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Reflexões sobre Jogos Olímpicos, Pandemia e Imagem

Há cerca de 2 meses para o início dos Jogos Olímpicos de Tóquio 2021 (previsto para iniciar em 23 de julho) as notícias sobre os protocolos sanitários e os preparativos para o desenvolvimento do evento vão ganhando mais espaços nas editorias dos grandes portais e em blogs e sites especializados. Entre relatos sobre a vacinação de atletas e dirigentes e as discussões sobre a presença, ou não, de torcida nas arenas e estádios, um dado chama atenção. Divulgada na segunda-feira, 17 de maio (há 10 semanas do evento), uma pesquisa realizada pelo jornal japonês “Asahi Shimbun”, revela que mais de 80% dos japoneses não querem a realização dos Jogos esse ano, a maior porcentagem revelada em relação às pesquisas feitas anteriormente.

O Japão tem enfrentado desde o fim de abril uma quarta onda da Covid-19 e encontra-se em um processo lento de vacinação, o que tem pressionado o sistema de saúde. Apesar de ser um país com números de casos e mortes menores que muitas outras nações, o ritmo de contaminação encontra-se acelerado devido às novas variantes do Coronavírus que circulam por lá. As principais cidades do país, incluindo Tóquio (sede dos Jogos), encontram-se em “estado de emergência”, com restrições na circulação pelo menos até o dia 31 de maio.

Nesse contexto, a população japonesa tem se manifestado descontente com a realização do evento, argumentando que é preciso “priorizar a vida”. Uma petição chamada “Cancelem os Jogos Olímpicos para proteger nossas vidas”, com mais de 350 mil assinaturas, foi entregue à governadora de Tóquio. Já o Sindicato dos Médicos do Japão afirmou que é impossível organizar Jogos Olímpicos seguros durante a pandemia, contrariando as falas do Comitê Organizador Local.

Outra preocupação revelada é com a presença de estrangeiros no país. Pesquisa realizada pela agência Kyodo aponta que 87% dos entrevistados temem a propagação do vírus com a chegada das delegações. O temor com a disseminação do vírus por meio dos viajantes não está restrito ao povo japonês. O Governo dos Estados Unidos, por exemplo, pediu à população que não viaje ao Japão, neste momento, para acompanhar os eventos teste e pré-Olímpicos. No sistema de recomendação de viagens norte americano, o país oriental foi rebaixado para o nível 4 (não viajar), o mesmo em que se encontra o Brasil.

Fonte: g1.globo.com

Tamanha rejeição aos Jogos no país sede, e aparentemente em outros países, abre espaço para reflexões acerca da imagem que o evento pode estar concebendo sobre si.

Desde sua criação, baseado nos princípios do Olimpismo, vislumbrados por Pierre de Coubertin, os Jogos Olímpicos são considerados o maior evento esportivo do mundo, em que atletas de diferentes países competem e confraternizam entre si. O simbolismo que compõem o evento ultrapassa a prática esportiva, que por si só já é constituída por aspectos importantes, como garra, superação, disciplina, competência, sucesso, orgulho, entre outros. Os Jogos Olímpicos, enquanto evento, ainda agregam em si: consciência de nação, senso de pertencimento, amizade, respeito ao diferente, empatia etc. Além disso, participar dos Jogos Olímpicos (de Verão ou de Inverno) faz com que atletas garantam um lugar de destaque não apenas no nicho esportivo, mas também na sociedade em geral.

Esse universo simbólico também transborda para o público. Acompanhar os Jogos, seja presencialmente ou pelas transmissões midiáticas, coloca-os dentro desta mesma esfera positiva e de um universo composto por homens e mulheres acima dos padrões ordinários, possibilitando uma vivência (mesmo que midiatizada) inalcançável em suas rotinas.

Os eventos esportivos são um meio ‘mais seguro’ para experimentar, de forma secundária a emoção da competição, já que os espectadores não precisam fazer nada para ter essa experiência. Eles podem estar fora de forma, com problemas de saúde, não ter coordenação e não ser nada atléticos e ainda assim desfrutar das emoções associadas à vitória, aquele momento quando tudo para e seu time faz outro ponto que o levará a vencer.

MORGAN, SUMMERS, 2008, p.20

Todo esse aspecto imagético é formado por dois pontos essenciais: as características identitárias do evento esportivo e as percepções que seus interlocutores criam, a partir de suas experiências quando em contato com ele. Para o entendimento desta constituição é possível recorrer às teorias da Comunicação Organizacional, área que se aprofunda nas questões relativas ao universo da identidade, imagem, reputação e cultura das instituições e suas interfaces com os processos comunicacionais estabelecidos com seus diferentes públicos.

Fonte: thegamecollective.com.br

A identidade de uma empresa, organização ou mesmo de um evento é constituída por sua missão, visão, valores, pelos seus processos, produtos e serviços, sua cultura organizacional e até mesmo por seus processos comunicacionais (BUENO 2012; LUPETTI, 2012; GRUNING; FERRARI; FRANÇA, 2011; YANAZE 2011). No caso dos Jogos Olímpicos, além da missão, visão e valores do evento, determinados pelo Comitê Olímpico Internacional, é possível considerar também as modalidades, os espaços de competição, os mascotes, os elementos visuais, os preços dos ingressos, as regras de organização etc, como aspectos de sua identidade. Se ampliarmos a análise, é possível incluir neste prisma a cidade sede. Questões relacionadas à mobilidade urbana, hospedagem, segurança, opções de alimentação, entre outras, são características formadoras de cada uma das edições, que impactam diretamente na constituição do evento.

Os aspectos tangíveis que formam a identidade de uma organização e de um evento, quando associados às experiências individuais, e/ou coletivas, daqueles que com ele interagem formará sua imagem. Este campo constitui uma perspectiva mais intangível, uma espécie de interpretação individual elaborada não apenas pelo contato direto com o evento, ou com a organização, mas também (e principalmente) pelo universo que compõe a vida desse interlocutor, seus gostos e desejos, sua história e aspectos de seu passado, suas expectativas e anseios futuros etc, (BUENO, 2012).

Evidentemente a identidade e a imagem dos Jogos Olímpicos são coerentes e bastante positivas, o que resulta em uma reputação sólida e promissora. Vale destacar que este é o aspecto mais profundo na constituição de uma organização. É na reputação em que se encontram a história, a credibilidade e a solidez, que junto da qualidade dos produtos, serviços e atendimento, bem como das relações que ela estabelece com seus interlocutores, vai posicionar a organização como um ícone em seu segmento e uma referência para o público e para sociedade em geral. Argenti (2006, p.103) destaca que “uma organização com uma identidade corporativa clara, que represente sua realidade subjacente e esteja alinhada com as imagens partilhadas por todos os seus públicos, será beneficiada com uma reputação forte.”

Os Jogos Olímpicos possuem todas essas dimensões muito bem constituídas de forma coerente e favorável aos seus objetivos, contudo, é inegável que também existem questionamentos e problemas relacionados ao evento. Estes, muitas vezes, alusivos à organização local. Casos de corrupção, exploração de mão de obra, estrutura mal construída, dívida financeira como legado e outras situações negativas que envolvem as cidades sede não são tão raras quanto deveriam. E não é preciso ir muito longe na história, nem na localização geográfica, para exemplificar essas situações, afinal, os Jogos Olímpicos Rio 2016 não foram noticiados apenas por seu caráter puramente esportivo aqui no país.

Nesse contexto de críticas aos Jogos, em que podem ser incluídos também seus elevados custos de realização – que fizeram, por exemplo, a Suécia desistir de sua candidatura para ser sede dos Jogos Olímpicos de Inverno em 2022 -, é que se encontra a atual situação do Japão mencionada no início deste artigo.

A rejeição da população local à realização dos Jogos é um fator importante, que deve ser levado em consideração quando se analisa o evento sob a ótica aqui apresentada. Como já mencionado, a hospitalidade e o envolvimento positivo da comunidade sede são elementos que contribuem para a constituição da identidade e imagem do evento. No caso dos Jogos deste ano, o fator de rejeição local tem compreensão em âmbito global, o que o torna muito relevante.

Fonte: dw.com

Apesar de muitos países europeus, bem como os Estados Unidos, Austrália e Nova Zelândia, já considerarem a situação pandêmica de certa forma controlada, tendo suas rotinas retomadas, a Covid-19 ainda se faz presente de maneira avassaladora em muitos país, como Brasil e Índia, e permanece sendo considerada uma ameaça global devido às novas variantes do vírus. Diante dos números de mortes em todo o mundo e da dificuldade em se controlar a pandemia, com o trânsito de pessoas no mundo globalizado, a preocupação do povo japonês parece ser legítima.

Nessa dualidade de perspectivas, em que de um lado encontram-se o COI, os organizadores e governos locais e os patrocinadores (com foco na necessidade esportiva e financeira de realização dos Jogos) e de outro a população local (assombrada pela crise sanitária mundial), fica a dúvida sobre qual lado tem razão. O fato é que nesse imbróglio, a imagem e a credibilidade do evento podem estar sendo colocadas em uma situação bastante delicada, afinal, parte dos significados dos Jogos é constituída pela alegria, diversão, fraternidade, empatia e o espírito de festa e confraternização entre povos. Elementos estes que podem ser mal interpretados no momento global de apreensão, medo e mortes.

A reputação dos Jogos Olímpicos é consistente, construída ao longo de uma história vitoriosa e não será destruída facilmente. Mas nem só de problemas na reputação pode se constituir uma crise. No âmbito da imagem, elas também podem fazer grande estrago e é este o risco que correm os responsáveis pelas Olimpíadas deste ano.

Que as próximas semanas possam ser de melhoria no cenário mundial da pandemia. E que, se forem realizados, os Jogos garantam a segurança para todos, a fim de se manter a coerência longamente construída entre sua identidade e imagem e, consequentemente, assegurar sua boa reputação. Que a perseverança, o otimismo e a superação presentes no universo esportivo transbordem para o mundo todo.

Referências

BUENO, Wilson da Costa. Auditoria de imagem das organizações: teoria e prática. São Paulo: All Print/Mojoara, 2012.

GRUNING, James E.; FERRARI, Maria Aparecida; FRANÇA, Fábio. Relações Públicas: teoria, contexto e relacionamentos. São Caetano do Sul, SP: Difusão, 2011.

LUPETTI, Marcélia. Gestão estratégica de comunicação mercadológica: planejamento. São Paulo: Cengage Learning, 2012.

MORGAN, Melissa Johnson; SUMMERS, Jane. Marketing esportivo. Tradução de Vertice Translate. Revisão técnica de João Candido Gomes Saraiva. São Paulo: Thomson, 2008.

YANAZE, Misturu Higuchi (Org). Gestão de marketing e comunicação: avanços e aplicações. São Paulo: Saraiva, 2011.

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Marketing social. E quando o tema é o ativismo racial de atletas?

O ano de 2020 tem se apresentado conturbado e suscitado reflexões bastante interessantes e complexas. Exemplos não faltam, tanto em âmbito nacional, quanto internacional: polarização política, negação de doenças, ampliação do movimento anti vacinas, maior visibilidade para casos de feminicídios, uso de robôs para disseminação de fake news, entre tantos outros. Para a análise que se segue, destaco três temas: maior divulgação de casos de racismo e violência policial, manifestação de atletas sobre esses casos e o conceito de marketing social.

Se você esteve no planeta Terra durante este ano e tem o mínimo contato com qualquer meio de comunicação e informação, é provável que tenha conhecimento da explosão do movimento “Black Lives Matter”, que nasceu nos Estados Unidos e se espalhou pelo mundo. A organização, Black Lives Matter Foundation Inc (BLM), foi criada em 2013, pelas ativistas norte americanas Alicia Garza, Patrisse Cullors e Opal Tometi como uma resposta ao assassinato do jovem negro Trayvon Martin, morto por um vigia, com um tiro no peito.  A ONG tem como missão “erradicar a supremacia branca e construir o poder local para intervir contra a violência inflingida às comunidades negras, praticada pelo Estado e pela polícia[1]“.

Infelizmente, as mortes de outros jovens, deram grande visibilidade para o trabalho da organização, sendo uma das de maior repercussão a de Eric Garner, em 2014. Morto por asfixia, por policiais, o caso do jovem ficou amplamente conhecido pela frase “I can’t breath” (eu não consigo respirar) proferida por ele instantes antes de perder a vida.  Noticiado no mundo todo, o caso impactou alguns jogadores da NBA (National Basketball Association), como Derrick Rose, LeBron James e Kobe Bryant, que  manifestaram-se utilizando camisetas com essa mesma frase no aquecimento de jogos. A atitude dos atletas gerou grande repercussão, do apoio por parte de torcedores e celebridades, ao incômodo da Liga.

Seis anos depois, a organização BLM e os atletas da NBA ganharam novo destaque no cenário mundial por suas lutas contra o racismo e a violência policial. Maio de 2020 foi marcado pela morte de George Floyd (também morto por policiais e por asfixia), o que fez explodir manifestações pelos Estados Unidos, levando às ruas, mesmo em meio a pandemia da Covid-19, milhares de pessoas e tornando conhecida mundialmente a #blacklivesmatter. Em agosto o caso de Jacob Blake (que levou sete tiros nas costas, dados por policiais) chamou a atenção mundial e teve uma marcante consequência nas principais ligas esportivas norte-americanas. Os atletas da NBA boicotaram as partidas dos playoffs como um ato de repúdio ao caso e foram seguidos pelas atletas da WNBA (Women’s National Basketball Association), MLB (Major League Baseball) e pela tenista japonesa (radicada nos Estados Unidos) Naomi Osaka, que impulsionou a paralisação do torneio de Tênis de Cincinnati. Neste contexto, outra manifestação que precisa ser mencionada é a do piloto britânico de Fórmula 1 Lewis Hamilton, que sistematicamente utiliza camisetas com conteúdo ativista, chamando atenção para este tema nos treinos e corridas em que participa.

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É imprescindível lembrar que o ativismo de atletas norte-americanos é algo histórico. Em 1968, em pleno movimento pelos direitos civis e no ano da morte de Martin Luther King Jr., Tommie Smith e John Carlos ergueram seus punhos, com luvas pretas (em uma alusão ao movimento de resistência Panteras Negras) no pódio da prova dos 200m de atletismo dos Jogos Olímpicos do México. Um ano antes, em 1967, Muhammad Ali se negou a lutar na guerra do Vietnã, alegando questões religiosas e políticas. Bem mais recente, em 2016, o jogador da NFL (liga de futebol americano) Colin Kaepernick manifestou-se contra a violência policial para com jovens negros ajoelhando-se durante a execução do hino nacional em jogos da Liga.

Todos esses casos, e muitos outros, ganharam visibilidade e tornaram-se foco de polêmicas e reflexões. Por um lado, indivíduos e grupos sociais apoiam a atitude dos atletas e entendem que como cidadãos eles possuem o direito de se manifestar e como formadores de opinião têm o dever de assim agir. Por outro lado, existem aqueles que consideram esse tipo de atitude inadequada e desnecessária visto que, para eles, os atletas devem atuar (apenas) para garantir o bom desempenho esportivo, mantendo-se afastados de questões políticas e sociais.

Com esta dualidade de interpretações, e em meio a um cenário social em que a necessidade de se posicionar sobre variados temas transformou-se em atividade cotidiana, é hora de introduzir o terceiro tema desta reflexão: o marketing social.

Todas as causas interessam ao marketing?

Bastante difundido entre os profissionais da área, o marketing social é o emprego de técnicas do marketing tradicional para promover e divulgar ações e projetos que proporcionem uma melhoria e transformação na vida social (CREDIDIO e YANAZE, 2011). Essas ações (que podem configurar-se em casos pontuais, patrocínios ou até em grandes projetos que compreendem a filosofia e a identidade empresarial) envolvem questões que buscam auxiliar na inclusão social de grupos minoritários, no aumento do acesso à educação, na proteção ao meio ambiente, entre outras iniciativas. O ponto central é a organização perceber a importância de seu papel como um elemento constituinte da sociedade e atuar em benefício da coletividade social de forma coerente com suas atividades de negócio. Esse tema é crescente no mundo todo e os assuntos que o envolvem passaram a fazer parte do conjunto de regras e medidas que formam o compliance de muitas empresas.

 A expansão da comunicação digital e a explosão das redes sociais digitais possibilitaram uma maior visibilidade para essas ações e projetos, e a sua presença passou a ser percebida mais fortemente pelos públicos de interesse das organizações. As demandas que constituem o cenário social, passaram a ser também as demandas de muitas empresas, já que boa parte dos seus públicos passou a cobrar delas posicionamentos legítimos sobre os mais diferentes temas.

Essa conjuntura apresenta vantagens e desvantagens para as organizações. As vantagens são aparentes no âmbito relacionado ao gerenciamento das marcas (ou gestão de branding): trazem proximidade com seus públicos, ampliam o poder de empatia entre consumidores e produtos, aumentam o engajamento e a motivação dos colaboradores, aprimoram o valor competitivo da marca, entre outras. Já as desvantagens aparecem quando a empresa não faz suas ações corretamente ou não pratica internamente (em seus processos e nas relações com funcionários e fornecedores, por exemplo) os discursos e as atividades presentes nas ações sociais. Nesses casos os prejuízos podem ser: perda de credibilidade da marca, boicote de consumidores, ações judiciais, desmotivação por parte dos colaboradores etc.

Quando a atuação das organizações se configura em ações ou projetos em prol da ampliação da educação, da preservação do meio ambiente ou contra o trabalho infantil, por exemplo, os riscos de incoerência discursiva são menores (apesar de existirem) pois esses são temas discutidos e trabalhados abertamente nas sociedades, com regras e leis bastante estabelecidas e que quando são quebradas geram rápida reação negativa de ampla maioria. Entretanto, quando o assunto é o sexismo, a misoginia, a xenofobia e o racismo as ações sociais passam a percorrer caminhos mais nebulosos, menos definidos dos pontos de vista cultural e legal e que abrem espaço para amplo debate e polarização.

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É importante destacar que todo esse universo estratégico e comunicacional do marketing social, assim como todas as práticas do marketing em geral, podem ser aplicadas por empresas de diferentes segmentos, ongs, clubes e personalidades. Em todos esses casos, se comprometer (apoiando ou não) com temas de visibilidade atual como igualdade racial e de gênero, diversidade sexual, posse de armas, violência contra mulher, descriminalização de drogas e tantos outros, tornou-se quase uma questão de necessidade mercadológica, pois a neutralidade, ou isenção, também é compreendida como uma forma de posicionamento (que normalmente desagrada a maioria).

Ao retomar o conteúdo abordado no início desta reflexão é possível perceber que, sob a ótica do marketing social ele pode ser analisado em duas vertentes: a dos atletas e a das empresas patrocinadoras e ligas.

Observando o posicionamento dos atletas sobre o racismo e a violência policial é evidente que as manifestações praticadas dizem respeito aos seus interesses individuais, aos seus modos de compreender a sociedade e que eles se utilizam de estratégias e táticas de marketing para tornar visíveis suas opiniões (publicam em redes sociais, vestem roupas com mensagens, fazem discursos em coletivas de imprensa etc). Eles praticam o marketing social em busca de equidade racial de maneira, aparentemente, coerente com suas atividades pessoais e profissionais. Tornam-se porta-vozes de milhares de pessoas sem visibilidade, chamam atenção para o problema e promovem o debate social.

Já sob a dimensão das empresas patrocinadoras, das ligas e dos dirigentes a trama se apresenta um pouco mais complexa. Ao se posicionar a favor de uma causa, uma organização precisa avaliar o quanto essa atitude será benéfica para os negócios. O quanto, realmente, a causa em questão faz parte da sua forma de ver o mercado, o quanto ela age, efetivamente, de acordo com esse tema. No caso específico do racismo, essas organizações possuem diversidade racial em suas equipes? Seus públicos apoiam essa causa e querem saber suas opiniões? Existem casos de discriminação em suas práticas mercadológicas? Essas são algumas perguntas básicas que precisam ser feitas antes de serem levantadas bandeiras.

No caso das ligas norte-americanas existe todo um envolvimento mercadológico e político com patrocinadores e governos, além do relacionamento com atletas e públicos, que precisa ser levado em conta. NBA e MLB possuem, de certa forma, “poucas” amarras nesses pontos o que possibilita um posicionamento de maior apoio aos atletas, como visto nas paralisações de agosto. Já a NFL, por exemplo, conserva grande influência política em suas relações o que fortalece posições como o boicote à Kaepernick, que permanece até hoje sem contrato com qualquer equipe.

Fora do cenário da ligas norte-americanas é interessante observar as repercussões dos casos de Naomi Osaka e Lewis Hamilton. Ele tem utilizado com frequência camisetas com frases ativistas ou com nomes de negros mortos pela polícia durante dos treinos da Fórmula 1. Ela (além da paralização no torneito de Cincinnati) utilizou máscaras de proteção com nomes de negros mortos pela polícia antes de todos os jogos do US Open. Hamilton aguarda avaliação da FIA que verifica se sua manifestação pedindo punição aos responsáveis pela morte de Breonna Taylor (morta a tiros por policiais dentro de seu apartamento) configura ato político, o que é proibido pelas regras da Federação. Já alguns patrocinadores japoneses de Osaka pediram que ela chame mais atenção pelo seu desempenho em quadra e ponderam que as manifestações feitas por ela podem não ser uma boa ação para aumentar o valor de uma marca corporativa.

No caso específico do racismo, o problema é estrutural e histórico em várias sociedades, como nos Estados Unidos e no Brasil. As práticas sociais se desenvolveram durante séculos sob a égide de que esse é um tema tabu, que não se deve comentar, que, “em verdade, não existe”. Isso criou abismos sociais e feridas (coletivas e individuais) que quando tocadas reverberam como tsunamis, tanto entre aqueles que lutam pelo seu fim, quanto pelos que negam sua existência.

A dualidade deste tema aparece até mesmo nas reações em relação ao ativismo dos atletas. Por um lado existe a revolta por saber que ainda serão vistas muitas destas manifestações, pois os casos a serem divulgados não acabarão tão cedo. Mas também existe a esperança ao perceber os holofotes virados para esse ativismo, pois ele é capaz de promover o debate e impulsionar a revisão de práticas sociais e culturais. Que esses atletas engajados possam contribuir para que seus fãs e torcedores reflitam, debatam, mudem seus pensamentos e forcem posicionamentos favoráveis à causa por parte de ligas, federações, clubes e, principalmente, patrocinadores (quem coloca o dinheiro manda!). Quem sabe assim, o marketing social possa ser ampla e verdadeiramente aplicado pelo maior número de atores e contribua para uma transformação nas mais variadas causas que interessam à sociedade em geral.

Referências

CREDIDIO, Fernando; YANAZE, Mitsuru H. Marketing Social, comunicação por ações sociais, responsabilidade empresarial. In: YANAZE, Mitsuru H. Gestão de Marketing e Comunicação: avanços e aplicações. São Paulo: Saraiva, 2011.


[1] BlackLivesMatter was founded in 2013 in response to the acquittal of Trayvon Martin’s murderer. Black Lives Matter Foundation, Inc is a global organization in the US, UK, and Canada, whose mission is to eradicate white supremacy and build local power to intervene in violence inflicted on Black communities by the state and vigilantes.

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Clubes de futebol e suas (des)identidades corporativas

No atual momento social, em que a coerência entre discursos e práticas torna-se cada vez mais desejada pelas audiências, posicionar-se bem diante de seus públicos de interesse é necessário para qualquer instituição, seja ela uma empresa, uma ONG, uma igreja ou um clube. Na verdade, até mesmo no âmbito pessoal, a vigilância nesse aspecto é… Continuar lendo Clubes de futebol e suas (des)identidades corporativas

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