Com quem você vai ao estádio? Como você vai para o jogo? Como você volta para a casa? É seguro ir sozinha assistir a uma partida de futebol? O que deveria ser uma tarefa simples, ver o seu time jogar, pode se tornar extremamente complexa se você for mulher. As torcidas voltaram aos estádios e com elas, antigos problemas, como o assédio sexual.
Para esse retorno, as autoridades tiveram que formular o famoso “protocolo”: uso de máscara, distanciamento, vacinação e/ou teste de PCR negativo. Medidas muito bem elaboradas e pensadas durante semanas para, no caso das duas primeiras, serem escancaradamente desrespeitadas, surpreendendo um total de zero pessoas. O que também não é surpreendente é o fato de não terem pensado, durante a programação dessa volta, em medidas que evitassem ou minimizassem um velho problema do futebol: o assédio.
Colocar as torcidas de volta nos estádios também teve o seu lado político, afinal, quem ousaria ser o prefeito a ter prudência, esperar mais um pouco, e enfurecer milhares de pessoas? É mais fácil criar um protocolo – pessimamente fiscalizado, diga-se de passagem, vide imagens das torcidas aglomeradas e sem máscara – e fazer a alegria da galera e, é claro, de si próprio, pensando nas próximas eleições. Não existe almoço grátis.
Isso não é novo na História. Leis pensadas apenas por um grupo de pessoas, atendem apenas a um grupo de pessoas. A falta de mulheres em espaços de comando dentro do futebol, e também nos governos, fazem com que questões que dizem respeito a nossa vivência não sejam levadas em conta. Mais uma vez, nada de novo sob o Sol, afinal, o futebol é um espaço para homens, não é mesmo (contém ironia)?!
No mês de novembro, durante três semanas seguidas o Mineirão registrou casos de assédio e importunação sexual. O primeiro caso foi denunciado dia 10, e só depois de mais dois registros, a Comissão de Mulheres da Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) aprovou uma visita técnica para apurar a denúncia, verificar o treinamento dos funcionários para esses casos e pensar em um projeto de acolhimento às vítimas no local. O clube disse que solidarizava com as vítimas e prometeu “agir para acabar com essa situação de desrespeito”. Bom, eu não vi nenhuma ação do Atlético Mineiro em prol do combate à violência contra às mulheres até agora. Vamos fazer aquele combinado, quem encontrar primeiro, avisa para o outro! Eu prometo que volto aqui, com o maior prazer, para falar de ações efetivas e se vocês virem algo antes disso, por favor me avisem!
É bom ressaltar que o problema não é o Mineirão. No Estádio Nilton Santos a bandeirinha Katiuscia Mendonça foi vítima de uma série de ofensas machistas pela torcida botafoguense. O clube formalizou um pedido de desculpas, assinado pelo presidente Durcesio Mello. Além disso, de acordo com os portais de notícias, o clube planeja a criação de um setor exclusivo para a torcida feminina no Engenhão para 2022 – iniciativa do Botafogo. Vamos acompanhar para ver se o projeto vai sair do papel. E caso isso ocorra (torçamos para que sim!) será uma grande oportunidade para as torcedoras irem ao estádio um pouco mais tranquilas e poderem se preocupar, apenas, com desempenho do time em campo.
Quem faz parte desse planejamento é o Diretor de Negócios Lênin Franco, que já participou do Passes & Impasses quando era Diretor de Marketing do Bahia, clube conhecido por estar atento às causas sociais e fazer ações efetivas para combater quaisquer tipos de violências. Esse setor feminino já existia, antes da pandemia, na Arena Fonte Nova, assim como um botão de pânico no aplicativo do clube um site “Me deixe torcer”, que está ativo e tem um botão escrito “faça seu relato”, para torcedoras contarem casos de assédio de futebol. O site ainda diz que a pesquisa ajudará o clube a buscar soluções junto às autoridades para combater o crime de assédio (um projeto, aliás, que deveria ser mais buscado pelos veículos de comunicação, para saber se, de fato, ocorre).
Estamos diante de um problema real, urgente e que, no futebol, se resume a meia dúzia de ações no dia da mulher. É gritante a falta de interesse dos clubes, dos governos e da CBF, sabendo que o esporte é um fenômeno social gigantesco, e do potencial que ações efetivas de combate à violência contra as mulheres pode ter. Todos buscaram rapidamente desenvolver um protocolo para a COVID, que está (mais ou menos) em dia, mas poucos mexem um dedo para pensar em projetos que visem o combate à violência contra a mulher. A experiência de ir ao estádio pode ser maravilhosa para você, mas pode ser extremamente violenta para outras pessoas. E isso não é só problema delas.
Há mais de 100 anos, em seu relatório anual de 1918, P.P Phillips, diretor de educação física da Asociación Cristiana de Jóvenes (ACJ) de Buenos Aires, escreveu: “Ao contrário de sua tendência tradicional, os argentinos agora estão desenvolvendo uma sede insaciável pela educação física e os esportes estrangeiros”. Por outro lado, ressaltou que em um rápido olhar para os estudantes em seu ginásio, podia observar “os tipos de homens e crianças bem educados” que a ACJ atraía, assim como “o clima democrático, gentil” que se mantinha nelas. Para mostrar a aprovação que geravam as iniciativas da instituição, Phillips citou um médico local, para quem seus colegas portenhos poderiam enviar mulheres jovens o suficiente para abrir uma seção feminina se a ACJ estivesse disposta a realizar o mesmo trabalho “para nossas meninas gordas”.
O Relatório de Phillips demonstra a crescente importância do esporte na Argentina no começo do século XX e a ordem genérica que prevalecia. O esporte estava reservado e era controlado por homens, que estavam habilitados para beneficiarem-se de todos os valores atribuídos à sua prática. Entretanto, como indica a prescrição do médico, as mulheres tinham permissão para participar dos esportes se isso resultasse na melhora da saúde (sobretudo reprodutiva), e não alterasse o ideal feminino estabelecido. Vale a pena destacar que a Asociación Cristiana Femenina (ACF) de Buenos Aires teve seu início em 1890, sendo uma das instituições femininas mais antigas do país. O fato do médico citado por Phillips ignorá-la também expõe as enormes dificuldades que enfrentava, e ainda enfrenta, o esporte feminino.
A história da ACF demonstra que, apesar dos discursos esportivos dominantes que durante muito tempo o silenciaram ou minimizaram, e que ainda o fazem, sempre houve, e há, mulheres e instituições que favoreceram, materializaram e exemplificaram a emancipação e o empoderamento feminino através da prática esportiva. Se pode, e deve, considerá-las como pioneiras no sentido de que eram, e muitas ainda seguem sendo, as primeiras a ingressarem em um espaço novo. Da mesma forma que se pode, e deve, considerá-las lutadoras e militantes no sentido de que nesse corajoso ingresso, criaram novos espaços participativos por meio dos quais se questionaram estereótipos de gênero e se imaginaram visões políticas alternativas. Teria mencionado algo sobre isso Alicia Moreau quando a ACJ a convidou para falar sobre “O feminismo como problema social” em seu ciclo de conferências de 1919?
Sabe-se relativamente pouco da vida dessas mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes do campo do esporte, visto que elas estão em grande parte ausentes da narrativa histórica e jornalística tradicional. Felizmente, o trabalho paciente de várias colegas começa a interpretar o complexo processo pelo qual as mulheres e instituições pioneiras, lutadoras e militantes, em suas buscas, suas conquistas, e seus fracassos, contribuíram para resistir, negociar e ressignificar a ordem genérica que operava no esporte ao longo do último século. Ao torná-las visíveis, percebemos sua larga e importante, mas agora latente, presença no esporte nacional.
O exemplo de Lilian Harrison é norteador. Anos depois de converter-se como a primeira pessoa a cruzar a nado o Río de la Plata em 1923, declarou:
“Nunca posso me esquecer que um dos presentes [em Colonia] não se cansava de dizer que eu estava louca e que não chegaria nem ao penhasco. Veja que estranho, quando toquei a terra, em Punta Colorada, próximo de Punta Lara, a primeira coisa que me aconteceu foi pensar naquela pessoa que havia comentado de minha loucura um dia antes”.
Se nos interessa a produção de discursos e de sentidos genéricos, assim como a igualdade de gênero no esporte, nem a fala e nem a vida de figuras como Harrison, nem o seu significado, deveriam ser esquecidos. Resgatá-las, mantê-las presentes e problematizá-las ajuda a tornar visível o papel vital da mulher no esporte e em outros espaços sociais.
Texto originalmente publicado no site El Equipo no dia 29 de maio de 2021
Tradução: Abner Rey e Fausto Amaro
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A velocista norte-americana Allyson Felix é detentora de vinte e cinco medalhas entre Jogos Olímpicos e Campeonatos Mundiais de Atletismo, sendo dezoito delas de ouro – os dois últimos conquistados nas Olimpíadas do Rio em 2016. Competidora dos 100, 200 e 400 m raso, ela é a única atleta do mundo a somar seis medalhas de ouro no atletismo olímpico. Em sua maior especialidade, os 200 m rasos, Felix tem uma medalha de ouro olímpica e três como campeã mundial, sendo 21,69 segundos sua melhor marca nessa distância – sexto melhor tempo da prova na história, feito que inclusive a coloca como a quarta velocista mais rápida do mundo. Em 2018, Alysson Felix decidiu ser mãe. Sua filha Camryn nasceu em novembro, de um parto prematuro de 32 semanas. No mês de maio daquele ano, a atleta se juntou às denúncias de discriminação feitas por outras desportistas, o que culminou em um texto de grande repercussão publicado no The New York Times, no qual Felix relatava que a Nike, sua então patrocinadora, reduziu em cerca de 70% os valores de seu contrato de patrocínio após o nascimento de Camryn.
Durante a gravidez, a atleta ainda pediu garantias à patrocinadora de que não seria penalizada caso rendesse abaixo de seu nível nos meses anteriores e posteriores ao parto. A princípio, a resposta da empresa foi negativa. Porém, cerca de três meses após ser exposta no jornal, a Nike escreveu à atleta para anunciar que não rescindiria o contrato e nem reduziria os valores durante os dezoito meses de gestação e maternidade, sendo oito deles anteriores ao parto. Dez meses após o nascimento da filha, Alysson Felix integrou o revezamento 4×400 misto composto de duas mulheres e dois homens, no Mundial de Atletismo em Doha, de 2019. Na ocasião, a equipe de Felix ganhou a medalha de ouro e ainda estabeleceu o recorde mundial da prova. Essa foi a décima segunda medalha de ouro de Alysson Felix em mundiais de Atletismo, superando o recorde do jamaicano Usain Bolt, detentor de onze ouros na competição. O feito foi marcante não só por se tratar de uma mulher batendo o recorde de um homem, mas, sobretudo, porque contradiz o argumento de empresas patrocinadoras que insinuam o suposto baixo rendimento de atletas que retornam da licença maternidade.
Legenda: Allyson Felix e a filha Camryn em 2019/Reprodução Instagram @af85
Sabemos queo mercado de trabalho para as mulheres, qualquer que seja a profissão, ainda é terreno fértil para práticas discriminatórias e relações abusivas pautadas pela hierarquia de gênero. Prova disso é que, mesmo ocupando posições correlatas às dos homens, as mulheres recebem salários inferiores em todas as ocupações, segundo pesquisa divulgada em 2019 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Essa mentalidade se deve ao machismo estrutural no qual o papel do homem é supervalorizado, o que no mundo do trabalho é ilustrado pela falsa acepção de que a mulher produziria menos e, portanto, contribuiria menos para uma lógica econômica de mercado. Para as que trabalham no meio esportivo, esse cenário tende a ser ainda mais duro, tanto é que o Brasil – justamente a nação que ostenta o imaginário de país do futebol – precisou esperar até setembro de 2020 para que a Confederação Brasileira de Futebol (CBF) finalmente anunciasse a equiparação de valores de premiações e diárias entre a modalidade futebolística masculina e feminina.
Embora nos últimos anos os espaços midiáticos – em especial os alternativos, isto é, que não fazem parte da imprensa hegemônica – venham subvertendo essa lógica do machismo estrutural em diversas esferas da sociedade (que não só o esporte), é impossível não retomar as previsões da pesquisadora Miriam Adelman (2006) já no início do século, em relação ao papel da mídia na luta de gênero:
Como a filósofa feminista Susan Bordo (1994) nos adverte, estamos ainda longe de um momento “pós-gênero”, as práticas subversivas ainda não se afirmam como majoritárias, e a cultura pós-moderna, atrelada ainda aos discursos hegemônicos disseminados poderosamente nos meios de comunicação de massas, produz a cada momento novas formas de disciplinar os corpos e os sujeitos, segundo critérios dicotômicos e desiguais sobre o que pode/deve ser e fazer, uma mulher, ou um homem. (ADELMAN, 2006, p. 13).
Adelman (2006) ainda traz para o debate a escritora feminista Susan Brownmiller e sua definição de feminilidade como “estética da limitação”, sob a qual se resumem os impulsos dominantes de vários séculos de cultura moderna. Nessa ótica, entende-se por que o esporte é terreno de luta sobre o que pode ser ou fazer uma mulher, tendo em vista que as práticas esportivas – pelo menos nas modalidades mais competitivas – “desafiam os limites” das habilidades corporais. “Para as mulheres, torna-se uma disputa por acesso a espaços, legitimidade, e recursos materiais e simbólicos, que encena de forma muito sensível, a luta maior para ter controle sobre o próprio corpo, e sobre a vida.” (ADELMAN, 2006, pp. 13/14). Nessa luta, naturalmente, inclui-se o direito de decidir-se ou não pela maternidade.
Foi justamente por priorizar o esforço corporal exigido pelo atletismo, que a empresa de material esportivo Nike não hesitou ao reduzir em cerca de 70% os valores de patrocínio concedidos à velocista Allyson Felix após a atleta anunciar sua gravidez. Em um artigo publicado no jornal TheNew York Times no dia 22 maio de 2019, Felix se posicionou a respeito, acusando a patrocinadora Nike de discriminar atletas que tiram licença maternidade: “Se eu, uma das atletas mais comercializadas da Nike, não podia conseguir essas proteções, quem poderia?”. Ela não foi a primeira atleta a denunciar publicamente a marca por reduzir contratos de patrocínio de atletas logo depois de se tornarem mães:
Na semana passada, duas de minhas ex-companheiras de equipe da Nike, as corredoras olímpicas Alysia Montaño e Kara Goucher, heroicamente quebraram seus acordos de sigilo com a empresa para compartilhar seus relatos da gravidez em uma investigação do The New York Times. Elas contaram histórias que nós, atletas, sabemos que são verdadeiras, mas temos medo de contar publicamente: se tivermos filhos, corremos o risco de cortes nos salários de nossos patrocinadores durante a gravidez e depois. É um exemplo de uma indústria esportiva onde as regras ainda são feitas principalmente para e por homens (Allyson Felix – The New York Times).
Legenda: Alysia Montaño em 2014, competindo no Campeonato de Atletismo dos Estados Unidos em sua 34ª semana de gravidez/Reprodução Instagram @alysiamontano
Allyson Felix decidiu ser mãe em 2018, mesmo ciente do que isso poderia acarretar para a sua carreira. Nessa mesma época, ela estava negociando a renovação de seu contrato com a Nike, que havia terminado em dezembro de 2017. Embora seja uma das atletas mais vitoriosas já patrocinadas pela marca, Felix não apenas teve seu contrato de patrocínio significativamente reduzido pela Nike, mas, também, recebeu uma negativa quando solicitou à empresa que não a punisse caso rendesse abaixo do seu melhor desempenho nos meses anteriores ao parto.
Além disso, Felix alega em seu artigo que foi pressionada pela empresa para voltar à forma o mais rapidamente possível após o nascimento da filha em novembro de 2018, mesmo tendo passado por uma cesariana de emergência quando completou 32 semanas de gravidez e teve sua vida (e a da sua bebê) ameaçada por uma pré-eclâmpsia: “Apesar de todas as minhas vitórias, a Nike queria me pagar 70% menos do que antes. Se é isso que eles acham que valho agora, eu aceito. O que não estou disposta a aceitar é o status quo duradouro em torno da maternidade.”. Ainda no mesmo artigo, Felix afirma que um dos fatores decisivos para ela assinar com a empresa há quase dez anos foi, ironicamente, o que pensou ser um dos princípios fundamentais da empresa: a igualdade de gênero:
Eu poderia ter assinado em outro lugar por mais dinheiro. […] Mas quando me encontrei com a liderança da empresa em 2010, uma mulher me contou sobre uma iniciativa patrocinada pela Nike chamada Girl Effect, baseada na crença de que, quando as meninas têm oportunidades, elas são capazes de tirar seus países da pobreza. Ao ingressar na Nike, ela disse, eu poderia ajudar a empoderar mulheres. Ela me afirmou que a Nike acreditava em mulheres e meninas, e eu acreditei nela. Isso também explica por que minha experiência recente foi tão dolorosa (Allyson Felix – The New York Times).
A ironia da pseudo-política não-discriminatória da Nike também apareceu no relato da atleta Alysia Montaño para o mesmo jornal: “A Nike me disse para ter sonhos loucos, até que eu quis ter um bebê.”. A atleta se referia à uma campanha publicitária da empresa, “Dream Crazier”, lançada em fevereiro de 2019 na cerimônia do Oscar e narrada pela tenista norte-americana Serena Williams. Com tom de voz enérgico, Williams narra as discriminações diversas as quais atletas mulheres estão sujeitas apenas por tentarem acreditar em seus sonhos:
Se demonstramos emoção, somos chamadas de dramáticas. Se queremos jogar contra os homens, somos loucas. E se sonharmos com oportunidades iguais, estamos delirando. Quando lutamos pelo que é justo, somos desequilibradas. Quando estamos muito bem, há algo errado com a gente. E se ficamos com raiva, somos histéricas, irracionais ou simplesmente doidas. […] Se eles querem te chamar de ‘louca’, tudo bem, mas mostre a eles o que as loucas são capazes de fazer (Trecho do comercial Dream Crazier, da Nike, narrado por Serena Williams).
O problema do anúncio feminista da Nike é que ele incorre na contradição salientada pelas atletas no TheNew York Times: ao mesmo tempo em que a empresa lança uma série de campanhas ativistas denominada “Just Do It” (“Simplesmente faça”), ela também reduz o patrocínio de esportistas gestantes e pune quem tira licença-maternidade depois de apostar na “loucura” de ser mãe enquanto se está no auge da carreira. Diante dos relatos expostos no jornal nova-iorquino, a Nike respondeu que colocaria em andamento uma nova política de salários-padrão às atletas durante suas gestações. Cerca de três meses depois, formalizou seu compromisso em um e-mail assinado por John Slusher, vice-presidente de Marketing global da marca, e endereçado à Allyson Felix. No comunicado, a Nike afirmou que não mais rescindiria nem aplicaria reduções econômicas em contratos de atletas gestantes durante os dezoito meses de gravidez e maternidade.
Contudo, em julho de 2019 – cerca de um mês antes de receber o comunicado oficial da empresa e após voltar a competir pela primeira vez depois do parto – Felix encerrou as negociações com a Nike e assinou um contrato com a Athleta, uma marca de roupas esportivas que nunca havia patrocinado atletas – homens ou mulheres. Pode-se dizer que Allyson Felix também “formalizou” seu rendimento pós-parto ao conquistar, em outubro daquele mesmo ano, sua décima segunda medalha de ouro em mundiais. O feito foi no revezamento 4×400 metros com a equipe dos Estados Unidos no Mundial de Doha, no Qatar. Além de ter sido campeã do torneio, Felix ainda bateu o recorde do jamaicano Usain Bolt – registro que se mantinha desde 2013 quando o velocista conquistou seu décimo primeiro ouro.
Legenda da foto: Allyson Felix no Mundial de Doha em 2019/Getty Images
Essa vitória foi bastante simbólica para as atletas mulheres – e para o Esporte em geral – não apenas porque se trata de uma mulher batendo o recorde de um homem, mas, sobretudo, porque o feito se deu apenas dez meses após Allyson Felix ter dado à luz a filha Camryn em meio ao imbróglio da queda de seu patrocínio com a Nike. Na ocasião em que recebeu o e-mail onde a empresa anunciava sua nova política contratual não-discriminatória, Felix publicou a resposta em sua conta pessoal no Instagram, demonstrando-se realizada com a decisão da Nike em dar proteção às atletas mulheres as quais patrocina, que já não serão penalizadas economicamente por decidirem ter filhos. Na postagem, Felix conclui: “Nossas vozes têm poder. […] Agradeço a John Slusher e Mark Parker por sua liderança e seu desejo de guiar a Nike como empresa que acha que somos mais do que atletas. Obrigada às marcas que já assumiram esse compromisso. Quem será o próximo?”.
No âmbito trabalhista, a ausência de profissionalização e, consequentemente, da garantia de direitos previdenciários como a licença-maternidade, faz com que as desportistas precisem pensar duas (ou centenas de vezes) antes de decidir ter um filho. Ao escolherem tê-lo, ainda correm o risco de estarem submetidas a cláusulas de redução de ganhos por perda de performance nos contratos de exclusividade com patrocinadores, a exemplo da norte-americana Allyson Felix. Não se sabe, por exemplo, de nenhum caso relevante em que um atleta homem teve o patrocínio diminuído em função da paternidade.
Quando Felix competiu no Mundial de Doha dez meses após ter dado à luz a filha sagrando-se campeã e ainda batendo o recorde do consagrado velocista jamaicano Usain Bolt, muitos jornais estamparam a vitória da atleta na primeira página de seus cadernos esportivos. Poucos, porém, contextualizaram o simbolismo que aquela conquista trazia em termos de representatividade, visibilidade, reconhecimento e, sobretudo, direito da mulher ao próprio corpo. Considerando o esporte como um “espaço de transgressão, empoderamento, e/ou disciplinamento patriarcal das mulheres” (ADELMAN, 2006, p. 11) e o papel social do jornalismo como um dos vetores da igualdade de gênero, convém finalizar este texto retomando um trecho de Allyson Felix na denúncia que fez ao The New York Times, a qual felizmente culminou em significativas alterações contratuais na política de patrocínio esportivo da Nike: “Sempre soube que me expressar poderia prejudicar minha carreira. Então tentei antecipar o que as pessoas esperam de minhas conquistas e não fazer isso. Eu não gosto de decepcionar as pessoas. Mas não se pode mudar nada ficando em silêncio.”.
*Uma versão mais completa deste texto integra o Simpósio Temático “Educação de corpos, gêneros e sexualidades nas práticas esportivas e de lazer: entre resistências e reificações” da edição 2020 do Seminário Internacional Fazendo Gênero. Além disso, a versão completa também foi apresentada à disciplina Debates Contemporâneos em Estudos Feministas e de Gênero, ministrada remotamente no segundo semestre de 2020, pelo Programa de Pós-Graduação Interdisciplinar em Ciências Humanas (PPGICH) da Universidade Federal de Santa Catarina, sob supervisão das professoras Miriam Pillar Grossi, Caroline Soares de Almeida, Claudia Lazcano, Marie Leal Lozano e Vera Gasparetto.
Referências bibliográficas
ADELMAN, Miriam. Mulheres no Esporte: Corporalidades e Subjetividades. Revista Movimento, Porto Alegre, v.12, n. 01, p. 11- 29, janeiro/abril de 2006.
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