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Afinal, quem determina quem é campeão mundial?

Apesar dos ruídos provocados pelas “novas verdades instantâneas” das redes sociais, persiste forte convergência, na academia, sobre apontar o intervalo de 1958 a 1970 como a era de ouro do futebol brasileiro. Foi quando a seleção brasileira venceu três (1958, 1962 e 1970) de quatro Copas do Mundo disputadas. Para além do respeito conquistado pelos títulos, o futebol nacional, em tal período, ganhou a admiração, interna e externa, por produzir, em profusão, jogadores que uniam excelência técnica e elevada capacidade competitiva, como Pelé, Garrincha, Nilton Santos, Didi, Rivelino, Gerson, Jairzinho e Tostão, para citar apenas alguns dos que foram campeões mundiais naquela fase.

A equipe do Botafogo campeã brasileira em 1968. Créditos: Globoesporte

No entanto, apesar do reconhecimento dos seus contemporâneos, incluindo imprensa e torcida, parte do jornalismo esportivo, a partir de determinado momento, passou a dedicar-se a um contínuo processo de apagamento da memória dos feitos memoráveis das gerações da era de ouro quando se trata dos títulos dos clubes em que atuaram esses jogadores. Tal processo dá-se em duas frentes: nas conquistas nacionais pré-1971 e nos títulos internacionais que não sejam o que a imprensa local convencionou chamar de Mundial de Clubes[1].

Até hoje, não são muito explícitas as razões pelas quais, em algum momento, o jornalismo esportivo deixou de considerar os vencedores dos campeonatos disputados entre 1959 e 1970 campeões brasileiros, embora, naquele período, tal forma de tratamento fosse “divulgada a milhões de pessoas através dos veículos mais importantes da imprensa nacional” (CUNHA, 2009, p. 8): “Até o popular ‘Canal 100’, documentário que levava a emoção e a beleza do futebol a cinemas de todo o país, transmitia a mesma mensagem” (Id., ibid.).

Uma das hipóteses levantadas por Cunha, autor do dossiê que serviu de base para a equiparação daqueles títulos ao de campeão brasileiro pós-1970, é que a Revista Placar, lançada em março de 1970 e principal publicação esportiva do país durante cerca de duas décadas, não teria interesse em valorizar um período do futebol brasileiro anterior a sua existência. Válida ou não a hipótese, a revista, durante longo período, não tratou como campeonatos brasileiros os títulos anteriores a 1971. Isso embora, curiosamente, a manchete do número 41 da mesma revista tenha sido: “O Flu é campeão do Brasil” (Placar, 25/12/1970). Na mesma edição, Placar publicou o tradicional pôster do time campeão de 1970 da Taça de Prata, uma das três nomeações adotadas no período entre 1959 e 1970. Ou seja, por razão nunca explicitada, a revista desconsiderava o tratamento que ela própria dera ao campeão da última edição que antecedeu a versão do Brasileiro a partir de 1971[2].

Os títulos internos da era de ouro do nosso futebol foram, enfim, em 2011, equiparados pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF) às versões do Campeonato Brasileiro disputados a partir de 1971. Por isso, esta comunicação pretende se concentrar nas conquistas internacionais que a própria imprensa e os demais contemporâneos aclamavam como “campeões do mundo”, mas continuam a sofrer forte processo de invisibilização, quando não desqualificação, pelo jornalismo esportivo brasileiro, que adota lentes contemporâneas para revisitar o passado glorioso.

Num período em que comunicações e telecomunicações eram bem mais precárias e a mercantilização do futebol bem menos acentuada, foram criados torneios variados, na Europa e na América Latina, para buscar definir quem era “o melhor time do mundo”. Com formatos variados, tais torneios tinham, ao menos, duas coisas em comum: reuniam alguns dos maiores clubes da época e nenhum era reconhecido, para fins de estabelecer um hegemon, pela Fifa, que apenas a partir de 2005 passou a realizar regularmente um torneio mundial de clubes. Dessa forma, a condição de campeão mundial, reivindicada por seus organizadores, era sancionada – à margem do aval institucional da cúpula do futebol – pela imprensa, brasileira e internacional, como é fácil constatar, mesmo em pesquisas aligeiradas na internet. 

São, ao menos, quatro os torneios, todos iniciados entre os anos 1950 e 1960, cujos organizadores reivindicavam tal condição: Torneio Internacional de Clubes Campeões (Copa Rio)[3]; Copa Presidente Marcos Pérez Gimenez[4]; Torneio Triangular de Caracas[5] e Copa Intercontinental[6]. Sem nos estendermos numa historiografia exaustiva, é possível perceber que o principal argumento usado pelos defensores do monopólio do Mundial Interclubes – a inexistência de critérios fixos de classificação – não foi respeitado em pelo menos três edições dessa competição, sem que Independiente (1973), Boca Juniors (1977) e Olimpia (1979) sejam considerados menos campeões do que os demais. 

Além disso, em 2000, houve dois campeões: Boca Juniors, campeão da Libertadores do ano anterior, e Corinthians, campeão brasileiro do ano anterior e um dos dois convidados da Fifa como representantes do país anfitrião, quebrando a tradição de um único convidado do local em que a competição é realizada. O outro foi o Vasco da Gama, finalista com o Corinthians e que poderia ter sido campeão sem ser nem campeão da Libertadores nem do Brasileiro em 1999.

Mais importante, porém, do que se fixar em comparações entre os diversos torneios simultâneos do período examinado cujas hierarquias são construídas posteriormente, é destacar como seus campeões eram retratados na imprensa brasileira. Citaremos apenas algumas manchetes de jornais daquele período. Em 23 de julho 1951, a Gazeta Esportiva mancheteou: “Palmeiras campeão do mundo”, a propósito do título da Copa Rio daquele ano. Em 1 de fevereiro de 1967, a propósito do título do Botafogo no Torneio de Caracas, o Correio da Manhã, um dos principais jornais brasileiros até o fim dos anos 1960, teve como manchete: “Fogo em Caracas – O Glorioso carioca é campeão do Mundo”.

As conquistas eram reconhecidas não apenas por veículos dos estados dos campeões. Em 5 de agosto de 1952, O Diário, de Belo Horizonte, proclamava: “Fluminense, campeão do mundo – Empate com o Corinthians por 2 x 2, na decisiva do Torneio Internacional de Clubes – A campanha dos tricolores”

E, não apenas a imprensa brasileira. Quando o Botafogo voltou a vencer o Torneio de Caracas, em 1968, o jornal português Record, deu na primeira página: “Implacável!!! Vitória alvinegra em Caracas, Botafogo conquista a Mini Taça do Mundo em um jogo incrível contra o Benfica de Eusébio, Colina e Simões”. Ao lado, acompanhada da ilustração da taça como direto a “eco” na palavra campeão: “Botafogo campeão ooo do Mundo”. A matéria é acompanhada, ainda, pela foto dos dois times perfilados antes da partida. 

Definir quem deve ser tratado ou não como campeão mundial escapa aos objetivos desta comunicação. O que nos move é contribuir para um debate que leve a uma explicitação das razões que autorizam a imprensa não contemporânea dos acontecimentos a retificar e desqualificar o que os jornais do período registrado, incluindo veículos dos mesmos grupos, registraram. Quais as razões da reinterpretação dos fatos à luz de outros critérios e num contexto do futebol fortemente informado por valores comerciais?

Publicamos a seguir a relação dos times considerados por seus contemporâneos, incluindo – insistimos – a imprensa, campeões mundiais da era de ouro do futebol brasileiro, mas, posteriormente, descredenciados. Lembramos que a lista restringe-se à primeira fase dos torneios que, após interrupção mais ou menos prolongada, foram reativados, mas já num período de consolidação do Torneio Interclubes como única instância, ainda que sem o aval institucional da Fifa, como única instância definidora do campeão mundial de clubes.

Os campeões esquecidos

Copa Rio: Palmeiras (1951) e Fluminense (1952)

Pequena Taça do Mundo: Corinthians (1953) e São Paulo (1955)

Torneio de Caracas: Bangu (1958), Botafogo (1967, 1968 e 1970) e Cruzeiro (1970)

Bibliografia

CUNHA ,Odir. Dossiê Unificação dos títulos brasileiros a partir de 1959. São Paulo, 2009. SOUTO, Sérgio Montero. Uma revisita à era de ouro do futebol – quando os títulos do passado têm de ser driblados pelo hegemon do ‘mercado’. Belo Horizonte: Fulia v.4, n.2, 2019.

Notas

[1]  Oficialmente, essas competições são chamadas pela Fifa de Mundial Interclubes.

[2] Para ler mais sobre os campeões brasileiros pré-1971, vide SOUTO (2019) e CUNHA (2009).

[3] Mais conhecida como Copa Rio foi organizada pela então Confederação Brasileira de Desportos (CDB) – antecessora da CBF – com apoio da Fifa. Teve apenas duas edições (1951 e 1952). Em 1953, foi rebatizada de Torneio Octogonal Rivadávia Corrêa Meyer, e sofreu alterações, quantitativa e qualitativa, no número de clubes estrangeiros convidados.

[4] Ou Troféu Marcos Pérez Jiménez ou Pequena Taça do Mundo era organizado pela Federação Venezuelana de Futebol e por empresários locais, sendo disputado entre equipes europeias e sul-americanas. Teve dois períodos. O de maior relevância entre 1952-1957. Após interrupção de seis anos, foi rebatizada de Troféu Cidade de Caracas, teve uma edição em 1963, para retornar em 1965, sendo , então, disputada de forma não contínua por até 1975. No período, a partir de 1963, a competição sofre um esvaziamento, tanto em prestígio, quanto em número de participantes. Este trabalho se atém à primeira fase.

[5] Disputado entre equipes europeias e sul-americanas e seleções nacionais, como a argentina e a soviética, era chamado, ainda, de Torneio de Caracas e Triangular de Caracas. Teve duas fases, sendo a de maior prestígio entre 1958 e 1970, que teve duas edições em 1970. A segunda fase (1976-1981) teve apenas quatro versões e menor prestígio esportivo. É à primeira que nos detivemos.

[6] Organizada pela União das Federações Europeias de Futebol (Uefa) e pela Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol), sua primeira versão ocorreu em 1960, sendo realizada anualmente, com dois hiatos, até 1979, com diferentes formas de disputa, variando de uma a três partidas. Em 1975 e 1978, incompatibilidades entre o calendário das duas entidades levaram ao cancelamento da competição. Em três ocasiões (1973, 1977 e 1979), a final foi entre o campeão sul-americano e o vice-europeu, já que os campeões do continente naqueles anos se recusaram a participar. Com as seguidas recusas dos europeus ameaçando esvaziar o torneio, a partir de 1980 até 2004 foi transferida para o Japão, sendo rebatizada de Copa Toyota, nome da patrocinadora do torneio e disputada numa única partida. A partir de 2005, a Fifa, que já promovera uma edição em 2000, paralela à ocorrida no Japão, assume a organização da competição de forma contínua, incorporando os campões continentais africano, asiático e da Oceania.

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Melhor jogador do mundo: escolha natural, construção ou marketing?

Criado em 1991, pela Federação Internacional de Futebol Associado (Fifa), o prêmio Fifa Best Player of the Year[1] , excepcionalmente, na edição 2021/2022 será entregue apenas ano que vem. O adiamento foi para que a eleição pudesse levar em consideração, também, a performance dos jogadores na Copa do Catar. Com isso, a entidade evita – ou ao menos pode fugir – de escolhas constrangedoras como, em 2002, quando “o melhor da Copa” não foi “o melhor do ano”. A entidade elegeu o goleiro alemão Oliver Kahn o melhor jogador daquele Mundial, apesar de ter falhado na final, no lance que resultou no primeiro gol do Brasil, ao rebater um chute de Rivaldo nos pés de Ronaldo.

Fonte: Diario do Litoral

O próprio alemão reconheceu a falha, com um argumento algo curioso e desabonador para os que o escolheram: “Esse foi o único erro que eu cometi em sete jogos, e, infelizmente, eu fui brutalmente punido por Ronaldo.” Mais constrangedor do que premiar o goleiro que falhara “apenas” no jogo decisivo, vencido pelo Brasil por 2 x 0, na conquista do seu quinto título mundial, foi, pouco tempo depois, eleger Ronaldo, que, na eleição da Copa ficara em segundo lugar, como o Fifa Best Player of the Year, tendo, agora, Khan como segundo colocado.

A inversão nas colocações, longe de representar uma retificação da escolha da Fifa, expôs fragilidades nos critérios da premiação. É que Ronaldo, que rompera o tendão patelar do joelho direito, em abril de 2000, apenas seis minutos após entrar em campo para defender a Internazionale, de Milão, contra o Lazio, pelo primeiro jogo da final do Campeonato Italiano, praticamente, não entrou em campo até a Copa que seria realizada cerca de dois anos depois. Então, se, de acordo com a Fifa, não foi o melhor do Mundial de Japão e Coreia do Sul, do qual foi artilheiro com oito gols, em que outra competição, daquele ano, teria justificado, para a mesma entidade, o direito de ser eleito o melhor de 2002?

Essa, no entanto, está longe de ser a única contradição dos critérios da premiação e a renomeação da eleição pelo jornalismo esportivo brasileiro para “O melhor do Mundo” torna, ainda, de mais difícil compreensão o objetivo real da eleição. Afinal, a adoção daquela tradução, pela imprensa daqui, tem significado bem mais profundo. Isso implicaria contrariar o que a experiência empírica nos ensina: que os melhores – ou os piores – são mais identificados ou identificáveis do que precisam ser eleitos. Se é preciso haver uma eleição se está diante da necessidade de se estabelecer uma hierarquia que não seria reconhecida e/ou natural para todos ou, ao menos, para a grande maioria.

Nos tempos dos bancos escolares, por exemplo, é desnecessário eleger “a garota ou o garoto mais bonito(a) da sala”, “o mais nerd” ou o “mais mala”. Sempre que tal crivo faz-se necessário é justamente quando “o eleito” não está naturalmente estabelecido e/ou não é, claramente, reconhecível pela grande maioria. Assim, embora o prêmio, na gramática da Fifa, refira-se ao “melhor jogador do ano”, ao menos, no Brasil, ele é tratado como destinado “ao melhor jogador do mundo”, sem sequer uma delimitação de temporada para avalizar o escolhido. Com isso, podemos ter “o melhor do mundo em 1995”, o liberiano George Weah, que, naquele ano, atuara por Milan e Paris Saint-German, simplesmente, deixar de ser “o melhor do mundo” nos anos seguintes. Uma superioridade restrita a uma única temporada?

Ou, ainda, em 1997, quando o atacante Edmundo, após uma temporada de alta excelência pelo Vasco, sequer ser indicado ao prêmio da Fifa, colocar em evidência que, mesmo num momento em que os clubes brasileiros rivalizavam com os europeus, a eleição, na verdade, limita-se ao melhor jogador daquela temporada europeia, seja qual for a nacionalidade do escolhido.

Aqui, talvez, seja interessante observar que, muito longe de replicar em nível mundial uma polêmica de mesa de bar entre conhecidos, a escolha da Fifa tem implicações bem mais poderosas, como aumentos generosos de salários, previstos em cláusulas prévias, e alta exponencial dos cachês em ações de marketing e propaganda, não raro com direito à participação dos clubes dos premiados em parcela desse salto na carreira – e na conta bancária – dos jogadores. Isso sem falar na concessão de um palanque global ou amplificação desse palanque para os eleitos. Em poucas palavras: a escolha, pelo visto, parece ponderar outros fatores bem além da performance em campo.


[1] Entre 2010 e 2016, a premiação foi feita em conjunto com a revista francesa France Footbal, que, desde 1956, concedia o prêmio O Balão de Ouro, apenas para o melhor jogador europeu. Em 1994, a publicação ampliou a escolha para jogadores de qualquer nacionalidade que jogassem em clubes da Europa e, a partir de 2006, incluiu atletas de todos continentes. Após o rompimento do acordo com a Fifa, a revista voltou a oferecer, a partir de 2017, o seu próprio prêmio.

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E torcedor entende de futebol?

A pergunta provocativa surge a propósito do antagonismo, aparentemente cada vez mais crescente, entre as expectativas de torcedores dos mais variados times e os diagnósticos de treinadores e do jornalismo esportivo. Não é incomum que vaias ou críticas nos estádios e nas redes sociais sejam apontadas por jornalistas esportivos como fruto do “imediatismo do torcedor” e sejam seguidas de conclamações, como a de que é “preciso dar tempo para o treinador mostrar os frutos do seu trabalho”. 

Embora o resultado dessa tensão pareça soar um tanto esquizofrênico – se só um time pode ser campeão e, se para um time vencer, o outro tem de perder, a conta não tem como fechar – é possível, no entanto, admitir que determinadas reclamações dos torcedores são críveis e portadoras de alguma consistência. Apesar de, teoricamente, um trabalho de médio e longo prazo ter mais chances de mostrar resultados, essa não é uma tese que independa da qualidade do treinador contratado. 

Afinal, como ensina um antigo ditado do mercado publicitário a melhor forma de destruir um produto ruim é expô-lo ao máximo. Ou seja, o torcedor não precisa esperar ver o seu time sofrer por cinco rodadas para ter a convicção – com grande margem de acerto – de que um determinado técnico não tem condições de produzir resultados. Um exemplo emblemático foi a apresentação de Waldemar Oliveira como treinador do Flamengo, em outubro de 2003. 

Uma rápida busca no Google por “O novo técnico do Flamengo é o senhor Waldemar”, pronunciada pelo então diretor de Futebol do clube, Eduardo Moraes, confirma que a reação da torcida rubro-negra ao anúncio virou um dos memes mais longevos do futebol. No entanto, para além do folclore, o tempo confirmou que os torcedores tinham razão para recusarem a contratação. Waldemar foi demitido, em dezembro daquele mesmo ano, após dirigir o time por apenas 11 partidas. O breve desfecho mostrou que os torcedores não precisavam esperar dois meses para formar seu juízo sobre a inconveniência da contratação, contrariando os tradicionais pedidos do jornalismo esportivo por mais tempo para os treinadores desenvolverem seu trabalho.

Fonte: Lei em Campo.

O mesmo feeling torcedor vale para determinadas contratações apresentadas como reforços que “precisam de tempo para mostrarem seu futebol”. Com poucas exceções que servem para reforçar a regra, muitos desses “reforços” costumam ser recebidos com desconfiança que, não raro, se confirma. Obviamente, que todas as torcidas erram, e muito, como confirma a perseguição de torcedores do São Paulo ao então jovem Kaká, cujo desempenho oscilava enquanto maturava o desenvolvimento do talento que viria a exibir na Europa, onde recebeu o prêmio de melhor jogador da temporada, que o forte marketing europeu promoveu a “Melhor jogador do mundo”. 

No entanto, embora possa errar e, eventualmente, não entender de meandros da técnica, o torcedor tem uma espécie de sentimento de que as coisas não vão dar certo, seja numa partida ou numa competição. Tal sentimento parece vir da experiência empírica forjada no acompanhamento do mesmo clube temporada após temporada, jornada que, não rara, começa na infância e vai sendo maturada, mas não desidratada com o passar dos anos.

Além disso, ele tem vantagens comparativas simbólicas e concretas sobre o jornalismo esportivo e, eventualmente, até sobre o treinador do momento: conhece a história do clube e segue de perto seus jogadores. O técnico, embora por obrigação profissional deva estudar o maior número de times, seja por ser um adversário, seja por ser um potencial futuro empregador, nem sempre tem a mesma compreensão do ethos do clube, não raro, tão ou mais decisivo para o desenvolvimento do trabalho do que seus méritos táticos, como comprovam declarações vistas como depreciativas pelos torcedores, principalmente quando envolvem comparações com os rivais que estes julgam desfavoráveis. 

Já o jornalismo esportivo se limita a acompanhar um número reduzido de clubes, basicamente os três grandes da capital de São Paulo e o Flamengo, no Rio, com acréscimos residuais de intrusos que se apresentem numa fase excepcional, situação que não afeta o espaço destinado aos quatro eleitos. 

Tais escolhas podem ser conferidas, tanto nos espaços extremamente assimétricos destinados nas mesas redondas ao quarteto num Campeonato Brasileiro com 20 clubes, dos quais, ao menos 12 tradicionais nacionalmente, quanto em comentários aleatórios nas transmissões de partidas de times fora do quarteto. Assim, vemos comentaristas, como Roger Flores, pedindo, para surpresa e revolta dos alvinegros que, num jogo da segunda divisão do ano passado em que o Botafogo lutava, no fim de uma partida, para conter o ímpeto do adversário para manter o resultado positivo , a entrada do He Man, que, próximo da aposentadoria, trotava em campo.

As percepções, cada vez mais divorciadas, entre jornalismo esportivo e torcedores são alimentadas, ainda, pelo fato de as ponderações para que os segundos reduzam suas expectativas de curto prazo sofram modulações diferentes quando a mesma questão apresenta-se em relação a outros times, em geral superestimados, tanto por seus torcedores, quanto por jornalistas.

A interseção do clubismo entre pontas que, oficialmente, se apresentam de lugares de fala diferentes, porém, está cada vez mais exposta na era da polifonia palavrosa e prolixa das mídias digitais. E também ajuda a explicar, ao menos parcialmente, o processo de erosão da credibilidade do jornalismo esportivo, que, durante muito tempo, foi reconhecido como autoridade sênior na matéria. Embora, por tratar-se de universo catártico como o futebol, tal poder sempre tenha sido passível de questionamentos, parece indiscutível que gozava de reconhecimento bem superior ao do que, ainda, lhe resta na era das mídias sociais.

O crescimento dos questionamentos à isenção dos profissionais desse campo contribui para o aumento das fricções quando se trata de analisar a expectativa dos torcedores em relação à performance dos seus times. Tem-se o choque entre torcidas (quase) permanentemente insatisfeitas com suas equipes e os pedidos de “moderação” e “paciência” de jornalistas esportivos, que, no entanto, não estendem tais conclamações aos torcedores de determinados clubes, percebidos pelos demais como favorecidos pela cobertura da imprensa.

É preciso, ainda, reconhecer que, enquanto tenha aparecido aqui como sujeito único, o torcedor ou a torcida deve ser visto como ente plural que engloba uma polissemia de fatores constitutivos do futebol, como idiossincrasias em relação a determinados jogadores, análise do nível dos adversários, maior ou menor tolerância a críticas ao seu time. No entanto, mesmo com a ressalva de que não deve ser considerado um ser monolítico nem muito menos infalível, o torcedor também tem as suas razões e, por vezes, mostra um número de acertos nas suas críticas superior ao dos movimentos prospectivos do jornalismo esportivo, principalmente quando este acompanha aquele clube apenas de forma panorâmica e/ou bissexta.

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Quem foi o primeiro ídolo dos 4 grandes cariocas? Por que os pioneiros do processo da idolatria no futebol são desconhecidos por torcedores, imprensa, dirigentes e pesquisadores?

Garrincha, Zico, Roberto Dinamite e Castilho ou Telê ou Fred. Com a solitária exceção do Fluminense, que não forjou um claro ocupante do ponto mais alto do Olimpo, torcedores dos demais clubes grandes do Rio de Janeiro não têm dúvidas em apontar o maior ídolo da história, respectivamente, de Botafogo, Flamengo e Vasco. Tal reconhecimento é acolhido pela imprensa e, inclusive, pelos fãs dos times adversários. No entanto, se – feita a ressalva à singular situação do Fluminense – inexistem dúvidas sobre o mais importante ídolo histórico dos clubes cariocas, a coisa muda muito de figura se a pergunta tiver como alvo quem foi o primeiro ídolo de cada um.

Tal apagamento não se resume a mera questão esportiva. Ele parece dar pistas importantes sobre a formação, e a retenção, da memória e das identidades na sociedade brasileira. O ídolo histórico reúne, no nosso entendimento, ao menos três características comuns: excelência técnica, conquistas históricas e identificação com o clube. Esta última ajuda a entender por que um mesmo jogador identificado como ídolo numa agremiação não merece o mesmo reconhecimento em outra, ainda que, nesta, possa ter atuado tão ou mais tempo e cumprido papel relevante.

Garrincha: ídolo histórico
Fonte: ebiografia

E como explicar que os mesmos torcedores que, em sua grande maioria, sequer viram seus ídolos históricos atuar garantirem um continuum à idolatria de gerações precedentes e incorporarem aqueles aos pavilhões que constituem a memória coletiva afetiva dos estádios, mas não terem pálida noção dos ídolos inaugurais dos seus clubes? Que pistas essa amnésia coletiva pode nos dar sobre como foi constituído incialmente o futebol no Brasil? Seria a origem aristocrática dos primeiros sportmen e do próprio futebol razão suficiente para esse apagamento? Mas não foi justamente o espetáculo inicial proporcionado por aqueles sujeitos que inspirou milhares de outros atores sociais excluídos dos clubes e das arquibancadas pelos valores elevados das mensalidades e dos preços dos ingressos a observarem, apreenderem e se apropriarem da novidade que se desenvolvia nos gramados?

Ainda que tenha tido seus sentidos ressignificados por esses outros sujeitos, a inspiração inicial para que os cariocas lotassem estádios e quaisquer lugares acessíveis ao redor deles vinha das façanhas dos primeiros jogadores dos clubes. Então, por que temos escasso material empírico, inclusive entre pesquisadores da área, que nos permita avançar para além das subjetividades? Foi para tentar responder essas complexas questões que iniciamos a nossa pesquisa “O primeiro ídolo”, o trabalho inaugural do Grupo de Pesquisa Esportes, Ídolos E Identidades (GEII), coordenado por mim, e integrado por um aguerrido e dedicado grupo de alunos da graduação do Departamento de Jornalismo da Uerj.

Como recorte, escolhemos o período que vai de 1900, poucos anos antes da criação de Fluminense e Botafogo, respectivamente, em 1902 e 1904, e seis anos antes do primeiro Campeonato Carioca, em 1906, até 1932, última edição antes da instituição do profissionalismo no Brasil. Como o quarteto não teve origem simultânea, o período inicial captura a historiografia de Botafogo e Fluminense, além de revisitar, em suas linhas mais gerais, o ambiente do país pré-surgimento do futebol por aqui. Para acompanhar a do Flamengo, o intervalo inicia-se em 1915, quando dissidentes do Fluminense fundam o Departamento de Futebol rubro-negro; enquanto a do Vasco foi escrutinada a partir de 1923, quando, ao tornar-se campeão da segunda divisão, o clube conquista o direito de participar, pela primeira vez, da primeira divisão, amplificando as luzes da imprensa sobre a agremiação, que, até então, recebia escassa cobertura jornalística.

A principal fonte foram jornais da época, que foram submetidos à análise crítica, considerando particularmente o quadro socioeconômico e cultural do início do século XX. Também recorreremos a material dos arquivos dos clubes e, complementarmente, a entrevistas com historiadores das quatro agremiações. Embora a pesquisa ainda esteja em desenvolvimento, o material já coletado indica algumas pistas e sinaliza para duas hipóteses iniciais não necessariamente excludentes.

A primeira está ligada à má memória nacional de um país de cultura imediatista e a histórica, em que, não raro, os fenômenos sociais, dentro e fora do futebol, são tratados aos saltos, sem que os sujeitos consigam identificar continuidade entre eles e/ou espaços dialógicos. Essa hipótese, a ser confirmada ou não pelo avanço da análise do material empírico e à luz da leitura crítica, pode explicar porque ídolos iniciais que deram contribuição decisiva para os primeiros pontapés que transformaram o futebol em parte integrante da identidade nacional não são identificados por torcedores, dirigentes e o jornalismo esportivo contemporâneos como ícones fundadores dessa paixão.

A segunda hipótese, também a ser confirmada ou não pela continuidade do trabalho, parece insinuar, pela análise do material empírico já acessado, que, por ser encarado inicialmente mais como entretenimento do que como esporte pelos sportmen pioneiros, tal condição desfavoreceria a condição de idolatria. Ressalve-se que essa percepção não impediu que alguns jogadores em especial, como Mimi Sodré (Botafogo), Kunz (Flamengo), Marcos Carneiro (Fluminense) e Nelson (Vasco), merecessem maior ênfase na cobertura da imprensa, e admiração dos torcedores do período pré-profissionalismo.

Os quatro, porém, não foram os únicos a serem menções mais enfáticas da imprensa, por isso, por enquanto, não nos sentimos autorizados a identificá-los como os primeiros ídolos do quarteto dos grandes clubes cariocas. Será preciso avançarmos mais para reduzirmos nossas incertezas.

Compartilhamos o entendimento de que, em analogia com o processo do percurso do herói, como acompanhado por Campbell, ídolos, também, precisam passar por um processo de decantação que permita que sua condição se cristalize para muito além das conquistas observadas por seus contemporâneos. Ao menos três características comuns são necessárias para que a subida ao Olimpo dos deuses do futebol seja alcançada e lá permaneçam: excelência técnica, conquistas históricas e identificação com o clube.

Nesse sentido, é preciso verificar, se, ao fim da pesquisa, os nomes aqui mencionados sustentam a condição que a cobertura contemporânea da imprensa parece insinuar até aqui. Ou se, em sequência, outros jogadores do período pré-profissional os suplantam na idolatria inaugural, assim como jogadores que pareciam destinados a serem os ídolos históricos foram substituídos por outros capazes de façanhas percebidas como mais elevadas e alcançaram uma identificação mais profunda com as suas agremiações.

Umas das pré-condições alçadas pelos primeiros ídolos já confirmada pelo material coletado foi contribuírem para que o nascente futebol brasileiro se sobrepusesse ao remo e ao turfe, amplamente dominantes na cobertura do início do século passado nas páginas dedicadas aos esportes pelos jornais da época. Vista em perspectiva, essa comparação parece não fazer sentido, tal a hegemonia avassaladora do futebol masculino na cobertura esportiva em todas as plataformas já há longas décadas.

No entanto, na origem, a atenção dedicada pela imprensa nacional ao futebol limitava-se a mero registro dos resultados das partidas ou, no máximo, da súmula com as escalações e os autores dos gols. E, sempre, em espaços secundários em comparação aos outros dois esportes, então, favoritos dos brasileiros. Foi justamente a relação construída com os ídolos pelos torcedores, incluindo as extensas camadas populares excluídas dos estádios pelo valor elevado do preço dos ingressos, que foi indicando à imprensa que o novo esporte devia merecer cobertura mais nobre se os donos dos veículos quisessem atrair a atenção dos leitores aficionados em esportes.

Os ídolos pioneiros tiveram papel-chave nessa constituição dos primeiros torcedores, ainda que, já na origem, houvesse diferentes apropriações e ressignificações no modo torcedor. Identificar e tentar constituir padrões metodológicos e analíticos são as próximas metas da pesquisa à medida que nos aproximamos do período limite previamente fixado: o fim – ainda que formal – do período do amadorismo. Nosso trabalho detém-se, assim, em 1932, por considerarmos que, ainda que passível de releituras e aportes de material empírico inédito, o período do profissionalismo é bem mais coberto pelas pesquisas do campo e pela imprensa do que a fase sobre a qual nos debruçamos.

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O que a nova gramática do futebol nos revela sobre as escolhas desse esporte?

Reprodução: Internet

Já vai longe o tempo em que o lazaronês[1], com sua fala complicada era alvo da jocosidade do jornalismo esportivo e das torcidas. Cerca de 40 anos depois daquilo que era, majoritariamente, tratado como sinônimo de falar empolado para encobrir deficiências táticas, a nova gramática dos treinadores foi elevada ao estado da arte para explicar o futebol. E, não apenas no meio de técnicos e da boleirada, mas, também do jornalismo, antes bem menos permeável a tais retóricas esvaziadas de sentidos.

Se adotarmos um olhar mais cético e mais crítico, podemos desconfiar fortemente que, na verdade, estamos diante de uma operação discursiva que ressignifica antigas expressões futebolísticas, para que, nessa metaformose linguística, se amplifique o poder dos treinadores, e torcedores e jornalistas deixem de debater, e cobrar, a essência do que se passa em campo.

Entre neologismos ou palavras que tiveram seus significados originais reconfigurados, citamos: linha alta; linha baixa; último terço do campo; verticalizar o jogo; atacar a bola; extremo, 4-2-1-2-1… Em tempos não tão remotos, tais palavras e expressões eram facilmente compreendidas, por público e imprensa, como, respectivamente: adiantar a marcação; marcar no seu próprio campo; proximidade da área, jogar para frente; não ficar parado esperando a bola; ponta (direita ou esquerda). Já sobre a sopa de números, a aparente sofisticação da numerologia treineira pode nos dar outras pistas.

Embora o futebol seja esporte dinâmico, nem sempre traduzível ou reduzível a números, as antigas numerações davam conta de explicitar que, entre as três faixas em que se divide o campo de futebol – defesa, meio-campo e ataque – determinados times jogavam, em geral, com quatro defensores; e alguns poucos, no Brasil, recorriam a um terceiro zagueiro, somando, assim, cinco na defesa. No meio-campo, entre jogadores mais marcadores – cabeça de área, volante – e de criação – armadores – havia time que optava por três ou quatro nessa posição. Com isso, no ataque, tinha-se, respectivamente, três ou dois atacantes.

Tudo isso, teoricamente, porque, com a bola rolando, uma série de fatores imponderáveis e a dinâmica da partida é que iam definir se a rigidez tática seria mantida ou moldada pelos acontecimentos. Apesar disso, a sinalização era clara: quem jogava com quatro no meio-campo buscava fortalecer esse setor, sem, no entanto, garantias de que o desejado fosse confirmado no gramado. Já quem priorizava o ataque, optava por escalar mais um atacante, renunciando a um jogador no meio. Dentro dessas configurações táticas, abria-se uma miríade de possibilidades, a depender, em grande medida da qualidade dos escalados para cada função e da imprevisibilidade inerente a um jogo de futebol.

Um meio-campo marcador que, também, soubesse sair para o jogo, poderia, como no Brasil x Uruguai, da Copa de 1970, trocar de posição com o armador e aparecer na frente, não apenas para municiar o ataque, como para marcar um gol, como ilustrou a troca de posições entre o volante Clodoaldo e o armador Gerson, muito marcado pelos uruguaios naquela altura da partida.

Também o clube que, na prancheta do treinador, desfilava o 4-3-3, poderia deslocar um atacante, geralmente o ponta-esquerda, para compor o meio-campo quando seu time não tinha a bola. Ou ainda quem entrava com quatro no meio, quase sempre com mais marcadores do que criadores, podia liberar os laterais – em algum momento, rebatizados de alas, embora continuem a ser cobrados, centralmente, por suas funções defensivas (?) – para ajudarem a apoiar o ataque.

Mais uma vez, era a dinâmica da partida que confirmaria ou reconfiguraria as estratégias do treinador. No entanto, quando a gramática hodierna dos técnicos anuncia esquemas como 4-2-1-2-1 ou afins, tais numerologias são quase automaticamente naturalizadas pelo jornalismo esportivo como questões dadas, sem que se deem conta de contradição emblemática: por trás de uma suposta camada de modernidade, o que os técnicos estão defendendo é ser possível, em plena era da necessidade de compactação em campo, seccionar tanto o meio quanto o ataque.

Assim, se o 2-1-2 inicial significaria que, em teoria, a equipe teria dois jogadores mais próximos da área, um mais livre, em tese, e, se tiver talento, para armar o time, e dois que encostariam no solitário jogador que seria o único atacante explícito. Ora, esquemas táticos dependem da quantidade de talento dos que o executam. Então, se poderia perguntar: nessa pretensa modernidade, Iniesta, no seu tempo de Barcelona, antes e depois da dupla com Xavi, seria volante (um dos 2 à frente da zaga ou ainda o 1, se a configuração definida pelo treineiro for 4-1-3-3 ou seria armador?

Se a resposta for a primeira, como explicar a constante presença dele próximo da área adversária, inclusive, no momento em que este tinha a bola. Caso se fixe na segunda possibilidade, qual a explicação para quando, também recorrentemente, iniciava o ataque do time catalão a partir da entrada da sua área? Não seria Inieta a personificação da desconstrução da “muderna” numerologia treineira, ao mostrar que, no futebol contemporâneo, resta pouco espaço para meio-campistas que se limitem a marcar ou que, sabendo jogar, se recusem a participar da marcação? E que a principal preocupação de um treinador deve ser evitar que sua equipe atue com três setores estanques, para não conceder espaços generosos ao adversário?

Assim, ao se concentrar em números que empiricamente raramente são confirmados em campo, o jornalismo esportivo deixa de questionar se essa nova gramática não serve para encobrir visíveis inconsistências táticas dos nossos treinadores. Na nova gramática treineira ou “delírios táticos”, na expressão de Tostão, poucas sintetizam tal indigência como a popularizada “saber sofrer”. Traduzida na prática, significa que, sem opções de ataque, um time vai ficar submetido à sorte de, entre os constantes ataques do adversário, torcer para não sofrer um gol. Assim, a cada bola cruzada na área ou chute desferido de perto do goleiro, a torcida desse clube deve, entre unhas roídas e respiração acelerada, celebrar a genialidade tática do seu treinador.

Se a essa nova definição de defensivismo somar-se a celebrada “jogar por uma bola”, o jornalismo crítico não deveria vacilar, a exemplo do que fazia em tempo não tão remoto, em qualificar tal opção como “retranca”, “futebol covarde” ou “time sem opções”. No entanto, como disse Marcelo Bielsa, ao utilizar o mesmo comportamento mobilizado para amplificar o reconhecimento na vitória para condenar o comportamento na derrota, a imprensa – e não apenas a brasileira – “especializou-se em perverter os seres humanos de acordo com vitórias e derrotas”.

E tal comportamento não se limita à defesa do resultadismo, como criticava o treinador argentino, mas, também, serve para naturalizar uma gramática que, ironizada em momento mais brilhante do nosso futebol, passou a ser reproduzida acriticamente. Fica a provocação: a perda de qualidade levou à necessidade de colocar camadas retóricas esvaziadas de sentidos aos discursos dos treinadores ou foi o inverso? Ou será que ambos caminharam juntos?


[1] No período em que dirigiu a seleção brasileira, entre 1989 e 1990, Sebastião Lazaroni, além de anunciar o início da “era Dunga”, que substituiria o “futebol-espetáculo”, notabilizou-se por explicações como: “galgar parâmetros”; “lastro físico”, “pijama-training”  e “intenção sinergética”. Várias delas soam como primas da “treinabilidade” e do “oportunizar”, do titês, este, no entanto, idioma assumido, sem ironias, pelo jornalismo esportivo.

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Uma provocação: as cotas mudaram o ranking do Brasileiro?

Com o rebaixamento de Botafogo e Vasco, no Brasileiro de 2020, e o não retorno do Cruzeiro à primeira divisão em 2021, pela primeira vez, três das 12 equipes mais tradicionais do país [1] vão disputar, numa mesma edição, a série B. O fato de 1/4 dos integrantes do que chamamos aqui de tradicionais nacionalmente (TN) estarem excluídos, ao menos provisoriamente, da elite do futebol brasileiro ensejou diversas tentativas de explicação e hipóteses.

Má gestão e incompetência são as mais recorrentes. O diagnóstico tecnicista parece ganhar maior densidade explicativa quando contraposto a um reivindicado maior profissionalismo dos clubes que têm se mantido no topo do ranking do Brasileiro. Sem desconsiderarmos ambas, queremos analisar outro ângulo que parece negligenciado, principalmente pelo jornalismo esportivo: os efeitos da implosão do Clube dos 13, em 2011, com a consequente concentração das cotas de televisão em apenas dois clubes.

Fábio Koff, ex-presidente do Clube dos 13
Fonte: Trivela

Pergunta-se se o novo paradigma deflagrou um processo de reconfiguração do TN, instaurando novo patamar de competitividade, em que, da multiplicidade de candidatos a campeão nacional, tem-se padrão próximo ao da maioria dos principais campeonatos europeus, restritos a dois ou, no máximo, três concorrentes ao título. Para responder a essa hipótese, comparou-se a classificação nos noves Brasileiros seguintes ao fim do Clube dos 13, de 2012 a 2020 – o novo modelo de contrato da TV Globo só começou a vigorar em 2012 – com as nove edições imediatamente anteriores, de 2003 a 2011. Vamos nos abster de uma historiografia da criação e do fim do Clube dos 13 [2]. O que nos mobiliza aqui são as consequências, nos níveis de competitividade, dos times TN a partir da negociação individual da Globo com as equipes.

Optou-se por uma visão panorâmica, em que não se cotejou apenas os campeões do Brasileiro nos dois períodos. A comparação estendeu-se aos que, num intervalo e outro, alcançaram as quatro primeiras posições – o G4 – com vaga automática à Libertadores, competição que se tornou o principal foco de clubes, torcedores e imprensa. Analisou-se, ainda, os rebaixados à segunda divisão – o Z4 – o que, também, dá pistas sobre a reconfiguração em curso. Neste último recorte, subdividiram-se as equipes entre os 12 tradicionais nacionalmente (TN) e as não integrantes desse grupo, os tradicionais regionalmente (TR) ou localmente (TL).

O primeiro intervalo de nove anos tem início em 2003, quando instaura-se o sistema de pontos corridos no Brasileiro. A partir dessa edição, os quatro primeiros classificados garantem vaga à Libertadores. Não se considerou, na comparação, nem o campeão da Copa do Brasil nem o da Sul-Americana, ambos com vaga à Libertadores – no caso da segunda apenas a partir de 2010. Por se tratar de competições que envolvem jogos mata-mata, estão sujeitas a maior imprevisibilidade, diferentemente do campeonato por pontos corridos, o que distorceria o objetivo aqui buscado.

Descartou-se, ainda, a inclusão, no comparativo, do quinto e do sexto lugares do Brasileiro, que, a partir de 2016, quando a Confederação Sul-Americana de Futebol (Conmebol) ampliou o número de vagas na Libertadores para Brasil, Argentina, Chile e Colômbia, asseguram vaga à fase eliminatória da Libertadores. Pensa-se que nossa opção metodológica dá uma percepção mais nítida sobre o caráter competitivo dos clubes, antes e depois, da implosão do Clube dos 13.

Cotas (quase) iguais no TN até 2011

Concentrou-se, basicamente, no valor pago pela TV aberta, ainda a principal plataforma do país e a mais valorizada por grande parte dos anunciantes de futebol. Da criação da Copa União, em 1987, até 2000, a cota da TV era dividida em partes iguais pelos filiados ao Clube dos 13, com quantias inferiores aos “convidados”. Segundo cálculo do jornalista Mauro Beting, citado no blog do jornalista Allan Simon, em 1987, cada integrante da associação recebeu 12,8 milhões de cruzados, equivalente a quase R$ 2 milhões em valores atualizados pelo Índice de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) entre dezembro de 1987 e dezembro de 2019. (SIMON, 2000).

A partir de 2001, a entidade separou Flamengo, Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Vasco em um grupo que ganharia mais, e outro com Botafogo, Fluminense, Santos, Grêmio, Internacional, Atlético-MG, Cruzeiro e Bahia, com valores menores. Outros ajustes ocorreram até que, em 2011, a última divisão antes do fim do Clube dos 13 contemplava quatro grupos distintos:

Fonte: LEITE JR (2015, P.61) [4]

Com tal distribuição de valores, tivemos, entre 2001 e 2010, seis clubes campeões: São Paulo (3 títulos), Corinthians (2), Flamengo, Fluminense, Cruzeiro e  Santos (1 cada). Classificaram-se para o G4, nesse novênio, 13 equipes: São Paulo (6 vezes); Santos e Cruzeiro (4 cada); Grêmio, Palmeiras, Internacional, Flamengo e Fluminense (3), Corinthians, Vasco, Athletico-PR, São Caetano e Goiás (1). Foram rebaixados à segunda divisão, nesses nove anos, quatro clubes do TN: Vasco, Corinthians, Grêmio e Atlético-MG – todos com uma única queda. Entre as equipes fora desse grupo, 25 caíram de série: Fortaleza, América-MG, Coritiba, Vitória, Avaí e Guarani (2 vezes cada); Bahia, Ceará, Portuguesa-SP, Sport, Santa Cruz, Paraná, Juventude, Figueirense, Ipatinga, Santo André, Náutico, Goiás, Barueri, São Caetano, Ponte Preta, Payssandu, Crisciúma, Brasiliense, Athletico-PR (1).

Vê-se, assim, uma briga bastante competitiva pelo título, com apenas dois clubes, São Paulo (3) e Corinthias (2), vencendo mais de uma vez a competição, e com seis campeões diferentes em nove anos. O G4 também mostra grande pluralidade: dez dos 12 TN – Botafogo e Internacional são as exceções – participaram, ao menos uma vez, em nove anos, da Libertadores, assim como três equipes TR: São Caetano, Athletico-PR e Goiás. Os clubes TN rebaixados no período – 4 – só caíram uma vez de divisão em nove anos, com todos retornando à série A após apenas um ano na B.

Com o fim do Clube dos 13, o contrato para o triênio 2012 a 2015 já ampliou consideravelmente a assimetria do pagamento pelas partidas na TV aberta:

Fonte: LEITE JR. (2015, p. 83)

No triênio 2016 a 2018, a concentração se acentuou ainda mais.

Fonte: LEITE JR. (2015, p. 84)
* Demais clubes: negociações anuais com a Globo, a depender da participação na Série A

Com isso, a partir de 2016, Flamengo e Corinthians elevam a diferença de R$ 30 milhões sobre o São Paulo para R$ 60 milhões. Em relação a Vasco e Palmeiras, avança de R$ 40 milhões para R$ 70 milhões. Sobre o Botafogo, que na transição do Clube dos 13 para as negociações individuais, vira sua cota avançar de R$ 16 milhões para R$ 45 milhões, a distância para o Flamengo saltou, de R$ 9 milhões em 2011, “para inacreditáveis R$ 110 milhões”. (LEITE JR, p 85).[5]

Nesse modelo, entre 2012 a 2020 temos cinco campeões brasileiros: Corinthians (3 vezes); Cruzeiro, Palmeiras e Flamengo (2 cada) e Fluminense (1). Classificaram-se para o G4, no período, 12 equipes: Grêmio e Flamengo (5 vezes); São Paulo, Corinthians, Atlético-MG e Palmeiras (4); Internacional e Santos (3), Cruzeiro, Fluminense e Athletico-PR (2); Vasco e Botafogo (1). O número de rebaixados do TN avançou de quatro para cinco – Vasco (3 vezes); Botafogo (2); Internacional, Cruzeiro e Palmeiras (1 cada). Entre os clubes fora do TN foram 20: Avaí (3); América-MG, Vitória, Goiás, Figueirense, Coritiba e Ponte Preta, Atlético-GO e Sport (2); Crisciúma, Joinville, Santa Cruz, Paraná, CSA, Chapecoense, Athletico-PR, Ceará, Portuguesa-SP [6], Náutico e Bahia (1).

Vê-se que, entre um período e outro, o número de campeões recuou de seis para cinco. Para além dessa redução, parece mais significativo que, nos últimos seis anos, apenas dois times de São Paulo – Corinthians e Palmeiras (2 vezes cada) – e um do Rio – Flamengo (2) venceram o Brasileiro. Se na década anterior, houve seis campeões diferentes em nove edições, no intervalo seguinte, em seis dos últimos anos, foram só três os vencedores, sinalizando concentração rara na história do futebol brasileiro. O número de times no G4 caiu só de 13 para 12, sendo 11 do TN – a exceção foi o Vasco – contra dez no intervalo anterior. A estabilidade no número de frequentadores da Libertadores permite duas leituras complementares. Por um lado, à parte Flamengo e Corinthians, temos seis dos outros dez clubes do TN em ao menos três das nove edições – Grêmio (5) São Paulo, Palmeiras e Atlético-MG (4), Internacional e Santos (3). Isso pode indicar que, com a emblemática exceção do Palmeiras [7], os demais, sem condições de brigar pelo título, tiveram de se contentar com a ida à Libertadores.

Simultaneamente, o número de quedas de alguns integrantes do TN deu salto importante: de uma vez para três (Vasco) e de zero para duas (Botafogo). E, pela primeira vez desde o início dos pontos corridos, em 2003, um integrante do grupo – o Cruzeiro, campeão do primeiro ano da segunda década – não logrou retornar à série A no ano seguinte [8]. Também pela primeira vez, três TN – Cruzeiro, Botafogo e Vasco, 1/4 daquele universo – vão disputar a série B. Fora do TN, a presença no G4 caiu de dois para um, embora este – Athletico-PR – tenha se classificado duas vezes, sinalizando que o time paranaense pode ter encontrado um modelo competitivo superior ao de outros mais tradicionais, mas insuficiente para disputar, e vencer, o Brasileiro.

Expostos os dados comparativos, nos limitamos a deixar uma provocação à reflexão dos que pensam o futebol como manifestação cultural e identitária para além do clubismo: seria a gestão explicação suficiente e única para a nova configuração de competividade no TN?



[1] Considera-se aqui como tais 12 clubes: quatro do Rio de Janeiro (Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco); quatro de São Paulo (Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos); dois de Minas Gerais (Atlético-MG e Cruzeiro); e dois do Rio Grande do Sul (Grêmio e Internacional). Serão doravante nomeados tradicionais nacionalmente (TN), em contraponto aos tradicionais regionalmente (TR) ou localmente (TL).

[2] Para uma análise detalhada do Clube dos 13 ver SANTOS, 2019; LEITE JR, 2015 e CHRISTOFOLETTI, 2015.

[3] Por estar na segunda divisão, recebeu apenas 50%.

[4] Os clubes que não faziam parte do Clube dos 13 tinham que negociar diretamente com a entidade e não recebiam mais do que 45% do valor do Grupo 3.

[5] Em 2019, um ano após o Grupo Turner, via Esporte Interativo, entrar na disputa da TV fechada, a Globo mudou a fórmula de cotas da TV aberta: 40% dos valores passaram a ser distribuídos igualmente pelos clubes, 30% pela colocação no campeonato e 30% pelo número de partidas exibidas. Embora essa mudança aparentasse reduzir as assimetrias, a Globo ampliou o número de partidas do Corinthians na TV aberta e, aproveitando o ano excepcional do Flamengo, priorizou transmitir os jogos deste time via pay-per-view. Com essas duas opções, elevou ainda mais a diferença dos valores pagos à dupla. O detalhamento das consequências dessa mudança ampliaria excessivamente o espaço desta comunicação. Consideramos que os números já expostos já dão conta do foco aqui escolhido.

[6] O rebaixamento da Portuguesa-SP, em 2013, ocorreu por fatores extracampo. Sob a alegação de que, quase ao fim do último jogo – 0 x 0 contra o Grêmio –, a equipe paulista colocou em campo o meia Heverton, suspenso por duas partidas, o Superior Tribunal de Justiça Desportiva (STJD) puniu a Lusa com a perda de quatro pontos (três da partida disputada mais o ponto do empate). Com isso, a equpe caiu de 48 pontos, no 12º lugar, para 44 pontos, no 17º lugar, salvando o Fluminense, que, com 46 pontos, ocuparia essa posição, sendo rebaixado no campo. O STJD também retirou quatro pontos do Flamengo, por escalar o lateral esquerdo André Santos, suspenso por um jogo. Com isso, o rubro-negro caiu de 49 pontos, na 11º posição, para 45 pontos, na 16ª colocação.

[7] Com uma injeção de € 24 milhões (cerca de R$ 153 milhões) desde 2015 até 2021, o time paulista passou a deter um dos maiores patrocínios do mundo, atrás apenas dos espanhóis Barcelona e Real, do alemão Bayern de Munique, “do novo rico francês Paris Saint-Germain e do top 6 inglês: Liverpool, Manchester City, Manchester United, Arsenal, Chelsea e Tottenham”.

[8] Sobre a crise financeira do Cruzeiro

Referências bibliográficas

CHRISTOFOLETTI, Danilo Fontanetti. O fim do Clube dos 13: Como a Rede Globo controla o futebol brasileiro. São Paulo, Monografias Brasil Escola UOL, 2015.

LEITE JR., Emanuel. Cotas de televisão “apartheid futebolístico” e risco de “espanholização”. Recife, Ed. do Autor, 2015.

SANTOS, Anderson David Gomes dos. Os direitos de transmissão do Campeonato Brasileiro de futebol. Curitiba: Appris, 2019

SIMON, Allan. Brasileirão: como o dinheiro da TV foi distribuído entre os fundadores do C!3 desde 2001, São Paulo: https://allansimon.com.br/2020/01/12/brasileirao-como-o-dinheiro-da-tv-foi-distribuido-entre-os-fundadores-do-c13-desde-2001 acessado in 12/05/2021

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Sobre clubismo, resultadismo e ausência de craques

Poucas questões expõem, de forma tão didática, os vazamentos da objetividade no jornalismo esportivo do que as previsões daqueles que, nesse campo, apresentam-se como comentaristas de esporte. A recente contrição a que grande parte desses sujeitos foi levada pela rememoração de que, no início do Campeonato Brasileiro, apontavam o Santos como um dos candidatos ao rebaixamento foi apenas um dos, não poucos, capítulos em que, sob a capa de previsões ou palpites, deixam escapar o que muitos torcedores identificam como clubismo.

O clubismo, na editoria de esportes, seria o equivalente ao partidarismo na seção de política ou à defesa do rentismo nas páginas de economia. Uma diferença relevante, porém, é que, raramente, um jornalista dessas duas últimas editorias cogitaria a hipótese de explicitar as suas preferências político-partidárias ou de modelos econômicos. Essas têm de serem inferidas por leitores detentores de cardápio que vá além do senso comum ou da mera ignorância dos complexos interesses que envolvem aqueles dois campos.

Na seção de esportes, no entanto, não é incomum que jornalistas revelem suas preferências clubísticas, embora existam exceções em estados de polarização binária e radicalizada, como o Rio Grande do Sul. Tal explicitação de preferências, porém, raramente é acompanhada do reconhecimento de que elas podem implicar alinhamento profissional com os clubes pelos quais torcem. Ao contrário, o ordinário é a proclamação de que elas não interferem em suas análises e opiniões. Curiosa e emblematicamente, tal declaração de fidelidade à objetividade jornalística é diamentralmente oposta à percepção que um numeroso grupo de torcedores tem sobre esses profissionais.

Aqui, faz-se necessário ressalvar a crescente intolerância dos torcedores a qualquer crítica e/ou opinião que contrarie as suas próprias convicções sobre o seu clube e sobre os adversários. Certamente, a intolerância a opiniões divergentes não é um fenômeno que tenha surgido contemporaneamente. No entanto, a crescente polarização da nossa sociedade e o amplo acesso às mídias sociais potencializaram tal sentimento. Mas, para além da negação à alteridade, a atitude dos torcedores também é alimentada pela percepção de que muitos jornalistas são clubistas. Por essa ótica, não haveria grande distinção entre eles e os torcedores que, ao menos, explicitariam sua adesão incondicional a um clube sem qualquer compromisso profissional ou com a objetividade.

Tal percepção por parte de parcelas numerosas do público é potencializada pelo acesso que os torcedores têm às mídias sociais nas suas diferentes plataformas. Na batalha para defender seus clubes e atacar aqueles que consideram adversários das suas agremiações, os torcedores não se valem apenas da paixão. Não raro, como tratamos em artigo anterior[1], também recorrem à gramática jornalística, cobrando dos jornalistas coerência com opiniões pretéritas adotadas, em situações comparáveis, em relação a clubes adversários. Seja no tratamento da derrota numa partida importante ou na análise da atuação do VAR em lances capitais.

E, como confirma vasto material empírico disponível na internet, parte dele encontrável no texto anteriormente mencionado, torcedores céticos em relação à neutralidade do jornalismo esportivo têm fortes motivos de reafirmação da sua (des)crença. No entanto, não apenas a identificação de jornalistas ao clubismo e a negação à alteridade alimentam a descredibilização do jornalismo esportivo.

Dominada pelo resultadismo, a imprensa, e não apenas a brasileira, nos dizeres de Marcelo Bielsa, “se especializou em perverter os seres humanos de acordo com vitórias e derrotas”. Em encontro promovido pela Confederação Brasileira de Futebol (CBF), em 2018, Bielsa justificou seu diagnóstico: “O mesmo comportamento que se utiliza para amplificar (o reconhecimento)  na vitória é o que se utiliza para condenar o comportamento na derrota”.

Ele exemplificou sua afirmação observando que, se Neymar retoma a bola de um adversário e a seleção brasileira ganha oito partidas seguidas, Tite seria elogiado por ter feito o atacante jogar coletivamente, e não apenas individualmente. No entanto, à primeira derrota, o mesmo treinador seria atacado pela imprensa porque, em vez de pôr Neymar mais perto da área adversária, optara por colocá-lo para perseguir o marcador rival.

Essa gramática esquizofrênica da imprensa apontada por Bielsa já fora sintetizada, no século passado, de forma mais crua pelo também treinador Oto Glória: “Se vences, és bestial. Agora, se perdes, és uma besta, mesmo.” Em essência, ela converge com a lógica passional do torcedor, que, em poucos minutos, pode passar da perseguição a determinado jogador do seu time, a gritar com entusiasmo o nome do mesmo jogador, após este marcar o gol da vitória.

Fonte: UOL

A diferença entre o resultadismo do torcedor e o do jornalista é que o primeiro, assumidamente, é amador, e o segundo, reivindica-se profissional e defensor da objetividade. Obviamente, como em qualquer esporte de competição, a vitória é o principal combustível do futebol. No entanto, deveria existir algum espaço para aqueles que se pretendem comentaristas ou analistas enxergarem além do resultado imediato e/ou não serem pautados pelas mídias sociais.

Embora o clubismo não confesso tenha origem bem mais distante da contemporaneidade, existe um elemento que tem contribuído para desmoralizar precocemente as previsões dos jornalistas: a ausência de craques nos gramados brasileiros. Num futebol cada vez mais nivelado por baixo, as diferenças salariais, ainda que substantivas, não se materializam, na mesma proporção, no campo.  Ainda que clubes com mais recursos possam, por exemplo, pagar salários até sete vezes superiores aos seus atletas em relação a jogadores dos adversários, os primeiros não conseguem jogar sete vezes mais do que os jogadores de um time que faça da entrega tática do seu elenco seu principal ativo.

Como, embalada pelo resultadismo e, não raro, resvalando no clubismo, a imprensa esportiva superfatura o futebol de bons jogadores, tornou-se comum que, em partidas decisivas, quando tensão, cobrança e marcação adversária são mais intensas, os “craques” da mídia esportiva não correspondam à construção dos personagens que ela própria criou.

Foi o que aconteceu, apenas para mencionar exemplo que, na montanha russa que marca o tempo no futebol, parece longínquo, ocorreu há menos de um mês e meio, nas semifinais da Copa do Brasil, entre Grêmio e São Paulo. Nesse confronto, “craques” como o veterano Daniel Alves não conseguiram desequilibrar as partidas a favor do São Paulo, particularmente, no segundo jogo, embora o clube paulista tivesse maior controle da partida, mas sem ameaçar o Grêmio. Resultado: em vez de constatar que, num futebol nivelado e sem craques, as partidas tendem a serem muito equilibradas e podem ser decididas por lampejos ou falhas individuais, a imprensa optou por…criticar Fernando Diniz. O mesmo que, na ótica de Bielsa, seria incensado se o São Paulo vencesse a partida, como esteve mais próximo de fazer no primeiro jogo em Porto Alegre. Enquanto isso, Renato Gaúcho era exaltado pelo mesmo jornalismo esportivo que, mais uma vez na gramática de Bielsa, o criticaria por recorrer à mesma tática que o levou à vitória, caso o vencedor fosse o time de Diniz.

Pouco mais de um mês depois, foi a vez de Cuca ser eleito “a besta” pelo jornalismo esportivo, após o Santos ser derrotado por 1 x 0, pelo Palmeiras, quase no último minuto de uma partida arrastada, em que os goleiros dos dois times não fizeram uma única defesa. Dessa vez, o “bestial”, para os jornalistas esportivos, foi o português Abel Ferreira, também candidato a ser execrado caso, a bola alçada à área poucos instantes antes da prorrogação parasse dentro do gol do Palmeiras.

Tal dicotomia impôs-se à questão que mais saltou aos olhos dos que veem além do resultado. Se os dois clubes com as duas melhores campanhas da Libertadores produzem uma final tão sem brilho e sem que nenhum único “craque” se destaque, isso não deveria sinalizar um diagnóstico mais amplo do nível do futebol praticado no Brasil e no continente para muito além dos dois times em campo? Ou a melhor síntese é mesmo que, entre Cuca e Abel Ferreira, deve-se escolher o segundo, como pregou, por exemplo, Juca Kfouri? Pelo menos, até o segundo ser derrotado pelo Tigres, do México, no Mundial de Clubes, numa partida em que sua equipe acertou apenas uma finalização na direção do gol do adversário.

Fonte: Gandula FC

[1] Internet x imprensa: um jogo paralelo no Mundial de Clubes –  Redes sociais recorrem ao jornalismo para criticar cobertura da imprensa (https://comunicacaoeesporte.com/2020/02/27/internet-x-imprensa-um-jogo-paralelo-no-mundial-de-clubes/)

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Silêncio nos estádios e torcida fake

Sons gravados, figuras de papelão, totens, drive-in, com telões nos estacionamentos de estádios. O repertório de clubes e TVs para preencher o silêncio nos estádios enquanto as torcidas não retornam mobiliza recursos, tecnológicos ou não, dotados de alguma capacidade de produção de pertencimento. No entanto, nenhuma das estratégias mobilizadas até agora deu conta de compensar a ausência dos torcedores, imposta por uma pandemia, cujo número de mortos já supera o dobro da capacidade de público da maioria dos estádios brasileiros. A ineficácia da torcida fake ajuda, assim, a colocar em relevo a importância do protagonismo dos torcedores para que o futebol, mais do que um jogo, seja um espetáculo midiático.

Embora a lembrança de tal protagonismo possa soar tautológica, a crescente mercantilização do futebol fez com que, antes da pandemia, o torcedor fosse visto mais como consumidor do que como um integrante seminal do espetáculo. Tal concepção do futebol como negócio reflete-se na elitização dos estádios provocada pela inflação do preço dos ingressos e por normatizações voltadas para esse novo público. Esse movimento não se deu sem enfrentar reações dos excluídos, como mostra a mobilização do antagonismo “raízes” x “nutelas”. Com forte reverberação nas redes sociais, tal embate tem tímido acolhimento no jornalismo esportivo. Esse enfrentamento, porém, não foi, ainda, capaz de deter uma tendência que se insinua desde os anos 1990, ganhando potência crescente quando o dinheiro movimentado pelo futebol gira entre nove e dez dígitos.

esportefera.com.br

A nova trilha sonora dos estádios parece mirar dois alvos: os jogadores e os torcedores/telespectadores que acompanham o jogo pela TV. Para isso, o clube mandante tenta reproduzir comportamentos das torcidas, como sons de vaias, aplausos e outros sinais de frustração ou inconformismo. Numa tentativa de alcançar maior identificação com o público, a Sky chegou a incluir sons “pescados” de confrontos com os estádios ainda cheios.

Apesar de haver pouco material empírico sobre a reação dos atletas a esse novo ambiente, e o tema ser pouco abordado nas entrevistas com os jogadores à beira do campo, o efeito parece ser residual. É que não basta reproduzir o barulho das manifestações da torcida, se as arquibancadas permanecem vazias. Com isso, a pressão, real sobre quem está em campo, incluindo o árbitro e seus auxiliares, vem muito mais de treinadores e comissões técnicas: “Jogar sem torcida é uma merda. Para mim, os torcedores são os reis desse esporte”, assim, após a derrrota para o Bayern de Munique, na final da Chapions League, o meio-campista espanhol Ander Herrera, do PSG, definiu, seu sentimento em relação ao Estádio da Luz vazio.

Moacir Lima Júnior é quem cuida da “voz da torcida” nos jogos em público no Allianz Parque Foto: Werther Santana/Estadão. Fonte: esportes.estadao.com.br

Se os atletas parecem não reagir à torcida fake, o objetivo efetivo da sua existência pode ser o telespectador em casa. A sonorização busca quebrar ou, ao menos, minimizar a frieza da partida sem público. Parecendo não confiar muito nessa estratégia, os locutores enfatizam o repertório escutado pelo telespectador, no estilo “sobe o som”, para tentar emocionalizar uma trilha sonora executada pelos DJs dos estádios.

Uma pista sobre os efeitos dessa estratégia vem do fato de que a ação – e as operações – do VAR têm sido muito mais comentadas do que as trilhas sonoras. A pasteurização da torcida fake coloca em questão até uma das principais questões consideradas dadas no universo do futebol: a relevância do fator casa. De fato, sem torcedores no estádio, qual seria, então, a vantagem, no campo, para o time mandante? A pergunta abstrai a influência do deslocamento e do melhor conhecimento do gramado. O primeiro pode ser minorado com fretamento de aviões, enquanto, no caso do segundo, embora o treinamento no palco da partida seja, em geral, exclusividade do mandante, os estádios já são velhos conhecidos da maioria dos jogadores que se enfrentam, principalmente, num futebol marcado por tantos rodízios de elencos.

A ausência de vantagem dentro do campo para o mandante confirma, assim, que o grande fator de desequilíbrio vem das arquibancadas. Mais do que da presença, sua origem é o comportamento dos presentes ao estádio e/ou arena, sãos suas performances territoriais e ações de pertencimento, o que estabelece distinções funcionais entre plateia e torcida. A primeira comporta-se como agente passivo que, com exceções quase protocolares, como comemorar os gols das suas equipes, limita-se a assistir à partida, com escassa interferência no que se passa no gramado. Nesse sentido, é particularmente emblemática a imagem – capaz de causar estranhamento até entre os narradores das TVs que monopolizam os direitos de transmissão – de sujeitos que optam pelos selfies em vez de se concentrarem em lances decisivos da partidas, como a cobrança de um pênalti.

Já a torcida tem papel ativo, gritando, empurrando o time, tentando desestabilizar o adversário e, até em momentos de maior irritação, vaiando o próprio time, o que, também, é uma forma de influenciar a partida dentro de campo. Em vez de selfies na hora do pênalti, os torcedores abraçam uns aos outros, fazem correntes, recorrem a suspertições e sinais religiosos, vaiam, aplaudem, gritam o nome do goleiro da equipe, incentivam os batedores. Fazem, enfim, parte fundamental da coreografia do espetáculo.

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Dessa forma, tem-se uma contradição significativa: a ausência, compulsória, de torcida provocada pela pandemia, teve um mérito não imaginado quando a proibição foi adotada. Ao reafirmar que recursos tecnológicos, por mais criativos e/os elaborados que sejam, não dão conta de substituir torcedores de carne osso e sensações à flor da pele, o vazio das arquibancadas também serve de denúncia sobre as consequências da interdição – esta planejada – dos torcedores. Afastados dos estádios pelos preços inflacionados dos ingressos, eles foram substituídos por plateias sujeitas a normatizações do futebol hipermercalizado. No entanto, embora estas sejam o público visado pelos novos donos do futebol, estes não conseguiram lograr substituir a emoção produzida pelas torcidas.

Resulta dessas contradições que, assim como não existe futebol sem grandes jogadores, não existe futebol sem torcida. Pode parecer banal, mas não é pouca coisa que até aqueles que mais se empenharam pela elitização do futebol deem-se conta de que, se pretendem que o futebol não seja mero esporte, mas um espetáculo memorável, não há como que isso se concretize sem a presença do torcedor nos estádios.

Fora disso, teremos apenas uma partida de futebol, que poderá ser mal ou bem jogada, mas terá narrativas, apropriações e produções de sentidos bem distintas daquelas que se inscreveram nas memórias de dezenas de milhões de pessoas e tornaram o futebol o esporte que mais atrai fãs em todo o mundo. Quando a torcida for, enfim, autorizada a ocupar as arquibancadas, parcialmente ou sem restrições, se poderá ver se a temporada compulsória de estádios vazios foi capaz de provocar alguma inflexão, ou freio de arrumação, no processo acelerado de interditar o futebol aos torcedores não consumidores.

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Os múltiplos sentidos das partidas reprisadas na memória dos torcedores em tempos de quarentena

Com as arquibancadas vazias, o futebol passou a ser jogado em outro campo: o das reprises de grandes partidas de seleções e clubes. Mais do que mitigar as saudades dos torcedores, essa nova forma de “jogar” permite apropriações de sentidos bastante distintas pelo mesmo torcedor a depender das equipes, então, em campo. E expõe uma das fontes constituintes do futebol: diferentemente de outros esportes, no qual ao candidato a herói basta alcançar a vitória, no futebol, para obter tal reconhecimento, ele precisa derrotar – ou, preferencialmente, eliminar simbolicamente o adversário. De tal condição, tem-se outro gene do DNA futebolístico: a valoração da vitória é diretamente proporcional à força do adversário.

Desse duplo dialético, resulta uma verdade inconfessável pela maioria dos torcedores, principalmente os mais fanáticos: para que a vitória do seu time seja memorável é preciso reconhecer o valor do adversário. A negação de tal condição, indispensável para forjar um grande vencedor, resulta numa contradição que nos diz muito sobre como se desenvolve o estilo competitivo na sociedade brasileira.

Aqui, diferentemente de outros lugares, como a Alemanha, na qual os vice-campeões da Copa de 2002 desfilaram em carro aberto pelas ruas daquele país, o segundo colocado não é o segundo melhor entre vários competidores, mas, sim, o exemplo mais emblemático da derrota, como se tivesse sido o último colocado (SOUTO, 2002). Tal percepção singular da torcida brasileira, quando acionada em relação à seleção do país, pelo menos até um passado cada vez mais remoto, vinha acompanhada da convicção, expressada por jogadores, dirigentes, torcedores e imprensa, de que a cobrança permanente pela vitória seria a responsável pelo Brasil ser o “país mais vitorioso do futebol mundial”.

Fonte: observatoriodatv

A exemplo do passado, o processo de rememoração dos jogos tem na imprensa a principal agenciadora da memória. Embora, na era das redes sociais e dos mundos paralelos das bolhas e das fakes news, tal condição tenha perdido potência, não foi, ainda, substituída por outro tipo de narrativa totalizante socialmente aceita para além das “visões alternativas aos fatos”.

Dessa forma, quando as TVs repetem partidas épicas e/ou decisivas, sejam da seleção ou dos clubes, a operação de visita ao passado continua a ter na imprensa o seu principal agente. O processo de apropriação dos sujeitos, no entanto, também vai ser informado por outros fatores, que variam de acordo com a posição que cada um ocupa num determinado grupo social. Assim, em vez de uma memória, temos várias memórias, influenciadas por questões como fatores geracionais; do impacto que aquela partida causou no instante em que foi realizada; da relação do passado com o presente da equipe pela qual se torce.

A revisita ao passado vai, ainda, confrontar-se com o passado idealizado, eventualmente congelado, como foi vivido por cada sujeito, que, também, o reelaborou ao “passá-lo adiante” para outras gerações. Alguns autores que trabalham a construção oralizada da memória, ao interligarem os dois conceitos, valorizaram a importância da vida quotidiana na acumulação de fatos de uma dada memória social (LEROI-Gourhan, 1981).

Para Freud, a reexperiência de algo idêntico é, em si mesma, uma fonte de prazer (FREUD, 1969). No entanto, acrescentamos, essa segunda experiência, raramente, se passa da mesma forma, porque os sujeitos não são mais os mesmos. É possível, portanto, que busquem ressignificar a experiência. Em “Crônica de uma arte anunciada”, Gabriel Garcia Márques nos informa, já na primeira página, que o personagem Santiago Nasar vai ser assassinado. Com isso, provoca um deslocamento de sentidos do leitor de “o que vai acontecer” para “por que aconteceu”. Analogamente, quando assiste-se a partidas cujos resultados são previamente conhecidos existe um deslocamento de “o que aconteceu” para “como aconteceu”.

Isso não impede que, inconscientemente, os torcedores possam querer mudar o resultado já sabido, como denunciam manifestações, individuais ou coletivas, que escapam em lances que, não resultando em gol, ameaçam a equipe adversária ou a sua equipe. No entanto, para além do desejo por um resultado imaginário, existe outro forte investimento emocional em como a partida desenvolveu-se, particularmente em momentos emblemáticos, sejam de mera plasticidade, sejam os que poderiam ter mudado a sorte da partida.

Principal construtora da memória das derrotas e vitórias das partidas históricas, a imprensa também vai reivindicar a centralidade do processo quando esse passado é revisitado. Para isso, conta com um repertório de várias camadas, desde a escolha dos personagens dos jogos que serão as testemunhas oculares do passado; o trabalho de pesquisa, que vai definir os momentos que merecem ser enfatizados; a escolha de uma narrativa que combine o retorno à cena dos que vivenciaram a partida em tempo real e a contextualização daquele momento para os não o tenham vivido.

Nesse processo, porém, a imprensa se depara com outros guardiões da memória, como os torcedores que, embora atravessados pelo discurso do jornalismo esportivo, formaram sua própria memória da partida a partir das singularidades da sua relação com aquele evento. A memória aprisionada pela oralidade, que vão procurar transmitir aos mais novos, permite cristalizar os mitos de origem, já que aquela fundamenta a sua transmissão através dos “guardiãos da oralidade”.

Fonte: globoesporte

Era, ainda, sob o impacto da vitória ou da derrota que, no passado sem a instantaneidade e a velocidade dos meios eletrônicos, os torcedores, já no trajeto do estádio para casa, começavam a construir uma memória oralizada das partidas, elegendo os candidatos a heróis ou construindo os culpados pela derrota. Vitória e derrota não ficavam confinadas às arquibancadas, mas à simbolização mitológica construída em torno delas. O impacto do lugar da vitória/derrota na memória reconstruída tem valor igual, ou maior, do que o resultado do jogo estampado no placar do estádio.

É no processo constitutivo dos resultados que vão sendo construídos mitos que se eternizam para explicar e definir vitórias e derrotas. Como defende David Morley, mais relevante do que o equilíbrio na cobertura dos acontecimentos é o enquadramento conceitual e ideológico básico pelo qual os acontecimentos são apresentados e, “em conseqüência do qual eles recebem um significado dominante/primário” (MORLEY, 1976 Apud HACKETT in TRAQUINA, 1993:121).

Dessa forma, a revisita ao passado, quando se assiste novamente a partidas históricas, é um processo complexo, prenhe de tensões de sentimentos que disputam o imaginário dos sujeitos, como a angulação do narrador, as ênfases dos convidados chamados a atuar como testemunhas oculares e as próprias memórias singulares dos torcedores. A síntese dos fatores constituintes do imaginário, individual e coletivo, também vai variar de acordo com o objeto; e do distanciamento, cronológico e afetivo, que se tem em relação a ele. Quanto mais distante no tempo uma partida, maior número de névoas na memória, mais complexa será a rememoração daquele momento, do que outro que, pela proximidade do presente, guarda maior frescor da quentura dos acontecimentos.

Quando se revisita a seleção contra um adversário estrangeiro, é muito mais provável que um sentido de pertencimento coletivo seja compartilhado por muitos mais do que quando os times em campo são dois clubes brasileiros. Mas, mesmo no primeiro caso, a noção de pertença pode variar, conforme que seleção brasileira está em campo. Sim, porque, conforme a equipe nacional foi sendo atravessada por valores considerados “não tradicionais” por parcelas do público e da imprensa, essa relação foi sofrendo deslizamentos afetivos importantes.

Essas assimetrias ficaram expostas nas diferenças de audiência, por exemplo, entre as reprises das finais das Copas de 1994 e 2002¹, com a seleção do penta superando em 23% o público que reviu à final da equipe do tetra. Tais assimetrias ocorrem porque voltar a assistir a partidas, principalmente àquelas que guardam maior distanciamento cronológico do tempo presente, é uma forma de recuperar a memória.

Nesse processo, não apenas se vê novamente um jogo, mas, também, se reelaboram partidas, afetos e impressões, o que inclui imprecisões, pois, como observam alguns autores, a memória funciona como uma espécie de reconstrução generativa, e não como memorização mecânica (Godoy, 1977). E as diferenças de audiência parecem indicar que, na reelaboração

O investimento afetivo no passado revela um envolvimento ainda forte com a seleção, ou as seleções daqueles períodos revisitados. Até porque o processo de reelaboração dessa memória pela imprensa está imbricado com outros acontecimentos, como a trajetória do futebol brasileiro nos anos seguintes e sua apropriação e sua representação pela jornalismo esportivo.

Dessa forma, assistir a reprises de partidas, principalmente as mais emblemáticas, dificilmente, é equivalente a transportar-se novamente ao mesmo lugar, quer se estivesse no estádio ou no sofá de casa. Trata-se de uma relação em outra dimensão simbólica, portanto, de uma nova relação. O principal fio condutor dessa revisita é a narrativa, seja a original ou uma contemporânea que busca contextualizar o evento para sujeitos que não o presenciaram.

A narrativa, também, é uma forma de jogar. Ela forma parte um tripé, junto com o jogo e o imaginário. É, portanto, sob a complexa combinação desses fatores que cada torcedor vai viver, novamente, ou pela primeira vez – no caso, das novas gerações – a revisita a uma partida. Afinal, se nada é igual quando é revisitado, cada torcedor, ainda que fortemente impactado pela narrativa da imprensa, vai viver a sua própria partida. E, mesmo que essa experiência tenha interseções – quase inevitáveis – com a de outros sujeitos, haverá, fragmentos, registros, lampejos que serão sempre singulares. Trata-se de uma das magias do futebol: permitir a complexa, e intensa, combinação de sentimentos coletivos com a sensação singular de cada torcedor.

Notas de rodapé

¹ Como a transmissão da Copa de 1970 ficou a cargo do Sportv, a comparação com os índices de audiência da TV aberta nas duas Copas mencionadas poderia causar distorções importantes.

 

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. Obras completas, Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1969.

Godoy, Jack. The domestication of savage mind. Londres: Cambridge Univesity Press,1977.

HACKETT, Robert A. “Declínio de um paradigma? A parcialidade e a objectvidade nos estudos dos media noticiosos” in TRAQUINA, Nelson (org.). Jornalismo: questões, teorias e “estórias”. Lisboa: Veja, 1993.

LEROI-Gourhan, A. O gesto e a palavra. Lisboa: Edições 70,  1981.

SOUTO, Sérgio Montero. Imprensa e memória da Copa de 50: a glória e a tragédia de Barbosa. Niterói: Dissertação de Mestrado da UFF, 200

Internet: Folha de Londrina

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