Clubes-empresa no Brasil: por um contraponto nessa conversa

Diante da iminente aprovação da lei que estimula (ou talvez obrigue) clubes a terem donos, segue uma lista de fatos reais e questões sensíveis para rever tamanho entusiasmo.

Demorou, mas chegou. Coisa de 20 anos depois a pauta da transformação dos clubes em sociedades anônimas retorna aos corredores do Congresso. Bom, nunca deixou de estar: a lei está ali para quem quiser aderir, mas o movimento hoje é de recriá-la a partir de novos marcos para tornar a atividade “mais atrativa para investidores”, com condições mais sedutoras e estruturadas.

No noticiário o panorama é de uma verdadeira revolução libertadora para os clubes de futebol brasileiro, que agora se abrirão para o mercado, receberão investimentos vultuosos, e passarão a ser clubes vencedores. De alguma forma, torcedores dos 20 clubes da Série A, e mais alguns da Série B, estão achando ao mesmo tempo que vão ser campeões. E todo dia recebem textos, vídeos e áudios de que é isso aí, vai todo mundo ser campeão quando virar empresa. Juntos.

O contexto atual soa como uma velha história de Margareth Thatcher, ex-ministra britânica, falecida em 2013. No auge do seu prestígio político, a “dama de ferro” ganhou a marca de “Tina”, sigla para uma frase quase automática em seus discursos políticos à época: “There Is No Alternative”. Era isso e apenas isso: ao longo de 11 anos no poder, o seu discurso era basicamente dizer que aquilo o que fazia era o que era porque “não há alternativa”. Ou era, ou era.

Estamos vivendo um momento meio “Tina” no jornalismo esportivo brasileiro. Ao que consta, a nova movimentação legislativa vai ser a grande chance de mudar o futebol local, aliás, a única. As associações civis devem, porque devem, transferir seus ativos para uma empresa e passá-los a um “investidor”, pois só ele pode resolver as dívidas, só ele tem capacidade de gestão, só ele é livre dos vícios políticos que prejudicam os nosso clubes e nos fazem perder jogadores precocemente (?!).

A divergência agora é apenas se o modelo de um é melhor que o modelo de outro. Se vão colocar em prática um senhor programa de recuperação judicial criado para sanar as dívidas “dos clubes” (leia-se, para futuros compradores), ou se vão garantir uma década de isenção de impostos para aqueles que já estão com os acordos bem encaminhados, e com papéis assinados, só aguardando autenticação cartorial. Muito pouco, quase nada, se tem discutido em outras perspectivas. A julgar pelo que tem sido publicado nos principais veículos de imprensa do país, não há qualquer possível abordagem crítica ao processo. “Tina”, estamos apenas pensando como será. Mas será.

Enquanto isso, o mundo real está gritando em alto e bom som. Reverbera um barulho estridente em direção ao futebol brasileiro que anuncia as consequências dessa nova investida de transformação dos clubes em sociedades anônimas. Aprender com o erro dos outros é a forma mais inteligente de se viver a vida, mas, tudo bem, lá vamos nós para mais uma rodada dessa velha conversa.

Nunca vi essa pauta em tal estágio de hegemonia discursiva em quase 10 anos de estudos. Incapaz de testemunhar os eventos dos anos 1990, passei a estudar o tema graças àquilo que senti na pele como torcedor de um clube que foi parar na Série C poucos anos após ser tratado como clube mais moderno do país: o Esporte Clube Vitória, o primeiro a adotar o modelo de sociedade anônima e vender a maioria das ações para um grupo de investimentos estrangeiro, o argentino Exxel Group, lá nos idos dos anos 2000.

O noticiário de hoje é um espelho da Revista Placar do final dos anos 1990. Eu poderia ser um torcedor do Figueirense, do Belenenses, do Parma, do Málaga ou do Bury, que a dificuldade de acessar um conteúdo alternativo, um pouco menos entusiasmado e um pouco mais materialista, poderia me fazer mergulhar no sonho onde um investidor bilionário entra no meu estádio e profere: “entreguem as taças!”. Chegaríamos, enfim, ao paraíso, atingiríamos a nossa tão desejada catarse coletiva torcedora, razão de tanta dedicação, entrega e mobilização. Tina.

Abaixo responderei a perguntas que faço toda vez que leio, assisto ou ouço discussões sobre (odes às) e sociedades anônimas no futebol. Do churrasco antes do jogo ao agito da bateria na arquibancada, infelizmente, as notícias não são tão boas. E a história não é tão simples como as manchetes e os discursos dos “especialistas” enunciam.

1 – Transparência e eficiência?

Em algum momento da história do futebol uma chave foi virada, e ser um dirigente relacionado ao clube passou a ser um motivo de desconfiança. A “paixão” deveria ser deixada de lado, cedendo lugar para a “razão” do conhecimento técnico da gestão do negócio. Pior, os clubes deveriam deixar de ser associações, formato que proporcionou a grandeza do futebol de clubes, porque esses são modelos incapazes de lidar com a complexidade do negócio futebol.

Dessa forma, e em palavras mais diretas, os clubes deveriam ter donos alheios à história dos clubes, pois só assim essas instituições esportivas produtoras de riqueza poderiam funcionar a pleno vapor, livre da política (tema de logo mais) e deixariam de ser guiadas única e exclusivamente pelos resultados esportivos. A necessidade de levantar taças daria lugar à eficiência financeira, mas isso automaticamente seria recompensado com contas mais ajustadas, eficácia nos investimentos e um ambiente livre de “aventureiros”.

Importante lembrar que tudo isso começa na medida em que se solidificam as modalidades de televisionamento do futebol, o que alça o esporte a uma verdadeira máquina de girar dinheiro. Contratos cada vez mais sofisticados, anunciantes, patrocinadores, derrubada de normas que limitavam o número de jogadores estrangeiros. E salários cada vez mais altos, intermediados por essa nova “classe” dos agentes de jogadores. Era dinheiro demais na mão de “dirigentes amadores”, e não nas mãos de um punhado de bilionários, e as dívidas, um efeito dessa revolução televisiva a nível global, eram a prova disso.

Pioneira na aplicação dessa ideologia –  pois é disso que se trata, uma ideologia – a Itália criou a lei de societá per azioni (SpA) para o futebol em 1981, alegando a inevitabilidade da correção dos problemas da atividade no país: alto endividamento e intenso envolvimento da máfia com os clubes. Quarenta anos depois são inúmeros os casos de clubes falidos, repassados de mão em mão sem bons resultados esportivos, muito menos financeiros, endividamentos altíssimos e, óbvio, envolvimentos em atividades ilícitas.

O interesse financeiro privado, um argumento muito utilizado para defender a primazia de um ambiente corporativo frente a um ambiente associativo, essa noção quase teleológica da realidade, é umas das maiores lições que o Brasil pode ter de outros países. No mundo real, o futebol de empresas é um antro de fraudes financeiras, omissões judiciais, firmas instaladas em paraísos fiscais e movimentação de dinheiro de origem desconhecida.

Clubes espanhóis endividados foram compulsoriamente transformados em empresas em 1990. No vigésimo ano desde a lei, o panorama geral mostrava grandes forças locais, como Valência e Atlético de Madrid, com dívidas de cerca de meio bilhão de euros. Se as associações civis não deram conta do negócio e precisaram se transformar em empresas, o que se pode exigir agora das empresas de futebol que não dão conta do negócio? Dobrar a aposta na entrega do futebol ao gosto do mercado de ações? Definitivamente o modelo adotado não garantiu boas práticas de gestão nos clubes. Fechar as portas é a saída de uma empresa que fracassa. Agora imagine seu clube fechando as portas.

No Chile, a lei até chegou a atingir o Deportes Concepción, clube que foi vítima de uma fraude na sua primeira concessão após aprovação da lei. Um suposto grupo de investidores alemães prometeu arrumar as contas, liquidando as dívidas e construindo uma nova estrutura de treinamentos. Esse dinheiro sequer chegou ao clube quando o acordo foi desfeito menos de dois anos depois, mas custou o rebaixamento da equipe por perda de pontos após consecutivos atrasos salariais. Anos depois, um novo grupo surge com promessas e envolve a SADP em negócios que até hoje não foram compreendidos em seu inteiro teor. Ao que se sabe, empréstimos foram feitos no nome do clube e usados para outros fins. O Deportes Concepción foi desfiliado da federação chilena por conta dessas fraudes. O clube e a torcida são punidos, os “investidores” (que não investem) seguem livres.

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O caso poderia ter sido um aprendizado para o futebol de empresas do Chile, não fosse o fato de que pouco se sabe de concreto sobre a atual situação financeira dos clubes locais por motivos de: não estão sendo divulgados seus balancetes. “Após 12 anos de implementação da lei o panorama atual não é muito distante em termos de melhora na gestão. Sem ir muito longe, em 2016 a SVS [Superintendencia de Valores y Seguros] multou 13 clubes de futebol profissional por não informar sobre seus estados financeiros. A isso, soma-se a desfiliação de clubes emblemáticos de suas zonas como Deportes Ovalle e Deportes Concepción por problemas de solvência econômica e o sistemático descumprimento da lei, que coloca 14 clubes na mira da SVS por repetidas más práticas de gestão”, observa Rodolfo Vidal, em um raio-x das consequências das S.A’s no Chile.

Enquanto os médios quebram ou caem na mão de grupos criminosos, os grandes batem recorde de endividamento, ano após ano fechando no vermelho. Mesmo com resultados assim, são consecutivos os casos em que os então presidentes revendem as suas participações auferindo imensos lucros, mesmo em uma empresa em que foram incapaz de lograr resultados positivos, em campo ou fora dele.

2 – Como se contesta uma propriedade?

Uma coisa que precisa ser urgentemente desmistificada é a palavra “investidor”. Esse é um termo que confunde o debate, dá contornos de ato filantrópico, salvacionista, como se não se tratassem de pessoas interessadas em adquirir uma valiosa propriedade. O processo inicial de saneamento de dívidas, muito alardeado como benefício imediato dessa aquisição dos clubes, na verdade deveria ser tratado como mera obrigação para quem compra uma empresa. Ainda mais uma que já nasce com milhões de “clientes”, cujo afeto foi construído por mais de cem anos, e cuja relevância social e cultural confere ao seu proprietário um status único de visibilidade e poder.

Um clube de futebol associativo brasileiro, por mais aristocrático que seja, tem sua diretoria substituída quando fracassa em atingir seus objetivos. Seja pelo voto direto dos sócios, após um exercício completo, seja pela destituição ou renúncia desse dirigente. Por pior que seja um cartola, diferente de um dono de clube, quando ele é fracassado e vai embora, não leva o clube junto. Trocá-lo está dentro das regras de uma associação civil, mas não de uma empresa.

Em agosto o mundo assistiu chocado a história do Bury FC, clube de 134 anos, fundador do futebol inglês, excluído da liga e provavelmente ter suas atividades encerradas, enquanto o seu proprietário, Steve Dale, simplesmente dizia que sequer gostava de futebol e nunca havia pisado na cidade de Bury. Em paralelo, aqui no Brasil assistíamos o caso do Figueirense, que sofreu W.O por ato de greve de jogadores, que acusavam a diretoria de atrasos salariais e descumprimento no pagamento de premiações. Sob o status de empresa, o Figueira está sob o controle da Elephant, empresa de Claudio Honigman que ganhou a concessão de 20 anos do futebol do clube. Foram temas do Plantão SDT Na Bancada #04.

O que é possível fazer nesse caso? Por meses os torcedores do Bury suplicaram a Steve Dale a venda imediata para um novo interessado, de modo a impedir que o clube fosse fechado. Por algum motivo obscuro – e suspeita-se de que tudo isso  tenha sido premeditado –, Dale preferiu encerrar o clube, especular diante de uma situação caótica, e deixar torcedores órfãos. Independente do que estivesse por trás disso tudo, se tem algo que não se contesta no mundo em que vivemos é a propriedade. E clubes, a todo instante, estão virando propriedade de gente como Steve Dale.

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Estádio do Bury FC. Fonte: BBC.

O caso do Figueira hoje é um pouco diferente, mas não menos significativo. O acordo de concessão estabelecia uma série de metas que a Elephant não está nem perto de começar a buscar. Só há duas alternativas para o clube catarinense hoje: encontrar um comprador que convença a Elephant a abrir mão de sua participação (e a associação civil não dispõe desse capital), ou, como está escrito no contrato, ser rebaixado para a Série C e ter o futebol devolvido para a associação pela força da lei. Isso se a lei funcionar a favor da associação.

A primeira alternativa foi a escolhida pelo Vitória em 2006, citado logo no início do texto. Em 2004 a crise cambial da Argentina atinge o Exxel Group, que vê seu faturamento anual cair da casa dos 5 bilhões de dólares para menos de meio milhão. Com mais de 70 empresas espalhadas pelo mundo, o grupo financeiro evidentemente escolheu por deixar de investir o prometido no Vitória. Já na Série C, a nova diretoria do clube precisou negociar o pagamento parcelado da recompra das ações, para finalmente encerrar a Vitória S.A e devolver os ativos ao Esporte Clube Vitória. Até aí diversos jogadores já haviam saído de forma misteriosa, dentre eles o atacante Hulk, que defendeu a seleção brasileira na Copa de 2014. A Vitória S.A hoje acumula um passivo na ordem de 70 milhões de reais.

Na altura da produção desse texto, torcedores do Málaga faziam massivos protestos com os dizeres #AlThaniVeteYa (Se manda, Al Thani!), sheik catare que adquiriu o clube com muita festa no início dos anos 2010. Com o objetivo de entrar no mercado europeu, o sheik fez pesados investimentos no futebol do modesto clube da Andaluzia e o levou às quartas-de-final da Champions League 12/13. Após os tempos áureos, algo não funcionou como esperado nos planos do sheik. Foi impedido de empreender em determinados setores e tomou a brilhante ideia de punir o clube com isso, fazendo um desinvestimento abrupto, derrubando-o para a segunda divisão e largando-o às traças.

Os Al Thani nunca em sua vida se importaram em ganhar dinheiro com futebol, só gastar. Poderão passar décadas matando o Málaga e sua torcida, e não há o que fazer: a propriedade não se contesta.

3 – Estamos falando de um negócio?

O importante de falar do Málaga é que se trata de um “tipo ideal” que se instalou no futebol global, o “sheik árabe cheio de petrodólares” que vem para levar o clube às glórias. Hoje eles se instalaram em diversos estratos do futebol global. Dois deles são o Manchester CIty dos Al Nahyan, de Abu Dhabi, e o Paris Saint-Germain de Al-Khelaifi (que na verdade representa os mesmos Al Thani), do Catar.

Esses exemplos alienígena – que tanta gente teima em se apegar para dar provas da importância de transformar clubes em empresas – vem sempre acompanhado do Chelsea de Roman Abramovich, talvez o pioneiro desses, e o Manchester United, que desde 2005 pertence aos irmãos Glazer, norte-americanos notórios por agirem como tubarões em seus negócios.

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Fonte: Revista PEGN.

Com uma leve ressalva com relação aos últimos, que fizeram do Manchester United o clube mais endividado do mundo (ainda referente àquela longíqua aquisição de quase totalidade das suas ações), os outros três estão inseridos naquilo que muitos autores chamam de “soft power”. Um deles, Emanuel Leite Jr , explicou como funciona isso no SDT Na Bancada #24 ChinaBall.

Em miúdos, a conclusão daquela conversa foi de que os proprietários dos maiores clubes europeus não se guiam por lucro, não almejam rentabilidade e não se preocupam em fechar ano após ano no vermelho. Também não possuem muitos escrúpulos em deixar claro que o clube para ele é uma mera ferramenta de relações públicas, uma forma privilegiada de angariar capital social, relevância midiática, investidores para seus negócios e aliados geopolíticos no Ocidente. Isso, basicamente, é a regra no topo da pirâmide do futebol global. Frente aos seus outros objetivos e ao tamanho dos seus reais negócios – em setores como energia e petróleo, por exemplo – qualquer gasto com futebol é compensador. Estamos falando mesmo de aquisição de clube como “negócio”?

Nos estratos mais abaixo dessa pirâmide essa lógica ainda é visível, mas sem as glórias das taças. O único país que de fato restringe esses tipos de investidores é a Alemanha, onde, por lei, eles são impedidos de adquirir a totalidade dessas empresas. Mais da metade desses clubes devem estar obrigatoriamente sob o controle da associação civil, tema que abordamos no SDT Na Bancada #03 Alemanha 50+1, que contou com a participação de Fred Elesbão. Os clubes alemães estão entre os poucos que entram na lista dos pesquisadores ingleses David Kennedy e Peter Kennedy que conseguem encerrar temporadas sem gastar mais do que arrecadam. A economia política do futebol-negócio hoje é a da dívida, a do dispêndio. Palavras deles, não minhas.

Salvo aquele torcedor que mande às favas a racionalidade por uma taça, ou aquele sujeito interessado em conquistar alguns nacos dessa fortuna derramada nos maiores clubes globais, não penso que seja sequer razoável aceitar essa ordem das coisas. É, inclusive, por conta dessa estrutura de “gigante que gastam como se não houvesse amanhã, para seu dono atingir objetivos outros” que muitos clubes estão indo à falência nos estratos mais baixos das pirâmides europeias de futebol. Um futebol hiperinflacionado, predatório e insustentável. Onde entra o Bury FC na Inglaterra, o CF Reus da Espanha, e 40 dos 63 clubes que já disputaram a Serie A italiana.

Nessa altura não podemos concordar mais com a máxima do “não é apenas futebol”: é  corrupção e política também. E isso se expressa em diversas esferas, para além dos bilionários que buscam notoriedade no mercado europeu.

 4 – Livrar da “ingerência política”?

A acusação de que o modelo de associações civis é demasiadamente suscetível à ingerência política talvez seja a parte mais contraditória do lado de lá do debate. A formatação das leis das sociedades anônimas, em geral, ocorre em decorrência de grandes movimentações políticas – leia-se: jogos de cartas marcadas para beneficiar os ganhadores já determinados –, para além de uma série de vícios repetitivos e de relatos quase entendiantes de tão previsíveis.

Antes de ser colocada em prática em 1990, obrigando os clubes espanhóis a transferirem a totalidade de seus ativos para uma empresa, a lei das Sociedades Anónimas Deportivas (SAD), tema do SDT Na Bancada #22, já era maturada há mais de uma década dentro de determinados clubes. Dirigentes pouco afeitos às normas estatutárias almejavam a regulamentação de uma lei que propiciasse a conversão como uma forma rápida e prática de eliminar oposições. O caso mais evidente é o Atlético de Madrid, que no final da década de 1987 escolhia pela última vez um presidente de forma democrática, em um pleito com mais de 22 mil votos. O eleito, Jesús Gil, atuaria politicamente para aprovar as SAD e “jogar as urnas no lixo”. E quem virou o dono da empresa que herdou todos os ativo de um dos maiores clubes espanhóis? Ele mesmo, Jesús Gil.

Algo parecido aconteceu no Esporte Clube Bahia em 1998, quando torna ativa a “Bahia S.A” e repassa a maioria das ações para o grupo Opportunity. O clube foi rebaixado para a Série C, junto ao seu rival Vitória em 2005, mas a medida muito serviu para a eliminação política da oposição da família Guimarães, que só viria a ser removida do poder por uma intervenção judicial no ano de 2013. Investidor majoritário daquela sociedade anônima e dono do Opportunity, o empresário Daniel Dantas dispensa maiores apresentações e detinha 2/3 da propriedade do clube antes de ir preso por envolvimento em crimes revelados pela Operação Satiagraha.

“Ingerência política” de verdade também pode ser o caso visto no Clube de Futebol Os Belenenses, de Portugal, tema do SDT Na Bancada #08, onde conversamos com o sócio Edgar Macedo. O exemplo é especial porque mostra duas vertentes muito interessantes desse fenômeno no futebol das sociedades anônimas: o uso dos clubes para corrupção e a manipulação da justiça para benefício próprio. O Belenenses foi vendido para empresa Codecity Sports Managment, do empresário Rui Pedro Soares, sob o acordo de prioridade na recompra dessas ações, se assim o clube entendesse ser o ideal. Negado pela CodeCity o processo de “devolução” dos ativos, o caso foi parar na justiça, que deu ganho à empresa, ainda que tudo isso significasse rasgar o contrato estabelecido entre comprador e associação civil (atenção torcedor do Figueira). Os sócios do CF Os Belenenses acabaram optando por criar um novo time para disputar a última liga portuguesa, buscando se desvincular do time da SAD comandado pela Codecity. No meio desse imbróglio, se descobriu que Rui Pedro Soares utilizou o Belenenses para transações suspeitas investigadas na Operação Marquês, que expôs as entranhas da política portuguesa.

Poderíamos falar também do caso das sociedades anônimas do Chile. Principal impulsionador da lei das Sociedades Anónimas Deportivas Profesionales (SADP), o então senador Sebastián Piñera aparece como um caso de “ingerência política” brilhante relacionado à transformação dos clubes em sociedades anônimas. Foi um dos principais autores de uma reintepretação de uma lei onde o Servicio Interno de Impostos passou a cobrar tributos retroativos sobre premiações e luvas em assinaturas de contratos entre clubes e jogadores, datados de mais de duas décadas atrás. O fato “criou” uma dívida de dezenas de milhões para os clubes, tornando-os insolventes, e colocou o tema das SADP na prioridade da pauta, cuja participação de Sebástian Piñera foi implacável. Seis meses depois estava promulgada a lei que convertia clubes em empresas.

Às vesperas da sessão que votou pela aprovação da lei, o mesmo Sebástian Piñera já havia se tornando sócio majoritário da Blanco y Negro S.A, empresa que passa a controlar o Colo-Colo, maior e mais popular clube do país. O Colo-Colo se tornaria uma ferramenta indispensável para que Piñera se tornasse, cinco anos depois, presidente da República do Chile. Com a ajuda do pesquisador Sebastián Campos Muños e com Fernando Monsalve, membro do grupo Colo Colo de Todos, tratamos de tudo isso no SDT Na Bancada #30 Chile SADP.

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Sebástina Piñera (à direita), com camisa do Colo Colo. Fonte: En Cancha.

O uso de um clube para fins políticos também foi algo visto na Itália, onde Silvio Berlusconi aliou seu império midiático à popularidade conquistada com a propriedade do AC Milan, clube que posteriormente viria a abandonar, antes de vender para um grupo chinês envolvido em atividades ilícitas e afundar no cenário do futebol europeu. Mas vamos continuar no Chile para falar do ponto que mais importa ao torcedor: os resultados esportivos.

 5 – Parar de perder jogador e elevar o patamar local?

Nossas associações são maiores que as empresas chilenas ainda hoje. Do lado de lá dos Andes, os clubes sequer disputam títulos ou mesmo atletas. Por que? Temos um dom divino? Talvez aqui seja interessante falar como todo esse debate depende de uma coisa cara a quem deseja analisar as coisas com seriedade: macroeconomia.

Não é muito difícil de entender, mas uma empresa posicionada em uma economia mais frágil, tende a ter dificuldades de competir com uma empresa de um país desenvolvido. Em termos de clube de futebol e da lógica dessa indústria, esse critério estrutural é ainda mais grave, dado que os clubes, por mais que internacionalizem seu capital, ainda estão circunscrito a uma engrenagem que é a competição local, o quanto ela vale, e o quanto a TV paga.

Supor, em qualquer hipótese, que o futebol brasileiro se empresarizando tenderá a disputar jogadores com o mercado europeu – onde se paga em euro, onde se arrecada dezenas de vezes mais, que é assistido em todo o globo e lhe gabarita a reivindicar vaga na elite global – é no mínimo inocência. Ou má fé, para aqueles que se proclamam especialistas para apontam isso como benefício direto e imediato da entrega dos clubes para um investidor privado.

Por mais que seja um segmento cheio de particularidades, capaz até de passar muitas vezes imune a crises, a indústria do futebol é previsível. Atletas sul-americanos se dispõem a jogar no segundo ou terceiro escalão europeu porque, queira ou não, ainda é um escalão europeu. Clubes que jogam Champions League, ligas menores que fazem intercâmbio anual com as maiores ligas do mundo e toda uma rede de relações favorável para usar de trampolim rumo à elite. Ninguém se muda para Portugal, Ucrânia, Rússia, Bélgica, Suécia ou Dinamarca para jogar lá a vida inteira.

Outro ponto muito mal colocado é o bastidor dessa saída desenfreada de jogadores para outros países. A depender da análise que hoje domina o debate, dirigentes amadores vendem jogadores de forma precoce para evitar fechar o ano no vermelho e pagar salários atrasados, quando na verdade a estrutura é muito bem definida há anos, com loteamento das divisões de base, com as comissões milionárias que ficam na mão dos empresários, e a lógica da escassez que domina o futebol. Jogadores não podem perder oportunidades, empresários tampouco, sobretudo uma chance rápida e certeira de pisar na Europa. Isso não vai se alterar com  os clubes sendo transformado em empresa.

Ou pior: isso pode ser agravado por uma lógica onde acionistas tenderão a exigir resultados financeiros imediatos, onde as dívidas precisam ser eliminadas o mais rápido possível para a empresa passar a garantir dividendos, onde uma lesão do craque pode arruinar o ativo, onde um rebaixamento pode derrubar o faturamento para menos da metade, etc, etc, etc. Nada garante que esse mal será sanado e o Chile, aqui do lado, é uma prova.

Um país com futebol de empresas segue perdendo seus principais atletas para Argentina e Brasil, com seu futebol de associações. Segundo dados do CIES Football Observatory, o Chile é o 44º maior exportador, com 82 atletas espalhados pelo planeta, ao menos 25 deles estão no México, destino que passa longe de ser uma opção para brasileiros. Uma importante observação sobre o mesmo ranking: o Chile também estaria como o 20º maior importador, sendo 179 estrangeiros. Nada menos que 122 deles são argentinos, produto de um fenômeno já denunciado até pela Administración Federal de Ingresos Públicos (AFIP) da Argentina.

Tratam-se de manobras de “triangulação de passes”, onde um jogador é levado para o futebol chileno para ser vendido sem que incidam impostos existentes sobre o setor na Argentina. Terceiros maiores exportadores do mundo, empresários argentinos colonizaram o futebol chileno utilizando clubes-empresa para lucrar mais com a venda desses atletas para o exterior. Diversos desses atletas jamais entraram em campo com a camisa desses times, mas foram envolvidos em um esquema de pagamento de recompensas por favores. Dentre os mais famosos estariam Gonzalo Higuain e Ezequiel Lavezzi.

Dentro do campo o resultado para o futebol chileno é ainda mais decepcionante para os entusiastas das sociedades anônimas. Nos últimos oito anos, apenas duas equipes chilenas se classificaram para as oitavas de final da Copa Libertadores. Desde a adoção das SADP, as únicas finais foram o título da Sulamericana de 2011 pela Universidad de Chile, e o longíquo vice-campeonato da Libertadores de 2006 atingido pelo Colo-Colo. São resultados muito inferiores às duas finais e quatro semifinais atingidas por quatro diferentes clubes do futebol de associações do Paraguai.

Já hegemônicos no futebol continental, o que poderia servir de parâmetro para brasileiros e argentinos que adotassem um modelo de sociedade anônima? Como é improvável que a estrutura se altere ao ponto de nos iludirem com a disputa de igual para igual em uma Champions League, infelizmente vai ser difícil medir o grau de melhora ou de piora. E aqueles que estão esperando a mudanças da lei da mamata para S.A no futebol se consolidar já estão claramente cientes disso.

Para competir com o mercado europeu a única coisa viável para os clubes de futebol brasileiro é rezar para a descoberta de uma nova fonte de energia, ou uma commodity exclusivamente brasileira que se torne indispensável para a vida humana ou a colonização de um novo planeta por essa república federativa tão diversa. Daqui pra lá não vai ter nada, nem mesmo o futebol, que deixe qualquer pessoa de bom senso confiante de que o Brasil se tornará uma potencia econômica global ao ponto de alçar seu futebol e seus clubes ao mesmo status e torná-los economicamente competitivos aos da Europa.

 6 – Dono é muito diferente de mecenas?

Refrescando a memória após esses longos pontos:

O endividamento dos clubes não se resolve, pois o problema é mais grave, generalizado, sistêmico. O futebol é uma indústria deficitária mesmo em economias desenvolvidas e isso precisa ser reconhecido urgentemente.

Os clubes grandes serão assediados por teóricos investidores interessados em usá-los como um ferramenta de relações públicas: tanto para fins políticos, como para fins financeiros.

Os clubes de médio porte tendem a se endividar ainda mais, quebrar e muito provavelmente fechar, dado que seus quadros associativos são de peso e a falta de resultados e investimentos leva a crises e as suas receitas não são suficientes para atingir um grau mais alto de competitividade.

Os clubes de pequeno porte serão engolidos por grupos de empresários interessados no mercado de atletas, utilizando-os como vitrine ou para triangulação de direitos econômicos, algo que já é bastante comum no futebol do interior de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais.

Os clubes-empresa sem quadro social tenderão a suplantar os clubes de grande quadro social mas de menor poder aquisitivo, dado o passivo histórico, o custo com patrimônio como sede social e estádio (que sofrerão resistência para serem vendidos). E aqui estamos falando dos clubes nordestinos frente a clubes-empresa dos estados mais ricos, principalmente.

A relação entre clubes e torcedores mudou drasticamente, principalmente diante incapacidade de se contestar a S.A que comanda os clube. Comandos esses que são mais duradouros, menos afeitos a mudanças e, agora, juridicamente impossíveis de serem desfeitos – afinal, no mundo atual a justiça não contesta a propriedade.

Os resultados esportivos não se alteram de forma consistente, os avanços em estrutura não possuem impactos reais, as dívidas e os problemas financeiros se agravam. A nível internacional a mudança de patamar é ínfima.

Entregar instituições centenárias para um indivíduo tem qual finalidade, diante desse cenário? Os cenários menos graves apontam clubes que não funcionam de fato como empresas dirigidas para o lucro. Proprietários de grandes clubes em geral revertem seus dispêndios com ganhos políticos e financeiros de outras ordens, mas se favorecem tremendamente da história construída por uma comunidade ao longo de séculos.

A lógica do futebol-negócio atual relega torcedores ao papel de clientes de uma empresa, mas sequer sustenta um modelo real de relação produtor, produto, consumidor. Não é capaz de alterar as formas de exigência de poder político por parte dos torcedores, sequer é capaz de dobrá-los a uma relação passiva e consumista, mas também atinge gravemente os laços afetivos, associativos e de pertença que tem nos clubes um histórico espaço de desenvolvimento.

 7 – “Associação” é modelo falido?

Não se trata de defender o que ai está. Há em grande parte dos clubes brasileiros um modelo igualmente predatório de dominação do comum que é o clube. Não há razão evidente para acreditar que o atual modelo de clubes aristocráticos, ensimesmados, com poderes encastelados em círculos restritos e elitizados seja capaz de suprir as necessidades do torcedor e do futebol.

Clubes brasileiros, mesmo que um dia decidam criar uma sociedade anônima para vender integral ou parcialmente seu ativos para um sujeito qualquer, precisam experimentar a ampliação da participação do seu torcedor nos seus rumos. A “associação” aos moldes brasileiros sempre acompanhou a tradição autoritária e elitista que marca os processos políticos no país, de formatos restritivos, fechados, conservadores e de conchavos. Em comparação aos países vizinhos, principalmente os países de matriz ibérica antes da adoção das sociedades anônimas, é quase vergonhoso arriscar uma comparação no grau de participação e de direitos políticos do associado.

Como já destrinchei em um artigo recente com Anderson Santos, parceiro do Na Bancada Democracia torcedora versus Vantagens consumistas: uma análise da associação clubística em tempos de futebol-negócio” –, a criação de um falso título como “sócio-torcedor” buscou estabelecer um abismo entre os sócios com direitos políticos, e aquele torcedor com um plano especial de compra de ingressos, uma espécie de buyers-club.

Por outro lado, o “sócio-torcedor” ensejou uma nova ordem de percepção de muitos aficcionados frente aos seus clubes, onde passou-se a demandar para essa categoria os mesmos direitos que os antigos sócios dos clubes possuíam. É o que está fervendo de mais interessante em termos de política de clubes.

Portanto o antagonismo aqui em questão não é “associação x empresa”. O verdadeiro antagonismo que está em jogo nessa virada para a bendita terceira década do milênio é “democracia x donos”. Porque a postura de “dono” também se estabelece em clubes incapazes de alargar se quadro social com poder de decisão.

Essa é uma discussão que precisa ser colocada em pé de igualdade contra a ode irresponsável e muitas vezes desonesta ao futebol de sociedades anônimas. Temos no Brasil exemplos de associações democráticas e organizadas com brilhantes resultados esportivos e financeiros, a exemplo de Internacional, Grêmio, Bahia e Santos. Oposição, conselho proporcional e órgãos fiscalizadores realmente ativos estão fazendo esses clubes crescerem com sustentados em suas qualidades democráticas.

Resultado de imagem para clube empresa leiA profissionalização da gestão pode, definitivamente, ser alcançada em uma associação, sem que ela precise ser vendida para uma pessoa alheia a sua história, desconectada de seus valores, desprovida de afeto e pertencimento. E se a única parte realmente incontestável dos benefícios do modelo de S.A é a capitalização no momento inicial de sua atividade, já está provado por A mais B que esse efeito nunca é duradouro o suficiente ao ponto de compensar.

Foi com essa crença que torcedores argentinos atuaram de forma ferrenha contra a lei que impunha a obrigação da transformação dos clubes em empresas, exigindo posicionamentos públicos dos seus dirigentes sob ameaça de prejuízo eleitoral. As eleições nos clubes argentinos são massivas e a atuação dos torcedores não é um ponto fácil de se afrontar [https://nabancada.online/2018/05/08/las-sad-a-ofensiva-da-empresarizacao-dos-clubes-de-futebol-na-argentina/].

No atual momento de discussão da lei no Brasil, há trechos em discussão que repetem a proposta de conversão obrigatória dos clubes em empresas, parte mais danosa dessas modalidades em muitos países. Outras propostas propõem igualar a tributação de associações civis à de sociedades anônimas, criando uma espécie de punição. Em ambos os casos, sobrepõe-se às particularidades dos clubes, ameaçando-os de quebras causadas pela inviabilidade do modelo, coisa que foi corriqueira dentre os clubes de quadro social mais tímido na Espanha e no Chile

Nas quatro décadas passadas o mundo inteiro mostrou que a entrega irresponsável de instituições centenárias a pessoas alheias tem consequências graves do ponto de vista esportivo, financeiro, jurídico, político, social e cultural. Espera-se que ao menos disso os torcedores tenham conhecimento antes de botar a cabeça no travesseiro sonhando com o futuro comprador da sua S.A. Ou não, se for possível evitá-las de alguma forma.

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Referência:

Todos os podcasts do Na Bancada sobre S.A no futebol.

Irlan Simões é criador do podcast Na Bancada, pesquisador do futebol (LEME/PPGCom/UERJ) e autor do livro Clientes versus Rebeldes – Novas culturas torcedoras nas arenas do futebol moderno.

Um pensamento sobre “Clubes-empresa no Brasil: por um contraponto nessa conversa

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