Não é por acaso

O jovem colombiano Egan Bernal, de apenas 22 anos, conquistou no último domingo o Tour de France de 2019, se tornando assim o primeiro latino-americano a vencer a prova mais importante e tradicional do ciclismo de estrada mundial. A conquista não é pequena. A prova centenária é realizada desde 1903, todos os principais atletas do mundo tentam a sua glória, mas o campeão só é conhecido depois de 21 etapas duríssimas.

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Fonte: Divulgação Oficial do Tour de France

Os ciclistas passam por uma verdadeira maratona ao longo de três semanas e, em meio a todo esse esforço, precisam escalar algumas das mais desafiadoras montanhas da Europa – mais precisamente da França, ainda que a prova em regra passe também por outros países da região.

Em meio a todo esse feito, que parou a Colômbia e transformou Bernal em herói nacional, parte da imprensa esportiva brasileira, cujo país não possui atualmente nenhum ciclista entre os 100 melhores atletas do mundo na modalidade, insistiu numa cobertura rasa em que reproduziu uma velha lenda de que o sucesso colombiano se dá por causa da geografia do país, repleto de altas montanhas.

Segundo essa teoria, que beira o preconceito, os colombianos se acostumaram desde cedo a pedalar em altas altitudes e isso criaria uma predisposição genética que facilitaria a participação de seus atletas nestas grandes voltas de ciclismo.

Pura balela.

É o mesmo tipo de teoria que minimiza, por exemplo, tudo o que é feito em países como Quênia e Etiópia para formar grandes fundistas no atletismo mundial. Que ignora todo o investimento feito no esporte de alto rendimento e coloca tudo na conta de um certo acaso determinista para explicar resultados tão expressivos em nível mundial.

Colocar a vitória de Egan Bernal na conta das altas montanhas colombianas, pois, é ignorar um investimento pesado que o país sul-americano realiza há mais de quatro décadas, com a participação de grandes empresas e do próprio Governo da Colômbia em prol do ciclismo de alto rendimento.

Um investimento que vai desde o próprio incentivo do uso da bicicleta como meio de transporte, que coloca a capital do país, Bogotá, como a cidade com a maior extensão de ciclovias da América Latina; até a criação de centros de treinamento de base para a identificação e a qualificação de jovens talentos e a criação de equipes desportivas e competições locais para atletas de ponta.

O resultado?

Um país que é absolutamente apaixonado por ciclismo.

Um país que teve Nairo Quintana (uma espécie de precursor de Bernal) como campeão do Giro d’Itália e da La Vuelta, as outras duas grandes voltas do mundo, realizadas na Itália e na Espanha respectivamente.

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Fonte: Getty Images

Um país que neste mesmo Tour de France vencido por Bernal teve outros dois colombianos (Rigoberto Uran e o próprio Nairo Quintana) entre os dez melhores da classificação geral (nenhum outro país teve tantos ciclistas no Top 10 da prova).

Aliás, se apenas as altas montanhas fossem suficientes, a Colômbia já seria uma potência desde os primórdios do esporte. A França não estaria há 34 anos na fila, sem vencer em casa. O Nepal venceria todos os tours da história de forma disparada.

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Fonte: Divulgação Oficial do Tour de France

Repito, colocar exclusivamente na conta das altas montanhas os resultados impressionantes do ciclismo colombiano nos últimos anos é ignorar um trabalho sério e de longo prazo que foi e que é realizado por uma coletividade para se chegar aonde se chegou. Sabendo-se ao longo do processo exatamente aonde se queria chegar.

É, ao mesmo tempo, um covarde processo de tentar se abster das incompetências esportivas do Brasil.

Como quem diz: “Ah, mas o Brasil só não consegue as mesmas conquistas no ciclismo porque não tem altas montanhas”.

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