Como é facilmente perceptível por quem estuda a abordagem midiática do futebol, a paixão futebolística sobre determinado expoente do esporte – geralmente um jogador que é craque do seu time ou um técnico genial a ponto de ser constantemente vitorioso –, que compartilha sua aura com os torcedores apaixonados, parte sempre de uma narrativa contada por um emissor, e esse emissor pode ser tanto um comunicador de rádio, por exemplo, ou até mesmo o próprio atuante futebolístico (por meio de suas ações em campo). A questão é que nós, receptores dessa aura, estamos sempre sujeitos a abraçar essa narrativa, pois somos torcedores. E os torcedores são sempre movidos pela emoção. Talvez seja isso que destaque o futebol como um fenômeno social em meio a tantos outros esportes.
Em seu livro Cultura de Massas no século XX, Edgar Morin joga uma luz forte sobre essas narrativas apaixonantes que iluminam astros do futebol – e também outras estrelas midiáticas – e como essas narrativas podem mexer com uma torcida, com veículos de imprensa, com a vida do próprio astro e, inevitavelmente, com a rotina de toda uma sociedade envolvida. Chamada de “Teoria dos Olimpianos”, ela é desenvolvida sobre o prisma de que a cobertura midiática muita das vezes sufoca assuntos importantes – isto é, de interesse público – com matérias que vão abordar assuntos irrelevantes, mas que são de interesse de algum público específico (no caso, sobre esses astros do esporte). Só nos últimos meses, quantas vezes o cabelo do Gabigol foi pautado como assunto por grandes veículos da imprensa? E quantas vezes houve especulações, nesses mesmos veículos de comunicação, sobre qual música Neymar ouviria em sua caixa de som ao chegar no estádio? Aposto que muitas.
“No encontro do ímpeto do imaginário para o real e do real para o imaginário, situam-se as vedetes da grande imprensa, os ‘olimpianos’ modernos” – esse trecho retirado do livro de Morin nos situa bem sobre como a mídia costuma abraçar essas narrativas irrelevantes sobre os nossos “deuses do olimpo”. Porém, é claro que esse interesse da mídia passa por uma via de mão dupla, na qual o interesse de consumo do público puxa o interesse de abordagem da mídia e vice-versa.
Grande protagonista do jornalismo esportivo brasileiro, o jornalista Mário Filho entendia bem como abordar essas narrativas dos astros para trazer o fascínio do público. Se a prática esportiva era vista quase como um movimento aristocrata até o começo do século XX e os acontecimentos esportivos eram tratados pela imprensa com simples descrições e informações básicas sobre o evento, Mário Filho, em meados do século XX – quando o futebol já caminhava como um esporte pertencente ao povo –, abria espaços em seu jornal Crítica e logo após n’O Globo para as narrativas encantadoras do futebol. Entrevistas e depoimentos inéditos de jogadores, produção de caricaturas dos heróis e vilões do jogo, fotos chamativas sobre ocorridos (ainda não era tão comum nos jornais da época) e exploração dos bastidores das partidas, como buscar entrevistas dentro dos vestiários dos times, são algumas das inovações levantadas por Mário Filho e perpetuadas até hoje.

Mário Filho usou de seu poder como emissor para disseminar o futebol para a população; com histórias atraentes sobre as estrelas do futebol, ganhou a atenção de receptores e deixou-os ainda mais apaixonados pelo esporte. Afinal, o que seria Flamengo e Fluminense sem o místico termo “Fla-Flu” cunhado por Mário Filho? Quando Mário Filho escavou a mina das narrativas no esporte, acabou encontrando o grande diamante que dita a abordagem sobre a espetacularização do futebol, algo que Morin destaca bem em outro trecho de seu livro: “A imprensa de massa, ao mesmo tempo investe os olimpianos no papel mitológico, mergulha em suas vidas privadas a fim de extrair delas a substância humana que permite a identificação”.
O conceito de “deus olimpiano” vem da ideia de ser tratado como naturalmente superior – esse ponto vai ao encontro com os ídolos do do futebol. Um bom exemplo do funcionamento desse tratamento aos olimpianos aconteceu nos últimos meses quando diversos perfis em redes sociais aderiram ao “#NeyDay” e mudaram suas fotos de perfil para a foto do Neymar, a fim de apoiar o jogador na busca do título da Champions League.
“Os novos olimpianos são, simultaneamente, magnetizados no imaginário e no real, simultaneamente, ideais inimitáveis e modelos imitáveis; sua dupla natureza é análoga à dupla natureza teóloga do herói-deus da religião cristã: olimpianas e olimpianos são sobre-humanos no papel que eles encarnam, humanos na existência privada que eles levam” – nesse trecho, Morin exprime bem como a imagem de um ídolo se estabelece. Sabemos também que essa questão da idolatria é praticamente inevitável no futebol, pois ela envolve a paixão dos torcedores, que são marcados por seus heróis e vilões desportivos. Há de se exaltar essa aura mágica presente no futebol, mas também coibir as abordagens sobre o cotidiano desses ídolos quando elas ocupam o espaço prioritário de coberturas e discussões futebolísticas na grande mídia. É claro que a imprensa dará um sempre um grande enfoque sobre esses ídolos do futebol, pois eles não podem ser ignorados, tanto sob a perspectiva desportiva quanto midiática, que busca mais audiência. No entanto, transformar assuntos pessoais desses ídolos em notícias que se sobrepõem a outras informações estritamente esportivas não corresponde ao propósito da ação jornalística, que é dar prioridade ao interesse público.
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