuano e Carol Fontenelle
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Filipe Mostaro e Mattheus Reis
Convidados: Ronaldo Helal e Pablo Alabarces.

Produção audiovisual

Já está no ar o vigésimo terceiro episódio do Passes & Impasses

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O tema do nosso vigésimo terceiro episódio é “Futebol e nacionalismos”. Com apresentação de Filipe Mostaro e Mattheus Reis, recebemos o Professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro Victor Andrade de Melo e o doutor em História Comparada pelo Programa de Pós-graduação em História Comparada da UFRJ Maurício Drumond.

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No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi “Sou brasileiro”, composta por Nelson Biasoli e cantada pela torcida em época de Copa do Mundo

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Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Letícia Quadros
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Filipe Mostaro e Mattheus Reis
Convidados: Victor Melo e Maurício Drumond

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A vida pulsa longe da Libertadores

“O Flamengo é o Brasil na Libertadores”. A frase é velha. Batida. Tola. Muito tola. Tão tola, que é quase inacreditável perceber que ainda ontem parte da mídia tentasse vender essa ideia na hora de divulgar a transmissão da final da competição continental. Várias emissoras de TV fizeram isso à exaustão nesses dias de novembro.… Continuar lendo A vida pulsa longe da Libertadores

Participações na mídia

Jornal O Globo entrevista pesquisador do LEME

A edição do dia 02 do Jornal O Globo trouxe uma entrevista com Alvaro Vicente do Cabo, pesquisador do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte (LEME/UERJ). Alvaro fala sobre a rivalidade entre Brasil e Argentina. “Brasil e Argentina são protagonistas de uma das maiores rivalidades do futebol mundial. No entanto, se hoje brasileiros e… Continuar lendo Jornal O Globo entrevista pesquisador do LEME

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Não existe “torcida única” no futebol

Na última sexta-feira, 3 de maio de 2019, defendi a minha dissertação de mestrado, dentro do Programa de Pós-Graduação em Antropologia da Universidade Federal da Paraíba. E, na oportunidade, analisei as torcidas que cercam o Botafogo da Paraíba para mostrar que grupos grandes não formam nunca uma unidade, uma homogeneidade, mas são acima de tudo… Continuar lendo Não existe “torcida única” no futebol

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A violência é uma ordem: River, Boca e a cultura de apedrejar*

Por Pablo Alabarces Fotos: Diego Paruelo e Pepe Mateos *Texto originalmente publicado na Revista Anfibia da Universidad Nacional de San Martim – Argentina.  ** Tradução livre de Juan Silvera – LEME/UERJ Não me resta inteligência – já devastada após cinco horas de jornalismo esportivo mainstream e redes sociais ardendo em conspirações – somente para elaborar estas… Continuar lendo A violência é uma ordem: River, Boca e a cultura de apedrejar*

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Amar odiar e odiar amar: a rivalidade Brasil e Argentina

Com o objetivo de analisar as narrativas da imprensa argentina sobre o futebol brasileiro, realizei pesquisa de pós-doutorado na Universidade de Buenos Aires durante os anos de 2005 e 2006. O período analisado foi as Copas de 1970 a 2002. As narrativas da imprensa argentina ao nosso futebol eram, surpreendentemente, elogiosas e a referência ao… Continuar lendo Amar odiar e odiar amar: a rivalidade Brasil e Argentina

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O algoz e o rival!

Imagine que, certo dia, você é abatido. De forma cruel, impiedosa, virulenta. Numa cena de puro sadismo, você saberá depois. Porque o ato (quase criminoso) é cometido dentro de sua própria casa, diante de sua família, daqueles que você tem como heróis. E para piorar, o algoz comemora, ri, se esbalda. Festeja feito um louco… Continuar lendo O algoz e o rival!