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Os múltiplos sentidos das partidas reprisadas na memória dos torcedores em tempos de quarentena

Com as arquibancadas vazias, o futebol passou a ser jogado em outro campo: o das reprises de grandes partidas de seleções e clubes. Mais do que mitigar as saudades dos torcedores, essa nova forma de “jogar” permite apropriações de sentidos bastante distintas pelo mesmo torcedor a depender das equipes, então, em campo. E expõe uma das fontes constituintes do futebol: diferentemente de outros esportes, no qual ao candidato a herói basta alcançar a vitória, no futebol, para obter tal reconhecimento, ele precisa derrotar – ou, preferencialmente, eliminar simbolicamente o adversário. De tal condição, tem-se outro gene do DNA futebolístico: a valoração da vitória é diretamente proporcional à força do adversário.

Desse duplo dialético, resulta uma verdade inconfessável pela maioria dos torcedores, principalmente os mais fanáticos: para que a vitória do seu time seja memorável é preciso reconhecer o valor do adversário. A negação de tal condição, indispensável para forjar um grande vencedor, resulta numa contradição que nos diz muito sobre como se desenvolve o estilo competitivo na sociedade brasileira.

Aqui, diferentemente de outros lugares, como a Alemanha, na qual os vice-campeões da Copa de 2002 desfilaram em carro aberto pelas ruas daquele país, o segundo colocado não é o segundo melhor entre vários competidores, mas, sim, o exemplo mais emblemático da derrota, como se tivesse sido o último colocado (SOUTO, 2002). Tal percepção singular da torcida brasileira, quando acionada em relação à seleção do país, pelo menos até um passado cada vez mais remoto, vinha acompanhada da convicção, expressada por jogadores, dirigentes, torcedores e imprensa, de que a cobrança permanente pela vitória seria a responsável pelo Brasil ser o “país mais vitorioso do futebol mundial”.

Fonte: observatoriodatv

A exemplo do passado, o processo de rememoração dos jogos tem na imprensa a principal agenciadora da memória. Embora, na era das redes sociais e dos mundos paralelos das bolhas e das fakes news, tal condição tenha perdido potência, não foi, ainda, substituída por outro tipo de narrativa totalizante socialmente aceita para além das “visões alternativas aos fatos”.

Dessa forma, quando as TVs repetem partidas épicas e/ou decisivas, sejam da seleção ou dos clubes, a operação de visita ao passado continua a ter na imprensa o seu principal agente. O processo de apropriação dos sujeitos, no entanto, também vai ser informado por outros fatores, que variam de acordo com a posição que cada um ocupa num determinado grupo social. Assim, em vez de uma memória, temos várias memórias, influenciadas por questões como fatores geracionais; do impacto que aquela partida causou no instante em que foi realizada; da relação do passado com o presente da equipe pela qual se torce.

A revisita ao passado vai, ainda, confrontar-se com o passado idealizado, eventualmente congelado, como foi vivido por cada sujeito, que, também, o reelaborou ao “passá-lo adiante” para outras gerações. Alguns autores que trabalham a construção oralizada da memória, ao interligarem os dois conceitos, valorizaram a importância da vida quotidiana na acumulação de fatos de uma dada memória social (LEROI-Gourhan, 1981).

Para Freud, a reexperiência de algo idêntico é, em si mesma, uma fonte de prazer (FREUD, 1969). No entanto, acrescentamos, essa segunda experiência, raramente, se passa da mesma forma, porque os sujeitos não são mais os mesmos. É possível, portanto, que busquem ressignificar a experiência. Em “Crônica de uma arte anunciada”, Gabriel Garcia Márques nos informa, já na primeira página, que o personagem Santiago Nasar vai ser assassinado. Com isso, provoca um deslocamento de sentidos do leitor de “o que vai acontecer” para “por que aconteceu”. Analogamente, quando assiste-se a partidas cujos resultados são previamente conhecidos existe um deslocamento de “o que aconteceu” para “como aconteceu”.

Isso não impede que, inconscientemente, os torcedores possam querer mudar o resultado já sabido, como denunciam manifestações, individuais ou coletivas, que escapam em lances que, não resultando em gol, ameaçam a equipe adversária ou a sua equipe. No entanto, para além do desejo por um resultado imaginário, existe outro forte investimento emocional em como a partida desenvolveu-se, particularmente em momentos emblemáticos, sejam de mera plasticidade, sejam os que poderiam ter mudado a sorte da partida.

Principal construtora da memória das derrotas e vitórias das partidas históricas, a imprensa também vai reivindicar a centralidade do processo quando esse passado é revisitado. Para isso, conta com um repertório de várias camadas, desde a escolha dos personagens dos jogos que serão as testemunhas oculares do passado; o trabalho de pesquisa, que vai definir os momentos que merecem ser enfatizados; a escolha de uma narrativa que combine o retorno à cena dos que vivenciaram a partida em tempo real e a contextualização daquele momento para os não o tenham vivido.

Nesse processo, porém, a imprensa se depara com outros guardiões da memória, como os torcedores que, embora atravessados pelo discurso do jornalismo esportivo, formaram sua própria memória da partida a partir das singularidades da sua relação com aquele evento. A memória aprisionada pela oralidade, que vão procurar transmitir aos mais novos, permite cristalizar os mitos de origem, já que aquela fundamenta a sua transmissão através dos “guardiãos da oralidade”.

Fonte: globoesporte

Era, ainda, sob o impacto da vitória ou da derrota que, no passado sem a instantaneidade e a velocidade dos meios eletrônicos, os torcedores, já no trajeto do estádio para casa, começavam a construir uma memória oralizada das partidas, elegendo os candidatos a heróis ou construindo os culpados pela derrota. Vitória e derrota não ficavam confinadas às arquibancadas, mas à simbolização mitológica construída em torno delas. O impacto do lugar da vitória/derrota na memória reconstruída tem valor igual, ou maior, do que o resultado do jogo estampado no placar do estádio.

É no processo constitutivo dos resultados que vão sendo construídos mitos que se eternizam para explicar e definir vitórias e derrotas. Como defende David Morley, mais relevante do que o equilíbrio na cobertura dos acontecimentos é o enquadramento conceitual e ideológico básico pelo qual os acontecimentos são apresentados e, “em conseqüência do qual eles recebem um significado dominante/primário” (MORLEY, 1976 Apud HACKETT in TRAQUINA, 1993:121).

Dessa forma, a revisita ao passado, quando se assiste novamente a partidas históricas, é um processo complexo, prenhe de tensões de sentimentos que disputam o imaginário dos sujeitos, como a angulação do narrador, as ênfases dos convidados chamados a atuar como testemunhas oculares e as próprias memórias singulares dos torcedores. A síntese dos fatores constituintes do imaginário, individual e coletivo, também vai variar de acordo com o objeto; e do distanciamento, cronológico e afetivo, que se tem em relação a ele. Quanto mais distante no tempo uma partida, maior número de névoas na memória, mais complexa será a rememoração daquele momento, do que outro que, pela proximidade do presente, guarda maior frescor da quentura dos acontecimentos.

Quando se revisita a seleção contra um adversário estrangeiro, é muito mais provável que um sentido de pertencimento coletivo seja compartilhado por muitos mais do que quando os times em campo são dois clubes brasileiros. Mas, mesmo no primeiro caso, a noção de pertença pode variar, conforme que seleção brasileira está em campo. Sim, porque, conforme a equipe nacional foi sendo atravessada por valores considerados “não tradicionais” por parcelas do público e da imprensa, essa relação foi sofrendo deslizamentos afetivos importantes.

Essas assimetrias ficaram expostas nas diferenças de audiência, por exemplo, entre as reprises das finais das Copas de 1994 e 2002¹, com a seleção do penta superando em 23% o público que reviu à final da equipe do tetra. Tais assimetrias ocorrem porque voltar a assistir a partidas, principalmente àquelas que guardam maior distanciamento cronológico do tempo presente, é uma forma de recuperar a memória.

Nesse processo, não apenas se vê novamente um jogo, mas, também, se reelaboram partidas, afetos e impressões, o que inclui imprecisões, pois, como observam alguns autores, a memória funciona como uma espécie de reconstrução generativa, e não como memorização mecânica (Godoy, 1977). E as diferenças de audiência parecem indicar que, na reelaboração

O investimento afetivo no passado revela um envolvimento ainda forte com a seleção, ou as seleções daqueles períodos revisitados. Até porque o processo de reelaboração dessa memória pela imprensa está imbricado com outros acontecimentos, como a trajetória do futebol brasileiro nos anos seguintes e sua apropriação e sua representação pela jornalismo esportivo.

Dessa forma, assistir a reprises de partidas, principalmente as mais emblemáticas, dificilmente, é equivalente a transportar-se novamente ao mesmo lugar, quer se estivesse no estádio ou no sofá de casa. Trata-se de uma relação em outra dimensão simbólica, portanto, de uma nova relação. O principal fio condutor dessa revisita é a narrativa, seja a original ou uma contemporânea que busca contextualizar o evento para sujeitos que não o presenciaram.

A narrativa, também, é uma forma de jogar. Ela forma parte um tripé, junto com o jogo e o imaginário. É, portanto, sob a complexa combinação desses fatores que cada torcedor vai viver, novamente, ou pela primeira vez – no caso, das novas gerações – a revisita a uma partida. Afinal, se nada é igual quando é revisitado, cada torcedor, ainda que fortemente impactado pela narrativa da imprensa, vai viver a sua própria partida. E, mesmo que essa experiência tenha interseções – quase inevitáveis – com a de outros sujeitos, haverá, fragmentos, registros, lampejos que serão sempre singulares. Trata-se de uma das magias do futebol: permitir a complexa, e intensa, combinação de sentimentos coletivos com a sensação singular de cada torcedor.

Notas de rodapé

¹ Como a transmissão da Copa de 1970 ficou a cargo do Sportv, a comparação com os índices de audiência da TV aberta nas duas Copas mencionadas poderia causar distorções importantes.

 

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

Godoy, Jack. The domestication of savage mind. Londres: Cambridge Univesity Press,1977.

HACKETT, Robert A. “Declínio de um paradigma? A parcialidade e a objectvidade nos estudos dos media noticiosos” in TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993.

LEROI-Gourhan, A. O gesto e a palavra. Lisboa: Edições 70,  1981.

SOUTO, Sérgio Montero. Imprensa e memória da Copa de 50: a glória e a tragédia de Barbosa. Niterói: Dissertação de Mestrado da UFF, 200

Internet: Folha de Londrina

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O futebol no mundo pós-pandemia

O futebol é uma paixão nacional e, nas últimas semanas, a discussão sobre um possível retorno de competições no país tem crescido de forma exponencial. Na Alemanha, o retorno já aconteceu, porém sem a presença do torcedor. Mas como será esse futebol no mundo pós-pandemia, que, pelo menos num primeiro momento, acontecerá sem a presença, ou com presença muito restrita, do torcedor? Ouvimos Nico Cabrera, doutor em Antropologia e pesquisador da Universidade Nacional de Córdoba. Autor de vários estudos sobre torcidas organizadas no Brasil e na América Latina. Ele nos fala sobre suas experiências junto a estas torcidas, como está a ação delas durante a pandemia e de como será o futebol pós-COVID-19 para esse grupo de torcedores já tão marginalizados no Brasil e no mundo.

Foto Nico Cabrera - Materia Torcidas organizadas
Nicolas Cabrera (imagem cedida pelo próprio para o blog)

LEME – Como você acredita que a pandemia provocada pelo novo coronavírus irá impactar o futebol e, especificamente, em relação a torcida e ao ato de torcer?

Nico Cabrera – Eu vejo um cenário de muitas incertezas. Acredito num agravamento de duas tendências. Uma diz respeito ao predomínio do futebol negócio, onde os torcedores serão pensados mais como consumidores. O futebol sendo, portanto, mais elitizado, protocolizado e espetacularizado. A segunda, seria o torcedor sendo visto mais como um espectador passivo do que ator protagonista. Um outro ponto importante diz respeito a um aumento de outras formas de se torcer. Não falaria de uma nova cultura do torcer. Mas de uma soma, de uma aglutinação de processos do torcer que já estavam em desenvolvimento mesmo antes da pandemia. Haverá, por exemplo, um deslocamento do “torcer” para a cultura digital e a valorização do “assistir jogos pela televisão”. Na volta do campeonato alemão, a Sky Sports bateu recorde de audiência com mais de 6 milhões de espectadores. 

LEME – E qual será o lugar das torcidas organizadas neste futebol elitizado e “arenizado”?

NC – Com a transformação dos estádios em Arenas, os torcedores já vinham sofrendo uma ofensiva para que eles fossem retirados dos estádios. Com a pandemia, a tendência é esta prática se intensificar. Mas eu vejo isso também como uma oportunidade para as torcidas se reinventarem. E esta reinvenção possui um sentido duplo. Ela pode vir como um movimento de resistência, com protestos, como tem acontecido na Europa. Pode também ser criativa, desenvolvendo novas formas de torcer. Os torcedores sempre dão um jeito de se tornarem protagonistas. No outro sentido, as torcidas organizadas, ou “barras”, como são conhecidas no resto do continente, podem aproveitar esse momento para mudar a sua imagem junto a sociedade, visto que são muito estigmatizadas como organizações violentas.

LEME – Como têm sido a ação das torcidas organizadas, ou “Barras”, durante a pandemia?

NC – Então, está havendo muito engajamento. Muitas torcidas organizadas, no Brasil e nas Américas, estão atuando em campanhas de ajuda e solidariedade durante o coronavírus. Posso citar o exemplo da “Gaviões da Fiel”, do Corinthians e de outras, como as torcidas organizadas do Bahia, do Náutico, Cruzeiro. Na transformação do estádio do Pacaembú, São Paulo, em hospital de campanha, houve a adesão de muitos voluntários de torcidas organizadas. Na colômbia, desenvolveram campanhas de ajuda humanitária as torcidas do Atlético Nacional de Medelín, do Colo-colo. As torcidas organizadas são formadas por pessoas com penetração em territórios pobres e periféricos. Por esta razão, elas podem contribuir bastante em campanhas de saúde pública. Esta é uma função que as torcidas organizadas exercem fora dos estádios, ninguém vê e são muito importantes.

LEME – Você fala num estigma das torcidas organizadas como causadoras de violência em estádios. A mídia constantemente remete à ausência do público, das “famílias”, nos estádios também as ações destas torcidas. Você acredita num futebol pós-pandemia sem a presenças das “barras”?

NC – O Futebol, sem as torcidas organizadas, perderia seu conteúdo popular, festivo, carnavalesco, colorido. Elas fizeram, do futebol, o esporte mais popular no Brasil e nas Américas. É errado pensar que, tirando as torcidas organizadas dos estádios, a violência irá desaparecer. Em diversos lugares do mundo, inclusive no Brasil, adotou-se um modelo de torcida única nos estádios, sem a presença da torcida do time “visitante”. Mas a violência não diminuiu. A violência não desaparece, ela se desloca. Com a torcida única, presenciamos briga fora dos estádios e mesmo dentro dos estádios, entre torcidas do mesmo time.  Outro ponto a ser destacado é o aspecto cultural. No Brasil, e nas Américas, o verdadeiro torcedor é, nas representações dos torcedores, aquele cara, ou aquela menina, que vai aos estádios, apoiando sua equipe nos momentos bons e, mais ainda, nos momentos difíceis. Na moral dos torcedores, a presença física é uma regra de ouro. Ele não pode ser alguém que fica em casa assistindo futebol na televisão. O verdadeiro torcedor é aquele vai, além de toda adversidade, ver seu time no estádio. Se ele tiver que quebrar regras, melhor ainda. Isso só acrescenta a sua reputação como torcedor. Torcer é um sentimento, uma paixão. Além disso, as narrativas do futebol sempre precisam de um território. A nação, o clube, o bairro, o estádio. Isso não vai desaparecer. Os torcedores sempre terão um território a conquistar. Então, no futebol pós-pandemia, haverá muitas mudanças, mas nem tudo vai mudar e vamos torcer para que o verdadeiro torcedor, sobreviva e continue indo aos estádios.

Entrevista cedida por Henrique Biscardi.

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A peste e o gol por vir

“O resto do almoço se desenrolou à procura de um assunto. Mas tudo se tornou muito fácil quando Rambert descobriu que o cara de cavalo era jogador de futebol. Ele próprio praticara esse esporte. Falou-se, portanto, do campeonato da França, do valor dos times profissionais ingleses e da tática em W. No fim do almoço, o cara de cavalo estava animadíssimo e tratava Rambert de tu, para persuadi-lo de que não havia lugar mais belo num time que o de meio-campo. ‘Compreendes’, dizia ele, ‘meio-campo é quem distribui o jogo. E distribuir o jogo, isso é futebol’. Rambert era da mesma opinião, embora tivesse jogado na posição de centroavante. A discussão foi interrompida apenas por um aparelho de rádio que, depois de ter entoado em surdina melodias sentimentais, anunciou que na véspera a peste fizeram 137 vítimas. Ninguém reagiu na sala. O homem com cara de cavalo encolheu os ombros e levantou-se. Raul e Rambert imitaram-no.”

Estes curiosos acontecimentos ocorreram no indeterminado ano de 194…, na cidade argelina de Orã. Planejava-se então uma fuga. Raymond Rambert, jornalista que vivia do outro lado do Mediterrâneo, em meio aos ardores e amores da metrópole parisiense, vira-se aprisionado de maneira repentina por uma situação terrivelmente insólita: enquanto buscava informações acerca das condições de vida dos árabes locais para um grande periódico francês, uma peste passou a se alastrar assustadoramente pela urbe africana, levando seu prefeito – não sem antes muito hesitar, como sói acontecer – a declarar o fechamento total das fronteiras sob sua jurisdição. Suspendia-se, pois, o direito de ir e vir para além daqueles limites por tempo indeterminado. Após colecionar negativas pelas vias oficiais quanto ao seu retorno à Europa, um já desesperançado Rambert passara a recorrer aos submundos daquele município aziago – apelando a desconhecidos como aquele “cara de cavalo” à mesa de um restaurante espanhol. Seria de algum modo possível conduzir um arranjo deste tom a uma conversa minimamente agradável, ainda que breve? Ora, voilà, ei-lo sempre na manga: o futebol! Adeus, cerimônias e impessoalidades! Por instantes, toda aflição fora colocada para escanteio, e o tétrico dera lugar ao tático. A questão é que não há celebração que se sustente onde impera a morte: sem muitas delongas, o rádio – uma das únicas pontes ativas com o exterior – logo lhes lembrava que, porta afora, 137 pessoas mais deixavam de ser. A doença, insensível às venturas humanas, cumpria religiosamente seu rito funesto. Era hora de partir.

A cena acima compõe o enredo de A Peste, clássico instantâneo publicado originalmente em 1947, numa Europa em escombros devido às atrocidades impostas pela Segunda Guerra Mundial. Para quem é afeito a discussões do gênero, o livro costuma disputar com seu antecessor, O Estrangeiro, trazido à luz cinco anos antes, o posto de obra-prima do trabalho de Albert Camus. Franco-argelino como a infecta Orã que concebera (morto aos 46 num acidente de carro, em 1960, o autor não pôde viver a independência de seu país natal, havida somente em 1962), Camus seria laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, a maior honraria do circuito oficial das letras, dez anos depois da disseminação de sua Peste – passível de ser lida tanto ao pé da letra, enquanto relato de vidas assoladas por uma epidemia mortal, como a representar metaforicamente uma França até havia pouco ocupada pelas não menos mortais tropas nazistas. Pois bem, foi justo a estas páginas que recorri quando me impus, aturdido, ao necessário isolamento social pelo qual estamos passando ao redor do globo – na miséria do possível a cada um – devido à propagação pandêmica da Covid-19, experimentando um estado de calamidade mundial inédito para as gerações posteriores àquela mesma guerra que um dia ardeu às retinas do escritor. A propósito, fazê-lo caiu no lugar-comum: na Itália, epicentro europeu da crise, A Peste foi alçada à lista dos mais vendidos sete decênios depois de seu lançamento; na França, que também vem perdendo milhares de cidadãos para o vírus, quadruplicaram-se as vendas do título em uma semana (1); por aqui, efeito similar levou a editora que hoje publica Camus a indicar um aumento de 65% em relação à mesma procura (2). Febre sintomática, infelizmente. A temática da contaminação como disseminadora da dor está presente no imaginário ocidental ao menos desde os gregos antigos – basta lembrarmos que a Ilíada, considerada o pilar fundamental da Literatura por estas bandas, tem início com as baixas que flechas infecciosas de um colérico Apolo impõem ao exército grego intentando vingar Crises, sacerdote ultrajado pelo rei Agamêmnon no acampamento de guerra próximo à Troia, e que Édipo Rei, a mais célebre das tragédias clássicas, representa a ruína de seu protagonista a partir da tentativa de livrar Tebas de uma misteriosa peste –, mas é decerto com Camus que ela encontrou uma versão terminante.

Fonte: blogbertrand.

Enquanto redijo este texto, na madrugada de 08 de abril de 2020, absorto em reflexões sobre o que poderá ser de nós, a chuva lava a vila em que moro, localizada à sombra de um melancólico Maracanã – como tantas vezes em sua história recente, gigante impotente forçado ao silêncio. As 137 mortes da rádio argelina de Camus ecoam de modo assustador no último noticiário nacional: tornamo-nos o primeiro país da América Latina a ultrapassar oficialmente a centena de perdas em vinte e quatro horas. No dia que acaba de findar, 114 famílias choraram a perda dos seus – em última instância, a despeito das diferenças de um país cindido, dos nossos (3). O prognóstico, sabemos, é dos piores. A fim de torcer a tarefa desta escrita na direção de algum alento, lanço-me a um futuro sem prazos imagináveis: que sensação nos tomará de assalto quando voltarmos às arquibancadas de nossa cidade, Orã dos tristes trópicos, a entoar cânticos ao longo do espetáculo singular que é uma partida de futebol?

2º - Corinthians: 20.702.001Corinthians encara Flamengo em busca de semana mais tranquila
Fonte: Portal R7.

Camus não me ajuda a pensá-lo apenas por sua contribuição à Literatura e ao Teatro. Ao lado de sua obra, há a sua própria vida (4). Antes de se tornar um craque com as palavras – digamos, meio-campista a distribuir o jogo –, ainda jovem ele sonhara em ser futebolista. Conta-se que, durante a infância paupérrima que teve, sua avó não lhe poupava reprimendas após as peladas que disputava pelas zonas populares de Argel, pois elas punham em risco a integridade dos parcos sapatos que o menino possuía. Quis o destino que, na universidade, Camus abandonasse em definitivo a pretensão de atuar em qualquer uma das dez posições móveis do jogo para se dedicar à derradeira proteção das redes: tornou-se goleiro da Racing Universitaire Algérois (RUA), numa época em que foi deveras reconhecido como bom jogador. Ao cabo, sua carreira foi abreviada – coincidência maldita nestes tempos de coronavírus – graças à ação de uma doença respiratória: a tuberculose, que havia tempos lhe acompanhava e por fim se agravava. De todo modo, a paixão pelo futebol o dominou ao longo de toda sua existência. São lindas as imagens registradas no Parc des Princes em outubro de 1957, em que Camus, um dos 35.000 presentes ao confronto entre Mônaco e Racing Club de Paris – clube com as mesmas cores do time universitário que defendera na Argélia –, expressa indulgência em face de uma reação irremediavelmente lenta do porteiro da equipe parisiense. Entrevistado depois do gol, Camus defende seu confrade das insinuações de culpa, afirmando em tom compassivo que é preciso assumir o encargo de atuar sob as traves para saber quão difícil é suportá-lo. Afinal, o goleiro que, uma vez humilhado, busca a bola ao fundo das redes e retorna ao seu posto de cabeça erguida age qual um Sísifo amplificado, a rolar sempre e novamente sua pedra ante a multidão que dele desdenha. Não é preciso muita imaginação para pintar um encontro entre Camus e Nelson Rodrigues, a dramatizarem juntos, envoltos na fumaceira de seus cigarros, defesas candentes e indeléveis em prol do mais descabido dos frangos.

Mortais, quando este pesadelo passar – e haverá de passar –, quando enfim pudermos experimentar a banalidade metafísica do primeiro gol pós-apocalíptico, que possamos novamente nos entregar sem receios ao abraço no desconhecido – um cara de cavalo qualquer, da Argélia ao Brasil de Oiticica, com o mesmo escudo ao peito –, sem receios de que este gesto fraterno nos condene a jamais participar de novas peregrinações aos estádios. Eis a verdade: embora absurdo – ou porque absurdo? –, jaz no futebol uma fonte inesgotável de sentido para a tragédia que somos. Camus bem o sabia. Sabemos bem todos nós.

Notas de Rodapé:

(1) O Globo.

(2) O Globo.

(3) Folha de SP.

(4) Folha de SP.

(5) Youtube.

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Quanto importa o esporte?

Por César R. Torres* e Francisco Javier López Frías**/ El Furgón***

Rory Smith é um correspondente esportivo do The New York Times especializado em futebol. Em sua coluna de domingo 15 de março, quando o coronavírus já havia paralisado todo tipo de competências esportivas ao redor do mundo e confinado grande parte da humanidade em suas casas, expressou que, em relação a uma pandemia que pode custar numerosas vidas, o futebol não importa em um sentido real. Agregou que há coisas mais importantes em que pensar e que o futebol é, no final das contas, um esporte.

Leme tradução 1
Rory Smith (Fonte: Twitter)

No domingo seguinte, Smith voltou a refletir sobre a importância do esporte. Reconheceu, admitindo ter sido influenciado pela correspondência que recebeu do público leitor durante a semana, que para muitas pessoas o esporte é importante e que isso é bom. Entretanto, insistiu que não importa tanto como outras coisas. Embora não seja a prioridade de ninguém neste tempo funesto, o esporte importa, elaborou, como indústria e economia, mas também como algo para o qual dedicamos muito tempo. Concluiu sua opinião sobre o tema estipulando: “Mais de uma coisa pode ser importante. Nem todas as coisas têm que ter igual importância”.

 

Leme tradução 2
Coluna de Smith no site do New York Times

As colunas de Smith remetem a uma frase atribuída a várias personalidades futebolísticas: “O futebol é a mais importante das coisas menos importantes da vida”. Este julgamento axiológico se estende ao esporte em geral. Seguindo essa posição, bastante propagada, o esporte ocupa um lugar importante nas atividades que consideramos trivais. Isso seria ainda mais aparente em tempos de coronavírus, em que a satisfação das necessidades básicas para sobrevivência prevalece. Assim, o esporte, no melhor dos casos, teria um valor secundário.

Contudo, a emergência sanitária e suas consequências destacam, ao impedi-los, o valor de um conjunto de atividades, entre as quais figura o esporte. Ao contrário do que afirmou Smith, o esporte não é importante principalmente por seu dinamismo como indústria e economia, mas por sua natureza e pelas possibilidades existenciais que oferece. Aquela e estas, conjuntamente, elucidam seu valor e a fervente adesão de milhões de pessoas.

Leme traduçao 3
Coluna de Smith no New York Times

A partir do trabalho do filósofo Alasdair MacIntyre, pode-se dizer que o esporte é uma prática social. Ou seja, é uma atividade estabelecida socialmente, coerente, complexa e de caráter cooperativo com ganhos internos (aqueles que só se materializam por meio de sua prática contínua) e padrões de excelência. A peculiaridade do esporte reside no fato de que é um problema artificial estabelecido e regulado por regras que requerem a implementação de habilidades físicas menos eficientes para alcançar o objetivo especificado simplesmente para torná-lo possível. Dito de outra maneira, o esporte é um jogo regido pela “lógica da gratuidade” no qual os participantes tentam resolver um problema desnecessário por meio de habilidades físicas simplesmente com o objetivo de resolver o problema.

Ao testar seus praticantes, o esporte abre a possibilidade de demonstrar aptidão e alcançar algo que é provado com afinco. O filósofo Thomas Hurka argumenta que a realização – assim como a tentativa de alcançar – é intrinsecamente boa porque tem a capacidade de unificar a vida em um todo coerente. De acordo com sua visão, os objetivos abrangentes que se estendem no tempo e são complexos, que demandam cooperação, planejamento e precisão, como os que oferece o esporte, são mais valiosos que os objetivos que sofrem com essas condições. Hurka ressalta o valor de alcançar algo difícil só porque é difícil e não porque é agradável, correto ou esperado. Isso, por sua vez, destaca a “importância trivial” – ou artificialidade – do esporte como plano de vida.

Leme tradução 4
Site do River Plate

Além disso, envolver-se em uma prática social como o esporte implica tanto em reconhecer seus valores internos e padrões de excelência como em comprometer-se a cultivá-los e a enobrece-los, a aceitar ser julgado de acordo com eles e a respeitar a comunidade de praticantes que também permite sua existência, manutenção e avanço. Nesse sentido, poderia se dizer que o esporte representa um “estilo de vida perfeccionista” marcado pela busca da excelência atlética e, consequentemente, pelo exercício e extensão das capacidades e virtudes necessárias para alcançá-la. Já afirmava o filósofo John Rawls que o perfeccionismo exige que todos os esforços sejam dirigidos para maximizar a realização da excelência humana. O esporte facilita a nobre aspiração de um rendimento excelente.

O tipo de relação com o esporte que exige o perfeccionismo manifesta um compromisso de todo coração. Segundo o filósofo William J. Morgan, este compromisso é apaixonado, consciente, atento e comunitário. A boa vida inclui alguma atividade com que as pessoas se comprometam de todo coração, porque esse compromisso guia e enriquece a vida. Morgan enfatiza que o esporte é uma das poucas atividades na qual esse compromisso é visível e valorizado. E é especialmente adequado o compromisso sincero porque ao focar nos atributos internos e padrões de excelência sua lógica reverte o instrumentalismo vigente na sociedade. Novamente, o potencial emerge de sua artificialidade. Talvez por isso o filósofo José Ortega y Gasset escreveu que o desinteresse instrumental na filosofia e no esporte era um “dom de generosidade que floresce apenas na mais alta altitude vital” e recomendou não levar a vida muito a sério “antes bem, com o temperamento do espírito que leva (ao) exercício de um esporte”. Em suas palavras, o esporte, o jogo enérgico, é “um esforço espontâneo, luxuoso […] que se tira prazer em si mesmo”, praticá-lo é tomar a vida vigorosamente.

Leme tradução 5
Site do real Madrid

Os diferentes valores do esporte sinalizam sua força humanizadora. Quando as pessoas tomam o caminho do esporte, elas colocam em ação e preservam a capacidade de dar forma e sentido a suas próprias vidas. As pessoas se humanizam elegendo e construindo significados em relação a suas escolhas. Optar por ser um desportista abre a possibilidade de cumprir com o que o poeta Píndaro enigmaticamente prescreveu: “Torne-se o que és”.  Se os seres humanos estão determinados por algo, é para autodeterminar e tentar se tornar quem eles querem ser. Ao eleger desportivamente, moldamos o ser. A vida desportiva, portanto, induz a forjar, nesse enorme esforço de autodeterminação, uma identidade. Esse processo tem uma dimensão comunitária. Como mostrou o antropólogo Clifford Geertz, o esporte forma um conjunto de significados que estruturam uma história que as comunidades humanas contam a si mesmas sobre si mesmas. Em outras palavras, o esporte também gera uma identidade comum. Nós nos entendemos como uma comunidade, exercendo-a.

Suas qualidades e suas potencialidades permitem-nos sustentar que o esporte se encontra entre as coisas mais importantes da vida. Nada do que foi dito aqui deve ser interpretado como justificação para aliviar a proibição do esporte. Por outro lado, tudo deve ser interpretado como uma defesa do valor e da importância do esporte, assim como de seu cultivo apaixonado. Também deve ser interpretado como explicação de porquê sente-se falta dele. Enquanto enfrentamos a pandemia e sentimos sua falta, vamos tentar, dentro dos limites do confinamento atual, mantermo-nos desportivamente ativos e replicar, mesmo que imperfeitamente, sua altitude vital.

*Doutor em filosofia e história do esporte. Docente na Universidade do Estado de Nova York (Brockport)

** Doutor em filosofia. Docente na Universidade do Estado da Pensilvânia (University Park)

**** Texto originalmente publicado em El Fúrgon no dia 29 de março de 2020.

Tradução livre: Leticia Quadros e Fausto Amaro (LEME/UERJ).

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O jornalismo esportivo em tempos de Coronavírus

Como uma jovem jornalista em formação, apaixonada por esporte, esse novo modo de viver que nos foi imposto me fez refletir. Refletir acerca do papel do jornalista, do papel do esporte e do nosso papel enquanto pessoas. Para uma pessoa que gosta de esporte e está cursando jornalismo, essas três variáveis são quase indissociáveis. Enquanto… Continuar lendo O jornalismo esportivo em tempos de Coronavírus

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