Artigos

Jogo (não) consensual 

“Este é um lugar destinado para homens, onde eles podem fazer o que quiserem e, não importa o que aconteça, devem proteger uns aos outros”.

Essa poderia ser uma frase tirada de um filme americano, de um clube de homens de 1960. Poderia ser o lema de uma sociedade no século XIII ou até um slogan machista de alguma marca. Mas a ideia não fica apenas no campo das hipóteses. Essa parece ser a mensagem que, ainda hoje, é ensinada para os homens que jogam futebol e conseguem algum sucesso no esporte.

Em uma sociedade construída por homens e para homens, qual é o espaço que sobra para as mulheres ocuparem? Em um esporte que paga salários astronômicos para os jogadores, como não se ter tudo o que quer? Em país que já tornou ilegal a prática do futebol pelas mulheres, como legitimá-las nesse ambiente?

Nesse “clube do Bolinha”, quem não encarna essa ideia de masculinidade, fica de fora. Um exemplo é o ex-jogador e agora comentarista do Grupo Globo, Richarlyson. Em 2007, José Cyrillo Júnior, à época dirigente do Palmeiras, insinuou em rede nacional que o jogador seria gay. Richarlyson registrou uma queixa-crime, indeferida pelo juiz Manoel Maximiniano Junqueira Filho, que arquivou o processo ao alegar que “não seria razoável aceitar homossexuais no futebol brasileiro porque prejudicaria o pensamento da equipe”. E ainda completou: “futebol é coisa de macho, não homossexual”.

A perpetuação do futebol como um lugar “para machos”, faz com que a cada cinco dias uma mulher denuncie um jogador por estupro, segundo levantamento feito pela Folha de São Paulo, em 2021. Em um país que, também em 2021, teve um estupro a cada dez minutos, de acordo com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, é compreensível que a acusação por estupro tenha repercutido duas vezes menos nas redes sociais do que a convocação de Daniel Alves. Afinal, como diriam alguns, precisamos de jogadores com raça, que sejam “machos mesmo” pra vencer. 

Fote da imagem: ge.globo.com

Outro caso que explicita essa realidade é o da Ponte Preta que contratou o atacante Dudu Hatamoto, investigado por estupro. Mesmo sob protestos da torcida, o clube manteve a contratação. Mas os torcedores deram uma resposta à altura. O auge de um aficionado por futebol,  se revelou também como um momento de protesto: Dudu marcou, e a torcida não comemorou. Nas redes sociais, torcedores e torcedoras foram enfáticos: “não comemoro gol de estuprador”.

Mas a lenta mudança na sociedade ainda não chegou no clube do Bolinha. O atual técnico do Barcelona, Xavi, que foi campeão ao lado de Daniel Alves pelo clube Catalão, disse que “se sentia mal” pelo lateral ter sido denunciado por estupro. As críticas vieram rapidamente e no dia seguinte ele se desculpou por ter ignorado a vítima e que condena qualquer ato de violência de gênero ou estupro, independente de quem o tenha feito.

O jornal OGlobo procurou 16 dos 26 jogadores convocados para a Copa do Mundo ao lado de Daniel Alves e ninguém quis se manifestar. Na mídia, coube às jornalistas mulheres levantar o debate, enquanto os homens confirmavam “realmente”, “sim, com certeza”, como se acenos de cabeça e respostas curtas fossem o máximo que poderia ser feito.

Escolher não falar sobre o Caso Dani Alves sob o argumento “mas ele não foi condenado”, é uma justificativa pífia para não se comprometer com o Clube do Bolinha. Afinal, o que está em questão é muito maior do que Daniel Alves. É sobre a misoginia e a cultura do estupro enraizadas no futebol. É sobre como esse é um ambiente ameaçador para as mulheres. É sobre como a mulher é descredibilizada e invisibilizada.

A jornalista Renata Mendonça, do Grupo Globo, e uma das fundadoras do site Dibradoras, levantou interessante questão: se fosse um carro roubado a cada cinco dias por jogadores de futebol, uma série de atletas envolvidos no tráfico de drogas, esportistas envolvidos em assaltos. Mas o estupro é diferente. Como ter certeza se a mulher não queria mesmo? Se ela não está querendo se promover? Talvez até ela tenha provocado ele, ou, na pior das hipóteses, ele cometeu um “deslize”. Para os amigos, “deu mole”. 

Acontece, porém, que o consentimento não está em uma linha tênue, ou em fronteiras borradas. Ele é claro, simples, direto e pode ser resumido em duas palavras: sim e não. O problema é quando os homens não respeitam a resposta negativa, afinal, não estão acostumados a terem seus desejos negados. Afirmam que elas falam “não”, querendo dizer “sim”. E que não reconhecem suas próprias ações como violentas e agressivas, afinal, eles sabem que no fundo elas queriam. Quem diria não para eles?  

Muitas mulheres.

Artigos

Normal por Normal, Brilhante por Brilhante

Em ano de Copa do Mundo, uma coisa é certa: ÁLBUM DA COPA!!

Esse ano a atividade ficou sob judice para uma grande parte das pessoas, afinal, a inflação de 100% que acometeu os pacotinhos desde a última Copa não promovia uma decisão favorável para essa causa na qual o Juiz, ou a Juíza, era uma mãe, um pai, ou você mesma/o.

Olhar para os números dá vontade de chorar. Em 2006, os pacotinhos custavam R$ 0,50 (!!!). Na Copa de 2010, R$ 0,75. Quatro anos depois, aqui no Brasil, R$ 1,00. Na última Copa, R$ 2,00 e até que chegamos a esse ano, em que o papel parece ser um produto em escassez e a tinta colorida uma espécie em raridade, o que leva o torcedor a pagar suados 4 reais por pacotinho.

Nem tudo, porém, joga contra essa atividade. O suspense ao abrir cada pacotinho, o frisson da troca, a corrida por completar o álbum e a concentração na hora de colar são fortes argumentos a favor dos colecionadores. E ainda sobre o preço, um ponto a favor é que, em determinados lugares, você pode parcelar as figurinhas! Para que pagar hoje, se podemos deixar para o mês que vem?!

E vale destacar, além disso, que o colecionismo é uma atividade democrática. Tem gente, pingo de gente, gente que nem sabe que é gente, tem gente que tá no segundo álbum, no terceiro álbum, no de capa dura, no de capa norma, tem gente que tá colecionando para o filho ou para a filha (aham, sei), tem gente que tá colecionando para o namorado ou para a namorada (aham, sei), tem gente que só quer o time do Brasil, e gente que só quer o time da Islândia, e por aí vai…

Engana-se quem pensa, porém, que a troca de figurinhas é uma atividade simples. Talvez seja o momento mais sensível do processo. Não existem leis escritas, mas há algumas convenções. Em geral, normal por normal, brilhante por brilhante, ou três normais por uma brilhante. Mas é preciso ressaltar uma coisa. A troca de figurinhas pode revelar o lado mau do ser humano. Algumas pessoas usam o momento para passar a perna nos outros, ou fazer negócios nada justos. Tem quem venda por preços não compatíveis com a realidade, e quem faça a famosa chantagem emocional do tipo “eu te dou as que você precisa, se você me der todas as suas figurinhas”. Para alguns, uma máfia. Para outros, um negócio. Para a maioria, uma diversão.

Fonte: Agência Brasil

Ah, e tem uma outra coisa muito importante. Eu peço, imploro, ajoelho, clamo pelos deuses do futebol: botem as figurinhas em ordem!!!! Pode ser crescente, decrescente, organizar por grupo, por país, de cabeça para baixo, de cabeça para cima, mas que seja em ordem! Um bolinho em ordem intimida muitos bolinhos por aí, rende elogios e até simpatia na hora da troca. É daquelas leis não escritas. É uma espécie de dever moral ético do cidadão trocador!

Mas talvez, nessa atividade, a missão mais difícil seja explicar para as pessoas a importância do Álbum da Copa. Tenho uma humilde teoria de que nós, torcedores, formamos uma classe de incompreendidos por aqueles que não compartilham nossa paixão. Como não entender que devemos, a cada nova banca de jornal, comprar ao menos 5 pacotinhos? Como não entender que é necessário sair à noite, no frio do Rio de Janeiro, para tentar completar a seleção do País de Gales? E, por fim, como não entender que colar as figurinhas é uma atividade de altíssima precisão, e não pode ser feita por qualquer um?

Protejam seus álbuns e troquem figurinhas!! Aliás, estou com umas repetidas aqui… quem quiser trocar é só deixar nos comentários. As regras, vocês já sabem, normal por normal, brilhante por brilhante…

Artigos

“Nível Europa”

Semana passada uma discussão tomou conta das redes sociais e dos debates nas mesas redondas esportivas. A declaração do atacante do Flamengo Gabriel Barbosa após o empate contra o Palmeiras, em jogo adiantado pela quarta rodada do Campeonato Brasileiro, falando que precisamos de uma arbitragem “nível Europa” provocou reflexões sobre a qualidade do jogo e de todos os atores envolvidos.

“ A gente fez um bom jogo, acho que fomos melhores em todos os momentos. Eles não nos assustaram em nenhum lance. Tivemos um gol impedido, perdemos outras chances, mas creio que fizemos um bom jogo. O juiz atrapalhou muito. A gente fala muito que quer um futebol nível europeu, mas o árbitro também precisa ser nível Europa. Escolheram uma pessoa que não deixava a bola rolar, toda hora parou o jogo”.

Foto: Delmiro Junior

Há aqueles que questionaram se também não precisamos de jogadores nível Europa. Outros concordaram com o atacante. Alguns ficaram em cima do muro e, no fim, sobrou até para imprensa com torcedores pedindo “jornalistas nível Europa”.  

Estendendo o debate poderíamos dizer que precisamos de gramados nível Europa, VAR nível Europa, treinadores nível Europa, torcedores nível Europa, e assim chegaríamos à conclusão de que é mais fácil ligar a televisão e assistir a uma partida europeia. 

Lá trás, Nelson Rodrigues já alertava para o nosso complexo de vira-latas. A frase já é batida, um clichezão e às vezes até um pouco cafona, já que é usada nos mais variados contextos. Esse poderia ser mais um, e, talvez para a sua decepção, ou costume, meio que é.  

Mais do que almejar esse padrão, porém, é preciso entender o que faz o “nível Europeu” ser “nível Europeu”. Logo o Brasil, pátria das chuteiras (ou agora ex?), tendo que buscar lá, o que nós ensinamos daqui, dentro das quatro linhas do gramado. Precisando olhar para fora, para enxergar problemas extra-campo que dizem respeito da nossa sociedade, muito mais do que sobre o nosso futebol. 

Nós queremos ser como eles?

Que fase! Como diria Milton Leite. Que fique claro, eu não acho que está tudo bem com o futebol brasileiro, nem que o nível da arbitragem seja excepcional. Estamos vivendo um futebol precário, em todos os sentidos. Banalização da violência, qualidade baixíssima da arbitragem, maus exemplos em campo, desrespeito a jornalistas, respostas evasivas de quem deveria dar uma satisfação ao torcedor.  

É necessário, com ou sem nível europeu, tratar o esporte de forma séria, em sua totalidade. Regulamentar a profissão de árbitro, oferecer punições justas em caso de infrações, coibir todos e quaisquer tipos de violência, inclusive aquelas que não contém agressão física, afinal, considerar apenas um tapa como violência abre perigosos precedentes.  

Para quem defende essa tese, um lembrete, transferir responsabilidades, ao invés de assumi-las não é “nível Europa”. 

Artigos

A volta das torcidas e dos problemas: o assédio nos estádios de futebol

Reprodução: Internet

Com quem você vai ao estádio? Como você vai para o jogo? Como você volta para a casa? É seguro ir sozinha assistir a uma partida de futebol? O que deveria ser uma tarefa simples, ver o seu time jogar, pode se tornar extremamente complexa se você for mulher. As torcidas voltaram aos estádios e com elas, antigos problemas, como o assédio sexual.

Para esse retorno, as autoridades tiveram que formular o famoso “protocolo”: uso de máscara, distanciamento, vacinação e/ou teste de PCR negativo. Medidas muito bem elaboradas e pensadas durante semanas para, no caso das duas primeiras, serem escancaradamente desrespeitadas, surpreendendo um total de zero pessoas. O que também não é surpreendente é o fato de não terem pensado, durante a programação dessa volta, em medidas que evitassem ou minimizassem um velho problema do futebol: o assédio.

Colocar as torcidas de volta nos estádios também teve o seu lado político, afinal, quem ousaria ser o prefeito a ter prudência, esperar mais um pouco, e enfurecer milhares de pessoas? É mais fácil criar um protocolo – pessimamente fiscalizado, diga-se de passagem, vide imagens das torcidas aglomeradas e sem máscara – e fazer a alegria da galera e, é claro, de si próprio, pensando nas próximas eleições. Não existe almoço grátis. 

Isso não é novo na História. Leis pensadas apenas por um grupo de pessoas, atendem apenas a um grupo de pessoas. A falta de mulheres em espaços de comando dentro do futebol, e também nos governos, fazem com que questões que dizem respeito a nossa vivência não sejam levadas em conta. Mais uma vez, nada de novo sob o Sol, afinal, o futebol é um espaço para homens, não é mesmo (contém ironia)?!

No mês de novembro, durante três semanas seguidas o Mineirão registrou casos de assédio e importunação sexual. O primeiro caso foi denunciado dia 10, e só depois de mais dois registros, a Comissão de Mulheres da Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) aprovou uma visita técnica para apurar a denúncia, verificar o treinamento dos funcionários para esses casos e pensar em um projeto de acolhimento às vítimas no local. O clube disse que solidarizava com as vítimas e prometeu “agir para acabar com essa situação de desrespeito”. Bom, eu não vi nenhuma ação do Atlético Mineiro em prol do combate à violência contra às mulheres até agora. Vamos fazer aquele combinado, quem encontrar primeiro, avisa para o outro! Eu prometo que volto aqui, com o maior prazer, para falar de ações efetivas e se vocês virem algo antes disso, por favor me avisem!

É bom ressaltar que o problema não é o Mineirão. No Estádio Nilton Santos a bandeirinha Katiuscia Mendonça foi vítima de uma série de ofensas machistas pela torcida botafoguense. O clube formalizou um pedido de desculpas, assinado pelo presidente Durcesio Mello. Além disso, de acordo com os portais de notícias, o clube planeja a criação de um setor exclusivo para a torcida feminina no Engenhão para 2022 – iniciativa do Botafogo. Vamos acompanhar para ver se o projeto vai sair do papel. E caso isso ocorra (torçamos para que sim!) será uma grande oportunidade para as torcedoras irem ao estádio um pouco mais tranquilas e poderem se preocupar, apenas, com desempenho do time em campo.

Quem faz parte desse planejamento é o Diretor de Negócios Lênin Franco, que já participou do Passes & Impasses quando era Diretor de Marketing do Bahia, clube conhecido por estar atento às causas sociais e fazer ações efetivas para combater quaisquer tipos de violências. Esse setor feminino já existia, antes da pandemia, na Arena Fonte Nova, assim como um botão de pânico no aplicativo do clube um site “Me deixe torcer”, que está ativo e tem um botão escrito “faça seu relato”, para torcedoras contarem casos de assédio de futebol. O site ainda diz que a pesquisa ajudará o clube a buscar soluções junto às autoridades para combater o crime de assédio (um projeto, aliás, que deveria ser mais buscado pelos veículos de comunicação, para saber se, de fato, ocorre).

Estamos diante de um problema real, urgente e que, no futebol, se resume a meia dúzia de ações no dia da mulher. É gritante a falta de interesse dos clubes, dos governos e da CBF, sabendo que o esporte é um fenômeno social gigantesco, e do potencial que ações efetivas de combate à violência contra as mulheres pode ter. Todos buscaram rapidamente desenvolver um protocolo para a COVID, que está (mais ou menos) em dia, mas poucos mexem um dedo para pensar em projetos que visem o combate à violência contra a mulher. A experiência de ir ao estádio pode ser maravilhosa para você, mas pode ser extremamente violenta para outras pessoas. E isso não é só problema delas.

Artigos

O melhor dos piores? O futebol e a falta do espírito esportivo

Quem gosta de perder? Acredito que ninguém. Em competições que valem o título, então, é notório a disputa em campo por cada bola, em cada lance, como se fosse o último. Entretanto, no fim, só um pode sagrar-se campeão. E todos estão cientes disso, jogadores, técnicos, dirigentes, torcida. A taça só é levantada por um time, enquanto o outro fica com o segundo lugar.

Qual é o valor da medalha de prata, então? Seria ela o símbolo do “melhor dos piores”? Ou uma representação de estar no extrato dos melhores, guardando, inclusive, um lugar no pódio? No futebol, parece que ganha a primeira opção. É sintomático ver, em duas finais seguidas, a mesma imagem. Jogadores de Brasil e Inglaterra, logo após receberem as medalhas de prata, retiraram-nas do pescoço.

Neymar com a medalha de prata fora do pescoço. Fonte: O Globo

A dor, a frustração, a tristeza e a raiva, mesmo que presentes, não podem ser justificativas para tal ação. Não faz muito tempo, a imagem de Guardiola beijando a medalha de prata depois de perder a final da Liga dos Campeões para o Chelsea viralizou. Estaria ele menos triste que os demais? Ou Guardiola, com esse gesto, valorizava a campanha de seu time? Existe uma linha muito tênue entre a insatisfação pela derrota e o desprezo pela competição. Retirar a medalha de prata do peito é negar a própria trajetória de seu time, e, pior de tudo, não reconhecer a vitória do seu adversário. É a síntese da falta de espírito esportivo.

Guardiola beija medalha de prata depois de ficar com o vice na Liga dos Campeões. Fonte: ge.globo.com

Quais são os valores do esporte? Disciplina, trabalho em equipe e respeito, são conceitos que, frequentemente, estão presentes nas respostas dessa pergunta. É por isso que há beleza no esporte. Porque ele nos mobiliza ao mesmo tempo que nos ensina. Em muitos aspectos, o esporte é sim formador.

Quando se trata do esporte profissional, porém, entra em caráter o aspecto econômico, e a vitória possui, também, um valor monetário. Os valores do esporte, muitas vezes, ficam de lado, e fica o questionamento sobre o quanto essa profissionalização naturaliza condutas antiéticas, justificadas por “isso é futebol”. No imaginário popular, existe uma ideia de que ética e futebol não andam juntos. E que, portanto, qualquer coisa vale para se alcançar a vitória, que é a única régua para medir uma atuação.

É justamente aí que reside o perigo. Quando medimos qualquer coisa olhando apenas para um aspecto, perdemos uma gama de outras questões que moldam, no caso do futebol, um time, uma partida, uma final, uma medalha de ouro ou de prata. E, então, caímos em reducionismos simplistas: ouro é bom, prata é ruim. Repetidamente falamos que, “nem sempre ganha o melhor”. Então por que parece que sempre perde o pior? Que mensagem é passada para muitos jovens que, um dia, sonham em estar no lugar dos seus ídolos? Que só os que saem vitoriosos devem ser valorizados. E, assim, gira fortificada a roda do culto à vitória no futebol.

Harry Kane com a medalha de prata na mão, logo após recebê-la. Fonte: Congo News

Talvez nesse momento muitos torcedores estejam um pouco irritados, questionando se eu ficaria feliz com meu time ganhando uma medalha de prata. Antes de mais nada, vejam, não estou pedindo para ninguém sorrir e sair serelepe depois de perder um jogo. Até podiam, afinal, a conquista de um vice-campeonato não deixa de ser uma conquista. Mas o texto não é sobre isso. Não é sobre se alegrar com a derrota, mas em reconhecer a vitória do outro. É claro que, quando meu time está em uma final, o que eu mais quero é gritar “é campeão!”. E, portanto, é óbvio que eu vou ficar triste se ele perder. Mas eu ficaria muito mais triste vendo meu time tirando essa medalha do peito, desrespeitando o adversário, o campeonato, a torcida e a instituição.

Aceitar a derrota não é romantizá-la, não é sinônimo de conformismo e muito menos de passividade. Aceitar a derrota é o primeiro passo para vencer o próximo jogo. Caso contrário, corre-se o risco de se cometer os mesmos erros e ter os mesmos resultados. E esse filme já é conhecido por muitos…

Artigos

Meu nome é M-Á-R-I-O F-I-L-H-O

No dia três de fevereiro deste ano, fui pego de surpresa: queriam mudar meu nome. Logo eu! Mundialmente conhecido. Cartão postal do Rio. Meu nome é minha identidade! Ele está estampado nos jornais, livros, músicas… meu nome está nos jantares de família. Na memória dos torcedores. Eu sou a saudade de muitos dos meus frequentadores e o desejo daqueles que ainda não me conhecem. Meu nome é a interseção entre flamenguistas e tricolores. Já abrigou botafoguenses, vascaínos, corintianos, santistas… meu nome é a interseção entre a terra e o céu, com as saudosas presenças de Sobrenatural de Almeida, Nossa Senhora dos Gols Perdidos, Gravatinha, Santo dos Gols Impossíveis, Nelson e Mário.

Eu sou setentão… ano passado não me faltaram homenagens… e agora, justo nesse momento em que eu vivo uma solidão sem tamanho, me aparecem com mais essa. Eu figuro no coração de milhões de torcedores. No sonho de milhares de jogadores. Eu sou parte daquelas histórias de “primeira vez” que ninguém esquece.

Não querem me apagar totalmente! Ufa! A ideia, pelo que fiquei sabendo, é colocar o meu nome no Complexo Esportivo. Mas eu não sou complexo. Eu sou simples. Tão simples quanto os pulos de alegria que as torcidas dão quando comemoram um gol. E, toda vez que uma torcida vibra, eu vibro junto. Porque essa é a minha essência.

Aliás, vocês conhecem a minha história? Eu nasci no dia dezesseis de junho de 1950. Waldir Pereira, mas conhecido como Didi, meio-campo da Seleção Carioca foi o primeiro a ter a honra de fazer um gol em aqui. Mas não pensem que foi fácil me erguerem. E é justamente aqui que a história fica mais interessante.

A intenção do pessoal daquela época era construir um grande estádio para a Copa de 50. E assim começaram a pensar no projeto que daria origem a mim. Uma parte dos idealizadores e apoiadores queriam me colocar láaaa em Jacarepaguá. Quem defendeu com unhas e dentes que eu fosse erguido perto do rio Maracanã foi Mário Filho. Ele queria que eu ficasse em um lugar acessível para todos. Já imaginaram se eu tivesse parado lá em Jacarepaguá? Nem Mário Filho e nem Maracanã…. sabe-se lá como iam me chamar…

O papel de Mário não para por aí. Ele era um entusiasta do futebol! Vocês sabiam que foi ele quem criou o termo “Fla-Flu”? Pois é! Ele é o dono do apelido do clássico mais charmoso que é disputado em mim. Além disso, Mário fez parte de uma comissão que pensou na minha existência como um todo. Desde onde eu ficaria até o preço dos ingressos que seriam vendidos. E, por influência do meu criador, só uma conclusão era possível: eu tinha que ser um estádio do povo. O futebol, que começou como um esporte de elite, aos poucos se tornava mais popular. E Mário Filho teve um papel fundamental nisso, sobretudo no Rio. Aliás, Filho que nada! Filho sou eu! Ele é o Mário Pai!

Tanta História… tantas estórias… tantos afetos… e ainda querem mudar meu nome. Querem me dar nome de Rei. Uma ironia do destino, né? Eu vi esse menino crescer! Seu milésimo gol, esse que todos falam, foi marcado aqui. Para que criarem essa rivalidade entre nós agora? Eu nunca pedi para entrar para a realeza. Pelo contrário! Eu disse a vocês – fui criado para ser um estádio do povo. Assim fui imaginado. Assim permanecerei.

Então, meus caros, aqueles que quiserem mudar o meu nome que lutem! Mais do que processos burocráticos, eles terão que enfrentar a História. Eu sou palco de duas finais de Copa do Mundo. Eu já abriguei, em uma única partida, 178.850 amantes do futebol. Esse pessoal, que teve essa ideia desnecessária, pode até querer mudar o futuro. Mas eles não têm como mudar o passado. Eu sou a história. E eu nunca serei esquecido. A minha voz, que é a voz de milhares de torcedores, vai ecoar na eternidade. E então, quando perguntarem meu nome, eu direi: meu nome é Mário Filho.

Fonte: Wikipedia
Artigos

Estaria Portugal recolonizando o Brasil?

Todo mundo já deve ter respondido a pergunta “quem descobriu o Brasil?” alguma vez na vida. A resposta certeira, “Pedro Álvares Cabral”, confirma o laço incontornável que une terras lusitanas e tupiniquins.

A história, em geral, é contada de forma romantizada colocando os colonizadores na posição de heróis, quando, na verdade, sabemos que não foi bem assim. O que se firmou em 1500 foi um vínculo entre colonizadores e colonizados que perdurou durante séculos anos a fio. Mesmo depois da Independência decretada por D. Pedro II, essa noção de atraso e subserviência continuou – e continua – marcante na atmosfera nacional. Não à toa uma das máximas de Nelson Rodrigues para justificar o comportamento brasileiro continua a fazer sentido até hoje. Sofríamos, segundo o escritor, de um “complexo de vira-latas”.

Se a relação entre Brasil e Portugal é marcada por certo ar de superioridade português, no futebol essa situação é diferente. Em vinte confrontos entre as duas seleções, são treze vitórias canarinhas e apenas quatro lusitanas. O Brasil, em número de grandes jogadores revelados e nível de dificuldade dos campeonatos nacionais é muito superior a Portugal. Entretanto, em 2019, “o jogo virou”. Devido ao meteórico e inquestionável sucesso do português Jorge Jesus a frente do Flamengo, os caminhos de Brasil e Portugal voltaram a se cruzar de forma mais intensa. Começou-se um questionamento imediato da qualidade dos técnicos brasileiros e uma corrida pela contratação de comandantes estrangeiros.

E foi exatamente mais um português que, no dia 30 de janeiro de 2021, sagrou-se campeão da Taça Libertadores da América. Torneio cujo nome é uma homenagem à libertação das nações da América do Sul. Irônico, não? As duas últimas conquistas da Libertadores tiveram como protagonistas duas figuras portuguesas colocando suas mãos na taça. Mãos diferentes das que chegaram aqui séculos atrás para nos colonizar, mas com o mesmo objetivo: a conquista da América.

cnnbrasil.com.br

A vitória agora não era a única coisa que importava. Entrou em jogo a nova palavra da moda – performance. Uma das novas palavras da moda entrou em jogo. Encantar, vibrar, marcar. Todos em busca do modelo que JJ implantou no Flamengo em poucos meses de trabalho. Com essa expectativa, o olhar do Brasil se voltou novamente para a Europa em busca de outro técnico que repetisse o sucesso de Jesus. Na temporada de 2020, a série A do Campeonato Brasileiro bateu o recorde de técnicos estrangeiros. Um quarto dos times foi comandado por profissionais de outra nacionalidade. Foram eles: Eduardo Coudet (Internacional); Jorge Sampaoli (Atlético-MG); Domenéc Torrent (Flamengo); Ricardo Sá Pinto (Vasco) e Abel Ferreira (Palmeiras). Todos, exceto Sá Pinto, têm (ou tiveram), em seus clubes um aproveitamento superior a 60%. E, destaca-se, dois desses cinco técnicos estrangeiros são portugueses.

A minha posição nesse texto não é, de forma alguma, criar uma espécie de “nós contra eles”. Eu acho, sinceramente, maravilhosa e necessária a abertura de olhar do mercado brasileiro para o estrangeiro. Entretanto é inevitável a pergunta: ficaremos olhando técnicos estrangeiros dominarem nosso futebol? Novamente, não proponho esse questionamento por ser contra nenhum técnico estrangeiro. A questão não é de onde vêm, mas sim o que fazem. Entristece-me perceber que, quando olhamos para os técnicos que temos, não consigamos listar mais do que cinco (se tanto) que sejam de alto nível. Tite? Diniz? Cuca? Renato? Ceni? Nenhum é consenso. Com todo respeito aos “professores” brasileiros que comandam seus times, está na hora de fazer uma autocrítica, de entender que o futebol requer trabalho, que o modelo “paizão” está ultrapassado, que variações táticas são necessárias, que respeitar as características de cada jogador é essencial, e, principalmente, que estudar é parte importantíssima do ofício. E não é apenas sobre estudar o time adversário. É estudar o futebol. E de forma contínua.

Os técnicos estrangeiros são uma realidade. Resta ver o que os técnicos brasileiros farão diante disso. Ficaremos sentados sobre o famoso complexo de vira-latas ou absorveremos novas fontes como potência e estudo para termos um mercado nacional de técnicos igualmente competitivo? Espero que o Campeonato Brasileiro continue a ser fonte de um intercâmbio de ideias, estilos e técnicos, mas que isso também venha a fortalecer o nosso mercado interno. Nem todos os técnicos de outros países terão sucesso. Nem todos os brasileiros deixarão de ser campeões. Teremos trabalhos bons e ruins para todos os lados, mas inevitavelmente de 2019 para cá o olhar para esse grupo mudou. Não é sobre a busca desesperada por um técnico de outro país. E nem sobre a necessidade de algum brasileiro ser melhor do que eles. É sobre refletir o que estamos fazendo por aqui. Na coletiva depois da conquista da Libertadores, Abel Ferreira disse: “não há bons treinadores sem bons jogadores”. É uma daquelas frases que entra para o clube do ovo e da galinha. Bons jogadores nós temos. E muitos. Talvez nos faltem os treinadores…

Se for para o bem do futebol e felicidade geral dos torcedores, que os portugueses (e técnicos de quaisquer nacionalidades) possam ficar por aqui. E que possamos estabelecer uma relação de troca e simetria em prol do espetáculo.

Artigos

O Futebol e “O Psicológico”

Por Laura Quadros e Leticia Quadros

Que atire a primeira pedra quem, no meio do esporte, nunca falou do “Psicológico” de algum atleta ou de algum time: “A equipe tem de controlar seu Psicológico”; “Fulano tem o Psicológico forte”… São apenas dois exemplos, de vários, que trazem essa referência em forma de entidade, como se fosse um ser independente, e que às vezes parece ter vontade própria. Mas afinal, quem é o tal “O Psicológico”?

De uma maneira bem simples, talvez a primeira coisa que venha à cabeça é que o Psicológico é o que atua na nossa mente, nosso poder de concentração, foco, pensamentos e até sensações. Há também a ideia dele ser uma expressão emocional, muitas vezes algo à parte, independente do jogador e seu universo mais imediato. Se nos voltarmos para a visão mais clássica, o predomínio da dicotomia razão-emoção, indivíduo-sociedade, natureza-cultura traz alguns equívocos na compreensão dessa misteriosa atuação do tal psicológico em nossas vidas.

Recentemente, o atacante do Fluminense Caio Paulista deu uma entrevista depois do jogo contra o Atlético Mineiro, no qual marcou seu primeiro gol como profissional, mencionando o trabalho da psicóloga do clube, Emily Gonçalves. Seguem as palavras de Caio:

“Foi a psicóloga do clube que conversou bastante comigo. Falou para mim durante a noite pensar no gol, pensar na jogada, respirar a cada movimento no jogo. Hoje acho que foi muito disso”.

Nessa fala espontânea e entusiasmada, percebemos que, provavelmente, há uma relação de confiança entre o jogador e a profissional que o acompanha no clube. Talvez, mais do que a ideia de pensar no gol, esteja ali envolvida uma gama de bons afetos que produzem um vínculo acolhedor entre esse atleta e a psicóloga do Fluminense, que procura acionar as potências nessa difícil tarefa que é a busca pela vitória.

Então, a questão que levantamos é: existe esse psicológico fora de uma relação? Se o atacante do Fluminense não acreditasse no processo com a psicóloga do clube, se ele não confiasse no trabalho que se dá no campo (e aqui não nos referimos ao campo de jogo, mas ao campo relacional), será que bastaria ele imaginar, que o gol iria sair? Não estamos aqui descartando, é claro, o trabalho feito nos treinos físicos e táticos, mas, se apenas pensar no gol fosse suficiente, qualquer um poderia fazê-lo, não é? Estamos, menos ainda, desqualificando qualquer recurso técnico utilizado pela psicóloga de acordo com as abordagens oriundas de estudos e pesquisas nessa área. O que estamos querendo colocar é que, para além do próprio esforço do atleta, a confiança na relação profissional, a aposta no trabalho com a psicóloga foram pontos chave para que ele ganhasse confiança. Seria ilusório dizer que o gol saiu exclusivamente pela técnica de mentalização aplicada, assim como seria leviano descartá-la totalmente do mérito no gol.

Sabemos que poucos times da séria A do Brasileirão contam com uma/um profissional de psicologia em seu plantel. Em 2019, apenas 8 clubes, entre os 20, dispunham desse trabalho. Sabemos também a enorme pressão que um atleta sofre dentro e fora de campo. Nesse sentido, a ideia de uma mente “forte” ou “fraca” constitui-se em um reducionismo, visto que são múltiplos os fatores que atravessam esse campo (sem trocadilhos) e afetam o rendimento dos atletas. Aliado a isso, mesmo em pleno século XXI, ainda há um preconceito muito grande, e não apenas no esporte, com a atuação da psicologia. Não é raro que ela seja considerada somente em situações extremas ou de adoecimento instalado.

A importância do reconhecimento da psicologia pelos clubes de futebol pode legitimar a noção de que o trabalho não deve se dar só em partes, mas sim privilegiar um todo. Isso inclui treinamentos táticos, físicos, nutrição, fisiologia, interação social, família, torcida, remuneração, bom ambiente de trabalho, enfim, toda vivência que afeta a vida do atleta e que acontece de forma integrada e não dicotomizada. Portanto, mais que um simples elogio, a declaração de Caio traz a público a força de um trabalho diário de afirmação de potências, de acolhimento aos temores, de desenvolvimento de recursos e, sobretudo, de reconhecimento de si mesmo em relação ao mundo.

Assim, o tal psicológico acontece num campo de forças coletivas e não sozinho como, às vezes, parece ser. Vimos, por exemplo, excelentes atletas perderem um pênalti, bem como jovens estreantes acertarem de primeira. Podemos atribuir apenas ao psicológico? Podemos excluir fatores como condicionamento físico, treinamento, vontade de bater, salários em dia, questões familiares, questões políticas, dentre outros?

Fonte: Wikipedia

Acreditamos que, nesse contexto, colocar na conta do psicológico o que não conseguimos discutir de forma ampla pode ser tanto uma injustiça, quanto uma estratégia de invisibilizar outros problemas mais indigestos.  Antes de culpar “o psicológico”, que tal dar uma olhadinha no que está em volta? Antes de criticar o psicológico do seu time, que tal procurar saber se, de fato, há um profissional da psicologia atuando no seu clube?

Se o psicológico fosse uma entidade autônoma, coitado dele! Viver sendo cobrado, enquanto a verdadeira cobrança por um trabalho sério da psicologia é sempre jogada para escanteio e esquecida pela imprensa, comissão técnica, torcida, atletas… A questão do futebol e o psicológico não é um embate entre duas entidades, mas sim uma aproximação de áreas que devem dialogar como um todo. Afinal, retomando nossa indagação inicial, o psicológico se constitui numa rede de relações que inclui pessoas, objetos, procedimentos, enfim, processos de vida que acontecem num movimento incessante. Destacar uma parte e tomá-la como todo empobrece a questão.  Afinal, como no futebol, um jogador, isoladamente, não ganha um jogo. É preciso trocar passes e manter a bola rolando para o melhor resultado. Parafraseando o poeta João Cabral de Melo Neto, “Um galo sozinho não tece uma manhã”. Então, vamos deixar o tal psicológico vestir a camisa do time e integrar a equipe. Quem sabe assim o jogo não fica mais interessante?

Artigos

Quem pedala somos nós

Não se tem o que discutir, e nem motivos para enrolação, a contratação de Robinho pelo Santos representa mais do que uma falta de bom senso de um clube que fez nos últimos anos muitas ações repudiando as violências contra as mulheres. A vinda do atacante para o clube paulista é um recado para a sociedade: as vidas femininas podem ser relativizadas. Na hora de fazer postagens nas redes sociais e campanhas extracampo, o discurso é bonito, potente e comovente. Quando, entretanto, são necessárias ações efetivas, o clube revela uma incoerência, entre o que diz e o que faz. É importante ressaltar que a chegada de Robinho não é ilegal (nos termos jurídicos), o que não é nada legal é a condução do Santos, que fez muito barulho com o retorno, mas se calou sobre as acusações que Robinho carrega.

 Não foram uma nem duas vezes em que o Santos se posicionou em campanhas de conscientização sobre a violência contra as mulheres. O clube, que sempre cumpriu uma agenda de ativismo social em diversas causas, era, até recentemente, elogiado por promover essas ações. No dia 24 de agosto deste ano, o clube fez uma parceria com a Associação Fala Mulher e a patrocinadora Sono Quality, aderindo a uma campanha de conscientização sobre a violência contra a mulher no Brasil. Há dois anos o time entrou em campo, em partida contra o São Bento pelo Campeonato Paulista, com uma faixa da campanha pelo movimento #ElesPorElas, que continha os seguintes dizeres: “Se a mulher disse NÃO, significa que ela disse não para você”. E agora, Santos FC, que o cara que desrespeitou o “não” está dentro de campo, vestindo o seu uniforme, carregando o seu escudo no peito? Contratar um agressor é agredir todas as mulheres. Temos aqui um clássico exemplo do “marketing social” sendo desconstruído pelas ações de uma empresa (no caso, o clube) na vida “real”.

Fonte: O Globo

Hoje, entretanto, nesse assunto, é risível a atitude do clube fora das quatro linha. A festa nas redes sociais com homenagem e status de ídolo escancaram a falta de respeito com as mulheres, com as torcedoras santistas e com a sociedade. Além disso, esse retorno demonstra a deficiência da comunidade do esporte em discussões que extrapolam os campos e as quadras. Em 2016 o quarterback do San Francisco 49ers, Colin Kaepernick, se ajoelhou em protesto contra o racismo nos Estados Unidos. Essa história já foi lembrada e relembrada, principalmente agora, que muitos atletas norte-americanos se tornaram grandes ativistas sociais. É sempre válido lembrar que Kaepernick, na época, foi boicotado pela NFL, teve o contrato rescindido e nunca mais atuou por time nenhum. Em contrapartida, Robinho, condenado em primeira instância na Itália por estupro, é celebrado em sua volta ao Santos, tanto pelo clube quanto por jogadores e torcedores. Vivemos em uma sociedade na qual um atleta que protesta a favor da vida é mais prejudicado do que aquele que comete um ato criminoso.

Em breve, as notícias serão sobre os gols do atacante. Sobre o desempenho em campo. As chances desperdiçadas, as assistências. Função tática, importância para o time. Acerto ou erro na contratação. A turma do “deixa disso”, do “mimimi”, a galera que vai achar esse texto muito chato, que acredita que o futebol era melhor antigamente, vão exaltar, lá na frente, a volta do jogador. Vão provar que estavam certos e que Robinho tinha que voltar para sua casa, o Santos. Vão rir dessas discussões que, imagina, não tem nada a ver! Esse pessoal vai mostrar que não entendeu nada do que estamos falando.

Fonte: deusmedibre.com.br

Quantas jogadas bonitas o Robinho vai fazer é o que menos importa. O que importa, o que realmente deveria ser levado em conta, é a mensagem que o clube está passando para a sociedade. São os jovens futuros jogadores que vão idolatrá-lo e essa condenação que vai cair no esquecimento. Assim como hoje, ninguém lembra que o goleiro Jean, hoje atleta do Atlético-GO agrediu a mulher e foi preso nos Estados Unidos, quando jogava pelo São Paulo. Ou como Dudu, que foi acusado de agredir a ex-mulher e admitiu que isso pesou para sua saída do Palmeiras.  E fica, é claro, sempre no papel das mulheres trazer esse assunto à tona.

No fim das contas, quem pedala somos nós, que temos que constantemente mostrar o nosso valor perante a sociedade. Quem pedala somos nós que precisamos nos justificar quando somos vítimas de qualquer tipo de violência. Quem pedala somos nós que precisamos ver um atleta condenado por estupro sendo tratado como ídolo. Quem pedala somos nós para lembrar que os crimes contra as mulheres só aumentam no Brasil. Quem pedala somos nós para ocupar espaços que disseram que nós não poderíamos ocupar. Quem pedala somos nós para falar que um jogador condenado por estupro não pode ser tratado com o status de ídolo. Quem pedala somos nós, metro por metro, em todos os lugares, levando a nossa voz. Jogadores como Robinho não se andam de bicicleta, não se esforçam para pedalar, pois são conduzidos por um staff que não permite a vulnerabilidade que existe ao se equilibrar em duas rodas. Em uma sociedade que normaliza a violência contra a mulher, quem pedala somos nós para mostrar que a vida das mulheres vale mais do que gols e dribles dentro de campo.

Artigos

Quantos “Flamengos” o Flamengo tem?

Um dos assuntos mais comentados durante o período de quarentena pelos amantes e profissionais do esporte ao redor do mundo era a volta do futebol. Nos países da Europa o assunto foi tratado com cautela e responsabilidade, tendo as competições voltado apenas setenta dias após o pico da pandemia. Aqui no Brasil, mais especificamente no Rio de Janeiro, a modalidade retornou com fortes contornos políticos e econômicos, demarcando claros jogos de poder. Um dos pilares do apressado retorno foi um clube que figura entre os mais populares e, sem dúvidas, o mais rico do país: o Flamengo.

Não é de hoje que futebol e política caminham lado a lado. Um dos marcos dessa relação é a Copa de 70, na década denominada pelo cineasta Silvio Tendler como “trágica”, pois vivenciava-se o auge da Ditadura. Cinquenta anos depois, volta-se a flertar com o golpe militar no Brasil e o futebol continua a ser usado como símbolo político. Em um ano marcado por um presidente que nega a pandemia, um governador mais preocupado com o impeachment e um prefeito que tenta a reeleição, o esporte mais popular do país surge como um elemento que poderia salvar essa equação de um resultado negativo.

Os encontros, cada vez mais frequentes, entre o presidente do Flamengo com o presidente do Brasil, mostram os jogos políticos e de poder bem marcados no futebol. As inúmeras vezes em que Bolsonaro já apareceu com a camisa do Flamengo, ou que o clube foi usado como forma de popularizar o governo, quando, por exemplo, Moro vestiu o “manto sagrado” três dias após o vazamento de mensagens que colocavam em xeque a imparcialidade do ex-juiz na Lava Jato, põem também em xeque a suposta postura apolítica que o clube alega ter.

qfft1
lance.com.br

É interessante notar a transformação política e imagética que o Flamengo sofreu ao longo dos anos. Tradicionalmente conhecido como um “clube das massas”, o Flamengo hoje é um típico time da elite. Além dos ingressos a preços altíssimos, a comunicação do clube com seu torcedor mais fiel é marcada por falhas. No ano passado, após a sede do clube ser pichada por torcedores, um dirigente do Flamengo questionou: “Do jeito que foi escrito, Mickey todo certinho, não foi a torcida”. Outro episódio foi o veto à famosa expressão “festa na favela”, com a alegação de que favela é “algo associado à violência”.

Assim, o Flamengo guarda cada vez mais semelhanças com os personagens “Enrico” e “Rico” do livro A Corrosão do Caráter, de Richard Sennett. Com uma curiosa peculiaridade: o Flamengo representa os dois personagens. Enrico, o homem que retrata a massa, mas que almejava um futuro melhor para o seu filho. Rico, o filho que ascendeu socialmente, mas sente vergonha da origem do pai. Duas faces de um mesmo personagem, que alterna entre uma e outra quando lhe convém. O Flamengo herdado por Rodolfo Landim, fruto de uma gestão que proporcionou que o clube tivesse o poderio financeiro que possui hoje, não quer mais sua imagem associada ao que não lhe garanta um status elevado. Ao mesmo tempo, usa dessa fidelidade das massas para continuar com o posto de time mais querido do Brasil.

Posto esse, aliás, ratificado com a conquista da Taça Libertadores da América de 2019 quando levou milhares de apaixonados às ruas do centro do Rio de Janeiro. O ano, porém, começou de modo mais melancólico, com o incêndio dos “meninos do Ninho”. Em um intervalo de onze meses, o Flamengo foi capaz de fazer sua nação chorar e sorrir com a mesma intensidade. O assunto foi conduzido de maneira muito mais burocrática e rígida do que é a postura do time em campo. Devemos reconhecer, por outro lado, a coerência com a postural atual da diretoria. Mais de um ano depois dessa tragédia, os jogos políticos e de poder reaparecem na pressão política pela volta do futebol em um estado que ainda consta com um alto número de mortes.

Essas duas situações guardam mais similaridades quando analisamos que, na época do incêndio, o Flamengo estava em negociação com o meia-atacante uruguaio De Arrascaeta, comprado por 80 milhões de reais pelo clube, que decidiu barganhar na justiça o valor da vida de meninos que foram entregues aos seus cuidados. Agora, no mesmo dia do retorno do Campeonato Carioca, com o jogo “Flamengo x Bangu”, foi editada, pelo presidente Jair Bolsonaro, uma medida provisória sobre os direitos de transmissão dos jogos. Enquanto morriam duas pessoas no hospital de campanha ao lado do estádio onde o time do Flamengo comemorava seus gols, o presidente do clube comemorava também essa outra vitória, já que, como o Flamengo não tem contrato com a Globo, seria o único clube imediatamente beneficiado.

qfft2
Jornal de Brasília

A suspensão da divisão da premiação em dinheiro do Campeonato Brasileiro e da Libertadores com os funcionários foi outro evento que contrasta com a alegria que o time proporciona à torcida, gerando, inclusive, um mal estar dentro do clube. O acordo de 70% para os jogadores e 30% para os funcionários não foi aprovado por Landim. Um episódio que não ganhou muito espaço na mídia, mas que denota a clara transformação do Flamengo em um clube de modelo empresarial, comandado por gestores que se preocupam única e exclusivamente com o lucro. Escolha que leva o clube a ter um elenco milionário e, sem dúvida, o melhor do país, mas que o faz esquecer seu papel social – e talvez até sua essência.

O clube, que passou por um processo de democratização em 1988, na gestão do ex-presidente Márcio Braga, dando aos sócios o direito de votar nas eleições do clube – direito que antes era apenas restrito aos conselheiros -, hoje quer fazer valer apenas a sua própria voz no cenário nacional. Como Narciso, que de tanto admirar sua própria beleza, se afogou em sua própria imagem, o Flamengo ruma para um caminho semelhante. Com uma postura tão vaidosa, o clube parece não ter olhos para os outros, a não ser a si mesmo.

O clube não é o primeiro, e nem será o último, a se associar a um governo autoritário. Até hoje o Benfica, de Portugal, é marcado por suspeitas de favorecimento estatal na conquista de campeonatos durante a Ditadura de Salazar. Na Espanha, a história do Real Madrid guarda uma relação intrínseca com a Ditadura franquista, retratada no documentário “O Madrid Real. A lenda negra da glória branca”, de Carles Torras. A aproximação do Flamengo com um governo que é marcado por falas e atos dúbios, pode até trazer benefícios a curto prazo, mas certamente deixará uma marca na história do clube.

A cada dia o Flamengo apresenta à sociedade uma nova faceta. Consegue ser considerado arrogante, sem perder o título de “mais querido”; envergonha parcela da torcida, mas orgulha a maior parte dela com a conquista de títulos; surge como mau exemplo caçando brechas no decreto da prefeitura, mas tem jogadores que são modelos para milhares de crianças. Nesse transtorno de personalidade “multipolar”, fica a questão: quantos “Flamengos” o Flamengo tem?