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O provincianismo da dita mídia “nacional”

“Ex-Botafogo-PB, Durval é campeão da Libertadores da América de 2011 pelo Santos”.

A manchete, caro leitor, ainda que não tenha sido de fato publicada e que aqui sirva de mera ilustração, é rigorosamente correta.

O zagueiro Durval, um dos maiores campeões do futebol brasileiro entre os anos de 2003 e 2016, que passou por clubes como Botafogo-PB, Brasiliense, Athletico Paranaense, Sport e Santos, tendo sido campeão em todos eles e tendo acumulado 11 títulos estaduais, duas Copas do Brasil e uma Libertadores ao longo da carreira, é paraibano de Cruz do Espírito Santo e teve como primeiro título o Campeonato Paraibano de 2003.

Fonte: Globo

Ainda assim, você há de convir que a manchete, embora rigorosamente correta, não haveria de fazer o menor sentido se escrita em 2011, oito anos e tantos títulos depois de Durval ter iniciado a carreira e ter conquistado a sua primeira taça.

Aliás, aqui vai uma pequena correção.

A manchete haveria de fazer sentido se escrita, sei lá, pela assessoria de imprensa do próprio Botafogo-PB ou por algum veículo local da Paraíba, que quisesse destacar os feitos de um conterrâneo que, um dia tendo jogado em sua própria terra, estava a conquistar a América, a conquistar horizontes jamais imaginados por ele antes disso.

Mas então, se a referência ao Belo e à Paraíba parecem inimagináveis no caso acima citado, por que então a imprensa dita nacional (e não paulista, saliente-se) normaliza manchetes que idealizam um centro em detrimento de uma suposta periferia?

Quem, afinal, define o valor-notícia? Quem decide que um clube do Sudeste é mais importante do que um clube do Nordeste, por exemplo?

Todo esse preâmbulo, pois, é para analisar uma reportagem que foi publicada recentemente pelo portal da ESPN, em 9 de abril de 2022, sobre a estreia do Campeonato Brasileiro deste ano.

Fonte: Portal RMC

A manchete é assim:

“Ex-Corinthians dá show, e Palmeiras abre o Brasileirão com derrota para o Ceará em casa”.

Sim, eu estou mesmo propondo uma espécie de análise do discurso, um debate sobre um portal de notícias que se arvora nacional mas que, em casos como esse, demonstra um provincianismo difícil de entender.

Se o campeonato é o Brasileiro, se o portal é nacional, se a cobertura é total, por que, então, a referência, o centro, o que aparentemente importa, é tudo o que cerca o estado de São Paulo?

Para começo de debate, por que é o Palmeiras quem perde e não o Ceará quem vence?

Por que é o “ex-Corinthians” Mendonza (informação, aliás, que embora esteja na manchete, só aparece no oitavo parágrafo do texto) o craque do jogo, se faz quatro anos que o atacante colombiano não atua mais pelo clube paulista e se já há algum tempo ele é destaque do time cearense?

Tem mais.

Por que, afinal, em certo momento do texto, surge um intertítulo alertando que “poderia ser pior”?

Pior para quem, oras?

Para o Ceará, que venceu fora de casa, ao menos que eu saiba, melhor impossível.

Mas então…

Por que a ênfase total no Palmeiras? Por que diminuir o mérito cearense? Por que o destaque a um Corinthians que nem mesmo participava do jogo em si? Por que lamentar um suposto cenário mais catastrófico de um clube sem nem se importar com o feito do vencedor? Por que a cobertura da mídia é apequenada ao ponto de imaginar que o futebol que importa é apenas o do Sul e do Sudeste brasileiro?

Enfim, pesquisadoras como Hévilla Wanderley e outros nomes da Rede Nordestina de Mídia e Esporte (ReNEme) discutem amplamente a “questão nordestina” no futebol brasileiro. Os leitores que quiserem poderão se aprofundar no tema, visto que aqui é impossível fazer isso.

Mas é imperativo lembrar que portais como a ESPN, que relegam o Ceará à margem, a uma posição coadjuvante e de menor importância aos clubes do chamado “eixo”, é o mesmo que se infla sempre que possível para chamar sonsamente de “xenofobia” (sim, Mauro Cezar Pereira, eu estou falando de você, mesmo que você não faça mais parte do grupo) as tentativas de resistência dos clubes nordestinos contra essa hegemonia predatória que, muitas vezes financiadas pela própria mídia, tenta classificar de “nacional” apenas aquilo o que lhes cerca.

Mas, se a resistência não partir dos clubes do Nordeste, e de todos os demais de fora do “eixo”, quem haverá de resistir a esse tipo de abordagem que institucionaliza o preconceito? Que classifica como estrangeiro (um “estranho”, um “não proprietário do solo”, nas palavras de Georg Simmel), todos os clubes que estão para além da província que a “mídia nacional” se sente parte?

No fim de tudo, era esse o questionamento que eu queria deixar.

Referências

FERNANDES, Hévilla Wanderlley. Não é Apenas um Jogo: a questão meridional no futebol. 2020. Dissertação. Mestrado em Ciência Política – Programa de Pós-Graduação em Ciência Política e Relações Internacionais, Universidade Federal da Paraíba (UFPB), João Pessoa, UFPB.

SIMMEL, Georg. O Estrangeiro. Trad. Mauro Guilherme Pinheiro Koury. Revista Brasileira de Sociologia da Emoção, v. 4, n. 12, pp. 265-271, dez. 2005.

Produção audiovisual

Já está no ar o quadragésimo sétimo episódio do Passes e Impasses

O tema do nosso quadragésimo sétimo episódio, o primeiro do ano, é o Futebol nordestino na mídia. Com apresentação de Fausto Amaro e Abner Rey, gravamos remotamente com Bruno Balacó, jornalista do Grupo Cidade, pesquisador do coletivo ReNEme e doutorando em Comunicação na Universidade Federal do Ceará, e Anderson Santos, pesquisador do coletivo ReNEme, professor da UFAL e doutor em Comunicação pela Universidade de Brasília.

Acesse o mais novo episódio do podcast Passes e Impasses no SpotifyDeezerApple PodcastsPocketCastsOvercastGoogle PodcastRadioPublic e Anchor.

O podcast Passes e Impasses é uma produção do Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte em parceria com o Laboratório de Áudio da UERJ (Audiolab). O objetivo do podcast é trazer uma opinião reflexiva sobre o esporte em todos os episódios, com uma leitura aprofundada sobre diferentes assuntos em voga no cenário esportivo nacional e internacional. Para isso, contamos sempre com especialistas para debater conosco os tópicos de cada programa.

Você ama esporte e quer acessar um conteúdo exclusivo, feito por quem realmente pesquisa o esporte? Então não deixe de ouvir o quadragésimo sétimo episódio do Passes & Impasses.

No quadro “Toca a Letra”, a música escolhida foi Hino do Batistão, de Luiz Gonzaga.

Passes e Impasses é o podcast que traz para você que nos acompanha o esporte como você nunca ouviu.

Ondas do LEME (recomendações de artigos, livros e outras produções):

Coluna do ReNEme – Portal Ludopédio

Os direitos de transmissão do campeonato brasileiro de futebol – Anderson Santos [livro]

Cotas de televisão do Campeonato Brasileiro “apartheid futebolístico” e risco de “espanholização” – Emanuel Leite Júnior

As transmissões de futebol no TikTok e o pioneirismo do Nordeste – Bruno Balacó [artigo]

Podcast Baião de Dois

Coletivo ReNEme

Mulheres no campo: o ethos da torcedora pernambucana – Soraya Barreto [livro]

Equipe

Coordenação Geral: Ronaldo Helal
Direção: Fausto Amaro e Filipe Mostaro
Roteiro e produção: Abner Rey e Carol Fontenelle
Edição de áudio: Leonardo Pereira (Audiolab)
Apresentação: Fausto Amaro e Abner Rey
Convidados: Anderson Santos e Bruno Balacó

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