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O saldo da seleção brasileira feminina na Copa do Mundo de Futebol: mais vitórias que derrotas

Por Soraya Barreto Januário

Este texto começou a ser escrito em dias muito dolorosos, dias que se seguiram a eliminação precoce da seleção brasileira de mulheres da Copa do Mundo de 2023, durante a fase de grupos, na Austrália e Nova Zelândia. Um resultado que ninguém esperava, nem nos piores pesadelos. Diante da infinidade de assuntos que poderia debater neste momento, uma fala sobre a eliminação que ecoou nas redes sociais digitais e na mídia hegemônica me chamou a atenção: segundo o tribunal da internet e da mídia esportiva, hegemonicamente masculina, a seleção feminina não podia, justamente agora, que tem “alguma” estrutura, decepcionar dessa forma. É interessante notar a misoginia que empacota este pensamento travestido de opinião. O deboche e o discurso de ódio é , de forma evidente,  fruto da estrutura machista que a nossa sociedade ostenta, somado ao discurso neofascista no qual este país foi parcialmente tomado. Caso estrutura ganhasse Copa, a nossa seleção de homens tinha a obrigação de ter muito mais estrelas que as cinco que ostentam no peito – e devo lembrar que a história do futebol das mulheres no Brasil é recente, começa profissionalmente quando a modalidade masculina já era tricampeã mundial.

Finalmente assistimos a mídia abraçar e publicizar este percurso, contando o histórico de  proibições, seja por força de lei, como o Decreto-lei 3.199 de 14 de abril de 1941, seja pelas invisibilidades pautadas em premissas patriarcais. Essa história vem sendo escrita e contada ao longo dos anos por pesquisadoras e ativistas do futebol das mulheres, como exemplos ressalto os trabalhos de Silvana Goellner (2003; 2005; 2021), Ludmilla Mourão e Marcial Morel (2005), Leda Costa (2017), Aira Bonfim (2019), Lu Castro e Darcio Ricca (2021) e meu último livro organizado em parceria com o Jorge Knijinik (2022). As motivações do afastamento, invisibilidade e proibições para que as mulheres  participassem da construção da cultura futebolística brasileira estão claramente associadas a premissas biologizantes, pautadas numa ideia de que a “condição de mulher” e a “natureza feminina” seriam impeditivas de certas práticas, dentre elas o futebol. Um claro mecanismo biopolítico de coerção e vigilância do corpo feminino. Retomo essa história aqui devido à grande influência que este fato histórico tem na falta de desenvolvimento e no apagamento das mulheres no mundo clubístico e futebolístico, bem como nas dificuldades enfrentadas pela modalidade até os dias atuais (Barreto Januário; Knijnik, 2022).

Se formos traçar um paralelo histórico mais recente, devemos lembrar que a Copa de 2015, no Canadá, pouco ecoou na mídia hegemônica, seja noticiosa ou publicitária, como demonstrei com outras pesquisadoras, em trabalhos realizados no OBMIDIA UFPE (Barreto Januário; Veloso, Cardoso, 2016). Assistimos  ao inegável crescimento, com  aumento em 533% de peças jornalísticas veiculadas sobre a competição (Barreto Januário; Lima; Leal, 2020), da Copa do Mundo de Futebol de 2019, na França. Além disso, foi a primeira em que todos os jogos da seleção foram televisionados. Lá em 2019 ouvimos também o Guaraná Antárctica, que já patrocinava a seleção masculina e feminina há anos, ativar o patrocínio com a seleção das mulheres de forma efetiva. Até aquele momento, essa havia sido a competição com maior visibilidade da história da modalidade e que permitiu o fortalecimento do debate em torno do futebol de mulheres no Brasil. Devo ressaltar que essa ascensão não ocorreu do dia para a noite, e se deve a muita luta, persistência e insistência de muitas mulheres, jogadoras, técnicas, jornalistas e ativistas do futebol de mulheres e ainda, dos feminismos. Somado a isso, o fenômeno conhecido como “primavera feminista” que observou o aumento do agendamento midiático de pautas e bandeiras feministas, permitiu também uma maior abertura da visibilidade da modalidade. O mau desempenho da seleção brasileira masculina em 2018 também foi um fator  que despertou o debate e gerou interesse de uma parte da população sobre a seleção de mulheres.

A Copa do Mundo de 2023, sem sombra de dúvida, está sendo ainda maior que o divisor de águas que foi a edição de 2019. Alguns pontos merecem ser ressaltados, como a cobertura para além dos jogos da seleção, com apresentação e biografia das principais atletas brasileiras e estrangeiras, acompanhamento das famílias das jogadoras nacionais e abordagem de tópicos da vida delas; cobertura dos jogos das outras seleções; publicidade de diversas marcas nacionais e internacionais; e claro, a ajuda inestimável do consumo on demand, streamings e plataformas digitais, como o canal no Youtube Cazé TV, que comprou o direito de transmissão de todos os jogos e montou um time respeitável de comentaristas, narradoras e repórteres, além de uma equipe que produziu conteúdo e entretenimento in loco. Tudo isso reforça a maturação de uma possível mudança significativa na cobertura midiática hegemônica e independente.      

Esse fato dialoga com a melhora significativa da cobertura esportiva entre as edições de 2019 e 2023 que, mesmo com uma pandemia no meio, parece ter diminuído substancialmente o chamado “movimento sanfona” – Ludmila Mourão e Márcia Morel (2005) defenderam a existência desse movimento em referência ao interesse sobre o futebol de mulheres na mídia, e observaram que a modalidade não teria encontrado um espaço permanente na sociedade e no jornalismo esportivo. As autoras pontuam ainda que este interesse tinha o comportamento de ondas, oscilando de acordo com a visibilidade  de certas competições, como é exemplo as Olimpíadas e a própria Copa do Mundo. Leda Costa (2017) observa o mesmo movimento, afirmando haver alguns booms de pautas do futebol de mulheres na mídia de massa, que acabam se dissipando quando as competições finalizam. 

Com efeito, posso dizer sem medo, que a Copa de 2023 marca um período de continuidade significativo. Como exemplos, posso citar que a maior rede de TV nacional agora apresenta os melhores momentos e gols do brasileirão feminino e a “equipe” de cavalinhos, mascote lúdico que apresenta a corrida entre os times na disputa do campeonato brasileiro, personagem do programa dominical Fantástico da Rede Globo, conta  agora com uma “eguinha” para falar do futebol de mulheres. Outro ponto de destaque é o aumento significativo de mulheres jornalistas cobrindo, comentando e narrando a Copa. Na própria TV Globo, que em 2019 tinha apenas Ana Thaís Matos comentando os jogos, compôs uma equipe com 11 profissionais entre narradoras, comentarista e a jornalista Bárbara Coelho que cobriu a Copa na Austrália (Sá, 2023). É um momento de consolidação do espaço da mulher, inclusive no jornalismo esportivo. São processos mediaticamente pedagógicos que começam a fomentar uma continuidade com consistência. Outro tópico a destacar é o aumento de perfis em redes sociais digitais, sites e blogs, que além de ativistas produzem conteúdo especializado, como Dibradoras, Miga Esporte Clube, Passa no DM, @futebolfeminino.e-arte, @futebolporelas, @paginafutebolfeminino, @planetafutebolfeminino, entre outros. Somado a isso, importa ressaltar que a ampla cobertura da mídia de massa em torno da eliminação, com comentários, análises e críticas embasadas e duras é sinal de avanço também, já que por muito tempo a eliminação da seleção rendia no máximo uma chamada e notas menores, para além de comentários condescendentes, tratando a modalidade como café com leite, ao que finalmente a modalidade é vista de forma mais profissional com as cobranças devidas.

E voltando a falar em estrutura, o fato de que a seleção finalmente teve voo fretado, camisa com escudo próprio, linha de uniformes feitos para elas, a maior delegação da história do futebol de mulheres do Brasil com 31 integrantes e dentre eles, 18 eram mulheres (em 2019 foram apenas 4), devo dizer que ainda é o mínimo. Assistimos com alegria ao despertar de um novo cenário, fruto de muita luta, ativismo, briga e talento. Todavia, o momento é de cobrança, seja pelo futebol desastroso apresentado contra a Jamaica, seja por uma técnica inerte ao que ao mundo estava assistindo nas duas últimas partidas ou ainda pela apatia apresentada no jogo de eliminação. Cobrar e criticar é respeitar o futebol das mulheres, lamentar é respeitar a dor de ver uma saída precoce num momento histórico tão importante para a modalidade nacional. Marta merecia um final de carreira mais coerente com sua trajetória, não necessariamente precisava ser o título, mas um último ato digno de sua grandiosidade e este é um dos meus maiores lamentos.

Por fim, resta dizer que foram muitas conquistas sim, é preciso celebrá-las. Tivemos um número recorde de seleções disputando a Copa, pulamos de 24, em 2019, para 32, em 2023. Ampliamos o número de técnicas a frente das seleções, foram 12 contra nove na última copa. O futebol das mulheres segue vivo e precisa continuar lutando. São muitas lutas que precisam ser travadas ainda, como nos disse a rainha, “tem que chorar antes para sorrir depois”. Enxuguemos as lágrimas e sigamos!


Referências:

BARRETO JANUÁRIO, Soraya.; LIMA, Cecília.; LEAL, DanielFutebol de mulheres na agenda da grande mídia: uma análise temática da cobertura da Copa do Mundo de 2019Observatório (OBS*), v. 14, n.4, December, 2020.

BARRETO JANUÁRIO, Soraya; KNIJNIK, Jorge D. Novos rumos para as mulheres no futebol brasileiro. Futebol das mulheres no Brasil: emancipação, resistências e equidade, p. 434-458, 2022.

Bomfim, Aira. F. Football Feminino entre festas esportivas, circos e campos suburbanos: uma história social do futebol praticado por mulheres da introdução à proibição (1915-1941). 2019, Dissertação – Mestrado em História, Política e Bens Culturais, Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC), Rio de janeiro.

CASTRO, Luciana; RICCA, Darcio. Futebol feminista: ensaios, 2021.

COSTA, Leda. O futebol feminino nas décadas de 1940 a 1980. Revista do Arquivo Geral da Cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, n. 13, p. 493-507, 2017.

GOELLNER, Silvana. Bela, maternal e feminina: imagens da mulher na Revista Educação Physica. Ijuí: Editora UNIJUÍ, 2003. 

GOELLNER, Silvana. V. Mulheres e futebol no Brasil: entre sombras e visibilidades. Revista Brasileira de Educação Física e Esporte, 19(2), 143-151, 2005

GOELLNER, Silvana Vilodre. Mulheres e futebol no Brasil: descontinuidades, resistências e resiliências. Movimento, v. 27, 2021.

MOURÃO, Ludmila; MOREL, Marcia. As narrativas sobre o futebol feminino: o discurso da mídia impressa em campoRevista Brasileira de Ciências do Esporte, v. 26, n. 2, p. 73-86, 2005.

SÁ, Luiza. Globo aposta em diversidade e quer bater recordes na Copa feminina. UOL, 2023. Disponível em: https://www.uol.com.br/esporte/futebol/ultimas-noticias/2023/07/12/globo-aposta-em-diversidade-e-quer-bater-recordes-na-copa-feminina.htm Acesso: 02 ago. 2023.

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