Um Tabu com mais de 100 anos no Futebol brasileiro

“É isso mesmo. Enquanto o Campeonato do Nordeste e a Copa Sul-Minas vão digerir boa parte dos estaduais já em 2002, com o aval de clubes como Grêmio, Cruzeiro, Vitória e Sport, os campeonatos carioca e paulista devem segurar, pelo menos por mais um ano, a regionalização total do futebol brasileiro” (Revista PLACAR, 15.05.2001, p. 6).

A previsão falhou. Os campeonatos estaduais não foram digeridos. Renovaram-se e existem até hoje. As copas regionais, por outro lado, murcharam. O Rio-São Paulo e o Sul-Minas desapareceram. A Copa Centro-Oeste e a Copa Norte deram lugar à Copa Verde, um torneio de importância menor que conta até com a participação de algumas equipes semi-amadoras. Só a Copa do Nordeste manteve a mesma importância.

Então vamos falar de um campeonato estadual. Mais especificamente, do único campeonato estadual que ainda não teve um campeão do interior. É o campeonato carioca, um dos primeiros a serem realizados no Brasil. Começou em 1906.

Entre os seus campeões, estão quatro gigantes do futebol brasileiro (Flamengo, Fluminense, Vasco da Gama e Botafogo), os tradicionais América e Bangu e dois clubes pequenos, o São Cristóvão e o Paissandu. Todos da cidade do Rio de Janeiro.

Os clubes do interior, que mais chegaram perto de quebrar o tabu, foram o Americano e o Volta Redonda. São os únicos de fora da capital que chegaram a ser vice-campeões estaduais. Um, em 2002, e o outro, em 2005.

O Americano no Campeonato de 2002

O campeonato carioca de 2002 se viu cercado, desde o início, dos piores sentimentos. Foi ofuscado pelo Torneio Rio-São Paulo, naquela época em que os campeonatos estaduais pareciam prestes a serem engolidos e digeridos pelos regionais. A emissora de TV detentora dos direitos de transmissão decidiu não exibir suas partidas (em especial, as partidas das semifinais e da final, que foram realizadas no mesmo mês da Copa do Mundo 2002 Japão-Coreia do Sul). O regulamento da competição sofreu críticas severas e o presidente da Federação de Futebol do Rio de Janeiro, Eduardo Viana, voltou a ser tratado como o pai de todas as mazelas do futebol carioca (algo que já vinha acontecendo na imprensa há alguns anos, aliás). Aquele campeonato de 2002 parecia um campeonato amaldiçoado e fadado ao fracasso e à desgraça. Em alusão ao apelido Caixa d’Água, pelo qual era conhecido o presidente da Federação, o campeonato foi chamado de “Caixão 2002”.

Da cidade de Campos dos Goytacazes, veio a surpresa da competição. O Americano foi campeão da tradicional Taça Guanabara (primeira fase da competição) e da também tradicional Taça Rio (segunda fase da competição). Orgulho da torcida: foi o primeiro clube do interior a conquistar essas duas taças. É verdade que os clubes grandes, com presença garantida na terceira fase, não escalavam seus times titulares, o que ajuda a explicar por que os finalistas da Taça Rio foram Americano e Bangu. Mas os finalistas da Taça Guanabara foram Americano e Vasco da Gama. E entre os atletas vascaínos daquela decisão estavam os conhecidos Alex Oliveira, Léo Lima, Euler e Romário. O Americano venceu por 2 a 1, de virada.

Imagem 1: Americano, campeão da Taça Guanabara 2002.
(Fonte: internet)

Na terceira fase, o Americano estava no grupo A, ao lado de Bangu, Botafogo e Vasco da Gama. Ficou em primeiro lugar. Passou à fase seguinte (a semifinal) e superou o Friburguense. Assim, chegou à final ostentando um desempenho de enorme respeito. Vinte vitórias, quatro empates e nenhuma derrota, enquanto o seu adversário, o Fluminense, tinha doze vitórias e nove derrotas, além de cinco empates. Um desses empates foi contra o Bangu, na semifinal que virou escândalo. Os banguenses ficaram tão revoltados com a anulação do seu gol no fim da prorrogação que o clube impetrou uma ação judicial para anular a partida. O árbitro foi punido severamente. Não atuaria mais em competições da Federação de Futebol do Rio de Janeiro. Mas o público carioca pouco se importava com tudo isso. Estava preocupado mesmo era com a seleção brasileira, que jogou na Copa do Mundo um dia depois da semifinal entre Fluminense e Bangu. O Brasil venceu a Bélgica por 2 a 0 nas oitavas-de-final.

O processo judicial iniciado pelo Bangu só foi concluído em 2009. A semifinal não foi anulada.

O Fluminense, classificado para a final, adotou uma nova postura e transformou em prioridade máxima a conquista do título estadual. Era o ano em que o clube chegava ao seu centenário e a vitória daria realce à comemoração. Foi escalado o time titular para a decisão, disputada em duas partidas (ambas no Estádio do Maracanã, ambas sem exibição televisiva). E deu Fluminense. Vitória na primeira partida por 2 a 0 e na segunda por 3 a 1.

O campeão, em 28 partidas, juntou 47 pontos. O vice-campeão, com o mesmo número de partidas, juntou 64. O Americano nunca havia tido antes e não voltou a ter depois uma chance tão real de ser campeão do Estado. Vacilou na decisão, quando sofreu suas duas únicas derrotas no campeonato.

 Volta Redonda no Campeonato de 2005

No campeonato carioca de 2005, a surpresa foi o Volta Redonda. Chegou à final da Taça Guanabara (primeira fase do campeonato) e enfrentou o Americano. Aquela decisão, pela primeira vez com dois clubes de fora da capital, foi chamada de “Festa do Interior”. Confronto acirrado, só decidido na disputa por pênaltis, que o Volta Redonda venceu por 3 a 2.

Imagem 2: Volta Redonda, campeão da Taça Guanabara 2005.
(Fonte: GE – internet)

Na Taça Rio (segunda fase do campeonato), a capital se impôs. Um Fla-Flu decidiu o campeão em partida única. Vitória do Fluminense por 4 a 1.

Os campeões da Taça Guanabara e da Taça Rio partiram para a grande decisão estadual, em duas partidas no Estádio do Maracanã. E foi emocionante.

O Fluminense começou vencendo a primeira partida por 2 a 0 e parecia que o Volta Redonda seria tranquilamente reduzido à sua condição de clube pequeno. Veio, então, a reação surpreendente. O time do interior marcou quatro gols e o Fluminense só conseguiu diminuir para 4 a 3 aos 43 minutos do segundo tempo. O carismático Túlio, que havia feito história no Botafogo, agora fazia das suas no Volta Redonda e provocava os rivais com frases marotas após a vitória.

Na segunda partida, com mais de 63.000 torcedores no estádio, o Volta Redonda precisava apenas do empate para ser campeão e melhorou ainda mais a sua situação ao marcar 1 a 0 no início do primeiro tempo. Desde 2003 o time não perdia por dois gols de diferença. Sua torcida vibrava e sentia que o tabu estava caindo. Era um momento histórico.

Eis a decepção: o Fluminense empatou o jogo no fim do primeiro tempo e virou o jogo com um gol de Marcão. Aos 47 minutos do segundo tempo, quando todos já se preparavam mentalmente para uma dramática disputa por pênaltis, o goleiro Lugão falhou e permitiu a cabeçada de Antônio Carlos, que marcou o terceiro gol tricolor. Repetindo: o Volta Redonda não perdia por dois gols de diferença desde 2003. Deixou acontecer justamente na partida que o colocaria na história do futebol carioca e fluminense.

O técnico do Volta Redonda, Dário Lourenço, reclamou com dureza do árbitro. Também achou péssimo que o zagueiro Schneider e o goleiro Lugão tenham chegado a um acerto contratual com o Fluminense antes da partida. Um acerto que virou notícia. “Isso abalou os jogadores”, declarou Dário. Os jogadores do Fluminense, por sua vez, desabafavam e faziam graça com Túlio, que tanto os havia provocado.

Para quem acredita que uma espécie de barreira psicológica abate os jogadores de times pequenos em grandes decisões, o caso do Volta Redonda em 2005 é exemplar.

Os campeonatos cariocas de 2002 e 2005 foram os únicos em que clubes do interior se sagraram vice-campeões.

O campeonato carioca ainda é o único estadual do Brasil que nunca teve, como campeão, um clube de fora da capital. Alguns dizem que quando esse tabu cair, aí sim, o campeonato carioca poderá ser extinto. Outros dizem que quando isso acontecer, aí teremos certeza: o campeonato jamais será extinto.

Deixe uma resposta

Descubra mais sobre Laboratório de Estudos em Mídia e Esporte

Assine agora mesmo para continuar lendo e ter acesso ao arquivo completo.

Continue reading

Pular para o conteúdo