A peste e o gol por vir

“O resto do almoço se desenrolou à procura de um assunto. Mas tudo se tornou muito fácil quando Rambert descobriu que o cara de cavalo era jogador de futebol. Ele próprio praticara esse esporte. Falou-se, portanto, do campeonato da França, do valor dos times profissionais ingleses e da tática em W. No fim do almoço, o cara de cavalo estava animadíssimo e tratava Rambert de tu, para persuadi-lo de que não havia lugar mais belo num time que o de meio-campo. ‘Compreendes’, dizia ele, ‘meio-campo é quem distribui o jogo. E distribuir o jogo, isso é futebol’. Rambert era da mesma opinião, embora tivesse jogado na posição de centroavante. A discussão foi interrompida apenas por um aparelho de rádio que, depois de ter entoado em surdina melodias sentimentais, anunciou que na véspera a peste fizeram 137 vítimas. Ninguém reagiu na sala. O homem com cara de cavalo encolheu os ombros e levantou-se. Raul e Rambert imitaram-no.”

Estes curiosos acontecimentos ocorreram no indeterminado ano de 194…, na cidade argelina de Orã. Planejava-se então uma fuga. Raymond Rambert, jornalista que vivia do outro lado do Mediterrâneo, em meio aos ardores e amores da metrópole parisiense, vira-se aprisionado de maneira repentina por uma situação terrivelmente insólita: enquanto buscava informações acerca das condições de vida dos árabes locais para um grande periódico francês, uma peste passou a se alastrar assustadoramente pela urbe africana, levando seu prefeito – não sem antes muito hesitar, como sói acontecer – a declarar o fechamento total das fronteiras sob sua jurisdição. Suspendia-se, pois, o direito de ir e vir para além daqueles limites por tempo indeterminado. Após colecionar negativas pelas vias oficiais quanto ao seu retorno à Europa, um já desesperançado Rambert passara a recorrer aos submundos daquele município aziago – apelando a desconhecidos como aquele “cara de cavalo” à mesa de um restaurante espanhol. Seria de algum modo possível conduzir um arranjo deste tom a uma conversa minimamente agradável, ainda que breve? Ora, voilà, ei-lo sempre na manga: o futebol! Adeus, cerimônias e impessoalidades! Por instantes, toda aflição fora colocada para escanteio, e o tétrico dera lugar ao tático. A questão é que não há celebração que se sustente onde impera a morte: sem muitas delongas, o rádio – uma das únicas pontes ativas com o exterior – logo lhes lembrava que, porta afora, 137 pessoas mais deixavam de ser. A doença, insensível às venturas humanas, cumpria religiosamente seu rito funesto. Era hora de partir.

A cena acima compõe o enredo de A Peste, clássico instantâneo publicado originalmente em 1947, numa Europa em escombros devido às atrocidades impostas pela Segunda Guerra Mundial. Para quem é afeito a discussões do gênero, o livro costuma disputar com seu antecessor, O Estrangeiro, trazido à luz cinco anos antes, o posto de obra-prima do trabalho de Albert Camus. Franco-argelino como a infecta Orã que concebera (morto aos 46 num acidente de carro, em 1960, o autor não pôde viver a independência de seu país natal, havida somente em 1962), Camus seria laureado com o Prêmio Nobel de Literatura, a maior honraria do circuito oficial das letras, dez anos depois da disseminação de sua Peste – passível de ser lida tanto ao pé da letra, enquanto relato de vidas assoladas por uma epidemia mortal, como a representar metaforicamente uma França até havia pouco ocupada pelas não menos mortais tropas nazistas. Pois bem, foi justo a estas páginas que recorri quando me impus, aturdido, ao necessário isolamento social pelo qual estamos passando ao redor do globo – na miséria do possível a cada um – devido à propagação pandêmica da Covid-19, experimentando um estado de calamidade mundial inédito para as gerações posteriores àquela mesma guerra que um dia ardeu às retinas do escritor. A propósito, fazê-lo caiu no lugar-comum: na Itália, epicentro europeu da crise, A Peste foi alçada à lista dos mais vendidos sete decênios depois de seu lançamento; na França, que também vem perdendo milhares de cidadãos para o vírus, quadruplicaram-se as vendas do título em uma semana (1); por aqui, efeito similar levou a editora que hoje publica Camus a indicar um aumento de 65% em relação à mesma procura (2). Febre sintomática, infelizmente. A temática da contaminação como disseminadora da dor está presente no imaginário ocidental ao menos desde os gregos antigos – basta lembrarmos que a Ilíada, considerada o pilar fundamental da Literatura por estas bandas, tem início com as baixas que flechas infecciosas de um colérico Apolo impõem ao exército grego intentando vingar Crises, sacerdote ultrajado pelo rei Agamêmnon no acampamento de guerra próximo à Troia, e que Édipo Rei, a mais célebre das tragédias clássicas, representa a ruína de seu protagonista a partir da tentativa de livrar Tebas de uma misteriosa peste –, mas é decerto com Camus que ela encontrou uma versão terminante.

Fonte: blogbertrand.

Enquanto redijo este texto, na madrugada de 08 de abril de 2020, absorto em reflexões sobre o que poderá ser de nós, a chuva lava a vila em que moro, localizada à sombra de um melancólico Maracanã – como tantas vezes em sua história recente, gigante impotente forçado ao silêncio. As 137 mortes da rádio argelina de Camus ecoam de modo assustador no último noticiário nacional: tornamo-nos o primeiro país da América Latina a ultrapassar oficialmente a centena de perdas em vinte e quatro horas. No dia que acaba de findar, 114 famílias choraram a perda dos seus – em última instância, a despeito das diferenças de um país cindido, dos nossos (3). O prognóstico, sabemos, é dos piores. A fim de torcer a tarefa desta escrita na direção de algum alento, lanço-me a um futuro sem prazos imagináveis: que sensação nos tomará de assalto quando voltarmos às arquibancadas de nossa cidade, Orã dos tristes trópicos, a entoar cânticos ao longo do espetáculo singular que é uma partida de futebol?

2º - Corinthians: 20.702.001Corinthians encara Flamengo em busca de semana mais tranquila
Fonte: Portal R7.

Camus não me ajuda a pensá-lo apenas por sua contribuição à Literatura e ao Teatro. Ao lado de sua obra, há a sua própria vida (4). Antes de se tornar um craque com as palavras – digamos, meio-campista a distribuir o jogo –, ainda jovem ele sonhara em ser futebolista. Conta-se que, durante a infância paupérrima que teve, sua avó não lhe poupava reprimendas após as peladas que disputava pelas zonas populares de Argel, pois elas punham em risco a integridade dos parcos sapatos que o menino possuía. Quis o destino que, na universidade, Camus abandonasse em definitivo a pretensão de atuar em qualquer uma das dez posições móveis do jogo para se dedicar à derradeira proteção das redes: tornou-se goleiro da Racing Universitaire Algérois (RUA), numa época em que foi deveras reconhecido como bom jogador. Ao cabo, sua carreira foi abreviada – coincidência maldita nestes tempos de coronavírus – graças à ação de uma doença respiratória: a tuberculose, que havia tempos lhe acompanhava e por fim se agravava. De todo modo, a paixão pelo futebol o dominou ao longo de toda sua existência. São lindas as imagens registradas no Parc des Princes em outubro de 1957, em que Camus, um dos 35.000 presentes ao confronto entre Mônaco e Racing Club de Paris – clube com as mesmas cores do time universitário que defendera na Argélia –, expressa indulgência em face de uma reação irremediavelmente lenta do porteiro da equipe parisiense. Entrevistado depois do gol, Camus defende seu confrade das insinuações de culpa, afirmando em tom compassivo que é preciso assumir o encargo de atuar sob as traves para saber quão difícil é suportá-lo. Afinal, o goleiro que, uma vez humilhado, busca a bola ao fundo das redes e retorna ao seu posto de cabeça erguida age qual um Sísifo amplificado, a rolar sempre e novamente sua pedra ante a multidão que dele desdenha. Não é preciso muita imaginação para pintar um encontro entre Camus e Nelson Rodrigues, a dramatizarem juntos, envoltos na fumaceira de seus cigarros, defesas candentes e indeléveis em prol do mais descabido dos frangos.

Mortais, quando este pesadelo passar – e haverá de passar –, quando enfim pudermos experimentar a banalidade metafísica do primeiro gol pós-apocalíptico, que possamos novamente nos entregar sem receios ao abraço no desconhecido – um cara de cavalo qualquer, da Argélia ao Brasil de Oiticica, com o mesmo escudo ao peito –, sem receios de que este gesto fraterno nos condene a jamais participar de novas peregrinações aos estádios. Eis a verdade: embora absurdo – ou porque absurdo? –, jaz no futebol uma fonte inesgotável de sentido para a tragédia que somos. Camus bem o sabia. Sabemos bem todos nós.

Notas de Rodapé:

(1) O Globo.

(2) O Globo.

(3) Folha de SP.

(4) Folha de SP.

(5) Youtube.

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