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Quando as arquibancadas também não serviam ao torcer: imagens do Estádio Nacional do Chile em 1973

Vivemos, com a pandemia, uma situação singular nos estádios de futebol do mundo. As partidas ocorrem normalmente dentro de campo, mas as arquibancadas estão completamente vazias: a circulação do vírus impede aglomerações e, consequentemente, a festa das torcidas. Enquanto os gramados, depois de meses, voltaram a ser ocupados pelos jogadores, as arquibancadas seguem praticamente desertas. Contam somente com a presença das bandeiras, sem ninguém para tremulá-las.

Há quase 50 anos, uma outra situação de excepcionalidade envolveu um estádio de futebol específico. Em 11 de setembro de 1973, ocorreu o golpe militar no Chile que tirou do poder o governo democraticamente eleito de Salvador Allende. No seu lugar, chegava Augusto Pinochet, que implantaria uma ditadura que duraria quase vinte anos.

Um dia depois do golpe, o maior estádio do país, inaugurado em 1938, principal palco da Copa do Mundo de 1962 e com capacidade para 80.000 torcedores, se transformava no maior centro de detenção e tortura da América Latina. Com os jogos no local suspensos, o gramado do “Coloso de Nuñoa” não presenciava mais os jogadores e a bola, mas sim os militares e seus fuzis. Nas arquibancadas, não estavam mais os torcedores, e sim os presos políticos.

Os detentos sofriam com torturas físicas e psicológicas, simulações de fuzilamento e interrogatórios incessantes. Muitos foram assassinados.

Dormiam nos vestiários e no piso frio dos corredores internos sob as tribunas. De dia, ficavam nas arquibancadas, à espera de não serem chamados para os temíveis interrogatórios.

Após 10 dias de total reclusão, o estádio foi liberado para visitas da Cruz Vermelha e da imprensa. A ditadura pinochetista sofria muita pressão internacional, e os militares queriam passar uma imagem de normalidade e respeito aos direitos humanos.

Deixaram que os fotojornalistas entrassem. O governo parecia entender que as fotografias, como afirma Boris Kossoy (2009, p.21), são “fragmentos selecionados da aparência das coisas”. Tratam-se de seleções a partir do real, com determinados cortes espaciais e temporais, definidos pelo operador da câmera. A ideia era que as fotografias mostrassem uma determinada realidade, que corroborasse a versão dos militares.

Presos bem cuidados, bem alimentados, e um ambiente prisional como qualquer outro. Mas não seria exatamente esse o papel cumprido pela fotografia nesse contexto histórico de excepcionalidade.

O governo contava que os fotógrafos poderiam criar uma realidade de acordo com a versão oficial dos fatos, mas não imaginava que eles poderiam construir um modelo de representação diferente do desejado. Ainda segundo Kossoy (2009, p. 30), “a imagem fotográfica é antes de tudo uma representação a partir do real segundo o olhar e a ideologia de seu ator”.

Os fotógrafos que estiveram no Estádio Nacional naquele período, grandes nomes como Marcelo e Christian Montecino, buscaram mostrar, dentro dos limites impostos, o absurdo daquela situação.

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Fonte: Biblioteca Nacional de Chile

As cenas de reencontros familiares e trocas de carinhos entre pessoas que se amam não poderiam deixar de sensibilizar os operadores das máquinas fotográficas. E estão presentes entre as imagens produzidas naquele contexto. Beijos, carinhos e carícias por entre as grades mostram que o amor consegue sobreviver às condições mais extremas. Mas também serviam ao desejo dos militares de tentar normalizar o absurdo.

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Fonte: Biblioteca Nacional de Chile

Talvez com essa consciência, os fotógrafos buscaram brechas para documentar outros aspectos daquela realidade. As arquibancadas cheias, mas sem as camisas e bandeiras dos tradicionais clubes chilenos. Indivíduos de expressões angustiadas sob a mira dos fuzis do exército.

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Imagem: Marcelo Montecino

Parecia que desejavam – e precisavam – documentar aquele estádio absurdo. Joan Fontcuberta (2014, p.188) discorre sobre a subjetividade inerente à produção imagética. Por não ser um robô, e sim um ser humano, o fotógrafo imprime seus sentimentos no fazer fotográfico, produzindo imagens que tomam partido.

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Imagem: Marcelo Montecino

E a tomada de posição parecia ser clara: de oposição a um governo que foi capaz de tomar de sua população até a principal praça esportiva do país. O Estádio Nacional foi centro de detenção e tortura por 59 dias, de 12 de setembro de 1973 a 9 de novembro daquele ano. Pelo local, passaram nesse período cerca de 40 mil pessoas, e aproximadamente 400 delas foram assassinadas.

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Fonte: Biblioteca Nacional de Chile

O estádio só deixou de ser prisão com a proximidade da partida válida pelas eliminatórias da Copa do Mundo de 74. A seleção chilena deveria enfrentar no país o selecionado soviético na busca pela vaga no Mundial da Alemanha Ocidental. A União Soviética se recusou a jogar no estádio que servia como prisão, mas o governo chileno, com o aval da FIFA, preparou o campo para a realização do jogo. A URSS não foi a Santiago, o Chile venceu por WO e foi para a Copa.

Desde então, o estádio nunca mais voltou a servir como presídio. Seu gramado histórico foi novamente ocupado pelos jogadores, e as arquibancadas pelos torcedores de Colo Colo, Universidad de Chile, Universidad Católica e outras equipes chilenas e latino-americanas.

As fotografias produzidas naquele momento são fundamentais para entendermos o que aconteceu ali naquele período. Eduardo Galeano (2010, p. 20) dizia que “não há nada menos mudo que as arquibancadas sem ninguém”. Talvez aquelas arquibancadas cheias de prisioneiros fossem ainda mais mudas.

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Imagem: Christian Montecino

Referências

FONTCUBERTA, Joan. A câmara de Pandora. São Paulo: Gustavo Gili, 2014.

GALEANO, Eduardo. El fútbol a sol y a sombra. 2a edição. Buenos Aires: Siglo Veintiuno Editores, 2010.

KOSSOY, Boris. Realidades e ficções na trama fotográfica. São Paulo: Ateliê Editorial, 2009.

Site Memória Chilena

GE

El Pais Brasil

La Nacion

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Palestino, 100 anos de futebol e identidade

Há exatos 100 anos, nascia no Chile um dos clubes de futebol mais singulares do mundo. Em 20 de agosto de 1920, imigrantes palestinos fundaram o Club Deportivo Palestino na cidade de Osorno, no sul do país. No local, foi disputada uma Olimpíada de Colônias Estrangeiras, e a comunidade oriunda da Palestina criou o clube para que ela pudesse ser representada nas competições (VIDAL, 2018). Posteriormente a agremiação se estabeleceu na capital Santiago. Desde a sua criação, o Tino leva as cores da bandeira palestina – verde, vermelho, branco e preto; mostrando que a identificação com a pátria e o povo palestino é o cerne de sua existência.

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Estádio La Cisterna. Imagem: Raphael Zarko

O futebol como conhecemos hoje chegou ao nosso continente através dos ingleses. A Revolução Industrial estimulou a construção de mercados globais e impérios coloniais. A Inglaterra, que precisava escoar a produção de suas fábricas, expandiu-se para outros continentes, como a América e a Ásia. E o esporte, que já era bastante presente na Grã Bretanha, acabou por ser transformado em mais um produto de exportação inglês (ALABARCES, 2009).

Na América do Sul, o futebol começou a ser praticado nas cidades portuárias – portas de entrada para o comércio e influência internacional – por marinheiros e trabalhadores da Inglaterra. Na região do Rio da Prata, os primeiros clubes foram fundados por ingleses, e a primeira partida internacional no Uruguai foi realizada em 1889 por naturais da Inglaterra que viviam em Montevidéu e Buenos Aires. No Brasil, o processo foi semelhante: o primeiro jogo disputado em solo brasileiro foi em 1895 entre os trabalhadores britânicos da Gas Company e da São Paulo Railway (GALEANO, 2010). A influência da Inglaterra também chegava ao outro lado do continente, na costa ocidental da América. No Chile, o surgimento do futebol também tem forte relação com a colônia inglesa, e o primeiro clube do país foi fundado em 1889 por David Scott na cidade portuária de Valparaíso (ALABARCES, 2009).

A prática do esporte, no primeiro momento restrita aos cidadãos britânicos, logo seria adotada pelas elites locais e, posteriormente, também pelas camadas populares. Fica evidente assim que a relação do futebol com a globalização e a migração é existente desde a expansão colonial da Inglaterra e demais potências imperialistas pelo mundo. Globalização que não é um fenômeno recente, sendo um processo do capitalismo que promove trocas internacionais em detrimento de fronteiras rigidamente estabelecidas (HALL, 2010). A modernidade, marcada pelas constantes interações entre países, impulsiona o comércio exterior e também os fluxos culturais através, principalmente, das migrações.

Na América do Sul, a imigração europeia foi a mais numerosa. A proximidade cultural com as antigas metrópoles Espanha e Portugal, e o incentivo oficial dos Estados para o branqueamento das populações locais foi fundamental para trazer uma gigantesca leva de europeus ocidentais entre os séculos XIX e XX. E o esporte, como uma importante instituição social, não poderia deixar de refletir essa tendência migratória. Surgiram no final do século XIX e ao longo do século XX na América diversos clubes fundados por imigrantes e descendentes de imigrados europeus. Vasco da Gama (1898), Palestra Itália – atual Sociedade Esportiva Palmeiras (1914), Vélez Sarsfield (1910) e Unión Española (1897) são alguns exemplos.

Mas a imigração estrangeira na América do Sul não ficou restrita à Europa Ocidental. Também vieram para o nosso continente indivíduos do Oriente Médio e outras regiões. Em relação ao Oriente Médio, a imigração mais numerosa foi a árabe proveniente do Levante – região localizada entre o Mediterrâneo e os Desertos da Síria e Arábia, e que engloba Síria, Líbano e Palestina (OLGUÍN e PEÑA, 1990). E existe um clube de futebol na América fortemente vinculado com a comunidade de um povo árabe: o Club Deportivo Palestino.

O Chile possui a maior comunidade palestina fora do Oriente Médio, com estimativas que indicam um número entre 350.000 e 500.000 pessoas. A criação do Palestino no início do século passado se deveu ao desejo da colônia de integração à cultura do novo país, como explica o acadêmico Eugenio Chahuán: “Foi uma maneira de participar, de integrar-se, de utilizar as mesmas linguagens, as mesmas formas de reunião que utilizavam os chilenos“.

O clube permaneceu no amadorismo por mais de 30 anos, até iniciar sua trajetória no futebol profissional na segunda divisão em 1952. É aí que a instituição abandonou sua política de somente contar com atletas de origem palestina, e passou a contratar jogadores de fora da colônia. O Tino ganhou a competição e, já no ano seguinte, estreava na elite do futebol chileno. Os Baisanos nasceram como um clube rico, que contava com os aportes dos comerciantes árabes. Conseguiram formar grandes times e, já em 1955, apenas dois anos após a estreia na primeira divisão, conquistaram seu primeiro Campeonato Chileno.

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Palestino campeão chileno de 1955. Imagem: reprodução

Nos anos 70, o clube alcançou a melhor fase esportiva de sua história. Campeão da Copa Chile em 1975 e 1977, voltou a conquistar o Campeonato Chileno em 1978, comandado pelo histórico zagueiro Elias Figueroa. Durante o período, ficou 44 partidas invicto, de junho de 1977 a setembro de 1978, feito até hoje nunca alcançado no país andino. Na Copa Libertadores de 1979 o Tino também fez uma grande campanha, chegando até a fase semifinal.

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Palestino campeão chileno de 1978. Imagem: reprodução

Após a gloriosa década de 70, o Palestino enfrentaria um longo jejum de títulos até voltar a conquistar a Copa Chile em 2018. Esse modesto clube de Santiago não é grande pelo tamanho de seu salão de troféus, mas sim por sua relação intrínseca com uma nação e seu povo.

A instituição nunca se afastou de suas origens palestinas. Os árabes, como são conhecidos no Chile, fazem questão de deixar claro o vínculo do clube com a Palestina – no nome, nas cores e nas atitudes.

Em 2014, o clube lançou o novo uniforme para a temporada com uma particularidade: nas camisas dos atletas, o número 1 foi substituído pelo desenho do mapa da Palestina com as fronteiras de 1946, anteriores à criação do Estado de Israel, portanto. Houve forte oposição da comunidade judaica no Chile e também da embaixada israelense, que considerou a utilização do mapa no uniforme do Tino uma provocação “especialmente grave por ser realizada no ambiente esportivo”. O clube acabou sofrendo uma sanção econômica da federação chilena e foi proibido de jogar com o uniforme, o que talvez mostre um pouco os limites para o engajamento político no futebol de hoje. Mas a iniciativa acabou repercutindo no mundo e se tornou um sucesso comercial: as vendas de camisas aumentaram em 300%, e chegaram pedidos de diversos países. O jornalista Vidal comenta que “é provavelmente a camisa de um clube chileno mais conhecida no estrangeiro”.

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O uniforme da polêmica. Imagem: AFP

Ainda em 2014, o clube, após 36 anos, conseguiu a classificação para disputar a Copa Libertadores do ano seguinte. O feito foi muito celebrado na Palestina, e rendeu até uma carta emocionada de Mahmoud Abbas – presidente da Autoridade Nacional Palestina (ANP). “Quero que saibam que nos identificamos com o Palestino como uma segunda seleção nacional para o povo palestino”. E terminou de forma emocionada: “Palestino é um pedaço da Palestina no Chile, e são vocês, jogadores, nossos embaixadores que hoje terão de mostrar nossas cores em toda América do Sul. Em nome de todos nós, e de vocês que são parte de nós, muito obrigado e que Deus lhes abençoe”.

A campanha foi transmitida para todo o Oriente Médio pela emissora Al Jazeera, com suporte do Bank of Palestine – até hoje o principal patrocinador do clube. E, desde então, sempre que o Palestino joga pela maior competição futebolística das Américas, o clube conta com esse apoio que vem de uma distância de mais de 13 mil quilômetros. Inclusive em algumas ocasiões essa torcida especial pode ser sentida até mesmo dentro do estádio no Chile: na partida contra o River Plate, pela Libertadores de 2019, quatro telões mostravam imagens de torcedores acompanhando o jogo em Ramallah.

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Palestino x River Plate, 2019. Imagem: EFE

Outro acontecimento marcante que evidencia a forte relação identitária do Tino foi a excursão à Palestina realizada em dezembro de 2016. A delegação recebeu a visita do Mahmoud Abbas e realizou amistosos com a seleção palestina e clubes locais. Posteriormente, em maio de 2018, o clube recebeu no estádio La Cisterna a visita do governo palestino, que voltou a afirmar que esse modesto clube oriundo do Chile é para os palestinos uma “segunda seleção nacional”.

O fato é que o Club Deportivo Palestino é um agremiação diferente. Será ele um clube chileno ou palestino? Talvez a instituição criada há 100 anos por palestinos no Chile como uma forma de exaltação de uma identidade nacional e uma maneira de integração aos costumes locais possa ser definido como “palestino-chileno”. Um caso típico de identidade fragmentada e plural da pós-modernidade (HALL, 2010), mas um exemplo único de identificação esportiva com um povo e uma causa.

Como afirma o ex-presidente Fernando Aguad: “Não somos um clube que persiga a ganância. Representamos nossas origens, nossa terra e o laço com a Palestina. Somos uma coletividade muito numerosa no Chile”. O futebol industrializado, que trabalha pela homogeneização de estilos e estéticas, às vezes é obrigado a observar, meio a contragosto, que “a diversidade, teimosamente, milagrosamente, sobrevive e assombra” (GALEANO, 2018). E é no Estádio Municipal de La Cisterna, bem acima das placas publicitárias, que tremula forte, todos os dias e todas as noites, uma gigantesca bandeira da Palestina.

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A bandeira palestina tremula em todos os jogos disputados em La Cisterna. Imagem: reprodução

Referências

ALABARCES, Pablo. El deporte en América Latina. In: 2009

GALEANO, Eduardo. El fútbol a sol y sombra. Buenos Aires: Siglo Veintiuno editores, 2010

______ Fechado por motivo de futebol. Porto Alegre: L&PM, 2018

HALL, Stuart. A identidade cultural da pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A Editora, 10a edição, 2010.

OLGUÌN, Myriam Tenorio e PEÑA, Patricia González. La Inmigración Àrabe en Chile. Santiago: Instituto Chileno-Árabe de Cultura Ediciones, 1990

VIDAL, Nicolás. Club Deportivo Palestino, la singular história del campeón de la Copa Chile. Revista Líbero. Disponível em: <https://revistalibero.com/blogs/contenidos/mundo-palestino-la-singular-historia-del-campeon-de-la-copa-chile>.