O rádio e o futebol

Maracanã lotado, com festa das torcidas nas arquibancadas, revivendo os tempos de ouro de um dos mais tradicionais clássicos do futebol mundial, que segundo Nelson Rodrigues “nasceu 40 minutos antes do nada”. É noite de Fla-Flu pela final da Taça Rio e a cidade está em festa. Os gritos, os cânticos, a emoção são variadas. Audíveis. Isso, ao menos, para quem, como eu, escutou parte do jogo de quarta-feira (8) sintonizado pela Rádio Tupi do Rio de Janeiro.

A emissora, sob o pretexto de “passar mais emoção ao ouvinte”, incluiu à narração do excelente José Carlos Araújo, o Garotinho da Galera, um som de fundo de burburinho de torcida, gritos e cânticos que, inclusive, eram modificados a depender do momento de jogo. Menos extasiados no intervalo da partida, por exemplo, mais ensandecidos nos momentos em que a bola rolava.

Duas questões precisam ser ditas sobre tudo isso. A primeira é a de que o resultado ficou espetacular. Você ouvia, e de fato se imaginava acompanhando um jogo com estádio lotado. Com festa. Mas a segunda é o fato de que, mesmo tendo ficado bonito, empolgante, o artifício jamais poderia ter sido utilizado, a meu ver.

Não se trata de uma radionovela, de uma obra de arte, de uma peça de ficção. Trata-se, acima de tudo, de jornalismo, informação, fatos que estão sendo irradiados e noticiados para um público interessado pelo jogo, pelo que está acontecendo.

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E tudo bem que o ato de se assistir a – ou ouvir – um jogo de futebol estará sempre envolto ao prazer e ao drama que o esporte produz, mas isso não pode ser oferecido sem certos limites éticos. Afinal, o jornalismo esportivo (e uma transmissão de partida de futebol está incluída aqui) não deveria jamais incluir artifícios que afastam o seu público da realidade, dos fatos, dos acontecimentos, da análise crítica do que está posto no país.

Que tipo de radiojornalismo é esse que vende um mundo fantástico que simplesmente não existe? Onde a transmissão, como porta-voz privilegiada dos fatos, induz os seus ouvintes a imaginar um cenário diferente daquele que de fato acontece?

Ao ligar o rádio, estranhei. Depois, achei graça. Passado os primeiros momentos de estranheza, contudo, comecei a refletir. E pensei na gravidade que o episódio representa em meio a um país envolto a uma pandemia fora de controle, em que muitos dos seus governantes adotam um perfil negacionista e em que o futebol retorna sem as condições mínimas necessárias para tanto.

Como último exercício, alternei algumas vezes as transmissões da Tupi e da CBN Rio. O impacto era profundo demais. O que se fez na primeira não foi menos do que uma espécie de manipulação, uma apresentação do irreal como se fosse real. E por mais que ficasse obvio que aquilo era um artifício técnico, os efeitos me parecem danosos demais.

Quem ouviu o jogo pela Rádio Tupi e se empolgou com o clima falsamente festivo que foi construído, corre o risco de esquecer que ali do lado, no estacionamento do estádio, existe um hospital de campanha instalado em caráter emergencial onde todos os dias morre alguém vítima de Covid-19. Corre o risco de esquecer, também, que os jogos estão acontecendo sem torcida justamente por causa de todo este caos. Corre o risco de imaginar que está tudo bem num país em meio a um estado de calamidade pública.

Não se trata de uma mera vinheta, de um sinal sonoro, de uma técnica vocal apurada ou de um bordão engraçado que desde que o rádio é rádio é usado nas transmissões futebolísticas. Não, é mais do que isso o que aconteceu no jogo de quarta-feira.

E foi algo que me deixou muito preocupado, não me restam mais dúvidas.

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