Cinza é a cor mais quente: sobre estádios para sentar

Já é um caso consumado no futebol brasileiro: torcidas organizadas são disciplinadas e colocadas obrigatoriamente no fundo de um dos gols, espremidas em um lance minoritário de uma arena invariavelmente repleta de assentos vazios, concentrando e/ou sobrepondo a festa de quatro ou cinco agrupamentos.

A festa é confusa, descompassada. As torcidas disputam entre si o protagonismo da mobilização de um dos poucos públicos “autorizados” a estar de pé e vibrando na partida. Ao fundo do outro gol, e nas arquibancadas localizadas na lateral do campo, a regra é outra. O comportamento passivo é ditado pelo “eu paguei”, pelo “senta aí” e pelo assento marcado no ingresso.

A setorização é exagerada, cerceadora. Amigos daqueles que não arrumaram ingressos para os setor (em tese) “popular” – sempre esgotado antecipadamente – são obrigados a se deslocar para os silenciosos e regrados setores “não populares”, na companhia dos insuportáveis e corneteiros “cidadãos de bem” e seus sonhos de modernidade européia.

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Espaço de um público que absorveu a ideologia da clientelização, que exige o seu direito do consumidor com cartilha embaixo do braço. Que olha para aquela turba barulhenta ao fundo dos gols como um custo a ser eliminado, sobretudo porque é ela que, na inconveniencia de não usar os assentos de forma adequada, acaba por quebrá-los. Assentos esses que nunca fora solicitados.

É até paradoxal, já que torcidas foram proibidas de portar uma série de objetos dentro das praças desportivas, alegando-se a possibilidade de uso desses artefatos para fins violentos, e hoje precisam ferir canelas, tropeçar e se apertar entre assentos facilmente convertíveis em “arma-brancas” pela mesma minoria de indivíduos mal intencionados.

Há uma inversão absoluta da lógica. O setor popular – que na realidade é apenas onde os ingressos são menos caros – hoje é o espaço mais exclusivista, porque representa menos de 30% de uma arena com capacidade para mais de 40 mil assentos. Arenas com espaço físico real quase todo projetado para o encaixe de camarotes, setores vips e outras invenções congêneres que destinam alto investimento para o uso de um baixo número de indivíduos.

O futebol brasileiro após a Copa do Mundo 2014 se habituou ao pior de dois mundos. Incapacitado financeiramente a reter seus melhores jogadores e oferecer um “bom espetáculo” – e consequentemente atrair esse tão almejado “público consumidor” que não se apresentou no plano do real até hoje -, também fracassa em tentar adotar um modelo de estádio presente nas piores praças desportivas do mundo em termos de cultura torcedora.

E aqui não vale denunciar “estádio europeu” como validade analítica: além de resumir um continente com distintas lógicas internas, também desconsidera os embates promovidos por torcidas alemãs, espanholas e italianas contra o cerceamento das formas de torcer. Foi na própria Alemanha que a associação dos grupos ultras locais conquistou e mantém espaços como a Stehplatz, setores livres de cadeiras e cuja “regra” é permitir a circulação dos torcedores, as festas das torcidas e o encontro dos amigos.

Medida anunciada como inspiração nos casos da Arena Corinthians e Arena Grêmio, cujas relações amigáveis entre suas então diretorias e os principais agrupamentos torcedores proporcionaram um dos poucos “Stehplatz” à brasileira nas arenas oriundas da movimento de produção da Copa do Mundo. Medida avançada, se em comparação ao Maracanã – que, registre-se, adotou um constrangedor padrão de assentos em azul e amarelo, inspirada em um estádio ucraniano que tinha como pretensão disfarçar a sua costumaz baixa ocupação.

Mas o que soava como avanço, acabou se tornando medida de viabilização do projeto de resignificação do público dos estádios: assim como para seu rival, na casa do Palmeiras (Allianz Arena) o tal “setor popular” tem servido como carta na manga para as políticas de encarecimento do preço dos ingressos. Afinal, se você não estava bem posicionado no ranking de sócios, ou não foi habilidoso o suficiente para garantir o seu direito nessa minoritária carga de “ingresso popular”, bastava-lhe (restava-lhe?) pagar mais caro em outro setor.

É dentro dessa dialética dos sentidos do futebol contemporâneo que se estabelecem os episódios mais interessantes da matéria. No Internacional essa é a pauta atual da torcida, que elegeu um presidente que teve como promessa (não cumprida) a retirada das cadeiras “atrás das goleiras” do Beira-Rio. Com o lançamento de um novo “terceiro uniforme” na cor cinza, em uma peça publicitária que colocava a camisa sobre uma cadeira do estádio, a torcida do Inter reacendeu o debate. Veja na imagem.

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É evidente que a possibilidade de remoção dos assentos caros e “padrão FIFA” sofre dura reação de círculos de torcedores que não frequentam o setor ao qual o projeto se destina. São cenas dos próximos capítulos.

O setor destinado aos torcedores com disposição física para a promoção de coreografias, cânticos, demonstrações e bandeiradas é o histórico formador de novas gerações de torcedores. É o que ativa os sentidos e as emoções de garotos e garotas que estão aprendendo a beleza do torcer. É o que cativa, marca a memória e vicia o corpo para a nova dose de adrenalina e encanto com o movimento massivo que se move e canta em uníssono.

Fica então o dilema para o futuro do futebol brasileiro e para a emoção que permeia os prazeres de ser um jovem pretendente a torcedor de futebol: no cinza da arquibancada, vale mais o colorido vibrante das torcidas ou dos sintéticos assentos de plástico?

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