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Bem-Vinda, Democracia

Em tempos nos quais os ventos da democracia voltam a soprar forte sobre as terras tupiniquins (mesmo ainda com tantos insanos insistindo em lutar contra o vento), nada mais apropriado do que falarmos sobre a Copa São Paulo de Juniores, carinhosamente tratada por Copinha, o mais democrático de todos os campeonatos de futebol disputados no Brasil.

O torneio vem sendo realizado desde 1969 e chega, em 2023, à sua edição de número 53. Só não foi disputado em 1987, por conta da não liberação de verbas do então prefeito de São Paulo, Jânio Quadros, e em 2021, devido à pandemia da Covid. Este ano, 128 clubes participam da competição: representantes de 25 estados e do Distrito Federal. Infelizmente a equipe do Amapá, o Santana Esporte Clube, não conseguiu arrecadar dinheiro suficiente para enviar seus jogadores para a disputa e acabou sendo substituído por um time do interior do estado de São Paulo.

A competição já contou, em algumas de suas edições com clubes estrangeiros e não apenas “vizinhos” latino-americanos como Argentina, Uruguai, Paraguai, México ou Haiti. Teve gente que veio de bem mais longe, como clubes da Arábia Saudita, Alemanha, China e Japão (com quatro times diferentes).

Santo André (SP), campeão da Copinha de 2003.
Fonte: Blog do Bellotti – Esporte Clube Santo André

Tabelinha complicada

Democracia e futebol, em nosso país, nunca se deram muito bem em campo. Cartolas e jogadores na maioria das vezes se encontram em lados opostos, numa tacanha e tradicional relação entre patrões e empregados: uns mandam e outros obedecem, ou, pelo menos, fingem que obedecem. E quando acontece, esporadicamente algum tipo de “bola dividida”, geralmente os dirigentes levam a melhor.

No Brasil, as poucas manifestações conjuntas de jogadores só acontecem quando o “bolso pesa”, ou seja, em situações de não pagamento de salários ou direitos de imagem. Não há, em mais de um século do esporte no país, registros de qualquer manifestação coletiva relevante em defesa da classe profissional.

Uma pesquisa divulgada, em 2021, com dados da CBF, Statista e Ernst & Young mostrou que mais da metade dos jogadores profissionais (cerca de 55%) ganham apenas um salário mínimo por mês, mas isso não mobiliza atletas que poderiam usar sua visibilidade e sua voz para questionar tal discrepância.

No fim da carreira, quando atuava pelo Corinthians, o “fenômeno” Ronaldo Nazário chegou a dar algumas entrevistas reivindicando direitos trabalhistas e aposentadoria especial para jogadores de futebol. Não deu em nada, claro, mas fica a pergunta: hoje, como proprietário de clubes no Brasil e na Espanha, será que ele ainda pensa da mesma forma.

Se na questão trabalhista a união dos jogadores já é escassa, imagine quando o tema de possíveis mobilizações transcende as quatro linhas. O exemplo mais representativo do qual tenho notícias, até hoje, foi a chamada Democracia Corinthiana, movimento surgido no início dos anos 1980, nos estertores da Ditadura Militar.

 Tendo à frente jogadores como Sócrates, Casagrande e Wladimir, o elenco do alvinegro paulista não apenas reivindicava direitos para a classe, como se manifestava politicamente pela volta da democracia no país. Andorinhas que não conseguiram fazer verão.

A democracia em campo com os jogadores do Corinthians.
Fonte: Jornal de Uberaba.

Protestos contra o racismo, a homofobia e até mesmo contra a realização de partidas ainda durante um período mais crítico da Pandemia não devem ser vistos, no meu entender, como uma manifestação conjunta da classe, até porque, quase todos tiveram a anuência dos clubes. Eram demandas autorizadas pelos patrões.

Bola democrática

Mas coloquemos a bola no centro do gramado para analisarmos o poder democrático da Copinha. Mais de 3 mil atletas dos quatro cantos do país têm, durante a competição, a chance de realizar alguns de seus sonhos, dos mais modestos aos mais ambiciosos.

Para muitos desses meninos só a oportunidade de viajarem para outro estado já é uma grande realização, mas, é claro que a maioria tem aspirações maiores: serem vistos, terem seu talento reconhecido, chamarem a atenção de outros clubes ou, ao menos, de algum “olheiro”. Se a partida for contra um “time grande”, ainda melhor, porque a chance de ser transmitida para todo país deixa a “vitrine” bem mais ampla. Uma bela jogada ou, por desígnios do destino, um gol, podem ser a senha para alcançar (desculpem o termo “modinha”) um outro patamar.

Em um país com tanta desigualdade social como o nosso, jogar bola e bem, sempre é visto como possibilidade, ainda que remota, de ascensão social. Exemplos não faltam. Muitos dos multimilionários jogadores brasileiros espalhados pelas maiores ligas de todo o mundo têm histórias semelhantes à de Vinícius Júnior, atacante do Real Madrid e da Seleção, que começou jogando em uma escolinha em São Gonçalo, município humilde do Grande Rio e que alcançou o estrelato, sendo, hoje o jogador brasileiro mais valorizado do planeta.

A ambição, justificada, dessas famílias impõe uma pressão danada sobre esses jovens. Chega a ser recorrente a resposta que quase todos meninos dão quando questionados sobre suas ambições profissionais. Invariavelmente a primeira resposta é comprar uma casa para a família ou proporcionar uma vida mais tranquila para os pais. Dependendo do contrato, essas preocupações chegam a ser tão singelas como a resposta daquele sujeito que, certa vez, em uma reportagem sobre um prêmio acumulado da Megasena, disse que consertaria a bicicleta caso acertasse as seis dezenas.

Imaginem, por exemplo, os valores (não divulgados) do acerto entre Palmeiras e Real Madrid pela venda do passe do menino Endrick, de apenas 16 anos. O garoto, que começou a jogar pelo alviverde aos 10 anos de idade, fez 165 gols em 169 jogos disputados pelas categorias de base. Na Copinha de 2022 foram 5 gols em cinco jogos; o mesmo aproveitamento de 100% se repetiu na Seleção sub-17. Resultado: com apenas 7 partidas disputadas pelo time principal, já está negociado, embora só vá para a Espanha em 2024, quando completar 18 anos.

Endrick o novo espelho de cada menino bom de bola. Fonte: Globo Esporte.

Nem todos serão Endricks. Melhor dizendo, nem todos conseguirão oportunidades e, muito provavelmente, daqui a alguns anos o mundo da bola será algum uma lembrança distante, presente apenas em fotografias. Aqueles que conseguirem seguir na profissão terão um longo caminho pela frente seja na terra natal, em outros estados ou até mesmo em país sobre o qual jamais ouviram falar, com uma língua estranha e muito longe da família.

Para esses jovens que entram em campo nos jogos da Copinha, o futuro é uma incógnita e todo o labirinto que existe entre eles e uma carreira nem passa pela cabeça de quem deixou de ser criança há pouco e vê, sobre seus ombros, o peso de ser a tábua de salvação para uma família inteira. O sonho pode ser Munique ou Manchester, a realidade, contudo, pode não passar de Arapiraca ou Marabá.

Que os tais ventos democráticos façam com que o país volte a um rumo onde a educação pública de qualidade seja uma realidade, ainda que a médio ou longo prazo. Só assim rapazes como esses que disputam a Copinha não tenham no futebol sua única possibilidade de vingar na vida de forma digna.

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O traço e os traçados da bola

Quem pensa que futebol é só o que acontece dentro do campo, entre o pontapé inicial e o apito final do juiz, não sabe, da missa, o terço. A bola é demasiado redonda para que seus caprichos sejam compreendidos dessa forma. O futebol transborda dos gramados, passa pelo imaginário das narrações, pelas análises técnicas, pelas crônicas, mas também pelas artes como a fotografia, o cinema, a literatura e as artes plásticas.

Sou um aficionado das charges e quando a tabelinha se dá entre craques da bola e do traço, o resultado é sempre delicioso. Neste texto vou reverenciar alguns deles tendo como gancho o recente lançamento de uma coletânea da trabalhos do chargista Mário de Oliveira Mendes, que usava o pseudônimo de Mendez. Falecido em 1996 aos 88 anos, consagrou-se como um dos grandes nomes na caricatura do Brasil  entre os anos de 1930 e 1980. No livro “Mendez – mestre da caricatura” o historiador cearense Levi Jucá mostra a abrangência do trabalho do desenhista como uma testemunha de seu tempo e, como não poderia deixar de ser, o futebol também está presente em sua obra. “Com o aparecimento do rádio e dos campeonatos de futebol profissional, jogadores como Heleno de Freitas e cantores como Orlando Silva se tornaram verdadeiros ídolos das massas. Pouco antes da Copa do Mundo de 1950, sediada no Brasil, da primeira conquista da seleção no Mundial de 1958 e de eventos televisionados, responsáveis pela popularização do esporte como paixão nacional, Mendez já fazia caricaturas dos jogadores nos palcos dos programas de rádio da década de 1940”, lembra Jucá.

São 250 páginas com o melhor do trabalho de Mendez.
O “cabecinha de ouro” na capa de A Noite mostra o prestigio de Mendez.
Nessa charge a paixão do vascaíno Mendez falou mais alto e a chegada de Heleno de Freitas a São Januário rendeu uma charge biográfica.
A longa trajetória de Mendez fez com que ele retratasse craques que brilharam nas décadas de 1970 e 1980 como o “Doutor” Sócrates e Zico, o “Galinho de Quintino”.

Jornais e revistas, esportivas ou não, sempre abusaram das charges e desenhos, primeiro por falta de recursos fotográficos, depois porque os traços caricatos dos chargistas sempre faziam muito sucesso. E, se falarmos em esportes, o futebol sempre foi o carro-chefe, fosse para retratar os craques de cada momento, fosse para fazer analogias com problemas da vida nacional. O craque J.Carlos não foi exceção. Suas clássicas melindrosas passaram a dividir espaço com os marmanjos que corriam através da bola.

Duas capas de O Malho por J.Carlos: uma com o time do Paulistano e outra com o prefeito do Distrito Federal Prado Junior impondo mais um “gol” sobre o Legislativo Municipal.

A política sempre sofreu com a marcação cerrada dos chargistas, que o diga o imperador Pedro II desenhado dormindo sobre o trono por Angelo Agostini. Mas aliar a crítica com o futebol passou a funcionar muito bem, afinal somos um país de quase 220 milhões de técnicos. E não importava se as “tretas” eram nacionais ou internacionais.

O mundo vira “bola dividida” entre americanos e soviéticos no traço do cartunista Belmonte.
Já o chargista Théo mostrava a goleada que o ditador Getúlio Vargas sofria com o final do Estado Novo, em 1945. A torcida comemorava.

Mas, aos poucos, outros aspectos da vida nacional foram ganhando espaço nas charges. O traço desses artistas visava, antes de mais nada, retratar um país cada vez mais urbano. De acordo com o pesquisador Levi Jucá, “ao contrário da charge e da caricatura dos tempos do império e da primeira república, estritamente voltadas para a crítica política e social, os representantes da geração de caricaturistas modernos como Mendez, Álvarus, Augusto Rodrigues e Nássara passariam a estampar na imprensa os seus ‘bonecos’ das estrelas do rádio, cinema e futebol.”

Lamartine Babo, autor dos hinos populares dos principais times do Rio de Janeiro no traço de Antônio Nássara.

Já nos anos 1960 e 1970, com a época de ouro do futebol brasileiro e a sequência de títulos mundiais, Ziraldo vai investir não só nos cartuns de humor inspirados na bola, mas também na poesia que envolve o jogo.

Paixões nacionais, segundo Mestre Zira.
  
Personagens, como Jeremias, o Bom e a Supermãe também não escapavam do tema.

Outro grande trabalho desse mineiro de Caratinga se deu no final dos anos 1980. O Clube dos 13, organização de clubes brasileiros, solicitou ao cartunista que desenhasse os mascotes dos times que participariam da Copa União de 1987, campeonato organizado pela “liga” que surgia em oposição à CBF. Na época, em uma reportagem da revista Placar, o cartunista ressaltou a importância da tarefa: “A garotada de hoje não entende mais por que o marinheiro Popeye foi o símbolo do Flamengo ou como o Pato Donald pode representar o Botafogo. Por isso, uma de minhas maiores preocupações neste trabalho foi rejuvenescer as mascotes.”

Criador e criaturas em nome de um novo futebol brasileiro que acabou não decolando.

Quem também criou mascotes para os times do Rio foi o cartunista Henfil. Com eles atraia a atenção dos torcedores/leitores para o Jornal dos Sports, onde suas tirinhas eram publicadas. Retratando a expectativa para os jogos ou repercutindo os resultados das partidas, os personagens interagiam entre si com humor e com a provocação que as torcidas tanto gostavam. Eram eles: o Urubu (Flamengo, o Bacalhau (Vasco), o Pó-de-Arroz (Fluminense), o Cri-Cri (Botafogo) e o Gato Pingado (América).

Os personagens bem-humorados de Henfil brincavam com os estereótipos dos torcedores cariocas e ajudaram a derrubar preconceitos.

Mas se tivéssemos que escolher um cartunista como o mais importante para o futebol, pelo menos no Rio de Janeiro, onde vive este autor, sem dúvida seria Otelo, o caçador. Jornalista, humorista e flamenguista roxo, começou com suas tirinhas em 1947, no Jornal dos Sports, mas pouco tempo depois se transferiu para o jornal O Globo, onde ganhou de Roberto Marinho uma página inteira, às segundas-feiras. Durante 33 anos a coluna Penalty repercutiu as rodadas, brincou com times e jogadores e fez todo mundo rir.

Digamos que a paixão pelo rubro-negro sempre falava mais ato na coluna.

O artigo escrito pelo jornalista André Felipe de Lima e publicado no site do Museu da Pelada lembra que nem todo mundo encarava bem as brincadeiras de Otelo. E cita uma entrevista do cartunista em que ele dizia que humorismo e futebol era uma combinação perigosa. Mesmo assim, gostava de se “arriscar”, tanto que lançou o Livro Negro do Penalty, em dois volumes, vendendo mais de 25 mil exemplares. Dizia ele: “Já fui ameaçado de morte e reclamação é uma constante. Enfrentar personagens como Yustrich, Moisés, Renê, Brito, Paulo Amaral, não é fácil. Anatole France disse que livros históricos que não contêm mentiras são extremamente tediosos. Meu livro tem muita coisa de história do futebol e muita mentira. Certa época, inventei que o técnico Feola dormia durante os jogos e Havelange contratara um garoto para ficar soltando foguetes perto do ‘gordo’, a fim de mantê-lo acordado. Durante a partida, muitos torcedores olhavam o túnel onde o técnico ficava para ver se o doce Feola estava dormindo mesmo.” Para André, Otelo foi mais do que um chargista, embora seus desenhos fossem tão próprios: “É dele também as célebres frases e termos futebolísticos como: ‘Montinho artilheiro’, ‘Todo campeonato tem um campeão moral’, ‘Pênalti não é coisa que se perca’, ‘A torcida do Botafogo cabe numa Kombi’, ‘Coração de torcedor pobre não bate. Apanha’ e, claro, ‘Zico: joia de família do Flamengo’ e o ‘Manto sagrado’. Mas a frase mais célebre, sem dúvida é a ‘Brasileiro que não entende de futebol já nasceu morto’”.

Não há a menor dúvida que sem as charges, cada vez mais escassas tanto no papel quanto no online (exceções como o talentosíssimo Mario Alberto, do Globo.com, só confirmam a regra), o futebol perde um pouco de sua graça e de sua arte, porque mais do que ferinos críticos e perspicazes humoristas, todos esses cartunistas citados, e muitos outros que estão ou estiveram por aí, são artistas de qualidade e com suas criações só fazem com que nossa paixão pelo futebol seja ainda maior.

Mané e Pelé, dois gênios da bola no genial traço de Otelo.
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O 5G e a revolução das transmissões esportivas no Brasil #SQN

Reprodução: Internet

Não é de hoje, é claro. Os avanços tecnológicos em telecomunicações sempre demoraram a chegar em terras tupiniquins. A Era do Rádio, nos Estados Unidos, por exemplo, começou na década de 1920, enquanto que por aqui a consolidação do meio como comunicação de massa só se deu praticamente 15 anos depois. Em relação à TV, embora o Brasil tenha sido o primeiro país da América Latina a ter uma emissora regular, em 1950, isso se deu duas décadas depois dos Estados Unidos e 15 anos após alguns países europeus. Mas esse gap tecnológico aos poucos foi diminuindo drasticamente. O uso do vídeo-tape começou a ser usado pela CBS, emissora americana, em 1956 e no ano seguinte já e era de uso corrente na TV Rio. A transmissão em cores e a utilização de transmissões por satélite também não demoraram a chegar nessas bandas do lado debaixo do Equador.

Em tempos digitais, por conta de interesses comerciais de grandes conglomerados globais, entramos no mesmo compasso do resto do planeta, afinal os gadgets cada vez mais complexos e completos necessitavam uma estrutura comunicacional que satisfizesse os desejos consumistas de seus usuários e garantisse os lucros tanto de fabricantes desses aparelhos, como dos grupos empresariais de Comunicação. Um fetiche tecnológico tão grande que parelhos de TV capazes de reproduzir transmissões em qualidade de 8K são comprados, mesmo que qualquer emissora no país gere qualquer conteúdo, ao menos, em 4K. Quer dizer, tudo seguia no ritmo desejado pela Nova Ordem Mundial, mas aí veio a tecnologia 5G.

O imbróglio do 5G

O 5G nada mais é do que um passo adiante na tecnologia de banda larga sem fio. Uma evolução, diga-se de passagem, bastante relevante. Se uma rede 4G, entrega uma velocidade de conexão de cerca de 33 Mbps, o 5G multiplica isso por 20, superando 1 Gbps. E não é apenas uma questão de velocidade ou estabilidade de sinal, a nova tecnologia permite uma quantidade muito maior de conexões simultâneas, entre 50 a 100 aparelhos a mais do que o panorama atual. A velocidade para download e upload também é um diferencial importante, proporcionando a facilidade de baixar arquivos mais pesados, fundamental para o consumo de vídeos de alta definição ou o uso da Realidade Virtual.

O problema é que não só o Brasil, mas todos os países latino-americanos, tem muito pouco espaço no espectro de frequências próprias para esse tipo de serviço e mesmo que algumas telefônicas já propaguem a oferta dessa tecnologia, há no país, no máximo, algo que poderia ser chamado de um 4G plus. Não bastasse isso, existe toda uma guerra entre EUA e China que envolve questões estratégicas, políticas e econômicas e o Brasil, ao invés de estar em busca das melhores opções tecnológicas, opta por um posicionamento ideológico, ao ponto do próprio presidente, em mais uma de suas bravatas, já ter afirmado que a decisão final seria tomada por ele.

Enquanto dezenas de países em todo o mundo já desfrutam da tecnologia 5G, só agora a Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) anunciou a lista das empresas que se habilitaram para implantação do serviço em território nacional. As vencedoras desse leilão ficarão responsáveis pela compra e instalação de equipamentos e torres de transmissão para o sinal do 5G, com o direito de exploração do serviço durante 20 anos. A promessa é de que os brasileiros passem a acesso ao 5G no ano que vem. 

O que estamos perdendo?

Depois dessa longa contextualização, vamos ao que viemos. Ou seja, falemos de esporte, afinal este blog se destina a isso.

Dentre todas as “maravilhas” prometidas pela tecnologia 5G, algumas já estão impactando de forma inegável a transmissão de eventos esportivos, proporcionado aos espectadores experiências que antes só pareciam possíveis nas ficções futuristas ou em nossos mais imaginativos desvarios.

A Fórmula 1 é um exemplo. A possibilidade do uso de centenas de câmeras em uma mesma transmissão é mais do que real. A transmissão com sinal confiável de microcâmeras instaladas em pontos antes impensáveis dos carros permite que o espetáculo para quem assiste seja ainda mais rico de detalhes. No vídeo do link abaixo é possível ver um exemplo com a Mercedes pilotada pelo heptacampeão mundial Lewis Hamilton. Uma câmera pouco acima de sua viseira, por exemplo, dá a uma visão praticamente igual à do piloto.

Em uma palestra sobre a relação da F1 com a nova tecnologia, Guru Gowrappan, CEO da Verizon Media (um dos gigantes mundiais das telecomunicações) afirmou que nos dias atuais, a experiência do torcedor e o desempenho do atleta estão interligados, inexistindo uma barreira que separa os fãs do campo, da quadra ou da pista de corrida, reforçando que “este não é apenas o futuro do esporte, mas o futuro do conteúdo, conexão e da transação”. Uma parceria da empresa com a equipe Alpine Racing leva experiências de realidade aumentada e realidade virtual a fãs de todo o mundo (ou pelo para aqueles onde o 5G está disponível), tanto nas transmissões vistas em casa quanto nos eventos ao vivo. “Quando a tecnologia é casada com criatividade em grande escala, o mundo começa a se abrir de novas maneiras. A tecnologia alimenta a criatividade nos esportes e, claro, na vida. E, por sua vez, isso impulsiona o crescimento dos negócios e transforma a experiência do torcedor e do atleta e abre o caminho para uma inovação maior”, concluiu Gowrappan.

No Superbowl de 2020, maior evento esportivo norte-americano, a mesma empresa montou uma arena do lado de fora do estádio, onde, através da tecnologia 5g, espectadores puderam desfrutar de todas as possibilidades de interação com o evento através de smartphones. Aliás, os recursos disponíveis para o espectador são impressionantes; escolher por qual câmera quer acompanhar um lance, rever jogadas por diversos ângulos, acompanhar estatísticas e dados vitais de qualquer jogador são apenas alguns deles. Como fica até difícil descrever a experiência com palavras, o vídeo no link abaixo ajuda na compreensão.

Às vezes a tecnologia pode ser usada para efeitos puramente alegóricos, como o de um dragão sobrevoar, ao vivo, um estádio de beisebol na Coreia do Sul. Espetáculo que pôde ser acompanhado por quem assistia à transmissão em casa ou no local.

O céu, portanto, é o limite e a criatividade é a mola para a utilização dessa super ferramenta imersiva, independente de qual modalidade esportiva estiver sendo disputada. E é claro que o bom e velho esporte bretão não podia ficar de fora disso. Na partida decisiva do campeonato português de 2020, ainda sem público, devido à pandemia da Covid-19, a empresa de tecnologia NOS montou um enorme esquema de transmissão explorando recursos do 5G para permitir que a torcida tivesse o máximo de imersão no vazio estádio José Alvalade, em Lisboa. Para se ter uma ideia, microcâmeras foram acopladas até na base da taça entregue aos jogadores campeões do Sporting.

No Brasil, uma das poucas iniciativas de utilização do 5G nos esportes, mesmo com as limitações tecnológicas já citadas é a transmissão de imagens aéreas de provas de Stock Car através de um drone. A parceria envolve a Band, detentora dos direitos de transmissão e a Claro, com o apoio das empresas Huawei, Qualcomm e Motorola.      

Participação ou alienação?

Uma cena muito comum, hoje em dia, nos estádios é a de pessoas interagindo com seus smartphones durante a disputa esportiva. Os celulares parecem adversários mais duros de derrotar do que o oponente em campo. Entre uma selfie e um zap, a atenção do público fica dividida entre o real e o virtual. O que me faz levantar uma questão para a qual, já aviso, não tenho a resposta: esses novos recursos interativos oferecidos pela conexão 5G não vão acabar potencializando essa situação?

É difícil, para mim, estar presente em um jogo de futebol, por exemplo, e não ter as atenções totalmente voltadas para o que acontece dentro das quatro linhas, mas o problema talvez seja apenas geracional, afinal sou um ser humano muito mais analógico do que digital. Pode ser que para as novas gerações que tiveram gadgets praticamente em seus berços a experiência multissensorial seja fundamental para que o esporte continue gerando interesse.

Seja como for, esse parece ser um caminho sem volta. As múltiplas telas já fazem parte de nossas vidas e se trata apenas de uma questão de maior ou menor interação de nossa parte.

Aqui no Brasil, pelo jeito ainda teremos que esperar um pouco para sentirmos na pele os efeitos dessa “revolução” e só então poderemos avaliar, até por nossas próprias experiências, o quanto eles nos impactarão. 

Não há dúvidas de que a nova tecnologia pode enriquecer as transmissões esportivas ou a experiência de quem participa presencialmente de um desses eventos, só espero que ela nunca seja capaz de se sobrepor à emoção de um grito de gol.

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Show do Esporte

Para aqueles leitores com mais tempo de janela como eu, a associação do título é inevitável, porém é necessária uma explicação aos mais novos. No começo dos anos 1980 do século passado, o locutor esportivo Luciano do Valle comandava, todos os domingos, na TV Bandeirantes, uma maratona esportiva com diversas modalidades, muitas delas sem qualquer tradição na televisão brasileira, era o Show do Esporte. O jornalista, que chegou a ser chamado de Luciano do Vôlei, por sua importância no desenvolvimento da popularidade da modalidade no país, também trouxe para a telinha a Fórmula Indy, o campeonato italiano, o futebol master, o futebol feminino e até o futebol americano. Também ajudou a criar ídolos, um tanto quanto efêmeros, é verdade, como Rui Chapéu (sinuca) ou Maguila (boxe), mas a maior virtude da atração foi acreditar na força do esporte como entretenimento de massa bem além dos tradicionais gramados do velho esporte bretão e, isso, muito antes das TVs por assinatura e seus canais esportivos 24 horas.

Quem se interessa por Comunicação Social já ouviu falar, em algum momento, do termo infotenimento. Surgido também nos anos 1980, ele é uma tentativa de denominação para um tipo de conteúdo informativo menos formal, no qual jornalismo e entretenimento se mesclam. Os talk shows logo surgiram como seu principal exemplo, mas a tentação de aumentar audiências através dessa fusão fez com que os telejornais e outros programas de conteúdo informativo adotassem essa linha, digamos assim, mais leve, pelo menos para os conteúdos que assim o permitiam.

 O jornalismo esportivo embarcou de “mala e cuia” no trem do entretenimento. Não bastava mais informar, era quase que obrigatório descontrair, jogar com as palavras, fazer piadas, criar personagens, caçar emoções. O jornalista alagoano Márcio Canuto, que nessa época era um dos poucos a se aventurar por esse lado histriônico do noticiário de esportes, passou a fazer escola. E seus alunos, mesmo moderando o tom circense do colega, passaram a se tornar verdadeiros entertainers. Não é à toa que um dos maiores representantes dessa nova linha, o ex-repórter paulista Tiago Leifert, acabou se tornando apresentador de reality shows e programas de variedades na TV Globo.

Márcio Canuto, o “pioneiro”. (reprodução TV Globo)

 Impulso digital

Se essa tabelinha entre esporte e entretenimento já dava bons resultados antes da internet, depois da popularização dos PCs e dos smartphones, passou a ser forma de sobrevivência. A concorrência é pesada demais para os antes hegemônicos meios de comunicação tradicionais. Os elevados custos da produção para suprir a exigência de alta qualidade técnica tornaram as emissoras de TV em pesados brontossauros que tentam competir diariamente com os ágeis velociraptors digitais (como estamos falando em infotenimento, nada como uma citação de Jurassic Park). E pra complicar ainda mais a situação, o mercado consumidor da informação também mudou. A velocidade informacional dos meios digitais nos contaminou.  

De acordo com uma pesquisa apresentada pela Kantar/IBOPE, 80% dos brasileiros assistiram vídeos online gratuitos em 2020. Em outros países a média foi de 65%. A mesma desproporção vale para vídeos em redes sociais (72% x 57%) e vídeos em serviços por assinatura (62% x 50%). Um desafio para os grandes grupos de telecomunicação nacionais que, por enquanto, ainda resistem, como mostra o mesmo estudo. Mais de 204 milhões de brasileiros consumiram conteúdo em vídeo na televisão em 2020. E o tempo que cada pessoa passou em frente à TV foi 37 minutos maior do que em 2019, totalizando 7h09 horas diárias – recorde dos últimos cinco anos.

Só que não é preciso ser um profeta para ver que a diluição da oferta de conteúdo em vídeo vai ser cada vez maior e com isso dilui-se também o investimento publicitário que, no fim das contas, é o que faz a roda da comunicação girar.  Vejam essa declaração de Arthur Bernardo Neto, Diretor de Desenvolvimento de Negócios para Media Owners: “Em um mundo onde a interação entre pessoas passa a ser cada vez mais virtual, marcas e anunciantes buscaram novas formas de se aproximar do público. Apesar do distanciamento físico, estamos próximos. A interatividade está em alta. Em agosto, por exemplo, 8% dos brasileiros disseram ter escaneado um QR Code pela primeira vez na pandemia”.

Para continuar faturando é preciso aprender os novos passos dessa dança, porque em nenhum momento a “música” vai parar de tocar.

Transmídia sem limites

Os grandes grupos de comunicação já se deram conta há um bom tempo de que precisavam estar presentes além de suas plataformas originais. Uma emissora de TV que não conversasse com seu público através das mídias sociais, achando que seu histórico de audiência a garantiria, certamente já teria sucumbido. E não basta ter perfis no Instagram e Facebook ou material disponível no YouTube ou TikTok. É preciso que o conteúdo seja atraente, diverso e agregador.

É aí que entra a transmídia, utilizando todas os arranjos midiáticos disponíveis de forma estratégica, na qual conteúdos se completam e oferecem um mar de entretenimento e informação ao consumidor.

Em tempos de grandes conglomerados de mídia, essas possibilidades crescem em progressão geométrica, porque todos os empreendimentos desses gigantes midiáticos podem se cruzar, se complementar.

Como estamos falando mais especificamente de esportes trago dois exemplos. O primeiro deles mostra a ligação entre o grupo ViacomCBS com a NFL, liga de futebol americano dos Estados Unidos.

Além da rede de TV CBS, a Viacom também é proprietária do canal infanto-juvenil americano Nickelodeon e, neste ano de 2021 propôs à NFL a transmissão de uma partida dos playoffs, entre Chicago Bears e New Orleans Saints nos dois canais. Sendo que no canal alternativo, a partida teria características muito mais voltadas ao entretenimento do que ao jornalismo esportivo. A transmissão teve a inclusão de efeitos de desenhos animados da Nickelodeon sobre a imagem e ainda contou com comentários de artistas do canal, como Gabrielle Green e Lex Lumpkin.

A partida ganhou design gráfico próprio. (reprodução Nickelodeon)
Os touchdowns ganharam jatos virtuais de slime. (reprodução Nickelodeon)
E o Bob Esponja foi parar no meio das traves. (reprodução Nickelodeon)

A estratégia foi lucrativa para ambas as partes. A Viacom usou seus direitos de transmissão para atingir um público maior que o normal e aumentou seu faturamento com espaços publicitários, já que muitos anunciantes voltados ao público infanto-juvenil tiveram um novo produto à disposição. Para a NFL também foi proveitoso; além do faturamento extra, ganhou com a exposição de seu produto a um público novo e potenciais consumidores no futuro.

A Disney não ficou atrás e usou a ESPN, seu selo de esportes, para divulgar personagens da Marvel, empresa que também pertence ao grupo, em uma partida da NBA, a liga de basquete profissional norte-americana. E abusou da criatividade para contextualizar a experiência que recebeu o título de Arena de Heróis.

Jogadores transformados em heróis de quadrinhos. (reprodução ESPN)

De acordo com o roteiro, depois de uma vitória apertada sobre um exército alienígena invasor, os Vingadores recebem uma nova ameaça, o inimigo promete retornar com reforços. Reconhecendo as habilidades físicas superiores, agilidade e tenacidade dos atletas da Terra, o Pantera Negra e o Homem de Ferro decidem realizar uma série de competições para selecionar quem vai lutar ao lado deles como Campeões da Marvel.

Na partida entre Warriors e Pelicans, competiram três estrelas de cada equipe. No time da Califórnia, Stephen Curry representou a Capitã Marvel; Draymond Green, o Doutor Estranho e Andrew Wiggins, o Pantera Negra. Já pela equipe de Nova Orleans, a estrela da nova geração Zion Williams, representava o novo Capitão América; Brandon Ingram, a Viúva Negra e Lonzo Ball, o Homem de Ferro. A disputa entre eles se deu através de seus desempenhos em quadra, com uma pontuação paralela à do jogo, na qual acertos e erros somavam e diminuíam a contagem. Os detalhes podem ser conferidos clicando aqui

Pontuação paralela dos jogadores selecionados. (reprodução ESPN)

Como na outra iniciativa citada, a transmissão nos EUA foi feita em dois canais da ESPN, uma normal e outra com diversos efeitos visuais e com o acompanhamento da disputa paralela. No estúdio, vários elementos do universo Marvel estavam presentes, como o martelo de Thor ou a luva de Thanos com as Joias do Infinito. A transmissão também contou com a participação do ator Anthony Mackie, que interpreta o novo Capitão América em série recém-lançada pela plataforma de streaming Disney +. No Brasil apenas a transmissão especial foi exibida.

Cenário temático para os apresentadores. (reprodução ESPN)

Esses são apenas dois exemplos da ampla possibilidade de ações envolvendo mídia, entretenimento e esporte. Em nosso país esse tipo de iniciativa ainda é bastante incipiente. Quando muito, emissoras de TV colocam estrelas de seus elencos participando de reportagens, transmissões ou programas esportivos. Mas isso terá que mudar. Afinal, é como afirma o velho jargão do mundo dos espetáculos: The show must go on (O show não pode parar).

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O Inesgotável Pelé (contém spoilers)

A imagem de um ídolo pode permanecer eterna? Em tempos onde megacomputadores e nuvens armazenam uma infinidade de dados, a resposta parece ser obviamente positiva, pelo menos quando se trata da preservação de dados ou imagens sobre ele. Mas é possível ir além de ser apenas mais um verbete numa imensa enciclopédia virtual? Nesse caso a situação é mais delicada, pois exigiria que esse ídolo, independentemente de sua área de atuação, estivesse mais presente no dia-a-dia das pessoas. É o caso de Edson Arantes do Nascimento, o Pelé; primeiro jogador a alcançar o patamar de ídolo mundial e que, por isso mesmo, se notabilizou com a alcunha de Rei do Futebol. Sua grandeza nos gramados foi de tal monta que até hoje tem a majestade eternizada graças a filmes, documentários, livros, histórias em quadrinhos e até videogames. Mesmo quase cinco décadas após “pendurar as chuteiras”, o Atleta do Século XX, mantém seu prestígio.

1981: Pelé recebe o título de atleta do século (fonte: L’Equipe)

O menino e a lenda

O brilho da carreira de Pelé, com suas atuações acima da média, conquistas e gols, muitos gols, gerou, evidentemente, um enorme interesse em torno do garoto talentoso que despontava no Santos Futebol Clube. Após a conquista do sonhado primeiro título mundial pela Seleção, em 1958, na Suécia, o jovem craque, de apenas 17 anos se tornou, então, o centro das atenções.

O franzino herói mal alçava a glória e sua trajetória já começava a ser contada, nem sempre, todavia, se baseando apenas na fidelidade jornalística dos fatos, como no caso do filme dirigido pelo argentino Carlos Hugo Christensen. A abertura do filme “O Rei Pelé”, de 1962 relata a seguinte frase, que teria sido dita pela parteira que trouxe o bebê Edson ao mundo: “O filho de vosmecê vai ser rei. Rei do mundo!”, numa clara alusão a uma suposta predestinação de Pelé. O longa metragem filmado em parceria com o produtor Fábio Cardoso se preocupava em reforçar a questão da superação da pobreza e “derrapava” no ufanismo ao descrever o Brasil como uma terra sem preconceito de cor, de raça ou de religião. Terra onde um menino como Pelé podia se tornar rei.

Cartaz do filme de 1962 (fonte: Internet)

Discursos assim estavam muito em voga nos anos 1960, os chamados “Anos Dourados”. No livro “Viagem em Torno de Pelé”, de 1963, o jornalista Mario Filho também tratou de narrar a vida daquele que classificou como “o primeiro cidadão do mundo que o Brasil já produziu” (esquecendo-se, propositalmente, de nomes como Carmen Miranda ou Santos Dumont, por exemplo). O enredo narra a saga de seu protagonista: um menino pobre e negro, que passa por uma série de dificuldades, mas, no final, conquista o seu reinado. A clássica trajetória do herói.

Não faltaram, em todos esses anos, livros e filmes sobre Pelé. Publicações chegam a quase 20, inclusive escritas por autores estrangeiros. Também há uma autobiografia publicada em 2006. Nas telas, além do filme citado acima, outras três produções foram realizadas sobre o jogador: “Isto é Pelé” (1974), “Pelé Eterno” (2004) e “Once in a lifetime” (“O mundo a seus pés”), sobre a passagem pelo New York Cosmos. Pelé também participou de alguns filmes como ator, interpretando papéis de ficção e até aparecendo como ele próprio, como no caso do filme “Os Trapalhões e o Rei do Futebol” (1986).

Um novo olhar

Independente de tudo o que já se falou e já se mostrou de Pelé, o tema parece nunca se esgotar. É o exemplo do mais recente documentário sobre o Rei, lançado recentemente pelo portal de streaming Netflix. Com o título “Pelé”, o documentário de 108 minutos de duração, dirigido pelos britânicos David Tryhorn e Ben Nicholas proporciona novas experiências, mesmo para aqueles que já conhecem mais profundamente a carreira de Edson Arantes do Nascimento.

 A chegada do ex-jogador para o local onde seria conduzida a entrevista já nos choca. Um frágil Pelé caminha com a ajuda de um andador até a cadeira situada em meio a uma sala vazia. Uma imagem que é o oposto de todas aquelas que nos acostumamos a guardar na memória.

Talvez por ser dirigido por dois estrangeiros e, provavelmente, para agradar um público mais amplo, “Pelé” se atém a analisar o personagem e não apenas por seu impressionante desempenho nos gramados, mas dando espaço ao Edson (como o próprio Rei gosta de se referir a si próprio; na terceira pessoa).

Mesmo em quase duas horas de filme, fica claro que é impossível abordar todos os aspectos necessários para um perfil completo. No entanto, o documentário nos traz questionamentos que muitas vezes relevamos, levados pela crença de sua predestinação para o talento. As cenas de um Pelé bem menino já envergando a camisa do Santos e revolucionando a história de um clube através de suas jogadas e gols, por exemplo, me fizeram refletir sobre como tal carga de responsabilidade poderia ser absorvida por aquele imberbe adolescente. Como lidar com cobranças e idolatria tamanhas? E para nosso espanto e de todos os que tiveram o privilégio de acompanhar o surgimento de um gênio da bola, a tarefa lhe parecia suave, talvez porque acreditasse piamente na frase dita por seu pai e ex-jogador Dondinho: “Não há o que temer. Dentro de campo todos são iguais”. Tanto que em seus primeiros 4 anos de carreira já havia marcado mais de 350 gols.

O menino que já era craque. (Fonte: “Pelé”/NETFLIX)

Da glória da conquista de 58 à frustração da contusão na Copa de 1962, no Chile, o documentário trata de mostrar como a vida do jovem de pouco mais de 20 anos havia mudado, com compromissos de carreira sendo mais implacáveis do que zagueiros “botinudos”. Pelé se transformara no mais requisitado garoto-propaganda e figura obrigatória em grandes eventos. A carreira e a vida pessoal sentiram.

Após o fiasco na Inglaterra, em 1966, onde mais uma vez saiu contundido, Pelé dava entrevistas afirmando que não dava sorte em Mundiais e que aquela seria sua última Copa, mesmo tendo apenas 26 anos.

O (a)político Pelé

Um dos motes do documentário era traçar um paralelo entre a carreira do Rei com o período da Ditadura Militar no Brasil. Tanto no depoimento para os diretores quanto em entrevistas ntigas fica claro que Pelé nunca se atreveu a questionar o cenário além das quatro linhas. Afirmava que não tinha como saber o que acontecia ao certo e que o papel dele era jogar futebol.

Após marcar o gol mil, que aliás contou com cenas que nunca tinha visto, inclusive com entrevistas antes e após a partida concedidas à jovem jornalista Cidinha Campos, Pelé foi convidado pelo presidente Emílio Garrastazu Médici para ir a Brasília. Foi levado do aeroporto ao Palácio do Planalto em carro aberto e lá recebeu os cumprimentos do ditador pelo feito.

O Rei e o ditador. (Fonte: “Pelé”/NETFLIX)

É claro que atitude foi mal vista por quem se opunha ao regime de opressão que, nos finais dos anos 1960, após a promulgação do AI-5, se encontrava mais sanguinário do que nunca. Exigiam do jogador uma postura mais combativa, como a tomada pelo boxeador americano Muhammad Ali, preso por se recusar a lutar na Guerra do Vietnã. Mas, em uma entrevista para o documentário, o jornalista Juca Kfouri lembra que eram situações bem diferentes. Segundo ele, Ali não seria morto na prisão, porém o mesmo não se podia dizer de Pelé. “Só quem já viveu numa Ditadura Militar sabe onde arde”, lembrou Juca.

O governo queria, a todo custo, que o Brasil vencesse a Copa do México e Pelé fazia parte dessa estratégia. O filme não deixa claro que tenha havido qualquer tipo de pressão para que ele revogasse a promessa de não mais jogar Mundiais, mas fica subentendido que havia uma cobrança sobre o Rei para a conquista da Taça. A comissão técnica era basicamente formada por militares e o treinador João Saldanha (um militante comunista), após classificar suas “Feras” nas eliminatórias, foi devidamente substituído por Zagallo. Mais um ponto para o documentário em relação à narrativa desse período turbulento; são apresentadas entrevistas raras de Saldanha que ajudam a mostrar como era clara sua postura beligerante em relação às normas que o Regime exigia, uma “briga” que respingou até para Pelé, acusado por Saldanha de ter um problema de visão que comprometeria suas atuações.

 Ao desembarcar de volta do México, com a taça em mãos, a primeira parada da Seleção foi na Capital Federal. O roteiro planejado tinha sido cumprido com louvor. E não apenas Pelé, mas todos aqueles jogadores, contrafeitos ou não, tiveram que participar da cerimônia.

Nas ruas, tanto durante o Mundial, quanto na recepção aos campeões, se deu uma espécie de hiato cívico, mesmo quem sabia que a vitória contava pontos para a Ditadura, acabou não resistindo à magia daquela seleção e comemorou.  Ao fim do documentário, numa rara opinião sobre essa questão, Pelé afirmou: “A Copa de 70 foi importante para o País. Se perdêssemos, poderia piorar tudo. O fato de a gente ser campeão fez com que o país todo desse uma respirada. Eu acho que 70 foi mais pro país do que pro futebol”.

A riqueza de um reinado

Um dos maiores méritos do documentário “Pelé” está na bela pesquisa de imagens e áudios que ajudou a resgatar pérolas da tão decantada carreira do Rei do Futebol e que se mantinham praticamente inéditas. Cenas que nos surpreendem, encantam e emocionam.

A fragilidade de Edson se contrapõe à vitalidade de cada lance, cada gol mostrado. Suas falas são curtas e não me parece que essa tenha sido uma opção da edição. Apesar de ainda ter 81 anos, o Rei parece um nobre cansado de tantas batalhas e se atém, quase todo tempo, apegado às mesmas respostas estudadas como fez durante toda a carreira, evitando riscos que julgue desnecessários à sua imagem.

Contudo, surpreendentemente, o documentário de Tryhorn e Nicholas nos traz um presente. Um outro Pelé, sorridente e descontraído, ao participar de um encontro com seus ex-companheiros de Santos. Parecem, mesmo, duas pessoas diferentes. Talvez, porque naquele instante, a máquina do tempo da emoção tenha entrado em ação. Naquela hora, ao lado daqueles que dividiram com ele o prazer do futebol, o Rei deixa cetro, manto e coroa de lado e se permite disfrutar aquele momento, livre de qualquer compromisso ou cobrança. Afinal, como bem disse Dondinho, ali, eram todos iguais.

Os Santos do Rei (Fonte: “Pelé”/NETFLIX)
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A bola e a “bolha”

Um jogo totalmente diferente. Esse era o slogan da volta da NBA (a liga de basquete americana) após a interrupção da temporada 2019/2020 devido à pandemia provocada pelo novo Coronavírus. Esportivamente falando, o jogo até pode ter sido o mesmo, mas, sem sombra de dúvida, todas as adaptações que precisaram ser feitas para que o campeonato chegasse ao fim fizeram com que essa temporada fosse única, impossível de esquecer.

 A solução encontrada foi criar uma “bolha”, ou seja, um ambiente totalmente controlado, onde atletas e demais profissionais envolvidos pudessem ficar isolados e imunes a qualquer risco. O local escolhido foi o complexo esportivo gerenciado pela Disney, na cidade de Orlando, na Flórida, o ESPN Wide World of Sports Complex. O local parecia ser o mais adequado, por sua infraestrutura esportiva e hoteleira. Salões de convenções abrigaram 7 quadras para treinamentos e três ginásios ficaram disponíveis para os jogos. Além disso também havia toda uma estrutura de serviços para atender atletas e o staff da NBA. Cada equipe pôde levar até 37 pessoas para a “bolha”, incluindo atletas, técnicos, integrantes da comissão técnica, seguranças e outros funcionários.

A “bolha” do Reino Mágico da Disney (Ilustração: Getty Images)

O que a Liga não esperava era que no mesmo período da retomada da temporada, o número de casos de Covid-19 no estado da Flórida “explodisse”, batendo a marca de quase 15 mil por dia em meados de julho. Mais um motivo para os cuidados médicos serem extremamente rigorosos. Qualquer pessoa que chegava à “bolha” tinha que ficar 48 horas isolada em seu quarto e testar “negativo” em dois exames. Todos aqueles, inclusive alguns jogadores, que precisaram sair, foram obrigados a cumprir um período de quarentena na volta. O relato do armador do Philadelphia 76ers, o brasileiro Raulzinho, à revista Época mostra o quanto a rotina era desgastante:

No começo não foi fácil. Ficava fechado no quarto, sem contato, só saía para os treinos. Passava boa parte do dia vendo TV, sem ter o que fazer. Fizemos muitos testes de Covid-19. Testes diários, protocolos de higiene e segurança. Era necessário, mas o desgaste mental e emocional foi enorme.

Para diminuir a incidência de casos de depressão pelo isolamento, a entrada de parentes foi permitida depois da primeira rodada dos playoffs. Quem quis receber convidados teve que arcar com os custos. Mesmo assim, os visitantes tiveram que ficar em isolamento por uma semana, além de serem submetidos a dois testes em um período de três dias.  O cuidado era tanto que foi criado até um tipo de disque-denúncia para qualquer tipo de quebra dos protocolos de saúde. Além disso, pulseiras usadas por todos os habitantes da “bolha” não só controlavam as movimentações, como ainda registravam a temperatura de todos, 24 horas por dia.

Que comecem os jogos…

Foi preciso criar um critério para definir que times iriam para Orlando. Das 30 franquias, 22 foram selecionadas: as que já tinham definido vagas para a fase do mata-mata e aquelas que ainda tinham essa possibilidade, estando a quatro jogos ou menos do então oitavo colocado. Foram 9 equipes da Conferência Leste e 13 da Oeste. A retomada da temporada se deu em 30 de julho e os playoffs começaram em 17 de agosto.

Uma das grandes diferenças nesse novo normal era a inexistência do “fator casa”. Como as partidas eram disputadas em um ginásio neutro e sem torcida, tudo ficava mais equilibrado nesse sentido. A NBA tentou, de alguma forma, favorecer os times mandantes: um DJ se encarregava de fazer a sonorização da partida, com gritos de torcida e músicas usadas no ginásio  original, além disso foram instalados três grandes painéis de vídeo onde apareciam imagens ao vivo de torcedores pré-cadastrados pela Liga. Mas nem de longe o clima se parecia com o dos mega ginásios que comportam cerca de 20 mil pessoas. Mesmo assim, quem conseguiu participar, como a estudante de Jornalismo da Uerj, Clara Quintaneira, comemorou. Ela ganhou o direito de participar de um jogo entre Bucks e Magic. “Eles avisaram que uma hora antes do jogo eu já poderia entrar no link para participar. Entrei, precisei tirar uma foto do meu rosto e depois tirar foto do meu passaporte para conferirem. Após isso, fui autorizada e aceita na sala do Google Teams com um login e senha que eles davam para cada um”. Ela, que nunca teve a oportunidade de assistir a um jogo da Liga nos Estados Unidos, garante que foi uma sensação especial. “Representou muito pra mim. O momento que estamos vivendo é histórico. Toda essa questão de pandemia, quarentena e isolamento social vai ficar marcada no ano de 2020. Todos tivemos que nos adaptar a uma nova rotina e com a NBA não seria diferente. A ‘bolha’ nos permitiu viver uma experiência nova como plateia virtual”.

Na torcida, mesmo que de forma virtual. (Foto: Clara Quintaneira)

De acordo com alguns analistas a situação extraordinária fez com que algumas equipes se adaptassem melhor do que outras, foi o caso o Phoenix Suns que venceu todos os jogos que disputou na “bolha” e por muito pouco não chegou aos playoffs. Uma situação inversa pode ser ilustrada pelo Milwaukee Bucks, primeiro colocado geral da temporada. O time do MVP (jogador mais valioso), o grego Giannis Antetokounmpo, ganhou apenas três partidas antes do mata-mata. E nos playoffs também acabou decepcionando. Depois de bater o Orlando, foi eliminado pelo Miami, por 4×1, frustrando seus torcedores e todos aqueles que queriam ver um confronto entre Antetokounmpo e LeBron James na final. O melhor time do Leste, contra o melhor do Oeste.

Vidas negras importam

A retomada da NBA também teve um tom de engajamento político jamais visto. As mortes de Breonna Taylor, em Louisville, e de George Floyd, em Minnepolis, ambos negros e assassinados por policiais, gerou uma onda de manifestações nos Estados Unidos. Os jogadores da NBA, em acordo com a Liga, usaram os jogos como sua forma de protesto. O lema Black Lives Matter (vidas negras importam) estava estampado no piso das quadras. Além disso os jogadores também usaram palavras de ordem em seus uniformes como: “Say their names (diga o nome deles), “I can’t breathe” (eu não posso respirar – frase dita por Floyd enquanto era asfixiado pelo joelho de um policial) ou simplesmente “Equality” (igualdade). Durante a execução do hino americano, todos se ajoelhavam e ficavam de braços dados. Uma imagem potente contra o racismo.

Nos tênis de Jamal Murray, do Denver Nuggets, um tributo a Floyd e Breonna. Foto: Kevin C. Cox / Getty Images

Porém, mais um chocante caso de violência quase pôs tudo a perder. Jogadores do Milwaukee Bucks se recusaram a entrar em quadra após tomarem conhecimento de que Jacob Blake, um homem negro de 29 anos, tinha levado sete tiros pelas costas diante dos três filhos, em Kenosha, no estado de Wisconsin. Os disparos, mais uma vez, haviam sido feitos por policiais. O homem perdeu o movimento das pernas.  O time do Orlando não aceitou a vitória por W.O e também não compareceu.

O boicote, inédito, foi explicado por uma nota oficial dos atletas do Bucks:

Os últimos quatro meses lançaram luz sobre as injustiças raciais em curso que as comunidades afro-americanas enfrentam. Cidadãos de todo o país têm usado suas vozes e plataformas para se manifestar contra esses delitos. Apesar do apelo esmagador por mudança, não houve nenhuma ação. Nosso foco hoje não pode estar no basquete.

Logo outras equipes se posicionaram a favor da paralisação e os jogos tiveram que ser suspensos.

As jogadoras da WNBA (liga profissional de basquete feminino), que também disputavam seus playoffs em uma “bolha” em outra cidade da Flórida, fortaleceram o boicote. Elas usaram camisas brancas com alusão às marcas dos tiros contra Jacob Blake, se reuniram no centro da quadra e ficaram de joelhos. Em seguida, deram os braços e exibiram o nome da vítima. Lá, as partidas também foram suspensas.

Os protestos geraram imagens fortes (Foto: Stephen Gosling/ Getty Images)

LeBron James, o maior nome da Liga, tomou a frente do movimento e não mediu palavras para mostrar sua indignação. Em sua conta do Twitter, postou: “Fuck this, man. We demand changes. Sick of it”, pedindo mudanças e se dizendo cansado com tudo aquilo.  A primeira reunião entre atletas e dirigentes foi tensa, jogadores dos dois times de Los Angeles, o Lakers e o Clippers, ameaçaram deixar a “bolha”, capitaneados por LeBron e por Kawhi Leonard.  Só em um segundo encontro houve um acordo, graças, principalmente, à participação efetiva de Michael Jordan; além de uma lenda do basquete e negro, ele também é o dono do Charlote Hornets, time da Carolina do Norte na NBA. O argumento foi de que eles não deveriam abrir mão daquela plataforma de combate ao racismo, usando microfones e câmeras a favor da causa e do estímulo às pessoas a votarem na eleição presidencial americana para tentar gerar mudanças (nos EUA o voto não é obrigatório). Numa atitude inédita, as franquias também prometeram usar seus ginásios como locais de votação.

Mobilização pelo voto e pelas mudanças. (Foto: David Dow/ Getty Images)

O tributo a um rei

Com a bola quicando, Los Angeles Lakers e Miami Heat chegaram à grande final. Uma série bem equilibrada. O time da Califórnia chegou a abrir 2×0 e, depois, 3×1, mas o Miami, valente, comandado pelo talentoso Jimmy Butler, forçou um jogo 6. Esse sim, vencido com tranquilidade pelo Lakers.

A estrela maior, LeBron James, chegava a seu quarto título, conquistado em três diferentes franquias, o próprio Miami Heat (2012 e 2013), o Cleveland Cavaliers (2016) e o Los Angeles Lakers (2020). Um jogador de quase 36 anos de idade que soube adaptar seu jogo e que passou a alcançar marcas espetaculares em todos os fundamentos do jogo. “The King” (o rei), como é conhecido, coleciona recordes e garante: não pretende parar tão cedo.

O título conquistado este ano foi muito significativo. Era quase uma obsessão para LeBron, desde a morte trágica de Kobe Bryant, amigo de James e grande ídolo do Lakers. A taça de 2020 veio dez anos depois de Kobe ter levado o Lakers à sua última conquista. Não à toa, em várias partidas, incluindo o jogo 6 das finais, o time vestiu a “Black Mamba”, camiseta idealizada para homenagear Bryant, que gostava de usar esse apelido (Black Mamba ou Mamba-Negra é um tipo de cobra africana extremamente venenosa). “No fim das contas, nós só esperamos deixar ele e sua família orgulhosos. É disso que se trata. Desde Kobe a todos os outros que por alguma vez vestiram a camisa dos Lakers, jogamos para deixá-los orgulhosos. Isso que estamos tentando fazer”, afirmou James pouco antes da série final.

O “imparável” LeBron James. (Foto: NBA/Divulgação)

E como se não bastasse o desempenho excelente em quadra (foi eleito o MVP das finais), LeBron James mostrou que esporte e engajamento social podem e devem ser complementares: em 2018 criou sua própria fundação para crianças carentes; fez uma parceria com a Universidade de Akron para pagar bolsas de estudo para 2.300 jovens a partir do ano que vem; e lidera uma campanha de recrutamento de 10 mil voluntários que irão trabalhar nas eleições de 3 de novembro. Mais do que um craque, um líder.

Com o título de número 17, o Lakers se tornou a franquia com o maior número de conquistas, ao lado do Boston Celtics. Um fecho de ouro para uma temporada turbulenta como nenhuma outra da NBA.

Os resultados em termos de audiência podem até ter decepcionado. Os índices foram quase 50% menores do que no ano anterior. A concorrência com transmissões de outras ligas como as de Hóquei, Beisebol e de Futebol Americano, todas, excepcionalmente, ocorrendo de forma conjunta, seria uma das explicações. A eleição presidencial de 2020 também teria contribuído para o declínio na audiência. Redes a cabo como Fox News, MSNBC e CNN registraram altas em seus índices durante o horário nobre. Mas se pensarmos na eficiência da “bolha”, a temporada da NBA foi um enorme sucesso. Foram três meses de isolamento e nenhum caso de infecção por Coronavírus registrado. A Liga Americana de Basquete provou que é possível fazer competição esportiva segura em meio à pandemia, coisa que outros esportes e outros países não souberam ou não quiseram fazer.

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O Maracanã e as histórias de sua história

O Estádio Mário Filho, um dos mais importantes palcos do esporte mundial, fez 70 anos. Sete décadas de história e de muitas histórias.

Se aqui chegasse um extraterrestre, vindo de outra galáxia, sem qualquer informação sobre o que é o futebol, será que conseguiríamos explicar a ele a importância daquela construção com um retângulo gramado e um monte de assentos em volta? Provavelmente sim. Mas e se tentássemos expor a ele a relevância emocional daquele gigante de concreto para milhões de pessoas que ali estiveram, munidos de camisas, bandeiras e paixões? Aí, certamente, a resposta teria que que ser negativa.

Não que uma coisa exclua a outra. Vários historiadores e jornalistas já se dedicaram a contar a história desse estádio inaugurado nos anos 1950, para ser a principal sede da quarta Copa do Mundo da FIFA e, de quebra, se tornar o maior do mundo.

Um dos trabalhos mais consistentes sobre toda a trajetória até a inauguração do Estádio Municipal é O Rio corre para o Maracanã, da historiadora Gisella de Araujo Moura[1]. O livro narra desde a aceitação do Brasil para sediar a Copa até o Maracanazo, a final trágica para os comandados de Flávio Costa e toda a torcida brasileira.

foto: reprodução da capa do livro de Gisella de Araujo Moura

Não foi um caminho tranquilo, como nos mostra Gisella. A localização, por exemplo, gerou uma briga político-midiática protagonizada pelo vereador Carlos Lacerda, que queria que o estádio fosse erguido no distante bairro de Jacarepaguá, e o jornalista Mário Filho, defensor do terreno do antigo Derby Club, ao lado da linha férrea e muito mais acessível à população. Aliás, Mário Filho e seu Jornal dos Sports encamparam totalmente a briga pela construção do “Gigante do Maracanã”, desde seu início. Nada mais justo, portanto, que o estádio ganhasse seu nome. Em uma crônica ufanista, o jornalista definiu o que significava, para ele e para o País, tal obra: “Hoje o estádio é o mais novo cartão-postal do Brasil. Um cartão-postal que vale mais do que o Pão de Açúcar, do que o Corcovado, do que a Baía de Guanabara, porque é obra do homem. Uma prova da capacidade de realização do brasileiro…”.

A importância de um livro assim é também trazer as histórias que a história não conta como, por exemplo, a do busto de bronze do General Mendes de Morais que o próprio, então prefeito da cidade, mandou instalar em frente ao Estádio Municipal (Ele sonhava que a construção ganhasse seu nome. Após a derrota para o Uruguai, torcedores revoltados trataram de fazer naufragar qualquer esperança do político. Seu busto foi derrubado pela multidão. Há quem diga que foi parar dentro do Rio Maracanã).

Busto do prefeito Mendes de Morais (foto: O Rio corre para o Maracanã)

A trajetória do Maracanã também pode ser contada através de seus eventos mais marcantes, jogos nos quais drama e êxtase se misturam, mas também por meio da trajetória dos grandes ídolos que ali fizeram seu maior palco. Sem esquecer dos personagens que tiveram seus parcos minutos de fama, como o pequeno Jacozinho, que entrou de penetra no jogo da despedida de Zico e fez até gol com passe de Maradona, em 1985, [2] ou do jovem Cocada, jogador vascaíno que saiu do banco para decidir o título carioca de 1988 contra o Flamengo e ser expulso minutos depois[3].

Jacozinho e Maradona no vestiário do Maracanã (foto: reprodução de TV)
Cocada e sua comemoração (foto: reprodução de TV

E não podemos também esquecer dos eventos que transcendem a esfera esportiva, como eventos religiosos (o Papa João Paulo II rezou missa no estádio) ou musicais. Foi no Maracanã que aconteceu o maior show da carreira de Frank Sinatra. Em sua única vinda ao Brasil, cantou para 170 mil pessoas.

Frank Sinatra no “maior do mundo” (foto: Editora Abril)

Na busca de contar a história do Estádio Mário Filho, através de suas partidas de futebol mais marcantes,  os jornalistas Roberto Assaf e Roger Garcia escreveram o livro Grandes jogos do Maracanã, 1950-2008 [4]. Foram selecionados 62 confrontos envolvendo a Seleção Brasileira, a Seleção Carioca, os principais clubes do Rio (América, Bangu, Botafogo, Flamengo, Fluminense e Vasco) e o Santos, que ali conquistou dois títulos mundiais. Os critérios para a escolha dos jogos foram estabelecidos pelos próprios autores.

foto: reprodução da capa do livro Grandes Jogos do Maracanã

Só que um livro assim rapidamente fica desatualizado, afinal o estádio continua “vivo” e, de 2008 a 2020, muita coisa aconteceu por lá. Algumas partidas emblemáticas como as conquistas da Copa das Confederações, em 2013, e a do Ouro Olímpico, em 2016, certamente teriam que ser incluídas em uma nova edição.

Nenhum apaixonado por futebol pode negar que o Maracanã tem mística própria, mesmo depois de sua completa remodelação para a realização da Copa do Mundo de 2014. É uma espécie de segunda casa do torcedor e dos jogadores também. No prefácio do livro de Assaf e Garcia, intitulado “A casa de todos nós”, o tricampeão mundial Gérson de Oliveira Nunes, fala exatamente sobre isso:

O Maracanã está intimamente ligado à minha trajetória. Comecei a frequentá-lo aos nove anos de idade, quando meu pai me levou para ver o jogo em que o Brasil goleou a Espanha por 6 a 1, quatro gols de Ademir Menezes, na Copa do Mundo de 1950. Da arquibancada, e depois dentro do próprio campo, tive privilégio de acompanhar meus mestres do futebol, Jair da Rosa Pinto, Zizinho e Didi. Ali, ao longo da carreira, colecionei vitórias e títulos, por clubes e pela Seleção Brasileira, jogando contra e ao lado dos maiores craques da história…

Mas também há um outro enfoque para narrar a história do Maracanã: por meio da visão de seu público. Não há a menor dúvida de que cada um torcedor que tem uma  história do estádio toda própria, baseada em suas experiências, vivências e emoções. É o que se chama de micro-histórias.

De acordo com os pesquisadores italianos, Carlo Ginzburg e Giovanni Levi, um fato histórico não pode estar restrito apenas a sua abordagem tradicional, com uma visão macro. As micro-histórias (microstorie) trazem um detalhamento que engrandece a compreensão dos acontecimentos. Por exemplo: o depoimento de um “pracinha” que esteve no front de batalha italiano durante a Segunda Guerra Mundial não apenas enriquece a história da ofensiva da Força Expedicionária Brasileira, como a humaniza.

No futebol, também é assim, em um mesmo jogo, milhares de micro-histórias podem ser contadas.  Algumas terão maior ou menor relevância na história de vida de cada um e às vezes até na do próprio espetáculo, como no caso da “fogueteira” Rosenery, que poderia ter tirado o Brasil de uma Copa do Mundo[5].

O sinalizador lançado pela torcedora e a farsa de rojas (foto: O Globo)

Em tempos de Internet, as lembranças de alguns jogos que nos marcaram podem ser revisitadas com áudio e vídeo, a qualquer momento. Gols que antes viviam só no imaginário podem ser revistos com uma breve busca no YouTube. E a discussão sobre lances polêmicos, não está mais restrita apenas a versões de testemunhas oculares da história, já que podem ser assistidos em diversos ângulos, com tira-teimas e até com o auxílio do VAR. Mas, antigamente, não era assim.

Há alguns meses recebi de presente de uma amiga uma herança muito especial deixada por seu irmão. Flávio César Borba Mascarenhas era botafoguense, mas também um apaixonado pelo bom futebol e a prova disso é a coleção de ingressos do Maracanã que guardava com carinho. Jogos de diversos clubes assistidos por ele. Guardar aqueles pequenos pedaços de papel foi a forma que Flávio encontrou de eternizar seus momentos especiais dentro daquele estádio. Gatilhos de memória e cada um deles com uma micro-história toda sua.

O acervo tem ingressos de vários formatos, de acordo com cada época, e nele constam algumas preciosidades como o da partida que garantiu a classificação das “Feras do Saldanha” para a Copa do México. Uma vitória suada sobre o Paraguai diante de 183.341 espectadores, maior público oficial da história do estádio (dizem que na final de 1950 havia mais de 200 mil pessoas, mas não há uma comprovação).

foto: Acervo Flávio César Borba Mascarenhas

Outra pérola é o ingresso da partida entre Vasco e Santos, no dia 19 de novembro de 1969, quando Pelé, de pênalti, marcou seu milésimo gol. Por 4 cruzeiros novos, Flávio teve a honra de ver a história acontecer diante de seus olhos.

foto: Acervo Flávio César Borba Mascarenhas

Alguns jogos, como o duelo entre a Seleção Carioca e a Seleção Paulista, em setembro de 1967, nada tinham de decisivos, mas eram oportunidades de ver grandes craques em campo. Naquela noite, do lado da Guanabara (a fusão só se deu em 1974) estavam nomes como Manga, Leônidas, Denilson, Gérson, Paulo Borges e Paulo Cézar. Já pelos paulistas, jogaram Carlos Alberto Torres, Rildo, Rivelino, Paraná e Babá. O “Rei”, contundido, assistiu ao jogo do banco de reservas.

fonte: Acervo Flávio César Borba Mascarenhas

Ao mesmo tempo, há ingressos de jogos sem qualquer relevância, como um Botafogo e Bonsucesso, de março de 1970. Uma vitória de 1×0 com um gol marcado pelo meia Valtencir. Os registros da partida eram feitos atrás dos ingressos: placares, autores dos gols, resultados das preliminares e, às vezes, até pequenos comentários, como no caso da partida entre Botafogo e Fluminense, em 13 de agosto de 1969. No verso, está escrito: “Botafogo 1×0 Fluminense! Roberto. Até que enfim!”. Evidentemente fui pesquisar a razão do comentário e o que me pareceu foi que se tratava de um alívio pelo fato do centroavante ter voltado a marcar depois de quase dois meses.  Mas, se foi isso mesmo, só o próprio poderia nos contar.

foto: Acervo  Flávio César Borba Mascarenhas

Flávio Mascarenhas faleceu em 8 de janeiro de 2015, mas aqui estamos nós, mais de 5 anos depois, “ouvindo” suas micro-histórias. O que seria do Maracanã e do futebol se não provocassem em nós todas essas emoções?

Notas de Rodapé

[1] Moura, Gisella de Araujo. O Rio corre para o Maracanã. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.

[2] http://globoesporte.globo.com/al/noticia/2014/06/jacozinho-diz-ter-reencontrado-zico-19-anos-apos-o-polemico-jogo-idolo.html

[3] https://www.espn.com.br/futebol/artigo/_/id/5526625/cocada-o-ultimo-heroi-do-vasco-contra-o-flamengo-ofuscou-romario-na-final-do-campeonato-carioca

[4] ‘Assaf, Roberto e Garcia, Roger. Grandes jogos do Maracanã. Rio de Janeiro, 2008.

[5] https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2015/09/03/caso-fogueteira-que-tirou-chile-da-copa-e-baniu-goleiro-do-sp-faz-26-anos.htm

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Mohamed Salah, o novo faraó do Egito

Houve um tempo em que a única oportunidade de assistir a um jogo internacional pela TV era no domingo pela manhã, quando a TV Bandeirantes exibia, no Show do Esporte, uma única partida da rodada do Campeonato Italiano. O chamariz para os brasileiros era a eventual participação de ídolos nacionais que, a partir dos anos… Continuar lendo Mohamed Salah, o novo faraó do Egito

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O que é que o Bahia tem?

Você torceria por outro time? Uma pergunta assim, para quem é apaixonado por futebol, chega a ser quase uma afronta. Não chego ao extremo de questionar se você torceria contra seu próprio time, mas será que seria capaz, por uma questão de simpatia, de identificação, realmente torcer pelo sucesso de outro clube? Em um país… Continuar lendo O que é que o Bahia tem?

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O futebol na era do politicamente correto. Um mal que se alastra dentro e fora das quatro linhas

Por Rafael Casé Editor-chefe do Observatório da Imprensa e professor da Faculdade de Comunicação Social da Uerj   Há muito tempo atrás, reza a lenda que em 1958, surgiu o grito de “Olé” nos estádios. O primeiro registro oficial, pelo menos para nós brasileiros, se deu em uma partida amistosa entre Botafogo e River Plate, da… Continuar lendo O futebol na era do politicamente correto. Um mal que se alastra dentro e fora das quatro linhas

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