Ataques racistas ao craque brasileiro não são fatos isolados causados por “rivalidade”, mas prática recorrente nos estádios espanhóis, há décadas contaminados por grupos neofascistas
O novo ataque racista contra Vinícius Jr. expôs mais uma vez a questão dos ultras, tipo de grupo organizado de torcedores mais comum na Europa, com raízes na Itália – politicamente identificado com correntes ideológicas ultranacionalistas, racistas e xenófobas. Mas como surgiram esses grupos? E por que é difícil combatê-los?
Embora o problema do racismo seja muito mais profundo e disseminado na sociedade espanhola do que apenas o futebol permite compreender – o que não nos permite resumir esses ataques racistas a esses segmentos organizados de torcedores –, é fundamental reforçar a existência desses elementos por dois motivos.
Primeiro, porque são grupos organizados, com pautas políticas claras (dentro e fora dos estádios) que não deixam de se reproduzir e de ocupar esses espaços. O protagonismo desses grupos nas arquibancadas se dá pela base da força física e muitas vezes contou no passado com a conivência ou vista grossa dos próprios clubes.
Segundo, porque são responsáveis há muito tempo pela naturalização de expressões discriminatórias e discursos de ódio dentro do ambiente do futebol. Sob a pretensa participação na desestabilização mental de adversários, esses grupos extremistas incitam torcedores comuns a também perderem o pudor e medo da justiça.
Já são nove casos de racismo contra o brasileiro Vinicius Jr. investigados por La Liga nessa temporada. Dos mais explícitos, graves e violentos, estavam os ataques nos estádios do Atlético de Madrid, do Real Betis, do Real Valladolid e, o mais recente do Valencia CF, ocorrido no domingo (21).
No estádio do Mestalla, Vini Jr. se dirigiu ao fundo de um dos gols e apontou para um torcedor do time local, que estava imitado um macaco para lhe agredir. Imagens publicadas de momentos antes e depois desse fato mostraram o uso repetitivo de ofensas racistas de todo o tipo partindo daquela mesma “grada”, dos ultras, muito comuns no futebol espanhol há um bom tempo. As quatro agremiações listadas estão em diferentes comunidades autônomas do país, o que já permite conceber a dimensão nacional do problema.
Embora a cultura de violência seja generalizada, registrando casos recorrentes de agressão, confronto e distúrbios, há alguns coletivos ultras mais identificados à esquerda e muitos outros que, no sentido contrário, reivindicam ser apenas “grupos de animação apolíticos”. Entretanto, o volume, presença e fatos protagonizados pelos ultras de extrema-direita são mais significativos e aparentam estar em processo de retomada.
‘Organizadas’ do ódio político
Antes de tudo, é preciso compreender e reconhecer que o futebol é apenas um dos variados espaços da vida cotidiana onde essas correntes políticas extremistas atuam para impor suas “ideias”, atiçar ignorantes, provocar sentimento de ódio em desalentados e capitalizar essa animosidade para fins eleitorais – enquanto colocam em risco a vida de inúmeros cidadãos.
No futebol, especialmente nos estádios, esse extremismo encontra um terreno fértil para a agitação política. Trata-se de um espaço privilegiado para se alcançar um público de homens jovens sedentos por emoção, rivalidade e violência e com a constante necessidade de afirmação da masculinidade. Uma porta aberta para a introjeção de uma ideologia baseada na intolerância.
Essa questão não é nem um pouco nova. Desde os anos 1970 a Europa testemunha a relação íntima entre grupos de torcedores violentos com movimentos e lideranças políticas ultra-nacionalistas, supremacistas e/ou abertamente fascistas. Apesar de observado em todo o continente, é em países como Itália e Espanha que esse fenômeno demonstra uma preocupante insistência (e consistência).
Há questões históricas que favorecem a reprodução dessas ideias, quando são países onde o próprio entendimento sobre o que é racismo é raso, onde o debate não atinge força midiática e onde o tema não ganha o devido suporte das principais organizações políticas. Contudo, o problema mais grave é a condescendência de quem poderia tomar atitudes mais enérgicas.
Atualmente se registram mais de uma dezena de “coletivos ultras” que declaram abertamente um alinhamento a ideologias de extrema-direita, ligados a clubes de todo o país. Formam um variado espectro: tradicionalistas, ultraconservadores, ultranacionalistas, franquistas/neofascistas, neonazistas, regionalistas, centralistas… Diferentes em alguns aspectos, mas todos centralmente conectados pelo ódio a imigrantes, pelo racismo explícito, pela islamofobia, pela xenofobia e pela paranóia “anti-modernidade”.
Ultras de extrema-direita na Espanha, em quadro exibido pelo Redação Sportv — Foto: Divulgação
No caso do Valencia, estamos falando do grupo “Yomus”, famoso por registros de manifestações neonazistas e por entoar cânticos franquistas (o regime fascista que dominou a Espanha entre 1936 e 1975). Características políticas parecidas vistas com “Frente Atlético”, “Supporters Gol Sur” (Betis) e no antigo “Ultras Violeta” (Valladolid), coletivos ultras dos outros casos mais graves de racismo contra o brasileiro, anteriormente mencionados.
A Yomus esteve enfraquecida nos últimos anos, como ocorreu a diversos grupos do tipo – após aumento da exposição, da criação de políticas públicas e quando alguns clubes resolveram tomar vergonha na cara e agir –, mas há alguns anos começaram a retomar o controle da “grada de animación” – o setor ao qual se dirigiu Vinicius Jr.
Por isso é importante observar que quando esses agrupamentos vão ao estádio e cantam músicas racistas, eles não agem (apenas) por rivalidade clubística. Mais do que agredir, eles buscam “exercer o direito” de ser racista e convencer os demais “espanhóis originais” – brancos, cristãos e conservadores – de que isso é normal, parte do modo de vida local e que essa é uma forma de “defender a Europa”.
Segundo Carles Viñas, historiador que é professor da Universidade de Barcelona e autor do livro “El Mundo Ultra: los radicales del fútbol español”, lançado em 2005, a relação atual desses grupos com partidos institucionalizados ainda é desconhecida ou de difícil comprovação, mas são incontáveis as ocasiões de manifestações públicas, protestos ou contraprotestos onde esses grupos de extremistas estiveram presentes, inclusive promovendo ataques violentos.
Nos anos 2000, dada a proporção e força que esses grupos ganharam nas “gradas de animación”, Barcelona e Real Madrid tomaram medidas mais agressivas de banimento contra as suas versões internas de extremistas de arquibancada (Boixos Nois e Ultras Sur, respectivamente).
É certo que esse processo também visava e se inseria na transformação dos estádios e a substituição do público dessa “grada”, para priorização de um público turista, mas também servem de exemplo de como os clubes podem atuar por conta própria, de modo a alterar a correlação de forças nas suas arquibancadas – considerando que são diversos e plurais os grupos que compartilham esses setores, dentre os quais podem conviver grupos alheios a essas correntes extremistas.
Aparentemente, os proprietários de alguns desses clubes temem atrair para si a responsabilidade e as consequências de identificar e combater esses agrupamentos extremistas. Razão pela qual é tão comum ver esses sujeitos desfilando suas bandeiras, símbolos, gestos e cânticos ofensivos, como locais ou visitantes, como mostram exemplos recentes da Ligallo (Zaragoza) em visita ao estádio do Osasuna; ou da Frente Atlético entoando canções franquistas no estádio do Rayo Vallecano.
A própria Yomus é famosa por fazer ataques xenófobos e racistas contra Peter Lim, o proprietário singapuriano do Valencia, quando comparecem aos recorrentes protestos da torcida exigindo a sua saída. Por conta disso, de modo a tentar se afastar desses elementos, os diversos outros grupos de torcedores realizam manifestações separadas, alterando as palavras de ordem, como, por exemplo, na troca do lema “Lim Go Home” por “Meriton Out”, nome da sua empresa.
Por outro lado, em que pesem as notas e medidas sempre anunciadas pela Real Federação Espanhola, por La Liga ou por distintos órgãos do poder público, há uma curiosa dificuldade em tratar o assunto com a seriedade que merece: não se trata de um punhado de moleques racistas irresponsáveis, mas de agrupamentos politicamente coesos, organizados, estimulados e por vezes financiados para atuar como milícias capazes de exercer a violência física, munidos de ideias muito claras sobre o que almejam por modelo de sociedade – e quais segmentos desejam ver excluídos dela.
Também é recorrente (e talvez conveniente) da parte desses órgãos a teimosa e contraproducente tentativa de estabelecer equivalências entre as ações desses grupos caracterizados pelo racismo e pela xenofobia, com o envolvimento de outros grupos em confrontos violentos sem objetiva motivação política.
Javier Tebas combate… a vítima
Uma parte dessa história não precisaria ser destacada, não fosse a lamentável postura de Javier Tebas, presidente de La Liga, em reagir aos acontecimentos no Mestalla atacando exatamente Vinicius Jr. De forma inconsequente, jogou gasolina na fogueira ao sugerir que o brasileiro exagera e que as medidas tomadas até aqui já bastam.
Artigo publicado originalmente no site do GE, em 22/05. O texto na íntegra pode ser acessado aqui.
Final da Copa da Inglaterra de 1923 teve público estimado em mais de 250 mil presentes, contou com a presença do Rei, deixou milhares de feridos e marcou a memória do futebol inglês
Até a criação do Maracanã para a Copa do Mundo de 1950, o símbolo maior da popularidade atingida pelo futebol cabia ao Wembley, estádio localizado na cidade de Londres, capital do Reino Unido. Utilizado pela primeira vez em 28 de abril de 1923, na final da Copa da Inglaterra (FA Cup) em que o Bolton venceu o West Ham por 2 a 0 para um público estimado em mais de 250 mil pessoas, essa que é uma das arenas mais famosas do mundo agora completa 100 anos de uma história repleta de curiosidades, antes, durante e depois de sua inauguração.
Hoje, transformado em moderna arena após longo período reforma entre 2000 e 2007 – quando passa a ser propriedade de The Football Association (a federação inglesa) –, o estádio de Wembley foi originalmente projetado como parte da British Empire Exhibition de 1924, um dos muitos eventos do tipo “exposição universal” realizados à época.
Wembley na época da inauguração — Foto: Divulgação
Essas grandes e custosas exibições serviam como momento especial para projetar a imagem desses países – no caso das potências, as suas ambições imperialistas (o Brasil, por exemplo, realizou a Exposição Internacional do Centenário da Independência do Brasil, em 1922).
Era uma oportunidade de apresentar inovações tecnológicas, proporcionar oportunidades comerciais e, de certa forma, também impulsionar o interesse dos grupos econômicos locais ao redor do globo. O nome do Wembley, inicialmente, não à toa, era “The Empire Stadium” (O Estádio Imperial).
Portanto, erguia-se naquele momento um símbolo do poderio do império e da grandiosidade dos feitos do capitalismo britânico, elaborado exatamente para causar impacto visual e projetar uma imagem de solidez do Reino Unido e de suas colônias após a I Guerra Mundial.
Quase demolido
Desenvolvido por um grupo de empreiteiros e projetado para receber até 126 mil espectadores, o estádio de Wembley não tinha previsão de ter tanta longevidade. Assim como quase toda a estrutura da grandiosa “Exhibition” realizada em um imenso terreno de Wembley Park, no subúrbio de Londres, a ideia original era simplesmente demolir o estádio logo em seguida, uma vez que desde o começo a estrutura era considerada financeiramente inviável.
Isso só não aconteceu porque o investidor imobiliário James White teve a ousada ideia de adquirir o que sobrou do evento, especular sobre a estrutura e repensar sobre a demolição do estádio. White morre pouco depois (em suicídio, em razão de problemas financeiros) e quem acaba ficando com o Wembley é seu funcionário, o jovem Arthur Elvin, um rapaz de 25 anos que havia lutado na guerra e depois trabalhado como vendedor de cigarros em um quiosque da “Exhibition” (!).
Foi Arthur Elvin quem se responsabilizou, ao longo de muitas décadas, por manter o gigantesco estádio de Wembley de pé, através de uma sociedade criada para adquirir a estrutura. O fato era que praças daquela magnitude não eram comuns. Era uma época em que os clubes esportivos de futebol e rugby já construíam as suas próprias praças desportivas que, ainda que com menor capacidade, já eram capazes de receber públicos de mais de 60 mil espectadores (como se imagina, em condições bem pouco confortáveis).
Diferente do que ocorreu no Brasil e nos principais centros do futebol da Europa nas décadas seguintes, a Inglaterra não costumava erguer grandes estádios públicos. Isso obrigava a Football Association (FA, a federação inglesa) a buscar acordos para utilizar praças esportivas, companhias privadas e clubes (que já eram em sua maioria sociedades limitadas) na ocasião da grande final da FA Cup – prioritariamente na capital Londres.
Wembley recebeu a final da última Eurocopa entre Inglaterra e Itália — Foto: Lee Smith/Reuters
A FA Cup, que em 2023 será disputada entre Manchester United e Manchester City, é a competição de futebol mais antiga do mundo ainda em disputa, realizada desde 1872. Só não havia completado 50 anos quando da inauguração do Wembley porque foi interrompida por quatro edições durante a I Guerra Mundial.
É de se imaginar, portanto, o tipo de sensação de “tradição anual” que cinco décadas de um evento quase ininterrupto provocava na população local. Não apenas torcedores dos clubes finalistas, mas o público em geral se excitava para assistir ao evento decisivo da competição. O fluxo de pessoas no sofisticado sistema ferroviário britânico aumentava consideravelmente rumo a Londres e a própria população da metrópole se mobilizava em massa para testemunhar a final da copa.
É certo que já havia registros de finais com mais de 100 mil presentes no estádio Crystal Palace, como em 1901 (110 mil); em 1905 (101 mil), em 1913 (121 mil). Entretanto, em razão de problemas financeiros dos proprietários desse estádio, a final da FA Cup passou a ser realizada em Stamford Bridge após a guerra. Um estádio menor que não comportava a demanda desse grande evento anual – que recebeu no máximo 72 mil espectadores.
É em virtude desse quadro pouco estruturado de estádios que a FA vai se interessar no projeto de construção do Wembley e definir, ainda em 1921, que esta seria a sede da final da FA Cup de 1923. É quando a história começa a acontecer.
Artigo publicado originalmente no site GE.Globo.com, em 28 abr. 2023 por Irlan Simões.
Meses atrás recebi do colega André Pugliesi, editor do site UmDois Esportes, um “áudio de ZAP” pra lá de caricatural. O autor reclamava com os interlocutores, dentro de um grupo de torcedores/sócios do mesmo clube, da baixa qualidade da discussão naquela seara, o que lhe obrigava a repensar a sua presença.
Nas palavras do lamentante locutor, ninguém ali entendia de business, nem de futebol, muito menos de soccer business. Era preciso que todos parassem para ouvi-lo com maior atenção, dada a sua posição de autoridade intelectual frente aos demais colegas – ou ele fatalmente se retiraria.
Poderia ser uma anedota a meramente se tornar piada interna ou chacota externa, mas é a caricatura perfeita de um tempo em que torcedores e sócios de clubes resolvem ser, eles mesmos, atores da depredação do pouco que anda restando de futebol nos tempos atuais. Os tempos em que esse tal de “business” investiga, acusa, julga e manda prender.
Eles estão por aí há um bom tempo. A turma que bate palma para anúncio de renda de jogo – após a prática de ingressos a preços desumanos -; que acha saudável fazer piada sobre o preço acessível do plano do sócio do clube rival – como se não fosse a sua própria torcida a vítima de uma política de associação desleal.
É a mesma gente que exaltou a proposta de “final única” da Conmebol para a Copa Libertadores e para a Copa Sulamericana, adotando por aqui o formato “consagrado” na geograficamente privilegiada, estruturalmente acessível, dignamente assalariada e futebolisticamente estrelada Europa.
Nem vale a pena retomar as problemáticas que renderam o vergonhoso cenário de um estádio às moscas em plena final da Sulamericana. Interessa mais – e é preciso que isso seja levado mais a sério – a capacidade de muitos em defender coisas inaceitáveis para, por prazer, sadismo ou orgulho, sentirem-se partícipes dessa farsa de soccer business evolution.
São várias escalas, é evidente, mas essas figuras se identificam com facilidade por um implacável fervor ideológico e por um irredutível senso de superioridade intelectual.
Na mentalidade deles, são aqueles lá de fora, os críticos obtusos, avessos “ao que há de mais moderno” os verdadeiros pesos mortos do futebol brasileiro.
(Quando na verdade é a nossa própria condição estrutural – que as bochechas-rosadas dos senhores teimam em não compreender – que joga contra essas ideias esdrúxulas.)
Os torcedores do Athletico, vítimas de toda essa presepada, ainda saíram de culpados por não lotarem o estádio da final – incapazes de se deslocar mais de 1500 km para um país alheio, com tempo de planejamento restrito a menos de 30 dias, em meio a uma crise econômica sem precedentes.
“Não há dúvida: quem defende a final única é contra o torcedor, não tem qualquer preocupação com os hábitos e a cultura da arquibancada e, portanto, não entende do que é feito o futebol sul-americano.”, publicou o sempre certeiro Douglas Ceconello.
Se o caso de defender essas coisas é o de inevitavelmente provocar debandada dos especialistas do “soccer business“, então é o que precisa ser feito: conscientizar o torcedor de arquibancada que essa turma não tem menor ideia do que está falando, só segue cartilha pronta e/ou advoga pelo próprio interesse político, financeiro e profissional.
Foi-se o tempo em que alguém podia se dar ao direito de se enganar com a solução mais milagrosa da última semana. Que a melancólica final vazia da Sulamericana seja, enfim, um ponto de retorno.
E que corram pra longe os mercadores das cloroquinas do futebol!
Nesse texto comentarei brevemente uma proposta de tipologia de clubes de futebol no século XXI, elaborada ao longo de pesquisa desenvolvida em nível de doutoramento. Para não estender em demasiado as discussões que motivam (ou decorrem) do esquema classificatório aqui apresentado, o texto será referenciado em artigos, capítulos de livros ou obras de minha autoria, listados nas referências ao final do texto. Caso interesse ao leitor aprofundar as discussões aqui propostas, essas produções servem como ponto de partida.
Com o avanço da Lei das Sociedades Anônimas do Futebol (PL 5516/2019), ou Lei das SAF, apresentada e aprovada no Senado Federal, o diagrama pode ser útil para compreender as transformações vindouras. Uma vez que o processo de conversão dos clubes para empresas no Brasil é facultativo, muitos formatos podem se apresentar ao longo dos próximos anos. O projeto de lei, apesar de criar um novo tipo de sociedade anônima – com regras específicas para os clubes de futebol – também não define um único modelo possível, ainda que futuramente seja esse o modelo mais atrativo, dados os benefícios que gerará aos clubes aderentes.
O modelo classificatório aqui elaborado consiste em um diagrama ilustrativo, cuja finalidade é apresentar os tipos de clubes de futebol a partir de três níveis: 1) formato jurídico; 2) estrutura societária; 3) modelo político. Esse esquema está mais detalhado em um artigo que ainda não foi publicado até a publicação desse texto, tendo aqui a sua apresentação antecipada de forma resumida.
Diferente do que se costumar observar em debates sobre o tema, que tendem a resumir os clubes da atualidade entre “associações civis sem fins lucrativos” ou “sociedades empresárias” (os ditos clubes-empresa), o fato é que clubes de futebol constituem um quadro muito diverso no que tange à sua organização, constituição histórica, processo decisório, modelo administrativo, etc. No livro “Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol”, os diferentes capítulos vão apresentando essas questões de forma mais apurada.
Como a pesquisa original se dedicava a investigar os movimentos de torcedores em clubes de diferentes países, foi necessária uma compreensão mais profunda das particularidades dos processos de formação dessas agremiações em cada localidade estudada.
Essas experiências coletivas de torcedores mobilizados por pautas referentes à defesa do clube e dos estádios em diversos sentidos, o que demandou à pesquisa a detecção dos espaços concretos ou parciais da participação dos torcedores. Por isso o modelo classificatório surge como produto indireto da investigação, que percebia esses movimentos como formados por sócios, onde ainda existia uma associação civil; ou por “acionistas de base”, onde o clube já não contava com uma associação originária.
De todo modo, o diagrama possui utilidade para estudos que partam de outros objetivos, já que ajuda o pesquisador a visualizar/identificar os clubes existentes na atualidade dentro de um quadro mais amplo.
Ao menos 10 tipos de clubes podem ser visualizados a partir da tipologia proposta, como o diagrama completo demonstra:
Classificação de tipos de clubes de futebol
Como dito, a apresentação mais detalhada do diagrama será publica em breve em artigo, contando com exemplos concretos para cada modelo. Aqui, convém ao menos ressaltar os três níveis de classificação, e como eles apresentam outras subclassificações.
Nível 1: Formato jurídico
São três os tipos possíveis quanto ao “formato jurídico”: A) Associação civil sem fins lucrativos; B) Sociedade empresária; C) Sociedade anônima com associação como acionista.
O mais importante a ser ressaltado aqui é que os formatos jurídicos de clubes não podem ser reduzidos a “empresas” ou “associações”. Em clubes onde a associação civil está presente como mais um dos acionistas de uma sociedade anônima (modelo comum na Alemanha, Portugal e Chile), o funcionamento da agremiação é completamente distinto de uma sociedade anônima formada apenas por acionistas privados. Afinal, ainda existe ali uma associação civil à qual vários indivíduos estão vinculados de forma voluntária e abnegada, sem objetivos de participação financeira nessa entidade.
Nível 2: Estrutura societária
O segundo nível de classificação só se aplica basicamente ao modelo do tipo C (sociedade anônima com associação como acionista), uma vez que essa associação pode ter maior ou menor participação na sociedade anônima que controla os ativos financeiros do clube. Isso quer dizer que há casos onde a associação exerce o controle dessa sociedade, outros casos onde a associação compõe um conselho/órgão de administração ao lado de outros investidores privados, ou onde a associação possui participação minoritária com pouco poder de participação.
Como há muitas possibilidades de configurações quanto ao poder de participação da associação em uma sociedade anônima, esse nível de classificação se resume a dois tipos gerais: 1) associação como maior acionista; 2) associação como acionista minoritário.
Por razões óbvias, esse nível de classificação não se aplica aos casos de tipo A (associações civis) ou tipo B (sociedade empresária), aqui apenas representados como modelos “puros”.
Nível 3: Modelo político
A classificação de “modelos políticos” convém principalmente para os objetivos da pesquisa original que elaborou tal tipologia (o espaço de participação dos torcedores nos clubes). Por isso é importante observar qual tipo de associação civil está sendo observada: se uma associação restrita ou popular. Esses dois tipos sintetizam características que podem variar consideravelmente entre clubes de um mesmo país, como ocorre no Brasil, onde cada clube apresenta critérios próprios de admissão de novos sócios (restrito/aberto), quanto aos custos para o acesso e manutenção dos direitos associativos/políticos (custoso/acessível), ou ao próprio processo eleitoral em si (direto/indireto).
Dessa forma, avaliar se uma associação é popular ou restrita tem aplicabilidade principalmente ao tipo A1 (associação civil pura), e ao tipo C1 (S.A com associação como maior acionista). O mesmo não se aplica aos casos do tipo C2 (S.A com associação acionista minoritária).
Por outro lado, a ideia de observar o “modelo político” também serve para compreender a “dinâmica política” presente em clubes que possuem uma sociedade anônima. Essa pode ser formada por um número grande de acionistas que controlam cotas equilibradas de ações – dentre elas, muitas vezes, está também a própria associação originária do clube. A isso se escolheu definir por “sociedades dispersas”, que contrastam como aquelas “sociedades concentradas”, onde um único acionista tem o controle de maioria ou ampla maioria das ações da sociedade.
A classificação de sociedade dispersa ou concentrada se aplica tanto ao tipo B1 (sociedade empresária pura), quanto aos tipos B2 (sociedade anônima com associação como acionista minoritário). Do tipo B2, caberá observa ainda se a associação civil é de caráter popular ou restrita – o que gera uma quarta classificação exclusiva para esse tipo.
Resumo dos tipos
Dessa forma, assim se apresentam os 10 tipos de clubes:
A1a: associação civil pura de caráter popular
A1b: associação civil pura de caráter restrito
B1a: sociedade empresária pura e dispersa
B1b: sociedade empresária pura e concentrada
C1a: associação civil de caráter popular como maior acionista da sociedade anônima
C1b: associação civil de caráter restrito como maior acionista da sociedade anônima
C2a¹: sociedade anônima dispersa, com associação popular como acionista minoritário
C2a²: sociedade anônima dispersa, com associação restrita como acionista minoritário
C2b¹: sociedade anônima concentrada, com associação popular como acionista minoritário
C2b²: sociedade anônima concentrada, com associação restrita como acionista minoritário
Como observado anteriormente, o esquema classificatório aqui proposta será detalhado em um artigo ainda não publicado. Para leituras mais detalhadas e aprofundadas sobre o tema em questão, convém apreciar as referências bibliográficas apresentadas abaixo.
Referências
SANTOS, Irlan Simões da Cruz; SANTOS, Anderson David Gomes dos. Democracia torcedora versus Vantagens consumistas: uma análise da associação clubística em tempos de futebol-negócio. Mosaico. Rio de Janeiro, v. 9, n. 14, p. 246-261, 2018.
SIMÕES SANTOS, Irlan Simões (Org.). Clube empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol. Rio de Janeiro: Corner, 2020.
SIMÕES SANTOS, Irlan. Associação, pertencimento e participação: sobre ações políticas de torcedores nos clubes de futebol. In. MATIAS, Wagner Barbosa; ATHAYDE, Pedro Fernando Avalone. (Orgs.). Nas entrelinhas do futebol: espetáculo, gênero e formação. Curitiba: CRV Editora, 2021a, pp.33-48.
SIMÕES SANTOS, Irlan. Futebol-negócio e ativismos torcedores: notas para um estudo da política em clubes da Europa e América do Sul. Recorde, v. 14, n. 1, 2021b, pp. 1-14.
SIMÕES SANTOS, Irlan. O novo processo de empresarização dos clubes de futebol no Brasil: elementos para uma análise crítica. Anais do 43º Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Intercom – Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação, 2021c.
SIMÕES SANTOS, Irlan. Futebol-negócio, pertencimento ao clube e afeto pelo estádio: uma análise de movimentos de torcedores de Os Belenenses (POR) e Sevilla (ESP). In. HELAL, R.; COSTA, L.; FONTENELLE, C. Esporte, Mídia, identidades locais e globais: uma produção do Seminário Copa América. 1ed. Rio de Janeiro: Autorale/FAPERJ, 2021d.
O ano de 2021 marca os 15 anos do lançamento do chamado “Arnaut Report”, um documento de grande importância histórica para o futebol global, a despeito dos seus poucos efeitos práticos.
Trata-se do “Independent European Sport Review 2006”, extenso documento encomendado pela União Europeia – mais precisamente pelos ministros dos esportes da França, Alemanha, Itália, Espanha e Reino Unido – para traçar propostas concretas para o futuro do futebol no continente, frente aos problemas visíveis já naquele contexto.
O documento leva tal alcunha porque foi coordenado e apresentado por José Luís Arnaut, político português que se destacou na realização da Euro 2004, quando era Ministro Adjunto do Primeiro-Ministro no seu país de origem.
O objetivo geral do relatório era criar as bases para uma regulação conjunta do futebol europeu, visando a atacar os efeitos colaterais da “rápida e irreversível tendência de mercantilização do esporte”, nas próprias palavras do autor. Pontos que iam desde a entrada de investidores suspeitos nos clubes; à manipulação de partidas pela indústria das apostas; ao tráfico de jovens jogadores; até a regulação da atividade dos agentes de jogadores e o equilíbrio financeiro da atividade.
Entretanto, o ponto principal do relatório, exatamente pelo impacto direto que tem nas questões anteriormente listadas, se referia à propriedade dos clubes europeus. O “Relatório Arnaut” fazia apontamentos claros e objetivos à necessidade de criação de mecanismos de controle de gastos nos clubes e, por outro lado, mecanismos de participação dos torcedores no controle dos seus clubes.
Pelo sim ou pelo não, a existência de um esforço institucional por parte da União Europeia influenciou inúmeros debates e foi capaz de impulsionar alterações no estado das coisas da indústria global do futebol. Alguns desses tópicos ainda possuem força, outros se tornaram regulações reais e outros, no mínimo, ensejam debates frequentes sobre o futuro do jogo. Vale observar os princípios daquele documento, e pensa-los em perspectiva histórica.
Controle financeiro
Uma das grandes preocupações sobre o futebol do então novo milênio era como a ultra-mercantilização do jogo e o rápido processo de globalização da transmissão dos jogos de futebol dos clubes europeus alteraram consideravelmente as correlação de forças dessa indústria. Na altura de 2006, o chamado “G-14”, grupo que reunia os cubes europeus mais ricos do momento, já gozava de prestígio e poder, afetando as estruturas tradicionais de controle e regulação do futebol, como a UEFA.
Essa organização daria origem, ainda em 2008, à chamada European Club Association (ECA), a mesma que atualmente mobiliza os principais clubes do continente pela criação da European Super League – uma liga independente do controle da UEFA.
Parte do impulso encontrado pelos atores políticos envolvidos na elaboração da Independent European Sport Review consistia nessa realidade. O futebol estava ganhando nova configuração e as antigas estruturas reguladoras estavam ameaçadas.
O Arnaut Report apontava como a necessidade de criação de regras mais rígidas para o controle dos gastos dos clubes era indispensável para a própria atratividade de investidores: com o descontrole e consequente inflação salarial que o futebol já apresentava à época, aponta Arnaut, a instabilidade financeira era uma regra.
Não era à toa que tantos clubes estavam indo à falência ou abrindo processos formais de recuperação judicial; nem era coincidência que tantos investidores bilionários passaram a comprar clubes nesse período.
Diferente do que se projetou ao longo das décadas de 1980 e 1990 – quando diversos países adotaram legislações que obrigavam clubes a se transformarem em empresas (Itália, França, Espanha, Portugal, etc…) -, o fato era que a atividade financeira de um clube de futebol já era percebida como invariavelmente deficitária.
A nova leva de proprietários de clubes dos anos 2000 deixava nítida a relação de mera utilidade publicitária dos clubes. Com altos riscos, pouco ou nenhum retorno financeiro e diversas barreiras naturais de entrada para investidores (gastos anuais na ordem dos 300 milhões de euros); clubes de futebol tornaram-se ferramentas poderosas para grupos financeiros e políticos. Situação já destrinchada no artigo “Os donos no futebol”.
O relatório sugeriu métodos de avaliação mais rígida quanto à origem da riqueza dos proprietários dos clubes. Medidas nesse sentido foram adotadas nos diversos países em questão, sem grande resultado, entretanto. O problema não era apenas o dinheiro ilícito que entrava no futebol, mas principalmente os objetivos desses compradores endinheirados.
Outra medida amplamente adotada foi a que sugeria o impedimento de que um mesmo grupo financeiro fosse proprietário de mais de um clube em uma mesma competição, sob o argumento de que isso feria a integridade esportiva de uma competição. O conceito ganha força nos anos seguintes, mas cai no primeiro grande teste: a UEFA autorizou os dois clubes da Red Bull – o Leipzig e o Salzburg – a comporem o mesmo grupo da Champions League de 2017/2018.
Já o Fair Play Financeiro, política adotada pela UEFA a partir de 2010 – com longo processo de adaptação e diversas regras graduais – possui grande influência do “Arnaut Report”. A política utilizada pela UEFA para autorizar a entrada de clubes em suas competições prevê punições aos clubes que gastem mais do que arrecadam em circunstâncias normais.
Indubitavelmente o ponto mais relevante e efetivo do relatório, a política de fair play financeiro de fato conseguiu conter a gastança desenfreada dos proprietários, ainda que não tenha passado alheia aos movimentos políticos de bastidores: Paris Saint-Germain, propriedade do Fundo Soberano do Catar, e o Manchester City, pertencente ao Fundo Soberano de Abu Dhabi, foram dois casos de clubes que descumpriram regras e não foram devidamente punidos.
Esse mecanismo é muito contestado pelo efeito colateral de “engessamento” do futebol. Uma vez que clubes de menor porte tendem a arrecadar menos do que os mais ricos ou mais populares (aqueles capazes de se capitalizar sobre públicos de todo o mundo), reduziram-se drasticamente as chances de que algum novo clube consiga atingir postos de destaque ou disputar títulos.
Por fim, o relatório sugeria a concepção de um sistema regulatório comum a todos os países, de uma forma capaz de dirimir as discrepâncias financeiras externas (entre as ligas) e internas (entre os clubes). Essa proposta vem na esteira da sugestão de um sistema bem definido de “salary cap”, também conhecido como “teto salarial”, muito comum nas ligas esportivas norte-americanas. É curioso notar como, apesar de movimentar recursos de ordem semelhante ao futebol, as ligas esportivas norte-americanas pagam valores muito menores às suas principais estrelas.
Como se sabe, essa foi outra medida que não se aplicou, mas persiste como uma ideia possível de contenção da inflação salarial cíclica do futebol, e consequente restabelecimento da sustentabilidade financeira dessa indústria (em tese…).
Participação dos torcedores
No outro extremo das discussões viabilizadas ou ensejadas pelo Relatório Arnaut, está o debate que segue crescente no futebol europeu: a importância e as vantagens decorrentes do maior grau de participação dos torcedores nos processos decisórios dos seus clubes.
A própria iniciativa da Independent European Sport Review tem suas raízes em um programa real, e até então muito bem avaliado, no futebol inglês: a Supporters Direct.
A Supporters Direct [Diretório dos Torcedores] foi uma organização impulsionada pelo governo do trabalhista Tony Blair, que visava estimular, impulsionar e dar suporte à existência de “supporters trusts”. As “trusts” consistiam em iniciativas onde um grande número de torcedores se juntava para levantar fundos e comprar participações acionárias nos seus clubes de coração.
O princípio básico era garantir o direito de participação de grupos de torcedores nessas sociedades empresariais, de modo a inserí-los nas decisões mais importantes defendendo o interesse coletivos dos torcedores em geral, contribuírem com a instituição e, de forma mais precisa, possuírem direitos constituídos e não apenas “simbólicos” de propriedade sobre seus clubes.
O movimento começou originalmente no Northampton Town, clube que atravessava grande crise em 1992. Apesar de já serem corriqueiros os casos de mobilização de torcedores do futebol inglês pelo socorro financeiro aos clubes de suas comunidades, os torcedores do Northampton entenderam que era preciso criar uma estrutura que lhes conferisse maiores garantias de participação. Com foi bem sucedida – com a conquista de cadeiras no conselho de administração do clube –, essa experiência pioneira acabou estimulando torcedores de toda Inglaterra.
Em 1998 o movimento chegou a um dos maiores clubes do país, o Manchester United, que vivia sob a ameaça de compra do magnata australiano das comunicações Rupert Murdoch. Cerca de 200 mil torcedores dos Reds se uniram, garantiram a aquisição de partes relevantes das ações do clube e mantiveram o seu controle na cidade (até 2005, quando a família Glazer adquire o clube após violenta estratégia de aquisição do controle acionário).
O futebol inglês já era alvo de grandes interesses mercadológicos dessa ordem, uma vez que os direitos de transmissão de competições esportivas ganhava grande valor, na carona dos avanços tecnológicos das transmissões e das TVs a cabo. A globalização do futebol passou a colocar os clubes no radar de grandes grupos financeiros e políticos, o que acontece de forma mais agressiva a partir dos anos 2000.
Poucos anos após a criação da Supportes Direct enquanto política de estado, o futebol inglês já contava com mais de 110 supporters trusts, ainda que isso não se apresentasse como um avanço concreto do controle acionário dos clubes pelas mãos dos seus torcedores. Acontece que há mais de um século os clubes ingleses já eram controlados por números reduzidos de acionistas minoritários e a ideia de participação concreta na gestão desses era praticamente impensável até os anos 1990.
Esse nunca foi exatamente o caso dos clubes dos países vizinhos, dos quais a Espanha talvez seja o caso mais ilustrativo. Como em 1992 a Ley de Deportes obrigou todos os clubes espanhóis a deixarem de ser associações civis sem fins lucrativos (como são os clubes brasileiros), só então os clubes se transformaram em sociedades anônimas desportivas.
Aqueles então sócios com direitos políticos de voto até tiveram a prioridade na compra de ações, mas como parece óbvio apontar, a concentração de poder acabou ficando na mão de poucas das mais abastadas famílias vinculadas a essas agremiações. Para o caso espanhol, uma “supporter trust” não consistia no mesmo movimento que representou para o futebol inglês, ainda formas organizativas semelhantes sejam vistas em muitos clubes atuais.
De todo modo, a criação de uma “Supporters Direct Europe” teve seu valor. A ideia gestada no Relatório Arnaut logo foi recebida pela UEFA como uma política da gestão de Michel Platini, a partir de 2009, igualmente apoiadas pelos governos locais. Uma ampla rede de organizações torcedoras agora se articulava com um financiamento constante, visibilidade midiática e intercâmbio de modelos de organização e publicidade.
A “SD Europe” ensejou bons estudos e criação de casos onde torcedores retomaram poder de participação em seus clubes, ou ao menos acionou uma espécie de ativismo torcedor que parecia adormecido em um momento de alto nível de clientelização da relação entre torcedores e clubes, própria desse processo de mercantilização do futebol.
Se a ideia geral era buscar reverter o distanciamento cada vez maior entre os proprietários dos clubes e as comunidades que lhes compunham, é possível dizer que essa iniciativa teve algum valor. Apesar disso, consistia a imensa dificuldade de disputar em termos financeiros com proprietários que se deslocavam de todas as partes do mundo, carregando fortunas impensáveis mesmo para um número de dezenas de milhares de torcedores organizados e coesos.
Outra política elaborada pela Supporters Direct foi a criação dos “Supporter liaison office” (SLO), uma espécie de “oficial de relação com torcedores”. Quando a UEFA adota essa política como um dos seus critérios de licenciamento de clubes – espécie de certificado de qualidade obrigatório para a participação em competições continentais -, a criação desse cargo se tornou comum nos clubes. A proposta consistia em disponibilizar um profissional remunerado e legitimado a fazer o diálogo entre torcedores e o comando dos clubes.
O SLO deveria acolher as demandas dos torcedores e elaborar políticas para resolvê-las. Isso teve importante impacto na luta de muitos torcedores contra o aumento abrupto do preço dos ingressos, os direitos dos torcedores visitantes, e inclusive o retorno ou preservação das culturas festivas a alguns estádios europeus.
Da ideia para a prática
A relevância do Relatório Arnaut é indiscutível apesar de suas propostas resultarem em mudanças pouco consideráveis, principalmente em contraste com o crescimento abrupto dos valores que envolvem a indústria do futebol nos tempos atuais. Por se tratar de um objeto tão poderoso de manipulação política, há uma grande dificuldade natural de aplicação de políticas reguladoras sobre clubes de futebol, com os proprietários dos clubes hoje se colocando em uma escala de poder muito superior ao que jamais foi visto.
Tratam-se de grandes conglomerados financeiros, líderes de partidos políticos populares, monarcas teocráticos, interesses geopolíticos de grande proporção, e muitas outras forças conflitantes. A desregulamentação da indústria do futebol tende a favorecer esses grupos, mas principalmente atletas e seus agentes, que enriquecem como nunca, enquanto clubes fora do epicentro financeiro dessa indústria global do futebol tendem a sofrer com os efeitos inflacionários desse grande parque de diversões do poder global.
Por outro lado, sem a mobilização orgânica e constante dos torcedores, dificilmente essas políticas conseguem se sustentar. Uma vez que o público consumidor desses grandes clubes já está há muito tempo consolidado para além das fronteiras do país de origem – ou mesmo para além dos oceanos que separam os continentes – a organização que representa dezenas de milhares de torcedores locais mobilizados é cada vez menos impactante na realidade dessas empresas.
No mesmo sentido, o próprio processo de clientelização dos torcedores já perdura triunfal há muito tempo. O esvaziamento do sentido de pertencimento e identidade é uma política promovida pelo futebol há muitas gerações, ainda que volta e meia sejamos surpreendidos com indícios contrários.
De tempos em tempos o futebol brasileiro é recebido com novas promessas de “resgate da sua grandeza”. Mal completamos uma década da construção das custosas e deficitárias arenas multiuso pós-Copa do Mundo e logo em seguida já embarcamos em outras duas naus rumo ao novos Eldorados do futebol: os clubes-empresa e, mais recentemente, os famigerados “direitos do mandante”.
Já sabemos que as arenas da Copa – e as suas poucas versões independentes, mas ainda relacionadas ao movimento de arenização dos anos 2010 – ainda não apresentaram viabilidade financeira, tampouco sucesso no seu projeto de transformação do público dos estádios ou ampliação relevante da receita dos clubes. Como ideia ruim não tem pai, absolutamente nenhum dos entusiastas desse conceito de equipamento e consumo esportivo traz para si a responsabilidade de dar solução aos problemas previsíveis que enfrentávamos nas praças desportivas brasileiras até a chegada da pandemia.
O comportamento típico dos ditos especialistas de gestão e marketing esportivo já é sabido há tempos, mas seguem sendo esses os principais formuladores e promotores de novas promessas de “resgate da grandeza”. Graças à capacidade de promoção de suas empresas, esses atores influenciam e convencem profissionais de imprensa a aderirem aos seus projetos, que por sua vez servem de mediadores para a criação do consenso entre dirigentes, patrocinadores, membros de clubes, torcedores e consumidores gerais de futebol.
Nos últimos três anos a discussão da transformação dos clubes brasileiros em sociedades empresárias (ou clubes-empresa) já mostrou a reprodução de um método de atuação semelhante. Primeiro se faz a referência sem ponderações ao futebol europeu – através da proposta de replicação de fórmulas infalíveis para o alcance de um sucesso financeiro equivalente -, depois se misturam os interesses privados com os “benefícios coletivos” em meio a essas proposições – dado que essas empresas atuam nesse mercado e buscam sempre expandir seu campo de atuação -; e posteriormente o processo de abstenção geral de qualquer responsabilidade por eventuais problemas de percursos ou fracassos retumbantes – como ocorreu às arenas e como a empresarização dos clubes já provou ser em diversos países.
Comportamento de oportunidade à parte, uma vez que o peso dos interesses particulares não pode ser excluídos dessa equação, é crucial observar que essas iniciativas frustradas e fórmulas falhas partem de dois grandes problemas: 1) a “filosofia” hegemônica do pensamento dos operadores do negócio do futebol, muito além das propostas gerenciais, são verdadeiras cartilhas político-ideológicas; 2) consequência da anterior, a preponderância da abordagem meramente “mercadológica”, isto é, restrita à análise da ordem e funcionamento do “mercado”, geralmente entendendo-o como um entidade independente da conjuntura e estrutura, portanto pobre em leituras sociológicas e político-econômicas.
São problemas que explicam tanto a causa quanto a consequência (negativa) desses projetos. O futebol brasileiro é periférico por uma questão macroeconômica, não por uma questão meramente gerencial. A proeminência midiática gerada pelo alcance de mercados consumidores populosos, como o asiático, explica o volume das receitas dos clubes europeus, não havendo possibilidade de reversão dessa ordem a favor do futebol brasileiro. A promoção de modelos adotados no futebol europeu, um dos centros econômicos e políticos do sistema-mundo e epicentro da indústria do futebol global, não vai entregar os mesmos resultados financeiros que foram entregues no futebol “da Europa”.
É possível ir além: estamos realmente falando de resultados concretos ou apenas deixando de entendê-los como subprodutos, também, da preponderância midiática do futebol desses locais? Estamos levando em conta como a posição central de (poucos países) europeus atraiu grandes compradores (gastadores) que controlam clubes que raramente dão resultados financeiros concretos?
Afinal, coisa bem pouco comentada na atualidade, não importa o grau de crescimento dos valores movimentados pelo futebol global, os maiores clubes do mundo raramente rendem retorno aos seus envolvidos, e quando rendem, são valores minúsculos se levados em consideração os altos riscos e custos de operação do negócio futebol.
Portanto não há grandeza a ser resgatada no futebol brasileiro se o futebol global sofreu transformações dessa ordem. Proprietários de clubes não são necessariamente empreendedores de um negócio rentável. A indústria do futebol dá dinheiro, mas clubes de futebol não dão. A grandeza financeira desses clubes reside em duas razões principais: parte pelo aporte financeiro desses proprietários na aquisição de jogadores-marcas capazes de render resultados esportivos, mas também visibilidade midiática a nível global, parte pela alavancagem consecutiva recente das receitas oriundas de direitos de transmissão, consequência direta da razão anterior.
Aqui os assuntos se encontram. Proprietários dos maiores clubes do planeta não colhem resultados financeiros, mas colhem muita visibilidade e poder. O clube de futebol na atualidade existe como uma ferramenta de projeção de grupos financeiros e grupos políticos, um instrumento de publicidade e propaganda que atrai o interesse de fundos de investimento em expansão para novos mercados, companhias multinacionais interessadas em atrair investidores para suas novas empreitadas, passando por partidos políticos visando sucesso eleitoral em curto prazo ou mesmo chefes de estados monárquicos ou teocráticos do Oriente Médio.
Na ordem de grandeza da riqueza ou interesse dos compradores de clubes da atualidade, o gasto excessivo com a atividade futebol é irrelevante: o retorno para a projeção da imagem dos seus envolvidos é suficientemente recompensador para seus objetivos finais.
Esse ciclo se retroalimenta sem necessariamente significar saúde financeira real e efetiva da parte dos clubes. Proprietários gastam além do que arrecadam, concentram os principais jogadores do planeta (o star system da bola), atraem maior audiência em mercados globais, e com isso as receitas se alavancam. Mas a necessidade de manter o clube competitivo e operando no topo faz com que os gastos com contratações e sedutores salários sempre estejam acima do poder real de valorização do espetáculo do futebol enquanto produto final dessas empreitadas.
Afinal, agentes de atletas sabem o quanto essa indústria movimenta anualmente, e exigem aumento equivalente na remuneração dos seus atletas e na valorização dos seus valores de mercado.
Isso inclusive nos obriga a considerar a importância das “esferas” e “escalas” que o futebol global estabeleceu em sua discrepância financeira absoluta. O “futebol europeu” ao qual nos acostumamos a tratar a elite do futebol global, a bem da verdade se resume a 5 países, que concentram mais da metade da receita global do futebol do continente.
Entretanto, todos os menores e até irrelevantes países que orbitam ao redor dessas grandes ligas, queiramos nós ou não, estão circunscritos à esfera do futebol da UEFA. Não apenas por compartilharem o euro, a moeda mais valorizada do planeta; mas principalmente por compartilharem do mesmo círculo de competições. A Bulgária é um pequeno país, pouco competitivo a nível de Champions League? Sim. Mas ainda está no ambiente do futebol europeu, e portanto é um destino atraente para determinados atletas em busca de visibilidade e trânsito no maior mercado do futebol do planeta.
O Brasil pode formar os melhores jogadores do mundo, pode ter a maior seleção mais vencedora da história, pode até ajustar os problemas financeiros que acometem os clubes locais, e ainda assim será incapaz de contornar essa relação de escala e esfera que torna países periféricos europeus mais relevantes do que países centrais sul-americanos.
O “direito do mandante”
É dentro dessa falta de compreensão que o tema dos direitos de transmissão ganhou força no debate público no país, ofuscando inclusive os projetos que tratavam da conversão dos clubes em empresas. Uma discussão antiga que acabou por ganhar relevância a partir de uma iniciativa isolada do Presidente da República e do presidente do Clube de Regatas Flamengo, maior público consumidor do país, e maior beneficiado com a proposta em questão.
A Medida Provisória 984 promovia uma alteração na Lei Pelé que determinava que os “direitos de transmissão” de cada partida pertenceriam ao clube mandante naquela ocasião. Independente do campeonato em questão, os clubes sem contrato poderiam negociar a venda dessas partidas como bem entendessem, até mesmo podendo fazer suas próprias transmissões. O que beneficiou o Flamengo, que não havia fechado acordo com a Globo para a disputa do Campeonato Carioca, diferente de todos os outros clubes do certame.
Esse artigo derrubava a exigência de que a partida precisasse contar com a anuência das duas equipes em campo para ser transmitida, eliminando o texto que apontava que os clubes possuíam direitos sobre suas respectivas imagens naquele certame, inclusive sendo visitante. A Globo não poderia transmitir jogos do Flamengo, tampouco o Flamengo poderia transmitir seus jogos como mandante contra qualquer clube. Coisa que fez, primeiro no Youtube e depois na SBT, respaldado pela MP. O que levou posteriormente a Globo a romper o contrato do Campeonato Carioca de vez.
A MP 984 então ocupou as principais manchetes do futebol brasileiro graças à insegurança jurídica de desatou: os contratos entre clubes e empresas de mídia estavam ou não valendo? Inúmeros casos foram para na Justiça com variadas motivações provocadas pela mesma mudança provisória no texto da lei.
Encontro do Presidente, durante a pandemia, com dirigentes de clubes que eram a favor da MP984. Fonte: uol.com.br
Com relação à Série A do Campeonato Brasileiro, nos contratos de TV aberta e pay-per-view não houve conflito. O problema central era porque 8 clubes possuíam contrato de transmissão de jogos em “TV fechada” com a Turner, enquanto outros 12 possuíam contrato com o Grupo Globo. De acordo com o texto original, para que a Turner ou a Globo transmitissem o jogo, precisariam contar com a anuência da concorrente.
A falta de um acordo causou os chamados “apagões”, problema comum em 2019 que aparentemente se encaminhava para um acordo entre as empresas concorrentes – claramente prejudicada pela MP. A Turner buscou se respaldar no texto da MP para transmitir jogos dos seus 8 clubes como mandante, enquanto a Globo alegava que o contrato estabelecido com os 12 clubes garantia exclusividade sobre o direito de imagem tanto como mandante, quanto como visitante – afinal, era o que a lei determinava.
A medida provisória tinha a validade de 6 meses e deveria ser votada pelo Congresso para ganhar validade enquanto lei, ou caducaria. Entendendo a ideia de “direito de mandante” como positiva, nada menos que 46 clubes de todos os tamanhos passaram a mobilizar suas redes sociais de modo a tentar convencer o torcedor da importância da medida. O movimento se inicia pelos clubes do chamado “bloco da Turner” – os oito clubes com contrato com a empresa estrangeira –, mas alcançou também clubes com direitos de transmissão acordados com a Globo.
O “Movimento Futebol Mais Livre” produziu materiais de divulgação da MP 984, levantando os supostos pontos positivos da mudança. Em seu perfil do Twitter trazia a descrição “Por um futebol brasileiro mais forte. Pela liberdade de todos os Clubes. Pela democratização das transmissões! #PelaLeiDoMandante”.
Não rendeu. Apesar de algumas peças constarem com argumentos fora do lugar, meias verdades ou distorções da realidade, o “movimento” não ganhou força e a MP caducou. No dia seguinte, entretanto, um projeto de lei já era apresentado, e em um espaço de uma semana já eram quatro projetos com teor idêntico, ou ao menos semelhante ao conteúdo, da MP 984. Deputados de oposição, do chamado centrão e, obviamente, da situação, bancaram a ideia. Da oposição, vale ressaltar, o projeto parte de André Figueiredo (PDT/CE), ex-diretor e conselheiro do Ceará Sporting Club, um dos integrantes do “bloco da Turner” – junto ao rival Fortaleza.
O novo Eldorado
É importante falar do Fortaleza porque parte do seu presidente, Marcelo Paz, a declaração mais fora de lugar, que trata exatamente dos maiores riscos da adoção de um regime de “direito de mandante” na lei sobre direitos de transmissão para o futebol brasileiro. Em entrevista para o jornal O Povo, assim respondeu o mandatário do Fortaleza:
“Nos países em que esse modelo vigora há um equilíbrio muito maior de distribuição (do dinheiro arrecadado com venda de direitos de transmissão) do primeiro para o último que recebe. É uma distância bem menor do que acontece no Brasil. Desta forma, (todo clube) passa a ter o mesmo poder na quantidade de jogos. Tenho no mínimo 19 jogos como mandante. E se cada clube se associar com mais clubes, que é a medida mais inteligente, cria uma força maior. Inteligente e todos os clubes se juntarem e venderem (os direitos de transmissão) por um valor maior com divisão financeira mais justa”.
O misto de otimismo e expectativa desejosa faz da fala de Marcelo Paz uma contradição completa. Ela não está totalmente errada, mas está muito errada. Há uma confusão tremenda entre os modelos adotados em outros países e o formato que se desenha no futebol brasileiro na atualidade.
Sim, é fato que os países onde a divisão dos direitos de transmissão é mais equilibrada, vigora o modelo de “direito de mandante”: Inglaterra, Itália e Alemanha. Entretanto, no país onde há um pior caso de desequilíbrio entre os valores dos direitos de transmissão, também vigora esse modelo: em Portugal, onde Benfica, Porto e Sporting, clubes de maior torcida do país, arrecadam até 13 vezes mais do que o resto dos clubes locais. Então essa relação de causa e efeito não é real.
O que ocorre na Itália, na Inglaterra e na Alemanha é exatamente o que não ocorre em Portugal: a centralização dos direitos de transmissão em uma liga, que se responsabiliza por negociar os direitos de transmissão de todo o campeonato. Ou seja: nos países onde há equilíbrio, o direito de mandante existe, mas nada significa, uma vez que todos os direitos de mandante pertencem a uma mesma entidade, que é a liga dos clubes daquela competição.
Em Portugal os maiores clubes não aceitaram negociar em liga, exerceram o direito de mandante e sugaram todos os recursos disponíveis no mercado. Sozinhos passaram a ganhar mais do que os outros 15 clubes juntos – que fizeram um bloco pra negociar e nem assim obtiveram capacidade competitiva.
Onde há liga, os clubes maiores devem atender ao mínimo de exigências feitas pelos clubes menores, criando sistemas de divisão dos direitos de transmissão “de todos” de uma forma mais equilibrada. Apesar dos diferentes modelos existentes, onde o equilíbrio impera há separação de uma faixa de valor a ser dividido de forma totalmente equânime (em alguns casos 50% do global) e outras de acordo com a posição do clube no campeonato anterior, ou de acordo com a capacidade de atração de audiência (geralmente 25% do global). Uma equação que faz o maior clube receber, quando muito, o dobro da média global.
Portanto, a grande questão não é o “direito de mandante”, o Eldorado que futebol brasileiro hoje persegue. Mas a existência de uma liga de clubes com divisão equilibrada, onde o “direito de mandante” serve aos menores como contrapeso.
No podcast “Na Bancada” produzimos uma série de conteúdos discutindo sobre o tema, de onde tiramos algumas conclusões sobre os efeitos de uma mudança desse porte na atual conjuntura do futebol brasileiro.
A primeira conclusão é que os clubes dificilmente conseguirão viabilizar suas próprias plataformas para transmissão de jogos, assunto muito comentado nos primeiros meses de vigência da MP, como se isso significasse a abertura imediata de uma nova receita para os clubes. Os poucos casos existentes no mundo não apontam para sucesso no modelo (alto custo, alto risco, pouco retorno). Tampouco parece fazer sentido um clube buscar isso em um campeonato como o brasileiro.
O segundo ponto é uma curiosa ilusão que se criou no país com relação ao volume do interesse/capacidade nesse mercado. Poucas empresas estão em condições de disputar contratos de direito de transmissão no futebol brasileiro, e isso não é necessariamente ruim. O produto é custoso, se viabiliza pela via da publicidade, que paga pela audiência. Caso disperso em muitos meios e mídias, o produto geral (o campeonato) tende a perder valor. Há também o fator qualidade, que geralmente é prejudicado pela necessidade dos meios/empresas em controlar os custos de produção, de modo a manter competitividade financeira.
Há também um ponto que compete diretamente ao consumidor. Na faixa de negociação de pay-per-view há a chance de concentração de jogos em plataformas pagas, e do jeito que se desenha, possível que surjam até 4 diferentes assinaturas a serem pagas para acessar os jogos em que o time de preferência joga de visitante. Quando não é diretamente impeditivo, esse formato é insustentável.
Mas o ponto principal demanda uma explicação mais profunda.
O risco real
Fica claro que sem uma liga capaz de concentrar os direitos de transmissão e regulamentar uma divisão equilibrada dos recursos, a tendência é a proeminência de clubes como Flamengo e Corinthians, há décadas dominantes nas principais pesquisas sobre a preferência clubística do brasileiro. Ainda que se argumente que uma empresa que detenha os jogos dos rivais do Flamengo ou Corinthians (portanto, com os jogos em que a maior audiência está do lado de visitante), o exemplo de Portugal mostra que essa é uma etapa secundária da negociação.
O grosso dos recursos é realmente investido na aquisição dos 19 jogos em que o clube de maior audiência é mandante. É uma opção mais segura e efetiva de exploração financeira de alta rentabilidade. As empresas que concorrem pelos jogos dos menores pagam para esses clubes praticamente o valor da exploração desses poucos jogos contra os maiores. Todo o resto tende a ser conteúdo sem valor. É como imaginar que uma empresa realiza, em venda de publicidade, apenas nos 38 jogos de 2 clubes do grande torcida, o mesmo valor que a outra realiza com 324 jogos dos outros 18 clubes. Mas com um custo muito menor.
De certa forma, na atual realidade do futebol brasileiro, apenas Flamengo e Corinthians têm garantias reais de que sairão ganhando no modelo de “direito de mandante”. Mesmo Palmeiras, São Paulo e Vasco, clubes com grande número de consumidores em todo Brasil, podem ser prejudicados por essa lógica do “salve-se quem puder”.
Foi o que ocorreu a esses clubes quando o Clube dos 13 foi dissolvido. Essa entidade beneficiava os seus 13 fundadores e alguns “convidados” com valores maiores na negociação dos direitos de transmissão do Brasileirão, inclusive em caso de rebaixamento, e apresentava um desequilíbrio menor do que a ordem atual. Com o fim desse “bloco” de privilegiados, estabeleceu-se a “negociação individual” (ainda que sem direito do mandante), e Flamengo e Corinthians passaram a receber muito mais que os seus rivais, como os já citados Palmeiras, São Paulo e Vasco.
Abaixo, também poderíamos colocar os clubes de torcida nacional mais reduzida, como Botafogo, Fluminense e Santos, que não conseguiram manter o mesmo patamar que os rivais. O Botafogo é comumente usado como exemplo, uma vez que Mauricio Assumpção, seu então presidente quando da dissolução do Clube dos 13, alegou que o clube ganharia mais com a nova lógica de negociação. Até ganhou – subiu cerca de 50% – mas viu o seu rival Flamengo duplicar a sua arrecadação e a distância entre os dois aumentar drasticamente.
Situação pior ficou para outros clubes ditos grandes, com prateleiras cheias de troféus, mas com torcidas basicamente regionais, como é o caso de Cruzeiro, Atlético, Grêmio e Internacional. Não importa se todos os quatro clubes tem taças de Brasileiro, Copa do Brasil e Libertadores em suas sedes. Seu público consumidor não possui alcance nacional, portanto eles não são capazes de gerar audiências passíveis de contratos de direitos de transmissão equiparáveis aos outros ditos “grandes”.
Quanto aos clubes periféricos, como é o caso do supracitado Fortaleza – e os demais clubes do Nordeste -, soa desnecessário imaginar o quanto ficarão abaixo dos principais clubes do país. No máximo, e parece óbvio que tentarão recorrer a isso para evitar a desvalorização, formarão blocos entre si. E Portugal está ali para provar que isso não é suficiente.
Em suma, sem uma liga, o “direito de mandante” só serve a quem tem maior poder de barganha, em outras palavras, os clubes que historicamente mobilizam maior audiência para seus produtos a nível nacional. Ainda que todos os clubes de capitais consigam ter poder em suas respectivas praças – como provam os números recentes mesmo em Salvador, Recife, Fortaleza –, a concorrência mais ferrenha será pelos direitos de transmissão dos clubes que estouram a audiência em absolutamente todas as grandes praças. Ao resto sobrarão as migalhas.
Em suma, sem uma liga, o “direito de mandante” funciona como um guarda-chuva em um dia ensolarado de meio de semana: você sabe que tem uma utilidade, mas para que ele seja útil é necessário que chova. Sem a chuva o seu guarda-chuva não passa de um peso desnecessário.
Há ainda um efeito silencioso que vem a reboque de um processo de grande desequilíbrio financeiro, como se desenha para o futuro com uma PL de “Direito do Mandante” com negociação individual: a hiperinflação dos salários e a concentração dos melhores atletas antes da sua internacionalização.
Em todo o mundo se nota um efeito inflacionário em formato de cascata provocado pelo gasto desenfreado dos grandes clubes. No Brasil, há o risco de enfrentarmos uma realidade onde os clubes que não conseguiram boas negociações dos direitos de transmissão sofrerem de forma dobrada. Em um primeiro momento não serão capazes de oferecer propostas salariais competitivas para os bons jogadores, em um segundo momento precisarão se desfazer dos seus principais jogadores em tempo acelerado, perdendo-os, via de regra, para os adversários mais ricos do próprio país.
É um ciclo vicioso altamente previsível, onde os clubes mais competitivos vão atacar o escasso mercado qualificado de pé-de-obra, gozando da sua preponderância financeira, mesmo que seja para não utilizar determinado jogador – colocando-o na reserva ou em posição secundária, mas conseguindo impedir a competitividade esportiva de um adversário em potencial.
Por fim, é importante entender que o futebol brasileiro está localizado no meio do grande gap que divide a elite do futebol europeu do futebol sul-americano. Nem mesmo uma hipotética imensa majoração desses valores de direitos de transmissão será capaz de fazer os clubes brasileiros competirem em pé de igualdade com os clubes europeus (mesmo de países periféricos).
Haja visto que nem mesmo a atual superconcentração de recursos conseguiu fazer o Flamengo – um dos maiores públicos consumidores globais de um único clube dentro do seu próprio país e colecionador de taças em 2019 -, alcançar a trigésima maior receita do futebol europeu – a do Lyon, com 164 mi euros (mais de 1 bilhão de reais).
O sensação de mudança de patamar, se muito, será sentida na permanência um pouco mais duradora de jogadores qualificados – apenas nos clubes mais ricos –, e sobre os países da América do Sul, que disputam a Copa Libertadores em comum. Aliás, competição que já é dominada e produzida anualmente para dar preferência aos clubes oriundos do grande mercado consumidor do Brasil, país mais rico e mais populoso do continente.
De promessas o futebol brasileiro está bem servido. Precisa agora é de uma leitura menos otimista, mais materialista. Os números enganam porque, apesar de não mentirem, também não comunicam nada. Há quem saiba disso tudo que foi falado nesse texto, mas que acha inconveniente colocar na discussão, em um momento tão frutífero de “transformações” que virão para deixar tudo como está.
Os clubes do século XXI foram controlados por perfis facilmente classificáveis de “investidores”. Todos absolutamente cientes de uma verdade inconveniente da qual essa indústria jamais conseguiu se desprender e admitir: clube de futebol não dá dinheiro.
Não há qualquer exagero nessa afirmação. Desde a irreverente literatura da dupla Simon Kuper & Stefan Szymanski (2009)[1] até a radical crítica de David Kennedy e Peter Kennedy (2016)[2], são notórios os indícios de que a propriedade de clubes de futebol não se configura como “um grande negócio”, e pior, mal pode ser considerada “um negócio”. A propriedade de clubes de futebol não opera em uma ordem guiada pelo lucro, não costuma ter suas ações negociadas em ritmos convencionais, não estabelece faturamentos comparáveis a segmentos periféricos do terceiro setor, não repassa dividendos para os seus envolvidos… por que, então, alguém teria tanta vontade de ter um clube? Porque futebol movimenta as multidões. E as multidões alteram o rumo dos ventos.
Os donos de clubes de futebol hoje podem ser divididos em quatro grandes grupos. Três deles são diretamente relacionados à utilização do clube como ferramenta de propaganda e/ou publicidade; o último é mais diverso: 1) geopolítica: Estados interessados em fazer dos clubes suas ferramentas de “soft power”; 2) política eleitoral: personalidades ou grupos políticos dispostos a investir em um clube de massas para reverter seu sucesso esportivo em capital político; 3) mercado de capitais: grupos financeiros, e seus respectivos representantes públicos, em busca de projeção de suas imagens e marcas para a atração de investidores para seus projetos; e 4) os alheios: ora desinformados, ora aventureiros, ora mal intencionados, muitas vezes notórios lumpenburgueses.
1) Geopolítica – O uso do clube de futebol como instrumento de “soft power”, isto é, o exercício do poder sem uso da violência, pode apresentar diversas finalidades, mas, em geral, se define pela intenção de facilitar o trânsito dessas lideranças/Estados dentro de países centrais da economia global. O esporte tem sido utilizado com esse princípio há muitos anos, mas esse tipo de “comprador de clube de futebol” está basicamente relacionado a quatro países.
O primeiro seria o emirado de Abu Dhabi, o mais importante e rico dos Emirados Árabes Unidos, que adquiriu o Manchester City em 2008 e posteriormente criou o City Football Group, maior holding global do segmento.[3] O segundo seria o emirado do Qatar, atual proprietário do Paris Saint-Germain, da França, que adquiriu o clube em 2011. O terceiro, em processo que até maio de 2020 não estava concluído, seria a Arábia Saudita, prestes a adquirir o tradicional Newcastle United, da Inglaterra. Nesses três casos, se tratam de Estados teocráticos que mobilizam seus fundos públicos de investimento para adquirir grandes marcas do futebol global e se dispõem a realizar gigantescos investimentos. O quarto deles é o Estado chinês, responsável por financiar investimentos em dezenas de clubes localizados em territórios que representam pontos estratégicos dos interesses desse Estado.[4]
2) Política eleitoral – em países democráticos, a busca pelo voto é um dos poucos verdadeiros desafios da vida de homens ricos. Uma vez que é difícil, custoso, ilegal e arriscado comprar o número necessários de votos para se eleger a um cargo público, empresários milionários de diferentes países tiveram uma grande ideia: tornar legal a compra do instrumento de mobilização apaixonada de milhares de cidadãos. Dessa forma, era preciso tornar os clubes compráveis. Três exemplos ilustram isso tipo de fenômeno.
Silvio Berlusconi, na Itália, adquiriu o Milan em 1986, na esteira da nova lei das sociedades por ações. Tornou o Milan uma máquina de comprar jogadores com imensos aportes financeiros sustentados pelo seu império de telecomunicações. Oito anos depois, conquistados quatro campeonatos nacionais e três taças continentais, Berlusconi era eleito primeiro-ministro do país pelo partido Forza Italia, criado por ele mesmo naquele exato ano de 1994. Ocupou o cargo em outras duas oportunidades.
Em um perfil mais modesto, também está a figura pitoresca do espanhol Jesus Gil, eleito em 1987 com margem apertada para a presidência do Atlético de Madrid em uma eleição com 22 mil votos. No cargo, torna-se um dos principais entusiastas da Ley de Deportes. Com a sua aprovação, se torna imediatamente sócio majoritário do clube que até então presidia. No ano seguinte, funda o partido Grupo Independiente Liberal (GIL) e se elege prefeito da cidade de Marbella, onde é reeleito três vezes antes de ser obrigado a abandonar a vida pública por envolvimento em um caso de corrupção realizado com o nome do Club Atlético de Madrid.
O caso mais emblemático talvez seja o de Sebástian Piñera, do Chile. Um empresário bilionário, cuja família teve relações firmes com os primeiros anos da ditadura Pinochet, já havia sido senador apesar das imensas dificuldades de emplacar eleitoralmente o Partido Renovación Nacional, do qual era presidente. No começo dos anos de 2000, começa a advogar pela conversão dos clubes chilenos em empresas, logo após impulsionar a revisão de uma lei em um processo que gerou uma dívida “retroativa” para os clubes. Logo depois, torna-se sócio majoritário da Blanco y Negro S.A., empresa que assumiria a gestão do Colo-Colo, clube mais popular do Chile (e rival da Universidad Católica, clube do qual declarou anteriormente ser torcedor). Em 2010, após quatro títulos nacionais sustentados por apoiadores/acionistas, Sebástian Piñera se torna presidente do Chile.[5]
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3) Mercado de capitais – Mais do que necessariamente o uso do clube como forma de unir seu sucesso esportivo à imagem do seu proprietário, como mencionado anteriormente, esse quesito também envolve a limpeza da imagem de empresários com pregressos envolvimentos em atividades ilícitas. A força popular de um clube é capaz de blindar seus donos da lei.
Esses casos geralmente dependem das taças para lograr, e motivam grandes investimentos. É o caso do bilionário israelense-russo Roman Abramovich, que fez fortuna com a privatização das empresas estatais da antiga URSS, mais notadamente nos setores de mineração e petróleo. Em 2003, comprou o Chelsea, modesto clube de Londres, por meio do qual protagonizou o primeiro caso de megainvestimento do século XXI, rendendo diversos títulos, incluindo uma Champions League em 2012. Os resultados esportivos do Chelsea lhe renderam prestígio suficiente para se instalar com conforto no país. O final da década de 2010, no entanto, representou um gradual abandono dos investimentos, levando o clube a já não contratar como antes, a perder protagonismo e a suspender o projeto de um novo estádio. Roman Abramovich havia sido identificado como peça-chave de uma trama excepcionalmente complexa, que envolvia espionagem, guerra diplomática e lavagem de dinheiro, e, por isso, teve seu visto de residência no Reino Unido negado.
Em 2010, foi a vez do sheik Abdallah Ben Nasser Al-Thani comprar o Málaga CF, da Espanha, levando clube até a uma inédita Champions League em 2013. Esse caso não pode ser confundido como um exemplo de soft power, uma vez que Al Thani intencionava projetar sua própria ambição no mercado imobiliário espanhol. Alguns indícios apontam que o drástico desinvestimento do sheik no clube andaluz ocorreu por causa de uma série de frustrações aos seus planos empresariais, em especial pelo impacto das movimentações políticas contrárias aos seus projetos de arranha-céus na zona portuária da cidade. Em 2018, o Málaga CF é rebaixado para a segunda divisão espanhola. Em fevereiro de 2020, Al Thani foi afastado do conselho administrativo do clube por decisão da justiça espanhola, sob denúncia de apropriação indébita dos fundos da SAD.
Há também o caso de Peter Lim, bilionário financista de Singapura que adquiriu o Valencia Club de Fútbol em 2014, no rastro de uma crise causada pelo desastroso projeto de um novo estádio. Peter Lim somou fracassos dentro de campo, mas acabou por conquistar uma improvável Copa del Rey em maio de 2019, tirando o clube de 11 anos de jejum. Ainda assim, nunca gozou de prestígio junto aos torcedores e pequenos acionistas, que realizaram inúmeros protestos massivos desde a sua chegada. Com uma política austera nas contratações, Peter Lim ainda nomeou como presidente da SAD o seu conterrâneo Anil Murthy, um ex-diplomata, cuja experiência com o futebol era absolutamente zero. Sob sua gestão, o Valencia fracassou na tentativa de finalizar o antigo sonho do Nou Mestala, novo estádio que estava previsto para ficar pronto em 2010.
4) Os Alheios: aqui está um tipo de investidor que não dispõe de grandes fundos como os listados anteriormente. Ao se apresentarem como homens de negócios bem-sucedidos, conquistam a confiança de clubes que pretendiam adquirir. Como resultado, é comum vê-los levando-os à bancarrota junto com seus próprios fracassos financeiros.
O empresário iraniano Majid Pishyar desembarcou em Portugal, promovido por sua experiência bem-sucedida de promoção à primeira divisão com o Servette FC, clube da Suíça. Por meio do 32Group, um grupo de investimentos criado em 2008, Pishyar assume a SAD do Beira-Mar e promete torná-lo o “quarto grande” do país. No ano seguinte, é forçado a admitir que estava abrindo pedido de falência no clube suíço e, em 2014, já repassava a sua participação no clube português para outro interessado. O Beira-Mar saiu dessa experiência falido e Majid Pishyar, apesar disso, continua desenvolvendo outras atividades financeiras com o 32Group. Hoje, os torcedores do Beira-Mar tentam refundar o clube nas divisões inferiores de Portugal.
No Brasil, esse foi o tipo de investidor que chegou ao Esporte Clube Vitória no ano de 1998, quando o clube baiano adotou o modelo de sociedade anônima no rastro do movimento gerado pela Lei Pelé. O Exxel Group, conglomerado financeiro argentino em franca ascensão, controlado pelo uruguaio Juan Navarro, adquire 50,1% das ações da Vitória S.A, por cerca de 6 milhões de dólares, faturando as dívidas que o clube possuía à época e planejando entrar no mercado de jogadores de futebol. Por ser esse um dos seus movimentos de expansão dentro do mercado sul-americano, o Exxel prometeu investimentos de 12 milhões de dólares ao longo de 5 anos. Antes de decolar, o grupo que também havia comprado o clube argentino Quilmes, é impactado pela crise cambial argentina e por uma grave denúncia de fraude financeira. O Exxel Group abandona o Vitória, não faz o aporte financeiro prometido, vai à falência e aceita negociar a recompra das suas ações pelo EC Vitória em 2006, quando o clube jogava uma inédita Série C em sua história. O clube associativo restabeleceu o controle do seu futebol, extinguiu a Vitoria S.A. e voltou aos trilhos.[6]
Outro caso digno de nota é a aventura de Marcos Ulloa à frente do Deportes Concepción, clube chileno que sempre foi um dos mais tradicionais emblemas fora da capital. Tal empresário chegou ao clube em 2006 com a proposta de investir recursos de um grupo alemão representado por Mario Munzemayer. Recursos em tese suficientes para cobrir as dívidas da agremiação, para construir um novo centro de treinamentos e um estádio semelhante ao do alemão Schalke 04. O clube aceita a entrada de Ulloa na SAD, mas o dinheiro não existe. O Concepción foi rebaixado antes de conseguir desfazer o acordo com os falsos investidores e, em uma segunda tentativa de restabelecimento com novos investidores em uma nova SADP, mergulha em dívidas que levam à sua desfiliação da liga. Marcos Ulloa foi preso. Hoje os torcedores tentam restabelecer a associação.
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Com a exceção do grupo 4 desse exercício ilustrativo, no fim das contas, do ponto de vista dos proprietários e de suas finalidades, o futebol de empresas do século XXI acabou adotando uma configuração semelhante à do futebol inglês no final do século XIX: clubes deficitários voltados para agregar à imagem do seu proprietário. A diferença agora é a proporção: em um futebol super consumido, televisionado para os quatro cantos do mundo, clubes provocam impactos reais no cenário eleitoral de uma nação, reposicionam geopoliticamente líderes globais, viabilizam projetos financeiros fraudulentos e limpam a imagem de empresários de origem e práticas duvidosas. Nessa escala, o futebol-negócio de clubes-empresa serve basicamente a interesses potencialmente perigosos.
É justo destacar que o futebol espanhol até meados dos anos 2010 ainda resguardava uma característica que lhe conferia certa diferenciação. Uma vez que seus antigos sócios tiveram prioridade na aquisição das ações da nova SAD, em muitos clubes os sócios mais ricos e influentes ocuparam os postos majoritários dessas sociedades. Até ali, por mais que também imperassem interesses como os já listados, se tratavam ao menos de proprietários de origem comum ao clube, muitas vezes até descendentes dos fundadores das associações. Mas esse tempo já passou.
Notas de fim
[1] “Se a Deloitte classificasse os clubes segundo o lucro, os resultados seriam constrangedores. Não apenas a maioria dos clubes tem prejuízo e não paga dividendos a seus acionistas, como muitos dos “maiores” clubes estariam no final da lista […]. Qualquer que seja o parâmetro, nenhum clube de futebol é um grande negócio”. (KUPER; SZYMANSKI, 2009, p. 88).
[2] “Um exame forense do estado da elite do futebol europeu confirma isso, revelando uma realidade totalmente diferente do dito sucesso comercial: é a realidade do débito, da falência, da perda do balanço competitivo e um contido ressentimento dos torcedores pela exploração financeira enquanto ‘consumidores’ e pela sua falta de poder de decisão”. (KENNEDY; KENNEDY, 2016, p. 25).
[3] Ver Capítulo 13 “Multi-club ownership: um novo estágio da globalização dentro do futebol”, de João Ricardo Pisani.
[4] Ver Capítulo 11 “Faixa, rota e bola: o futebol como instrumento de soft power chinês” e Capítulo 12 “Soft power e futebol: os casos de Catar, Emirados Árabes Unidos e Arábia Saudita”, ambos de Emanuel Leite Junior e Carlos Rodrigues.
[5] Ver Capítulo 3 “Sociedades anónimas deportivas no Chile: o declínio do futebol social”, de Sebástian Campos Muñoz.
[6] A bem da verdade, o Exxel Group não “investia” no Vitória. Apesar de ter se tornado proprietário da maior parte da Vitoria S.A. a partir do ano 2000, o aporte de 12 milhões de dólares estava disponível como crédito a juros de 8% a.a.. Cerca de 60% desse montante foi utilizado, em um contexto de crise generalizada no futebol brasileiro, mas o resto desse valor foi bloqueado pelo credor unilateralmente, impactado pela crise cambial argentina que originou a sua falência. Ver: CARNEIRO, Paulo. “A vantajosa recompra das ações do Vitória S.A feita em 2004”, Blog de Paulo Carneiro. 30 mar 2010.
O post que segue corresponde ao tópico “Dimensão política-ideológica”, terceiro item dos cinco presentes no artigo “Clube-empresa: histórico, impactos reais e abordagens alternativas”. Este artigo, de minha autoria, é o texto introdutório do livro Clube Empresa: abordagens críticas globais às sociedades anônimas no futebol, lançado em junho de 2020 pela Editora Corner. Trata-se de uma coletânea de artigos cujo sumário segue após o texto.
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Muita coisa acontece entre a concepção de uma ideia e a aprovação de uma lei. Modelos jurídicos tendem a ser moldados pela correlação de forças conjuntural do parlamento que legisla sobre ela. Os modelos dos países elencados não apenas são consideravelmente distintos, como também possuem suas realidades particulares como ponto de partida, as suas características sociopolíticas como meio e a decisão particular de cada clube como a camada mais superficial e visível desse processo.
Como dito anteriormente, a ideia de clubes como empresas está alicerçada em concepções ideológicas de natureza políticas muito sólidas e coesas. O próximo item busca revelar essa relação.
Dimensão política-ideológica
Utilizado de forma exaustiva, repetitiva e, muitas vezes, meramente protocolar por seus críticos, o termo “neoliberalismo”, ou “pensamento neoliberal”, é comumente considerado equivocado e inexato por aqueles que nele seriam enquadrados. Pouco importa aqui a terminologia consensual que vai evitar que o leitor feche este livro logo nas suas páginas iniciais. Conceitos tomam a forma de termos para resumir longas cadeias de raciocínio. Importa menos a terminologia que mais agrade a uma ou outra linha intelectual do que a concordância inevitável da gravidade da ruptura provocada pela “renovação” do pensamento liberal. Esse novo liberalismo submeteu seus seguidores a um profundo reenquadramento conceitual, mesmo que não se percebesse.
Muitas ideias atravessam os tempos de forma silenciosa, expressadas e encampadas por interlocutores que podem ignorar suas raízes. No caso em questão, da defesa de que clubes de futebol se transformem em empresas, aparenta muito mais terem sido objeto de assimilação osmótica de um discurso que arroga tecnicidade apolítica, do que necessariamente uma reivindicação consciente de um modo de enxergar a realidade. O que friso é que essas são crenças oriundas de um fundo ideológico muito mais profundo e que existem conexões muito sólidas entre essas concepções.
Perry Anderson (2012, p. 29-30) definia uma das características desse movimento como uma aversão à “política”, dentro de um conceito filosófico muito específico que, na verdade, significava a denúncia da própria ideia clássica de democracia. Uma linha político-filosófica contrária à ampliação do poder decisório ao que se entendia por “massas”, cuja fonte de poder residiria no número, no volume, e não no saber. A rejeição não era necessariamente às formas institucionais em si, mas aos modos como estavam sendo aceitos os processos decisórios de sua constituição. Daí a defesa de uma individualidade radical contra a “servidão”.
Desse modo, “democracia” é um conceito relativo, enquanto que a “liberdade” não. Para combater tal servidão da imposição coletiva, seria admissível a instauração de um regime de caráter autoritário e centralizado, por ser mais suscetível à eficiência pretendida pelos modelos econômicos desejados. Anderson (2012, p. 35) revela como influenciadores intelectuais importantes dessa linha eram totalmente francos quando afirmavam que a instituição democrática, como estava concebida, conduzia a sociedade a uma ordem totalitária. Neles, totalitarismo se opõe à liberdade, autoritarismo se opõe à democracia. Era perfeitamente cabível aceitar um “autoritarismo garantidor das liberdades”. Um conceito muito específico de liberdade, calcado em uma crença absoluta da concorrência de mercado como motor de progresso.
Essa renovação do pensamento liberal, cujos debates inaugurados nos anos de 1930 e de 1940 foram decisivos, não pode ser perdida de vista em sua importância histórica. É comum remeter como ato fundacional desse movimento político e econômico de renovação do pensamento liberal a partir da Sociedade Mont-Pèlerin, fundada em 1947 por Friedrich Von Hayek, seu mestre Ludwig Von Mises, Karl Popper, Milton Friedman, dentre outros. Mas Pierre Dardot e Christian Laval (2016, p. 71) defendem que se leve em consideração o papel importante do Colóquio Walter Lippmann, ocorrido em Paris, com vários desses nomes, no ano de 1938. Lá, pela primeira vez, o termo “neoliberalismo” é utilizado, já dentro do espírito fundacional de um movimento, que apenas se consolidou em Mont-Pèlerin, após o fim da guerra.
Ainda que tenha caído em desuso, o fato é que seus primeiros agitadores almejavam redefinir o liberalismo em sua renovação neoliberal. A sua formação é oriunda de um período de grave crise no campo que acreditava estar “ao centro” do espectro político, se opondo em ambos os flancos pelos “totalitarismos” de esquerda e de direita – a ameaça socialista internacional e o trauma recente do horror nazifascista. Mas a grave crise também estava no próprio entendimento da raiz fundamental do pensamento liberal: ao longo de muito tempo dominado por uma tendência conservadora que dava ao mercado uma acepção “natural” e, portanto, não passível de ser provida de uma intervenção estatal – que seria até ali invariavelmente negativa, independente de sua finalidade –; esse campo buscava se reformular sob novos marcos. Depois da grande guerra, novamente Perry Anderson (2012, p. 44), “o antigo mundo político de governantes proprietários fundiários, eleitorados limitados, orçamentos modestos e moedas estáveis desabou”.
O domínio do direito se torna um elemento central para a eliminação dessas crenças naturalistas sobre a lógica de mercado. Entender a economia como um domínio isolado da política era um equívoco, pois o mercado era, em suma, um produto do direito. Um equívoco que acreditavam estar no cerne da permissividade que gerou o crescimento do socialismo e de outras práticas “niveladoras”. Contratos estabelecem mercados e protegem a propriedade, o direito dá validade e estabilidade aos contratos. Não haveria nada de natural na constituição deles. Seu desafio era colocar isso em prática, a partir do Estado, sem extrapolar suas competências, sob o risco de contaminar-se de um sedutor desejo de intervenção. O laissez faire não simplesmente existiria, ele precisaria ser constituído.
Esse liberalismo renovado precisava então formular uma ideia de Estado que nunca esteve no cerne das discussões intelectuais desse campo político e teórico. Era preciso deixar de lado o espontaneísmo, para elaborar um programa político, uma agenda concisa e disposta a formalizar os dispositivos capazes de fazer da ordem de mercado uma ordem estabelecida. Um liberalismo disposto a elaborar, anotam Dardot e Laval (2016 p. 85), um ‘“intervencionismo liberal, um ‘liberalismo construtor’, um dirigismo do Estado que convém distinguir de um intervencionismo coletivista e planista”. Caberia a esse intervencionismo liberal garantir o equilíbrio do jogo da concorrência em regras claras, proporcionando à sociedade a chance de colher os “benefícios da competição”.
Pierre Dardot e Christian Laval são precisos ao observar que esse movimento opera a construção de uma nova “racionalidade governamental”, ou uma “governamentalidade”. Não apenas uma doutrina, mas o “desenvolvimento da lógica do mercado como lógica normativa generalizada, desde o Estado até o mais íntimo da subjetividade” (2016, p. 34), uma racionalidade que tem como característica principal a “generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (2016, p. 17).
O liberalismo renovado olha de longe seus adversários ideológicos, disseca-os e percebe que a produção de um “novo homem” também era objeto de sua ambição. Suas ideias não atravessam o tempo apenas por aderência natural e consciente, mas constroem um mundo onde não parece ser possível viver sem aderi-las. Cada sujeito é um empreendimento que determina seus concorrentes e parceiros, não mais em relações sociais. O princípio da concorrência atravessa verticalmente todas as escalas da vida e da sociedade: nas políticas públicas, nas relações econômicas mundiais, na subjetividade dos indivíduos. E também do futebol.
Não é preciso ir muito longe para perceber que essas são as bases ideológicas que, transferidas para o campo do futebol, atacaram as associações civis sem fins lucrativos, com suas estruturas “políticas” eleitorais inadequadas ao futebol-negócio que florescia nessa conjuntura de crescimento econômico sem precedentes. Em sua contraposição, nada menos seria possível do que a constituição de uma ordem na qual imperasse o anseio individual pelas conquistas e riquezas, única via politicamente saudável e eficiente para o desenvolvimento: a lógica de mercado.
E daí, novamente, se fosse o caso para a aceitação de uma ordem autoritária e centralizada, capaz de controlar a “política” e atuar a favor do equilíbrio, da estabilidade e do crescimento, que assim fosse. A associação civil democrática então deveria ser expurgada da instituição esportiva produtora de riquezas. Cortada a raiz da “serfdom”, ao público dos estádios seria oferecido o produto de excelência, guiado pelos preceitos adequados de administração: uma norma técnica, apolítica e gananciosa de procedimento gerencial.
É importante relembrar que as associações, em geral, sempre foram regidas por princípios muito próximos de uma república liberal moderna, a constituição anteriormente explicada de três órgãos que dinamizavam funções semelhantes aos poderes executivo, legislativo e judiciário é o retrato mais cristalino disso. Maiores ou menores distorções desse organismo, por outra perspectiva política próxima, seriam parte do caro processo político demandado pela democracia. Mas, para essa abordagem mais radical do liberalismo renovado, a opinião até importaria, desde que a vontade popular não pudesse se tornar autoridade. Aqui, ser um fã de uma empresa produtora de espetáculo futebolístico é ter a “liberdade” de manifestar sua posição por meio do consumo ou do não consumo – essa forma de “protesto” autorizada aos cidadãos-clientes –, jamais do voto ou da voz.
Dentro desses pressupostos, a ausência de finalidade lucrativa não apenas impedia o clube de alcançar padrões superiores de eficiência administrativa, como também era responsável pela coexistência de valores e interesses conflitantes, muitas vezes espúrios, constantemente inconciliáveis, portanto, nefastos. No seu lugar, uma sociedade dirigida por finalidades lucrativas seria capaz de suplantar as diferenças e congregar os anseios, oferecendo óbvios benefícios aos seus proprietários, e gerando vantagens aos seus consumidores. Definitivamente, mais do que uma questão operacional, a transformação de clubes em empresas também foi um debate profundamente político e ideológico.
Falta, entretanto, uma abordagem escalar. Esses pressupostos consideravam que a concorrência “generalizada e sem tréguas”, mas em situações leais, resultaria na vitória dos mais aptos. A grande questão aqui é que o mérito esportivo é absolutamente transplantado pelo mérito econômico. Os menos aptos, portanto, teriam o fatal e inevitável destino da sua extinção. Já compreendíamos a total ausência de equivalência entre os resultados esportivos e os resultados financeiros no futebol, sob essa racionalidade, então, se produz uma razão ainda mais inadequada.
Quando esse liberalismo renovado ganhou a forte marca de distinção da “Escola de Chicago”, seus atores políticos-ideológicos já estavam articulados de forma muito concisa. Dos primeiros anos do regime ditatorial de Augusto Pinochet no Chile, Milton Friedman, prócere dessa instituição, discípulo de Hayek e um dos nomes fundadores da Sociedade Mont-Pèlerin, é um nome muito recorrente dos círculos intelectuais político-econômicos. O país sul-americano sempre é destacado como “laboratório” das ideias neoliberais, mas também é de onde tiramos os melhores exemplos de como as novas propostas para um futebol de empresas tem fundamentos políticos-ideológicos profundos.
A participação de Friedman na formação de uma nova elite intelectual e política daquele país foi diretamente realizada pela Fundación de Estudios Económicos BHC, ligada ao Banco Hipotecário de Chile (BHC). Essa instituição, então quase centenária, foi extremamente relevante dentro desse período histórico, publicando “Milton Friedman em Chile: Bases para un desarrollo económico” em 1975, uma obra-símbolo das ideias que norteavam os grupos de apoio ao regime de Pinochet (quando ainda era possível considerá-lo como uma “salvação” à ameaça socialista de Salvador Allende). Essa obra conta com a íntegra de uma carta enviada por Milton Friedman a Augusto Pinochet. Foi do BHC que saiu o grupo apelidado de “Los Pirañas”, uma fração da versão chilena da marca de distinção intelectual e gerencial mundialmente conhecida como “Chicago Boys”.
Daniel Matamala (2015, p. 84) observa o imenso peso intervencionista do regime: “O processo que girou o país em 180 graus em seu desenvolvimento político, econômico e social, praticamente não deixou área da vida nacional intocada”. O regime manobra politicamente para “eleger” um novo presidente da Asociación Central de Fútbol, e empossa o general Eduardo Gordon Cañas.
Mas são “Los Pirañas” as peças-chave do episódio em que o ditador Augusto Pinochet se sentiu ameaçado pela eleição no Club Social de Deportivo Colo-Colo em 1976, clube mais popular do país. A chapa favorita era formada por Antonio Labán, que contava com apoio público de Tucapel Jiménez, sindicalista, opositor e figura incômoda ao regime.[1] A solução encontrada por Pinochet foi criativa: suspendeu as eleições no Colo-Colo, alegou que as altas dívidas do clube exigiam uma intervenção, e designou o Grupo BHC para a função.
“Nessa época o predomínio dos Chicago Boys na equipe econômica já estava dado, e os novos grupos financeiros adquiriram cotas importantes de poder. Foi quando o governo decidiu levar suas receitas econômicas ao futebol”, contextualiza Daniel Matamala (2015, p. 176). Alberto Simián, então gerente da Financiera Nacional, (propriedade do Grupo Vial, como o BHC) foi o nome colocado pelo banco no Colo-Colo em 2 de abril de 1976.
As páginas da Revista Estádio exaltavam a iniciativa, estampando o novo gestor como alguém formado nos Estados Unidos, “um vencedor”, trajando terno e gravata. Simián declara que “Los Pirañas” estavam preparados para o desafio: “Sabendo como somos na área empresarial, sabemos que faremos bem. Se houvesse alguma dúvida, a menor dúvida, não teríamos aceitado”.[1] A manchete da matéria era “Empresas com camiseta”, uma clara alusão a essa nova ideia em formação. Matamala completa: “A decisão tinha uma lógica impecável: o que poderia ser melhor para legitimar a nova ortodoxia econômica, senão usando-a para tirar de seus problemas crônicos a instituição mais popular do país?” (2015, p. 176).
A experiência de gerenciamento privado imposta por Pinochet ao clube Colo-Colo foi desastrosa, para não dizer “altamente suspeita”. Para além da falta de tino para o futebol, Simián se complicou com promessas de títulos não cumpridas e jogadores em greve por conta de salários atrasados. Ao final de 1978, o Colo-Colo não tinha títulos e quase não tinha jogadores: apenas 10 atletas tinham contratos com o clube comandado pelos Chicago Boys. Em dezembro daquele mesmo ano, toda a cúpula do BHC renuncia. Exceto Alberto Simián, que teria a missão de recuperar o dinheiro investido pelo grupo.
O Colo-Colo saiu ainda mais endividado do que se encontrava antes da intervenção, com débitos milionários dos quais cerca de 60% eram devidos exatamente ao BHC, a instituição que assumiu a sua gestão para resolver tais pendências. É certo que regimes ditatoriais, clássicos falseadores históricos, tendem a não deixar registros dos seus feitos, mas estão devidamente marcadas as referências que os jovens Chicago Boys traziam na bagagem ainda em 1976, na defesa de que os clubes se transformassem em sociedades anônimas.[2]
Maior coincidência que isso, só o fato de terem fracassado redondamente quanto à missão à qual serviam: sob os desígnios de uma ditadura, a favor da liberdade de mercado e contra um clube de caráter democrático com uma diretoria eleita pelos membros de sua associação civil formadora. A conclusão deste artigo, e da obra que o hospeda, é de que tais pressupostos sequer se sustentam frente aos fatos. É na observação honesta dos atores políticos e econômicos que compuseram as castas proprietárias dos clubes de futebol que poderemos observar de uma forma mais concreta o fracasso dessas perspectivas. Principalmente, e acima de tudo, no que a propriedade de clubes de futebol ao redor do mundo revela da quase ausência de uma lógica de mercado nesse segmento.
Notas de fim
[1] Tucapel Jímenez era presidente da Asociación Nacional de Empleados Fiscales e militante do Partido Radical. Foi assassinado pela inteligência do exército em 1982.
[2] Vários outros clubes se encantaram com a ideia de um gerenciamento privado. O período se encerrou com um grave quadro de endividamento dos clubes locais.
O observador mais desatento provavelmente passou os primeiros dias de março surpreso com os diversos casos de paralisação de jogos na Bundesliga, a liga alemã de futebol profissional. Atendendo à determinação da federação local, árbitros interrompiam as partidas para reagir a gestos e mensagens vindas das arquibancadas. Para quem acompanha com maior afinco, os acontecimentos… Continuar lendo Futebol, ofensas e ofensivas na Alemanha: o que não se entende na revolta dos torcedores