80 anos do artigo Foot-Ball Mulato de Gilberto Freyre: a eficácia simbólica de um mito

No dia 17 de junho de 1938, Gilberto Freyre publicou no Diário de Pernambuco um artigo que se transformaria, algumas décadas depois, em objeto de estudo de cientistas sociais no Brasil. No artigo “Foot-ball Mulato”, Freyre diz que estava respondendo a um repórter que queria sua opinião sobre as “admiráveis performances brasileiras nos campos de Strasburgo e Bordeaux”. A seleção brasileira terminou em terceiro lugar na Copa da França de 1938 e tinha em sua equipe dois jogadores considerados extraordinários: Domingos da Guia e Leônidas da Silva.

Nesse artigo, Freyre louva a miscigenação racial no país e diz que ela funda uma nova forma de se jogar o futebol, um estilo brasileiro, que antagonizava com a prática dos europeus. Segundo Freyre o mulato brasileiro teria descaracterizado o futebol deseuropeizando-o, “dando-lhe curvas e graças de dança.”

A ideia de que o futebol brasileiro possuiria um estilo único, singular e inigualável foi criando raízes e se tornou fonte de identidade importante no país. Há que se considerar o tom revolucionário de Freyre para a época, que convivia ainda com resquícios das teorias racialistas que vinham da Europa. Freyre já tinha confrontado estas teorias no seu clássico Casa Grande & Senzala de 1933.

De todos os modos, para que esta ideia de estilo único pudesse ter eficácia simbólica era preciso conquistas expressivas da seleção nacional. Após um intervalo de 12 anos por conta da Segunda Guerra Mundial, a Copa do Mundo retornou em 1950, tendo o Brasil como sede. Em um período de 20 anos, entre 1950 e 1970, tivemos seis mundiais de futebol. A seleção brasileira foi a quatro finais, venceu três, 1958, 1962 e 1970, e se sagrou tricampeã. A primeira tricampeã da história. Em 1950, apesar do vice-campeonato, a seleção goleou por 7 a 1 a Suécia e por 6 a 1 a Espanha, encantando os torcedores, antes da derrota para o Uruguai por 2 a 1. Tive a oportunidade e a honra de entrevistar o jornalista João Saldanha no final dos anos 1980, quando fazia minha pesquisa de doutorado. Saldanha foi categórico ao afirmar que a seleção de 1950 era tão boa quando a que ganhou o tricampeonato, acrescentando ainda que Zizinho era um jogador excepcional.

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Fonte: Veja

Assim, em uma época anterior à globalização, a seleção teria montado quatro equipes fantásticas, repletas de jogadores excepcionais, a maioria mestiça, com maior destaque para Garrincha e Pelé. Estas equipes venceram três Copas de seis disputadas e terminaram em segundo lugar em outra, aplicando duas goleadas históricas em equipes europeias.

Essa correspondência empírica, ancorada em conquistas expressivas e em jogadores muito habilidosos, impulsionou as ideias contidas em Foot-ball Mulato, e no livro O Negro no Futebol Brasileiro, do jornalista Mário Filho, que, por sua vez, foi prefaciado por seu amigo Gilberto Freyre.

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Fonte: Trivela

A eficácia da mitologia do estilo se fez presente também fora do Brasil. Minha pesquisa de pós-doutorado em Buenos Aires demonstrou que a imprensa argentina nos vê como profissionais do “jogo bonito”. E o escritor francês, Olivier Guez, afirma em seu livro Éloge de L’Esquive, que o drible teria sido inventado pelos brasileiros.

A questão que se impõe aqui é: existiria mesmo um estilo de jogar futebol que seria típico do Brasil? Observemos que parece existir um consenso na imprensa nacional de que, de 1970 até os dias de hoje, somente uma seleção teria jogado este “estilo”: a de 1982. Ora, se em quase 50 anos somente uma seleção teria jogado o tal estilo, estamos falando de uma exceção e não de nossa suposta essência.

Lembro que, em 2011, Santos e Flamengo fizeram uma partida pelo Campeonato Brasileiro daquele ano que acabou entrando para história. A equipe do Santos tinha Neymar e Paulo Henrique Ganso e a do Flamengo, Ronaldinho Gaúcho. O jogo foi no dia 27 de julho de 2011, na Vila Belmiro, casa do Santos. E o placar terminou com a vitória do Flamengo por 5 a 4.  A imprensa nacional celebrava a “essência” do nosso futebol ou o retorno do “verdadeiro” futebol brasileiro. Era a 12ª rodada do campeonato. 120 jogos. Uma “verdade”. 119 “mentiras”. Escrevi um artigo para o jornal O Globo na ocasião, dizendo justamente que aquela partida não representava nossa “essência”, até porque tenho dificuldade de entender se teríamos mesmo uma, mas a exceção. O que aconteceu naquela partida foi por conta das estrelas que estavam em campo, sendo Neymar e Ronaldinho Gaúcho, as maiores. Ambos os atletas estavam inspirados e lideraram um espetáculo único.

Minha hipótese sobre a questão do estilo é simples. Jogadores extraordinários, possuem estilos parecidos: o estilo extraordinário. Além disso, é curioso notar que dificilmente se fala em estilo nas narrativas dos campeonatos locais. A ênfase nestas ocasiões é na disciplina tática, no jogo coletivo, na garra dos atletas, regularidade e constância da equipe. A questão do estilo sempre se fez mais presente nas narrativas da seleção.

Devo dizer que é muito importante reconhecer o mérito do artigo de Gilberto Freyre, ainda mais se levarmos em conta o período em que foi escrito. Este assunto sobre a existência ou não de um estilo de futebol merece pesquisas mais detalhadas e reflexões mais profundas para que possamos ter conclusões mais precisas. E o referido artigo será sempre um marco para estas reflexões.

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